CONDUÇÃO DE VEÍCULO
INFRACTOR
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
ILISÃO
PRAZO
Sumário

Nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 171.º do Código da Estrada, o titular do documento de identificação do veículo está impedido, em sede de impugnação judicial, de socorrer-se da ilisão da presunção - juris tantum se, notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artº 134º nº1 do CE para, no prazo de 15 dias, não identificar o autor da contra-ordenação, é considerado responsável pela prática da contra-ordenação.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


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I–RELATÓRIO:


1.-1.–Decisão Recorrida

O arguido SMS_____, com os demais sinais dos autos, não se conformando com a decisão da autoridade administrativa – Serviço Coordenador dos Transportes Terrestres – que o condenou no cumprimento de 45 dias de inibição de condução por conduzir o veículo de matrícula a uma velocidade de 74km/h em local de velocidade máxima de 50 km/h, interpôs recurso de impugnação judicial, pedindo a sua absolvição.

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1.2.-O recurso de impugnação foi objeto de decisão, através de sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca dos Açores - Juízo Local Criminal de Angra do Heroísmo, com o n.º 440/20.9T8AGH, de 8 de outubro de 2020, na qual foi julgado improcedente o recurso.

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1.3.- O arguido SMS_____  vem, agora, interpor recurso dessa decisão formulando as seguintes conclusões:

1ª- O arguido foi condenado pelo Serviço Coordenador dos Transportes Terrestres da Região Autónoma dos Açores no pagamento de uma coima, na sanção acessória do cumprimento de 45 dias de inibição de conduzir e na subtração de 2 pontos.

2ª- Dos factos assentes resulta que:

