I– Tendo o arguido, mediante as condutas por que foi acusado pelo crime de violação de proibições, violado uma ordem de restrição imposta pelo Tribunal, nela se traduzindo a pena acessória que lhe foi imposta em processo onde foi condenado por crime de violência doméstica e destinando-se tal restrição a proteger a vitima, violou também interesses e direitos da vitima/ ofendida, que a norma incriminadora claramente também quis proteger;
II– Sendo o bem jurídico protegido pelo art.° 353 do CP, não só a não frustração de sanções impostas por sentença criminal, mas também a não violação dos direitos e interesses da vitima, conclui-se que a ofendida / vitima tem legitimidade para intervir como assistente nos autos enquanto titular directa de interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação;
III– Há, assim, um duplo interesse a proteger, ou seja o da protecção da vítima de violência doméstica, traduzido no efectivo afastamento do agressor relativamente à vítima, bem como o da protecção da boa e efectiva administração da justiça.
No processo sumário n.º 30/18.6SELSB-A.L1 vindo Do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Lisboa, Juízo Local Criminal – J9, AA interpôs recurso da decisão que não a admitiu a intervir como assistente nos autos onde se procede criminalmente contra o arguido BB por dois crimes de violação de proibições – concretamente de proibição de contacto com a dita AA, pena acessória imposta àquele arguido em processo onde foi condenado por crime de violência doméstica.
Extrai da respectiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
«A)–De acordo com o conteúdo do douto despacho proferido, carece a Queixosa de legitimidade para se constituir Assistente nos presentes autos
B)–Alega para tanto, em síntese, o Mm.º Juiz do Tribunal “a quo" que os presentes autos tem por objecto a eventual prática, pelo Arguido, de crime de violação de imposições, proibições ou interdições P. e P., pelo Art.° 353º do C.P.
C)–Sendo o bem jurídico protegido por este crime a não frustração de sanções impostas por sentença criminal.
D)–Não se podendo assim dizer que a Queixosa é Ofendida nos termos definidos pela alínea a) do n.º 1 do Art.° 68 do CPP e a titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação.
E)–Que não existe qualquer disposição legal especial que autorize a Ofendida a constituir-se Assistente.
F)–Não se encontrando, também, o crime em causa, no catálogo restrito enunciado na alínea e) do n.º 1 do Art.º 68 do CPP.
G)–Não pode a ora Recorrente, salvo o devido respeito, concordar com tal entendimento, pois
H)–Entende a ora Recorrente que tem toda a legitimidade para se constituir Assistente, no âmbito dos presentes autos, isto porque, contrariamente ao afirmado no douto despacho, o nº 1 al a) do Art.°68, o permite, pois
I)–O Arguido violou uma ordem de restrição imposta pelo Tribunal, ordem essa que foi aplicada no sentido de proteger a ora Recorrente, pelo que violou assim interesses e direitos da ora Recorrente que também esta lei quis proteger, pois
J)–Contrariamente ao defendido no douto despacho proferido, o bem jurídico protegido pelo Art.° 353 do CP, não é unicamente a não frustração de sanções impostas por sentença criminal. mas igualmente, assegurar que são respeitados os direitos e interesses, neste caso, da ora Recorrente.
K)–Até porque, mais do que a aplicação da medida em si, o que mais a protege é a proibição de violar essa medida, isto porque, caso não existisse essa proibição de violação de moda, serviria a aplicação da medida.
L)–É assim a ora Recorrente, a verdadeira e principal beneficiária quer da medida de restrição como da norma que impede a sua violação, pois a verdade é que ao violar a medida aplicada, o Arguido violou a esfera pessoal da ora Recorrente, causando-lhe um prejuízo directo que o Tribunal quis evitar ao impor tal medida.
M)–Sendo assim inconstitucional o entendimento perfilhado no douto despacho, porque está a coartar à ora Recorrente, direitos de defesa que lhe estão legalmente reconhecidos.
N)–Ao violar a medida de restrição, o Arguido aterrorizou a ora Recorrente, perturbando-a na sua segurança e tranquilidade, pelo que, o entendimento perfilhado no douto despacho viola os princípios da Convenção de Istambul de proteger as vítimas de violência doméstica, ao não permitir o acesso a meios de defesa dos seus interesses e direitos.
