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FURTO SIMPLES
NATUREZA
EM ESTABELECIMENTO COMERCIAL ABERTO AO PÚBLICO
QUEIXA
Sumário
I.– Determina o nº 3 do artº 203 que o crime de furto simples tem natureza semipública. Assim, o crime-padrão reveste tal modalidade, carecendo o MºPº, para exercício da acção penal, de apresentação de queixa.
II.– No caso dos autos, a subtracção ocorreu em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público. Nessas situações, estipula o nº2 do artº 207, que havendo subtracção de uma coisa móvel exposta, de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata desta, se o acto for cometido por uma única pessoa, o procedimento criminal depende de acusação particular (isto é, o ilícito terá natureza particular).
III.– Esta recuperação imediata tem de ser entendida no sentido de se mostrar possível que o bem subtraído possa ser de novo e de imediato, posto em venda, o que implica que o objecto alvo de subtracção se encontre em perfeitas condições; isto é, no mesmo estado em que se encontrava quando o agente o subtraiu.
IV.– No caso, um dos bens objecto de subtracção ficou danificado, por virtude de uma acção da arguida, pelo que se não pode entender que o mesmo tenha sido recuperado, já que se não encontrava nas mesmas condições em que se mostrava exposto na loja.
Texto Integral
Acordam em conferência na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa.
I–RELATÓRIO:
1.–Foi proferida acusação que imputou a prática à arguida MF______ de um crime de furto, p. e p. nos termos do artº 203º nº 1, do Código Penal.
2.–Remetidos os autos à distribuição, foi então proferido despacho, em 17 de Setembro de 2020, pelo Mº Juiz “a quo” que, a final, determinou o seguinte: Em face do exposto, e assumindo o crime em causa natureza particular, carece o Ministério Público de legitimidade para promover o procedimento criminal, sem a prévia constituição como assistente e dedução de acusação particular da ofendida, o que como vimos não sucedeu, impondo-se, por isso, a rejeição da acusação pública deduzida contra a arguida MF______ , o que se decide.
3.–Inconformado, veio o MºPº interpor recurso, pedindo a revogação de tal despacho e a sua substituição por outro que determine o recebimento da acusação pública, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 311.°, do Código de Processo Penal.
4.–O recurso foi admitido.
5.–Não houve resposta.
6.–Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto entendeu que o recurso merece provimento.
II–QUESTÃO A DECIDIR
Natureza do crime imputado à arguida.
iii–FUNDAMENTAÇÃO.
1.–É do seguinte teor o despacho proferido e alvo de recurso:
Cumpria, agora, ao abrigo do disposto no artigo 311º CPP, receber a acusação e designar data para a realização de audiência de julgamento, com vista à apreciação do factos e crime que ao arguido vêm imputados. Porém, conforme determina o n.º 1 da citada disposição legal, recebidos os autos no tribunal, o juiz deve proceder ao saneamento do processo, pronunciando-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que possa, desde logo, conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa, devendo rejeitar a acusação desde que se revele manifestamente infundada. Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu, acusação contra a arguida, MF______ , imputando-lhe a prática de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203.º, n.º 1, do CP, alegando factos que traduzem a subtracção de bens móveis por um único agente, em estabelecimento comercial durante o período de abertura ao público, relativamente a coisas móveis expostas de valor diminuto (não excede uma unidade de conta, que é de € 102,00) e com recuperação imediata dos bens. Acontece que, com a entrada em vigor da Lei n.º 19/2013, de 21.02, o crime imputado à arguida nos presentes autos passou a assumir natureza particular, conforme decorre da actual versão do artigo 207.º, n.º 2, do CP. Ali se diz que “No caso do artigo 203.º, o procedimento criminal depende de acusação particular quando a conduta ocorrer em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público, relativamente à subtracção de coisas móveis (ou animais) expostas de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata destas, salvo quando cometida por duas ou mais pessoas”. E, na verdade, os factos narrados na acusação preenchem todos os pressupostos exigidos pelo artigo 207.º, n.º 2, do CP, para que o crime assuma natureza particular, tal como supra referido. Assim sendo, impunha-se a constituição como assistente do ofendido e a respectiva dedução de acusação particular, para que assistisse legitimidade ao Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal, nos termos dos artigos. 48.º e 50.º do CPP. Compulsados os autos verifica-se que a ofendida foi devidamente notificada – cfr. fs 20, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 246.º nº4 e 68.º nº 2 CPP. Todavia, nada veio requerer a esse respeito no prazo de 6 meses (Acórdão TRG de 9/11/2017, P. 660/16.0T9BGC), sendo também que se mostra totalmente decorrido o prazo que à ofendida foi concedido para esse efeito. Por outro lado, também não se mostra liquidada a taxa de justiça devida para tal, nem tampouco foi proferido despacho a admitir essa intervenção Sem custas. Notifique.