1º)- no dia 26 de Novembro de 2019, pelas 15h00, na Estrada Regional 1, T...S...M..., o condutor do veículo ligeiro de mercadorias circulava à velocidade de 74 Km/h, sendo a velocidade máxima do local de 50 Km/h;
2º)- O condutor da viatura, na referida ocasião, era MAMS_____, titular da Carta de Condução
3ª)- Com relevo para a apreciação do presente recurso consta dos autos recorridos, nomeadamente do Auto de Notícia, da decisão da AA e da impugnação judicial apresentada, o seguinte conhecimento:
a)- O auto de notícia não identifica o condutor;
b)- No prazo concedido para exercer o seu direito de audiência e de defesa o arguido só efetuou o pagamento voluntário da coima e pelo mínimo legal;
c)- Com a impugnação da decisão da AA. o arguido identificou MAMS_____, titular da carta de condução nº   1, portadora do Cartão de Cidadão da República Portuguesa nº , contribuinte fiscal   e com residência na Rua ______ Angra do Heroísmo, como sendo aquela que no dia, hora e local referidos no AN, da PSP, conduzia o veículo ligeiro de mercadorias , a qual, foi indicada como testemunha;
d)-Foi a mesma inquirida em audiência de julgamento, após o cumprimento da legal formalidade de ser perguntada quanto à sua identificação, as suas relações pessoais, familiares e profissionais com o arguido, etc.;
e)- O arguido é o titular do veículo, tal como consta do DUA que juntou à peça como sendo o seu Doc. 1.
4ª- Mal andou o Mº Juiz a quo ao decidir, como decidiu, pela improcedência da impugnação judicial, mantendo a condenação da AA e condenando o arguido nas custas do processo.
5ª- Discorda o arguido da interpretação que na sentença o Mtº Juiz faz do direito aplicável aos concretos factos assentes – leia-se o artigo 135º, nº 3, e os números 1 a 4 do artigo 171º do Código da Estrada - e à jurisprudência de que se socorre para sustentação da mesma.
6ª- A sentença nega ao arguido a possibilidade de vir a juízo dizer e comprovar, na fase de impugnação da decisão da autoridade administrativa, não ser ele o condutor no momento da infração e de identificar o verdadeiro responsável pela infração.
7ª- A mesma sentença afirma ser irrelevante, nesta fase de impugnação judicial, apurar quem era o verdadeiro condutor na altura da infração, visto o arguido não estar a ser punido por isso mas por ser o titular do documento de identificação do veículo.
8ª- A sentença recorrida convoca, em suporte destas conclusões, o Ac. da Relação de Coimbra de 12/12/2007, consultável em www.dgsi.pt, Processo 213706.1TBMMV.C1; o Ac. da mesma Relação de Coimbra de 24/02/2016, Processo 86/15.3T8VIS.C1 e o Ac. da Relação de Lisboa de 02/02/2016, Processo 3017/15.7T8BRR.L1-5.
9ª- Na síntese da motivação/fundamentação da sentença recorrida está a tese de que este concreto arguido teve no tempo do procedimento contraordenacional, e no prazo para apresentação da sua defesa, a oportunidade de identificar o sujeito condutor e, não o tendo feito (nesse prazo), ficou precludido este direito, nomeadamente quanto à possibilidade de o fazer em fase de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa, uma vez que, neste entender, operou a presunção iuris tantum prevista na alínea b) do nº 3 do artigo 135º do referido Código da Estrada.
10ª- Contudo, a presunção constante da alínea b) do nº 3 do artigo 135º do C. E. é de natureza subsidiária, em relação à regra constante dos nº 1 e nº 2 do mesmo normativo (ou seja, os agentes que pratiquem os factos constitutivos das contraordenações ou as pessoas coletivas, nos termos da lei geral), e só é aplicável ao “titular do documento de identificação do veículo” quando: a) as infrações respeitem às condições de admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas; b) infrações referidas na alínea anterior (ou seja, que respeitem ao exercício da condução) quando não for possível identificar o condutor (negrito nosso).
11ª- Em termos gerais e abstratos é critério assumido do legislador, em uso da ação punitiva/sancionatória do Estado, endossar ao “titular do documento de identificação do veículo” a responsabilidade pela prática da infração sempre que, no que agora importa, não for possível identificar o condutor.
12ª- O elemento literal da interpretação jurídica não pode ser aqui desconsiderado.
13ª- Sobre “identificação” do arguido rege o nº 1 do artigo 171 do C.E., no que se concordará com a sentença recorrida.
14ª- É matéria de facto assente na sentença recorrida, no que respeita à “identificação do condutor” do veículo, ser este MAMS_____ , titular da carta de condução nº NA-1...- 1, portadora do Cartão de Cidadão da República Portuguesa nº 0......0 9 Z.., contribuinte fiscal nº 1.. ... ..1 e com residência na Rua______Angra do Heroísmo.
15ª- Não se entende, pois, porque afirma a sentença já ser tarde para “se identificar o condutor” ou, até, que “tal já não era possível” ao arguido.
16ª- O direito de mera ordenação social, no que respeita ao regime jurídico das contraordenações rodoviárias, regula-se, em tudo quanto nele é omisso, pelo RGCO e, por remissão deste, pelas regras e princípios vigentes no Código Penal e no Código de Processo Penal.
17ª- Sem prescindir, e ainda que não se tivesse respeitado aquele prazo dos 15 dias úteis (para identificar o condutor), numa fase procedimental contraordenacional, não pode ter-se como precludido o direito de o arguido vir em recurso da decisão da AA, numa fase de apreciação judicial, identificar e demonstrar que o agente que praticou os factos constitutivos da infração (o condutor) é pessoa distinta do “titular do documento de identificação do veículo”, quanto a lnfracções respeitantes ao exercício da condução.