O)–Entende-se, assim face ao supra exposto que viola o douto despacho o disposto na ai a) do n.º 1 do Art.° 68 do CPP.
P)– Pelo exposto, deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente, ser alterado o douto despacho proferido no sentido de admitir como Assistente, a ora Recorrente, no âmbito dos presentes autos.
NESTES TERMOS
Deve ser dado provimento ao presente recurso e consequentemente, ser alterado o douto despacho proferido no sentido de admitir como Assistente, a ora Recorrente, no âmbito dos presentes autos.
ASSIM FARÃO
V. Exa a Venerandos Juizes Desembargadores a sã, serena e habitual
Justiça.»
Responde o Mº Pº conforme fs. 46 vº e ss, pugnando pelo não provimento do recurso e confirmação do decidido.
Já a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta nesta instância emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
Colhidos os Vistos vêm os autos à conferência para decisão.
*****
Analisando as conclusões extraídas pela recorrente da motivação do seu recurso (conclusões que, como é sabido, definem e delimitam as questões seu objecto e a tratar) verificamos que em causa está tão só saber se a mesma deve ser admitida a intervir como assistente nos autos ou se, como se decidiu, para tal carece de legitimidade.
Entendeu o Mª Juiz “a quo” que, tendo os autos por objecto a eventual prática pelo arguido de um crime violação de imposições, proibições ou interdições, previsto e punível pelo artigo 353.° do Código Penal, integrado, no Título V - Crimes contra o Estado, Capítulo 11 - Dos crimes contra a autoridade pública, Secção 11 daquele Código, por [...] não cumprimento de obrigações impostas por Sentença criminal, o bem jurídico imediatamente protegido por este crime, no contexto do bem mais amplo da autonomia intencional do Estado (cf artigo 347.° do Código Penal) se traduz na não frustração de sanções impostas por sentença criminal (1), pelo que não pode considerar-se a queixosa, ora aqui recorrente, ofendida nos termos definidos pelo artigo 68.°, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, ou seja, a titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Mais considerou que, não existindo também qualquer disposição legal especial que autorize a ofendida a constituir-se assistente (artigo 68.°, n.º 1, proémio, do Código de Processo Penal) nem se encontrando o crime de violação de imposições, proibições ou interdições no catálogo restrito enunciado na alínea e) do n.º 1 desse mesmo artigo 68.° do Código de Processo Penal, aquela carece de legitimidade para se constituir assistente nos presentes autos, por tudo indeferindo o requerido.»
Dispõe o artº 68º nº 1 – no que aqui importa considerar:
1–Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:
a)-Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;
b)-As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
c)-…
d)-…
e)- Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.
…
Estando obviamente afastado o enquadramento da situação da recorrente na previsão do corpo e das alíneas b) e e) do nº 1 do artº 68º, o que haverá que ponderar é se a recorrente poderá considerar-se titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.
Defende a recorrente que tendo o arguido, mediante as condutas por que foi acusado pelos crimes de violação de proibições, violado uma ordem de restrição imposta pelo Tribunal - nela se traduzindo a pena acessória que lhe foi imposta em processo onde foi condenado por crime de violência doméstica - destinando-se tal restrição a protegê-la, violou também interessas e direitos seus que a norma incriminadora também quis proteger, sendo o bem jurídico protegido por tal norma – o art.° 353 do CP – não unicamente a não frustração de sanções impostas por sentença criminal mas igualmente esses a não violação dos seus direitos e interesses, daí retirando a sua legitimidade para intervir como assistente nos autos enquanto titular de interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (2) .
E, desde já se adianta, com razão.
Como em refere a Senhora Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer que, porquanto, invocando jurisprudência e doutrina que consagram entendimento que, ainda que relativo a distintos ilícitos, tem plena aplicação ao aqui em causa, expõe de forma exemplar e em termos que inteiramente subscrevemos tudo que se oferece dizer a respeito, com a devida vénia aqui transcrevemos,
«Como pode ler-se no acórdão do STJ n°1/2003 para fixação de jurisprudência relativamente à legitimidade de ofendido por crime de falsificação, anota-se ali que é entendimento do Prof. Figueiredo Dias, vertido in «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», in Jornadas de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, p. 10:
«para uma autêntica protecção da vítima, mais decisivo ainda que o auxílio 'social' em sentido amplo que lhe possa ser prestado é o conferir-lhe voz autónoma, logo ao nível do processo penal, permitindo-lhe uma acção conformadora do sentido da decisão final» (6), pelo que manteve a figura do assistente.»
