ACLARAÇÃO DE ACÓRDÃO
Sumário


1 – O Código de Processo Civil em vigor não consagra a possibilidade de aclaração das obscuridades ou ambiguidades da decisão ou dos seus fundamentos, nos termos que resultavam da alínea a) do n.º 1 do artigo 669.º do anterior código.

2 – A ambiguidade ou obscuridade da sentença pode, contudo, integrar a nulidade da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do código em vigor, quando torne a decisão ininteligível.

Texto Integral


Proc. n.º 3283/18.6T8MTS.P1-A.S1
4.ª Secção
LD\JG\CM

Acordam em conferência na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

Inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do …, em 10 de janeiro de 2020, na ação emergente de contrato de trabalho, em que é Autora AA e Ré Clínica de Recuperação Funcional da Trindade, Lda., veio esta interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal, referindo no requerimento de interposição que «atempada e respeitosamente, ao abrigo do disposto na conjugação do disposto no artigo 629.º e ss., todos do Código do Processo Civil (doravante "CPC"), interpor o presente recurso, que é de RECURSO DE REVISTA, para o Venerando Supremo Tribunal da Justiça, a subir imediatamente, nos próprios autos, e que se atenta a necessidade de liquidação e correção do valor nos autos conforme seguidamente se fundamenta se requer seja fixado com efeito suspensivo, requerendo-se para o efeito seja dispensada a prestação de foi proferida sentença, em 22.03.2019, que julgou a ação improcedente e absolveu a Ré de todos os pedidos contra ela formulados e não condenou qualquer das partes como litigante de má-fé».

A admissão do recurso interposto foi rejeitada por despacho proferido em 11 de maio de 2020, pelo Exm.º Presidente da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto.

Inconformado com este despacho, dele veio a recorrente reclamar para este Supremo Tribunal, nos termos do artigo 643.º do Código de Processo Civil.

A reclamação apresentada foi rejeitada por despacho do relator de 13 de julho de 2020.

Inconformada com esse despacho, reclamou a Ré para a conferência «nos termos conjugados do estabelecido nos artigos 145.º e seguintes, em especial a conjugação do disposto no n.º 3 do artigo 643.º com o disposto no artigo 652.º do CPC».

Por acórdão desta Secção, proferido em conferência, em 14 de outubro de 2020, foi indeferida a reclamação e confirmado o despacho impugnado.

Notificada deste acórdão, invocando o disposto no artigo 669.º do Código de Processo Civil de 1961, veio a Ré, requerer a aclaração do acórdão, nos termos seguintes:

«Sem prejuízo de toda a matéria que antecede nos autos, e cuja materialidade por economia processual aqui não se repete mas – apenas na medida em que é fundamental para o enquadramento e contexto do presente pedido de esclarecimento -, se dá por integralmente reproduzida para todos os legais efeitos,
Afigura-se à R.-Reclamante necessário, em face à obscuridade ou ambiguidade da colenda decisão de V.ªs Ex.ªs, e uma vez confrontados os fundamentos com o próprio sentido da decisão, ver esclarecidos determinados aspetos.
O que desde já requer, nos termos do disposto no artigo 669º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil (CPC) na redação à data, e que mutatis mutandis confere ao ora Requerente essa prerrogativa através da qual pretende ver esclarecidos determinados aspetos sobre a Superior decisão de V.ª Ex.ª, e que recai sobre a reclamação que por sua vez tem por objeto a decisão de indeferimento do pedido de subida dos autos para apreciação do recurso nos autos (v.g. rejeitada por despacho do Exm.° Presidente da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de maio de 2020).
Feito o enquadramento que antecede, com douta vénia e devida distância, parece decorrer de forma inequívoca da decisão de V.ª Ex.ª datada de 15 de outubro de 2020 que:
“…Tendo sido interposto recurso de apelação pela Autora daquela decisão, que não pôs em causa o decidido quanto ao valor do processo, a Ré, embora tenha tido intervenção naquele recurso, não reagiu àquele segmento da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância que por tal motivo transitou em julgado e se tornou definitiva. Carece de sentido, vir agora, no âmbito do requerimento de interposição do recurso de revista, insurgir-se contra aquele valor e requerer a concretização da sucumbência e a alteração do valor fixado ao processo.” (destaques nossos).
Sempre com referência ao sentido desta decisão, e tendo em conta que a R.-Reclamante teve ganho integral de causa em 1.ª instância, e que nesse sentido não tinha instância ou fundamento para recurso, e que a A. - Reclamada é a única parte que recorre definindo voluntariamente o objeto de recurso conforme entendeu, em que medida entendem os Colendos Conselheiros que seria expectável e adequado nesse momento – novamente, em que a R. tinha à data uma posição processual de absolvição integral -, suscitar qualquer questão sobre o valor da causa, que para todos os efeitos e sendo a sentença de 1.ª instância uma absolvição integral só ganha materialidade com a decisão do Tribunal da Relação e a sua respetiva quantificação?
E, conforme se referiu nas Alegações de recurso indeferidas e no corpo da reclamação cujo esclarecimento ora se solicita, sendo este o momento em que pela primeira vez (i) se condena a R.-Reclamante, e (ii) em virtude dessa quantificação nos autos esta se vê confrontada com o leitmotiv do recurso e da reclamação cujo esclarecimento ora respeitosamente se solicita, com que base se entende estar coartado o Digm.º Tribunal de, atenta a materialidade da causa, fixar o valor dos autos de acordo com a condenação efetiva decidida?
Em nota final, refira-se que os esclarecimentos que ora se solicitam são essenciais para a análise processual dos atos e recursos adicionais, e designadamente para a consideração da hipótese de interposição de recurso excecional, e/ou para outras instâncias nacionais e/ou europeias, em salvaguarda dos integrais direitos de defesa e posição da Requerente.
Termos em que e nos demais que os Colendos Conselheiros doutamente suprirão, nos termos do artigo 669º, n.º 1, alínea a), do CPC, se requer a aclaração da Colenda decisão proferida em 15 de outubro de 2020.»