18ª- A interpretação dada pela sentença aos artigos 135º e 171º do C.E. atenta contra princípios caros ao direito e à defesa do arguido, nomeadamente de natureza penal e constitucional.
19ª- O direito é dirigido a pessoas concretas, por referência a situações concretas, localizadas no tempo e no espaço.
20ª- O arguido, podendo (e devendo) fazê-lo, identificou e demonstrou quem no dia, hora e local dos factos relatados no auto de notícia conduzia o veículo autuado e de que é titular.
21ª- A interpretação, mais favorável ao arguido, segundo a qual o prazo a que se refere no nº 2 do artigo 175º do C.E. (em conjugação com o disposto no nº 3 do artigo 171º do mesmo C.E.), não deve ser aqui aplicável, não compromete, no concreto caso, a ação punitiva/sancionatória do Estado, porque no balanço dos bens jurídicos em presença é a que mais se aproxima dos princípios de natureza penal e constitucional consagrados.
22ª- A mesma interpretação não compromete o poder estadual de sancionar esta contraordenação rodoviária posto que, como se referiu, a presunção iuris tantum prevista na alínea b) do nº 3 do artigo 135º do C.E. foi afastada pelo arguido ao identificar no processo o real infrator (e só a impossibilidade de identificar o condutor o colocaria na posição do infrator, por força da presunção).
23ª- Não ficou impedida a autoridade administrativa, em presença do recurso por si rececionado e à identificação do infrator ali revelada, de revogar a decisão, reformá-la ou, até, reabrir a instrução, ouvir as indicadas testemunhas e, perante o assim apurado, determinar o arquivamento dos autos em relação ao arguido, fazer prosseguir o procedimento contraordenacional contra a condutora do veículo e, até, sancioná-la a final.
24ª- Conclusão retirada do estatuído nos nºs 2 e 4 do artigo 171º do C.E. e nº 2 do artigo 62º do RGCO, e, quanto a este último, segundo a clássica regra do direito de que onde cabe o mais (a revogação) cabe o menos (a suspensão, reabertura da instrução, etc.).
25ª- É clara a lei quando usa expressões como “quando não for possível identificar o infrator” (v. alínea b), in fine, do nº 3 do artigo 135º do C.E.) ou quando refere que o processo é arquivado (nas situações de impossibilidade de identificação do autor da infração) “quando se comprove” que outra pessoa praticou a contraordenação (nºs 2 e 4 do artigo 171º do C.E.).
26ª- Conclusão que reforça a ideia de que esta identificação comprovada é possível, a todo o tempo, e mesmo na fase de impugnação judicial.
27ª- A autoridade administrativa, na posse do recurso, limitou-se a tomar conhecimento e a encaminhá-lo para o tribunal.
28ª- O tribunal a quo, mantém a decisão da AA porque, entre outros considerandos, diz que é tarde para o arguido vir dizer não ser ele o condutor no momento da infração e identificar o autor da infração.
29ª- Não existia, no concreto caso, o risco de prescrição processual, conclusão que se estriba no artigo 188º do C.E., uma vez que a prática da contraordenação ocorreu em 26/11/2019, o prazo de prescrição é de dois anos a contar desta data e interrompeu-se a sua contagem em 12/06/2020 (com a notificação ao arguido da decisão condenatória da AA).
30ª- No sentido do aqui pugnado está a jurisprudência contida nos Acórdãos: da Relação de Coimbra, de 5/07/2006, Processo 1511/2006; Relação de Coimbra, de 20/09/2006, Processo 1302/2006; Relação de Guimarães, de 25/02/2008, Processo 1983/2007-1; Relação de Lisboa, de 28/09/2010, Processo 1106/09.6TAPDL.L1.5; Relação de Lisboa, de 26/11/2015, Processo 150/15.9Y5LSB.L1.9 e, finalmente, Relação de Lisboa, de 18/04/2017, Processo 3719/16.0T8OER.L1-5 (e neste último no que respeita à pertinência da “identificação comprovada” do condutor que, em concreto, não existiu, seja na fase procedimental administrativa seja na fase de impugnação judicial).
31ª- Mal andou, pois, o Mtº Juiz a quo ao interpretar os artigos 135º e 171º do Código da Estrada no sentido de já não ser possível ao arguido, em fase de impugnação judicial, trazer ao processo a identificação (que foi comprovada) do condutor do veículo autuado, punindo-se o mesmo por ser o titular do documento de identificação do veículo.
32ª- O entendimento seguido pela sentença é contrário ao Direito e abre caminho à violação, para além das referidas normas do Código da Estrada, a princípios de ordem penal e constitucional consolidados, como os da culpa e da proporcionalidade; da pessoalidade das penas ou da individualidade da responsabilidade penal (artigo 11º do Código Penal); da verdade material e da justiça do caso concreto; da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20º da CRP); da intransmissibilidade da responsabilidade penal (nº 3 do artigo 30º da C.R.P); da manutenção da titularidade dos direitos fundamentais, salvo as limitações inerentes ao sentido da condenação e às exigências próprias da respectiva execução (nº 5 do artigo 30º da C.R.P.); da garantia de defesa, incluindo o recurso (nº 1 do artigo 32º da C.R.P.); da defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (nº 2 do artigo 202º da C.R.P.) e da adequação dos feitos submetidos a julgamento ao disposto na Constituição ou aos princípios nela consignados (artigo 204º da C.R.P.).