Mais ali se refere que o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, I, p. 240 explana que:
"Na verdade, a consideração de que o crime ofende principalmente interesses da comunidade não pode fazer olvidar que em grande número de crimes quem primeiro sofre o mal do crime são os particulares e, por isso, a sua participação activa no processo permite dar-lhes satisfação pela ofensa sofrida, convencendo-os da efectivação da justiça no caso, e trazer ao processo a sua colaboração»
E, continuando a citar o referido acórdão do STJ, dali consta ainda que:
"Referia Luís Osório que a atribuição da titularidade do exercício da acção penal ao Ministério Público era o resultado de uma evolução regressiva quanto à intervenção nessa área dos particulares, de sorte que, primitivamente a eles pertencendo tal exercício, a evolução se deu no sentido de lhes restringir esses poderes, mas não de os extinguir, pois que não deixando de ter presente que «o indivíduo que foi ofendido com um crime não parece a pessoa mais própria para incarnar o interesse geral da repressão do crime», é certo, no entanto, que «os motivos que levaram o nosso legislador a manter o sistema existente e afastar-se dos outros geralmente referidos no estrangeiro baseia-se na demonstração que a experiência nos patenteia do quanto é eficaz e benéfica a ampla colaboração dos particulares na acusação, pois que se bem que eles possam, muitas vezes, levar para o processo uma natural paixão que desvirtua a função da acusação, essa paixão pode e deve ser eficazmente contrabalançada pela imparcialidade tanto do Ministério Público como do juiz»
«Foi definido como «o sujeito processual que intervém no processo como colaborador do Ministério Público na promoção da justa aplicação da lei ao caso e legitimado em virtude da sua qualidade de ofendido ou de especiais relações com o ofendido pelo crime ou da natureza deste (artigo 69.º n.º 1) - Germano Marques da Silva, op. cit., pp. 242 e 243»
«O assistente está legitimado a agir no processo penal, enquanto detentor de um específico interesse na questão de direito sujeita a apreciação judicial. Sendo que esse interesse, embora particular, é um elemento de ponderação na concreta decisão do caso, pelo que a intervenção do assistente é também uma exigência de ordem pública (pois que a decisão justa é aquela que tem por suporte a consideração de todos os pontos juridicamente relevantes — incluindo o do assistente)» - cf. Damião da Cunha, "A participação dos particulares no exercício da acção penal", RPCC, 8, p. 593.»
Continuando a citar o mesmo aresto, ali se dá resumida conta de que:
"Recentemente, este Supremo Tribunal de Justiça (51) começou a inflectir o caminho anteriormente percorrido, que se sintetizou, e decidiu que, «sendo o objecto mediato da tutela jurídico-penal sempre de natureza pública (sem o que não seria justificada a incriminação) o imediato poderá também ter essa natureza ou significar, isolada ou simultaneamente com aquele, o fim de tutela de um interesse ou direito da titularidade de um particular». Posição que vai no sentido que se adiantou, de que «especial» não significa «exclusivo», mas sim «particular», e que um só tipo legal pode proteger mais do que um bem jurídico, questão a resolver face, ao mesmo tempo, ao caso concreto e ao recorte do tipo legal interessado."
E a propósito do crime de denúncia caluniosa, ali se refere:
"... este Tribunal, a partir da análise da globalidade e da regulamentação específica do tipo do crime de denúncia caluniosa (52), admitiu a constituição como assistente do ofendido, por entender que, além do interesse na boa administração da justiça como interesse imediato que a lei quer especialmente proteger com a incriminação, quando os factos objecto da falsa imputação são lesivos do bom nome e honra do visado, está também em causa a tutela de direitos fundamentais da pessoa, que não deverão deixar de considerar-se como também queridos especialmente proteger com a incriminação daquele artigo, independentemente da possibilidade ou não de diferente incriminação da ofensa do interesse particular, mesmo que porventura numa relação de concurso efectivo e não aparente com aquela"
E, novamente a propósito do crime de falsificação, mais ali se refere que:
"Ora, este raciocínio cabe igualmente no crime de falsificação de documento e no caso dos autos. Na realidade, não pode concluir-se pela inadmissibilidade da constituição de assistente somente a partir da natureza do crime, pois que, apesar de se tratar de um crime de perigo, pode também visar a protecção de interesses particulares."