A Autora respondeu ao pedido de “aclaração”, no essencial, nos termos seguintes:

«1. Na esteira do que já vem ocorrendo, na longa tramitação que o processo ostenta, num manifestamente reprovável uso do mesmo, com o fim de protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão, na mira de obstaculizar à ação da justiça, (quem o não vê?), a Recorrente, agora, de novo na veste de reclamante, ficciona um pedido de aclaração do douto e cristalino Acórdão sumariado, proferido em conferencia nessa secção social, em 14 de Outubro de 2020.
2. O instituto processual da aclaração, previsto no artigo 669.º, n.º 1 do C.P.C., despareceu com a reforma do Código do Processo Civil (Novo Código do Processo Civil)
3. A verificação de alguma ambiguidade ou obscuridade da decisão que a torne ininteligível deve agora enquadrar-se no instituto da nulidade da decisão, previsto na al. c) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C.
 4. Nos exatos termos em que se mostra formulado, carece o pedido da Reclamante de suporte legal.
5. A ousadia e desfaçatez da Reclamante é de tal ordem, que sequer se inibe de fundamentar de direito o seu pedido num preceito legal atualmente inexistente, (o atual artigo 669º do C.P.C., versa sobre a baixa do processo, que já há muito deveria ter ocorrido, não fora a sucessão de anómalos e infundados incidentes promovidos pela Reclamante)
6. Evidencia-se que mesmo no contexto do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 615º do C.P.C., que não invoca, a Reclamante sequer se atreve a arguir qualquer nulidade ou ininteligibilidade da douta decisão.
7. O que tudo importa a rejeição da pretendida aclaração, por falta de suporte legal.
8. Dir-se-á, ainda e sem prescindir, no enorme esforço intelectual determinado pelo cansaço e saturação da litigância inconsequente, que o douto Acórdão proferido em conferência, de que a Reclamante transcreve um curto excerto, é uma decisão douta, clara e inequívoca, que não ostenta qualquer obscuridade ou ambiguidade, perfeitamente inteligível, ao contrário do requerimento em análise, que apenas ostenta o inconformismo da reclamante, que não se conforma com a decisão e com a lei, que lhe são desfavoráveis.
9. E a evidência da singela e cristalina questão que a reclamante, na sua reprovável conduta processual insiste em ver discutida está patente no sumário do douto acórdão em questão.
10. Sintetizando, porque não se justificam extensos arrazoados sobre uma questão tão linear, o Valor da Causa, assim fixado na douta sentença de 1ª instância já transitada, é definitivamente de € 18.156,00.
11. Como resulta do disposto no artigo 44º da LOSJ, em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de € 30.000,00.
12. Dispõe o artigo 629º, nº 1 do C.P.C. que o recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do Tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse Tribunal, atendendo-se em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência somente ao valor da causa.
13. Não se mostra, desde logo, preenchido o primeiro requisito da recorribilidade, pois o valor fixado à causa é inferior à alçada do Tribunal da Relação que proferiu o douto acórdão de que a Reclamante pretendeu recorrer.
14. O que prejudica a apreciação da questão da sucumbência, que, como douto e cristalinamente se decidiu, não é pressuposto autónomo de recorribilidade.
15. E tornou, como torna, o recurso de revista interposto, inadmissível.
16. É isto que emerge, claro das sucessivas doutas decisões que a Reclamante não pode ter deixado de perceber, mas no seu ostensivo “mau perder” não quer aceitar, a justificar a litigância, na mira de protelar o transito.
17. E que legitima a conclusão de que o inconformismo não legitima a pedida aclaração, que, a não ser rejeitada, deve improceder.
18.(…)
19. (…)                                                                               
20. Á reclamada resta esperar pela costumada sã e elementar justiça e pela oportunidade de executar a decisão condenatória, que já tarda.»