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1.4.O MP notificado da interposição do recurso não ofereceu resposta.

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1.5.–Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta apôs o seu visto nos autos.

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1.6.Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. b) do CPP.

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II–FUNDAMENTAÇÃO

2.1.–Do Objeto do Recurso

Constitui entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso.[1]
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada, importa decidir se a elisão da presunção decorrente do artigo 171º do Código da Estrada deve ser admitida, também, na fase de impugnação judicial do procedimento contraordenacional.

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2.2.–Da Decisão Recorrida

2.2.1.Na decisão judicial recorrida foi proferida a seguinte decisão quanto à fundamentação de facto:

Factos assentes.
1º- No dia 26 de Novembro de 2019, pelas 15h00, na Estrada Regional 1, T...S...M..., o condutor do veículo ligeiro de mercadorias circulava à velocidade de 74km/h, sendo a velocidade máxima para o local de 50 km/h.
2º- O condutor da viatura, na referida ocasião, era MAM_____, titular da Carta de Condução n.º NA-1... - 1.

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2.2.2.- Motivou, assim, a sua decisão de facto o tribunal «a quo»:

Os factos provados resultam dos seguintes considerandos:
Em termos documentais, encontra-se junto aos autos o auto de contraordenação de fls. 5 e ss., o qual contém uma descrição da infração, estando em anexo a prova fotográfica do excesso de velocidade a que a viatura foi detetada.
As testemunhas ouvidas em julgamento, os pais do recorrente, tendo ambos referido que a viatura da progenitora se encontrava na oficina, motivo pelo qual o filho havia emprestado à mãe a carrinha. Ambos os depoimentos se revelaram credíveis, nada havendo que lhes retirasse consistência.
O testemunho do agente policial Jorge Duarte pouco ou nada acrescentou ao que já se sabia: o mesmo operava o radar no momento em que a viatura passou; uma vez que esta se afastava, tendo sido fotografada pela retaguarda, não foi possível visualizar o condutor.
Nenhuns outros factos se revelam importantes ou necessários para a decisão da causa, nomeadamente os que se prendem com os motivos pelos quais o recorrente não apresentou defesa na sequência do recebimento do auto de notícia.

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2.3.–Apreciando e decidindo

Diga-se desde já que a nossa posição, no que concerne a esta matéria, é absolutamente coincidente com a posição adotada na sentença recorrida.
Esta posição alinha-se no decidido no acórdão número 1388/05-2, do TRG, sendo seu Relator Tomé Branco, datado de 3.10.2005, in www.dgsi.pt, que sufragamos integralmente, e tal como expendido nesse acórdão, aqui transcrevemos o despacho ali impugnado, sem que nada mais nos ofereça acrescentar tal a simplicidade e esclarecida decisão.

Assim:

«Estatui o art. 134º, nº 1 do C.E. (diploma a que se reportam os demais preceitos sem menção de origem) que “sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a responsabilidade pelas infracções previstas neste código e legislação complementar relativas ao exercício da condução recai no agente do facto constitutivo da infracção”.
Por sua vez, dispõe o nº 2 do mesmo normativo que “quem for proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira, locatário por prazo superior a um ano ou quem, em virtude de facto sujeito a registo, tiver a posse do veículo, é responsável pelas infracções relativas às disposições que condicionem a admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas.”[2]
Importa, sobretudo, ter presente o art. 152º.[3]
Assim, nos termos do seu nº 1, “quando o agente de autoridade não puder identificar o autor da contra-ordenação, a responsabilidade recai sobre quem for proprietário, adquirente com reserva de propriedade, usufrutuário, locatário em regime de locação financeira, locatário por prazo superior a um ano ou sobre quem, em virtude de facto sujeito a registo, for possuidor do veículo, sendo instaurado contra ele o correspondente processo.”
Dispõe o nº 2 do mesmo normativo que “se, no prazo concedido para a defesa, for devidamente identificada como autora da contra-ordenação pessoa distinta das mencionadas no número anterior, o processo será suspenso, sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infractora.”
Por último, nos termos do nº 3 do mesmo normativo, “o processo referido no nº1 será arquivado se for provada a utilização abusiva do veículo ou se se vier a determinar, nos termos do número anterior, que outra pessoa praticou a contra-ordenação.”
A questão que se coloca no âmbito do presente recurso e que nos propomos resolver é a de saber se, tendo o auto de contra-ordenação sido levantado nos termos do art. 152º, nº 1 contra a proprietária do veículo e esta sido notificado pela autoridade administrativa para, no prazo de defesa, identificar, querendo, outra pessoa como autora da contra-ordenação, sem que o tenha feito, pode, posteriormente, impugnar judicialmente a decisão administrativa que contra ela venha a ser proferida, identificando o condutor do veículo em causa.
Que a arguida possa impugnar judicialmente a decisão administrativa com base noutros argumentos apesar de oportunamente não ter apresentado defesa junto da autoridade administrativa é questão que para nós não levanta dúvidas.
Poderá, porém, fazê-lo limitando-se a identificar o condutor do veículo?
A resposta não poderá deixar de ser negativa.
Na verdade, decidiu-se no Ac. RC de 6/03/03, C.J., 2003, Tomo II, pág. 37 que “o proprietário do veículo que, notificado nos termos do art. 134º nº1 do CE para, no prazo de 15 dias, identificar o autor da contra-ordenação, nada diz nesse prazo, é responsável pela prática da contra-ordenação.
Trata-se de uma presunção juris tantum que só pode ser ilidida se for provada a utilização abusiva do veículo ou identificado um terceiro, no prazo legal.
Ultrapassado esse prazo, e aplicada a multa pela autoridade administrativa, já não é possível ilidir a presunção”.
Compreende-se que assim seja.
As sanções contra-ordenacionais, vulgo “coimas”, não constituem penas, mas medidas sancionatórias de carácter não penal, não repugnando que possam recair sobre quem não cometeu o facto ilícito típico, mas sobre quem, em determinadas circunstâncias, o possa e devia evitar, ou quem usufrui das vantagens do meio (veículo) pelo qual foi praticado, ou sobre quem não cumpriu determinadas obrigações.
A responsabilidade da proprietária só é afastada se ela identificar um terceiro no prazo acima referido.
A presunção é “juris tantum”, mas a lei fixa as hipóteses em que pode ser ilidida e, neste caso, fixa o prazo para tanto, tornando-a inilidível após este.
É, pois, contrário ao espírito da lei que tal presunção legal possa ser ilidida mesmo depois de aplicada a coima pela autoridade administrativa.
Efectivamente, a entender-se de modo contrário, tal significaria que a arguida e proprietária do veículo podia quedar-se inerte durante um longo período de tempo, pagando mesmo voluntariamente a coima pelo mínimo (como sucedeu), reservando a identificação do condutor do veículo para a impugnação judicial, isto numa altura em que já não seria possível apurar a responsabilidade pela prática da contra-ordenação, não sendo igualmente possível instaurar processo contra-ordenacional contra o alegado condutor do veículo pois, entretanto, o procedimento estaria prescrito.
Aliás, o caso vertente, é um exemplo paradigmático de tal situação.
Compreende-se, pois, a letra e a ratio da lei tal como se compreende que a jurisprudência tenha vindo a decidir no sentido por nós propugnado".».

Ao decidir-se nestes termos inexiste qualquer violação ao disposto nos arts.º. 11º do Código Penal, 20º, nºs 3 e 5 do artigo 30º, nº 1 do artigo 32º, nº 2 do artigo 202º e 204º, todos da C.R.P..

Pelo exposto, o recurso terá de improceder.

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III.–DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso e, em consequência confirmar integralmente a decisão proferida.
Fixa-se a taxa de justiça devida pelo recorrente em três Ucs.

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Lisboa e Tribunal da Relação, ao 20 de janeiro de 2021


(Processado e revisto pelo relator (artº 94º, nº 2 do CPP).