Acabando por fixar jurisprudência no sentido de que:
"No procedimento criminal pelo crime de falsificação de documento, previsto e punido pela alínea a) do n.º / do artigo 256.º do Código Penal, a pessoa cujo prejuízo seja visado pelo agente tem legitimidade para se constituir assistente."
Também o STJ, por via do acórdão n° 8/2006 de 12.10.2006, publicado no DR n°229, I Série de 28.11.2006, fixou jurisprudência no sentido de que:
"No crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365.° do Código Penal, o caluniado tem legitimidade para se constituir assistente no procedimento criminal instaurado contra o caluniador."
Ora, como pode ler-se do referido AFJ, o acórdão entendeu ser admissível a constituição de assistente porque (3) “a incriminação de denúncia caluniosa protege directa, imediata e simultaneamente o interesse da administração da justiça e a consideração e honra da pessoa denunciada, a qual a lei quis especialmente, também, proteger. A lei, no caso, tutela tanto a boa administração da justiça, quanto o indivíduo”.
O crime de violência doméstica tem natureza pública e nos dizeres do Ac. TRC de 24.4.2012: "O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, agora autonomizado do crime de maus tratos a que alude o art.152-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa relação;"
Em causa nos presentes autos, em que é pretendida a constituição da vítima como assistente, está a violação da pena acessória de proibição de contacto com a vítima. Há, assim, um duplo interesse a proteger, como sejam o da protecção da vítima de violência doméstica, traduzido no efectivo afastamento do agressor relativamente à vítima e o da protecção da boa e efectiva administração da justiça. A violação daquela obrigação afectou directamente a vítima e afecta directamente o interesse do Estado, que, enquanto administrador da Justiça em nome dos cidadãos, deve velar pela execução das decisões judiciais, aqui no segmento das penas acessórias.
Assim, mesmo entendendo-se que o factor determinante para apreciar "a admissibilidade da constituição de assistente, mesmo em crime públicos, estará dependente sempre da análise que se efectue ao valor juridicamente tutelado pela norma" e que "se este for de natureza exclusivamente pública, inexistindo outros interesses a tutelar, não terá o ofendido legitimidade para se constituir assistente". (Ac. TRP de 12.01.2011, in P. 574/08.8TAVRL-A.P) haverá que concluir que não estando em causa, em exclusividade, o interesse público, não poderá a vítima de crime de violência doméstica deixar de ser admitida a intervir como assistente no processo por crime do art.353° do CP, cometido pelo agressor na sua pessoa.
No caso em apreço, subjacente à violação estão as obrigações que haviam sido impostas ao arguido e que o mesmo violou.
Não vislumbramos, assim, razão objectiva que afaste a possibilidade da constituição da vítima como assistente no processo subsequente, fundado na violação da pena acessória, evidenciando-se, a nosso ver, a sua legitimidade para o efeito.
Por tudo isto, com todo o respeito por diferente entendimento, tendo por base que o crime em causa tem natureza pública, parece-nos bom de ver que se há situação fáctica em que o interesse da vítima coexiste, com igual premência, com o interesse público da boa administração da justiça, estando aquele na génese deste e sendo a vítima e o Estado directamente afectados pela violação das obrigações judicialmente impostas a título de pena acessória, não podemos deixar de concluir que a protecção destes múltiplos interesses deverá levar ao entendimento de que a vítima do crime de violência doméstica deve ser admitida a intervir como assistente no crime do art.353° do CP, com vista a uma maior eficácia na protecção, quer do interesse público da boa administração da justiça, quer do mais legítimo e íntimo interesse e direito pessoal e individual, por ambos serem protegidos com a incriminação.»
Em tais termos e com tais fundamentos deverá o recurso proceder com a revogação da decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que admita a recorrente a intervir nos autos como assistente.
DECISÃO
Por tudo o exposto acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando a sua substituição por outra que admita a recorrente a intervir nos autos como assistente.
Lisboa, 21 de Janeiro de 2021
(Maria da Luz Batista)
(Almeida Cabral)
(1)Daí que o crime em causa revista natureza pública - e não semipública ou, muito menos, particular - cf. artigo 68.°, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
(2)considerando inconstitucional o entendimento contrário perfilhado no douto despacho.
(3)e tal tem pena aplicação ao crime e caso presente.