Cumpre decidir.
II

1 - O despacho do relator que recaiu sobre a reclamação apresentada pela Ré, nos termos do artigo 643.º do Código de Processo Civil, transcrito no acórdão cuja aclaração se pretende, integra um segmento com o seguinte teor:
«No caso dos autos foi fixado ao processo na sentença proferida na primeira instância o [valor] de € 8 156,00.
Tendo sido interposto recurso de apelação pela Autora daquela decisão, que não pôs em causa o decidido quanto ao valor do processo, a Ré, embora tenha tido intervenção naquele recurso, não reagiu àquele segmento da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância que por tal motivo transitou em julgado e se tornou definitiva.
Carece de sentido, vir agora, no âmbito do requerimento de interposição do recurso de revista, insurgir-se contra aquele valor e requerer a concretização da sucumbência e a alteração do valor fixado ao processo.»

Pretende agora a Ré que este Tribunal esclareça o seguinte: «em que medida entendem os Colendos Conselheiros que seria expectável e adequado nesse momento – novamente, em que a R. tinha à data uma posição processual de absolvição integral -, suscitar qualquer questão sobre o valor da causa, que para todos os efeitos e sendo a sentença de 1.ª instância uma absolvição integral só ganha materialidade com a decisão do Tribunal da Relação e a sua respetiva quantificação?»

2 - A requerente invoca como fundamento da sua pretensão o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 669.º do anterior Código de Processo Civil.
O referido dispositivo não tem qualquer aplicação ao presente processo cuja disciplina processual é a que emerge do Código de Processo Civil em vigor, que no artigo 616.º afastou o instituto da aclaração da sentença que se encontrava consagrado na reclamada alínea a) do n.º1 do artigo 669.º do anterior código.
Trata-se de uma opção legislativa clara, comentada por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, 3.º Edição, Almedina, 2018, a p.p. 741, que referem que «o atual código, porém, não seguiu esta orientação: por um lado eliminou os pedidos de aclaração da sentença; por outro lado, passou a considerar causa de nulidade da sentença a ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (art.º 615-1-c), o que significa, além da introdução deste novo requisito da ininteligibilidade, que a ambiguidade ou obscuridade da respetiva fundamentação, não só não constitui objeto de aclaração, mas também não pode ser arguida nos termos do art. 615.º». 

 3 - No fundo, se bem se entende o requerido, a Ré pretende que este Tribunal diga quais os meios através dos quais podia pôr em causa o decidido pela 1.ª instância em matéria de valor da causa, nomeadamente, quando confrontada com o recurso interposto pela Autora e sendo certo que tinha obtido ganho de causa naquela sentença no que se refere litígio propriamente dito.

A informação que se reivindica tem resposta direta no regime dos recursos decorrente do Código de Processo Civil.

Este Tribunal limitou-se a constatar que o decidido quanto ao valor do processo na sentença transitou em julgado, na medida em que não foi impugnado pela Autora em sede de apelação, e a Ré tão pouco reagiu relativamente àquele segmento, acautelando os seus interesses processuais, não podendo ignorar que os mesmos podiam ser afetados pelo trânsito em julgado dessa parte da sentença, maxime face ao recurso interposto pela Autora.

Nada há, pois, a aclarar relativamente ao segmento em causa do acórdão.

III


Em face do exposto, acorda-se em indeferir o pedido de aclaração do acórdão desta Secção de 14 de outubro de 2020.
Custas pela Ré, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) unidades de conta.
Junta-se sumário do acórdão.

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, consigna-se que o presente acórdão foi aprovado por unanimidade, sendo assinado apenas pelo relator.


Lisboa, 25 de novembro de 2020


António Leones Dantas (Relator)
Júlio Gomes
Chambel Mourisco