Alfredo Costa
Vasco Freitas



[1]cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objeto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação — art. 412.°, n.° 1, do CPP —, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objeto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (…), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objeto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»
[2]Atualmente corresponde ao teor do artigo 135º do CE face às alterações introduzidas pelo DL n.º 2/98, de 03/01; DL n.º 44/2005, de 23/02; Lei n.º 72/2013, de 03/09 e DL n.º 151/2017, de 07/12:
Artigo 135.º
Responsabilidade pelas infrações    
1 - São responsáveis pelas contraordenações rodoviárias os agentes que pratiquem os factos constitutivos das mesmas, designados em cada diploma legal, sem prejuízo das exceções e presunções expressamente previstas naqueles diplomas.
2 - As pessoas coletivas ou equiparadas são responsáveis nos termos da lei geral.
3 - A responsabilidade pelas infrações previstas no Código da Estrada e legislação complementar recai no:
a) Condutor do veículo, relativamente às infrações que respeitem ao exercício da condução;
b) Titular do documento de identificação do veículo relativamente às infrações que respeitem às condições de admissão do veículo ao trânsito nas vias públicas, bem como pelas infrações referidas na alínea anterior quando não for possível identificar o condutor;
c) Locatário, no caso de aluguer operacional de veículos, aluguer de longa duração ou locação financeira, pelas infrações referidas na alínea a) quando não for possível identificar o condutor;
d) Peão, relativamente às infrações que respeitem ao trânsito de peões.
4 - Se o titular do documento de identificação do veículo ou, nos casos previstos na alínea c) do número anterior, o locatário provar que o condutor o utilizou abusivamente ou infringiu as ordens, as instruções ou os termos da autorização concedida, cessa a sua responsabilidade, sendo responsável, neste caso, o condutor.
5 - Os instrutores são responsáveis pelas infrações cometidas pelos instruendos, desde que não resultem de desobediência às indicações da instrução.
6 - Os examinandos respondem pelas infrações cometidas durante o exame.
7 - São também responsáveis pelas infrações previstas no Código da Estrada e legislação complementar:
a) Os comitentes que exijam dos condutores um esforço inadequado à prática segura da condução ou os sujeitem a horário incompatível com a necessidade de repouso, quando as infrações sejam consequência do estado de fadiga do condutor;
b) Os pais ou tutores que conheçam a inabilidade ou a imprudência dos seus filhos menores ou dos seus tutelados e não obstem, podendo, a que eles pratiquem a condução;
c) Os pais ou tutores de menores habilitados com cartas de condução da categoria AM, com a menção da restrição 790;
d) Os condutores de veículos que transportem passageiros menores ou inimputáveis e permitam que estes não façam uso dos acessórios de segurança obrigatórios;
e) Os que facultem a utilização de veículos a pessoas que não estejam devidamente habilitadas para conduzir, que estejam sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas, ou que se encontrem sujeitos a qualquer outra forma de redução das faculdades físicas ou psíquicas necessárias ao exercício da condução.
8 - O titular do documento de identificação do veículo ou, nos casos referidos pela alínea c) do n.º 3, o locatário responde subsidiariamente pelo pagamento das coimas e das custas que forem devidas pelo autor da contraordenação, sem prejuízo do direito de regresso contra este, quando haja utilização abusiva do veículo.
[3]Atualmente, corresponde ao artigo. 171º do CE, com as alterações introduzidas pelo DL n.º 2/98, de 03/01; DL n.º 162/2001, de 22/05; DL n.º 265-A/2001, de 28/09; DL n.º 44/2005, de 23/02 e Lei n.º 72/2013, de 03/09:
Artigo 171.º
Identificação do arguido
1 - A identificação do arguido deve ser efectuada através da indicação de:
a) Nome completo ou, quando se trate de pessoa colectiva, denominação social;
b) Domicílio fiscal;
c) Número do documento legal de identificação pessoal, data e respectivo serviço emissor ou, quando se trate de pessoa colectiva, do número de pessoa colectiva;
d) Número do título de condução e respectivo serviço emissor;
e) (Revogada.)
f) Número e identificação do documento que titula o exercício da actividade, no âmbito da qual a infracção foi praticada.
2 - Quando se trate de contra-ordenação praticada no exercício da condução e o agente de autoridade não puder identificar o autor da infracção, deve ser levantado o auto de contra-ordenação ao titular do documento de identificação do veículo, correndo contra ele o correspondente processo.
3 - Se, no prazo concedido para a defesa, o titular do documento de identificação do veículo identificar, com todos os elementos constantes do n.º 1, pessoa distinta como autora da contra-ordenação, o processo é suspenso, sendo instaurado novo processo contra a pessoa identificada como infractora.
4 - O processo referido no n.º 2 é arquivado quando se comprove que outra pessoa praticou a contra-ordenação ou houve utilização abusiva do veículo.
5 - Quando o agente da autoridade não puder identificar o autor da contraordenação e verificar que o titular do documento de identificação é pessoa coletiva, deve esta ser notificada para, no prazo de 15 dias úteis, proceder à identificação do condutor, ou, no caso de existir aluguer operacional do veículo, aluguer de longa duração ou locação financeira, do locatário, com todos os elementos constantes do n.º 1 sob pena de o processo correr contra ela, nos termos do n.º 2.
6 - A pessoa coletiva, sempre que seja notificada para tal, deve, no prazo de 15 dias úteis, proceder à identificação de quem conduzia o veículo no momento da prática da infração, indicando todos os elementos constantes do n.º 1, sob pena do processo correr contra a pessoa coletiva.
7 - No caso de existir aluguer operacional do veículo, aluguer de longa duração ou locação financeira, quando for identificado o locatário, é este notificado para proceder à identificação do condutor, nos termos do número anterior, sob pena de o processo correr contra ele.
8 - Quem infringir o disposto nos n.os 6 e 7 é sancionado nos termos do n.º 2 do artigo 4.º