2.–Como se constata pela leitura das conclusões, as razões de discórdia do recorrente são as seguintes:
1º- Em 19/02/2020 o Ministério Público acusou o(a) arguido (a) pela prática de um crime de furto simples, previsto no art.º 203.º/1, do Código Penal nos seguintes termos: (…)“ porquanto, No dia 8 de agosto de 2019, pelas 11h50, a arguida dirigiu-se à loja C&A,(…) com o intuito de se apoderar de quaisquer objectos que aí encontrasse com valor económico. Ali chegada, e em execução de tal desígnio, a arguida, retirou dos expositores, onde se encontravam para venda ao público, um anel, no valor de €9,95 e um vestido, no valor de €19,90, tudo no valor global de €29,85. De seguida, a arguida, retirou o alarme colocado no referido vestido, que assim ficou danificado, e passou pela caixa registadora, sem proceder ao pagamento de qualquer dos referidos artigos, levando-os consigo e integrando-os assim no seu património. (negrito nosso) A arguida agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de se apoderar dos artigos supra mencionados, com vista a fazê-los seus, como veio a conseguir, bem sabendo que estes não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade do seu legítimo dono. Mais sabia, a arguida, que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Face ao exposto, cometeu a arguida, na forma consumada e em autoria material: - um crime de furto, p. e p. nos termos do artº 203º nº 1, do Código Penal.”(…) 2º- Por despacho de fls. 83 e 84, o Tribunal “a quo”, rejeitou a acusação pública, por entender que, o crime de furto, em causa nos autos, tem a natureza de crime particular, nos termos do previsto no art. 203.º/1 e 207.º do CP, pelo que se impunha a constituição como assistente do(a) ofendido(a) e a respectiva dedução de acusação particular, para que assistisse legitimidade ao Ministério Público para a prossecução do procedimento criminal, nos termos dos artigos 48.º e 50.º do CPP. 3º- O Ministério Público entende que o Tribunal “a quo” não podia ter rejeitado acusação porquanto o crime não é de natureza particular e que tem legitimidade para deduzir a acusação pública. 4º- Com efeito, ao subtrair a peça de roupa que fez sua, o(a) arguido(a) arrancou o alarme/etiqueta do interior do vestido tornando o mesmo impróprio para exposição e venda, danificando-o. 5º- Do auto de Notícia, da denúncia, do auto de exame e avaliação e da acusação resulta que o vestido subtraído não se encontra no seu estado original, apto a ser vendido pela lesada. 6º- In casu não estão verificados todos os requisitos objectivos do art.º 207.º do Código Penal, mantendo-se assim o crime com natureza semi-pública. 7º- O despacho recorrido viola o disposto nos arts.º 203.º/1, 207.º e do Código Penal e arts.º 48.º e 50.º do Cód. Processo Penal. 8º- E assim sendo, o despacho recorrido não poderá ser mantido, devendo o Tribunal “a quo” proferir novo despacho que receba a acusação e designe dia para julgamento (caso não haja qualquer outro motivo que o impeça), o que significa que o presente recurso terá de ser julgado procedente. 3.–Apreciando.
A questão é simples e afigura-se patente que o despacho proferido terá de ser revogado.
Senão, vejamos.
i.–Ninguém questiona que os factos constantes na acusação preencherão, a provarem-se, a prática pela arguida de um crime de furto simples, p. e p. pelo artº 203 do C.Penal, nem que o valor dos bens alvo de subtracção é diminuto.
A única discórdia situa-se no plano da natureza de tal ilícito, uma vez que o tribunal “a quo” entendeu que teria natureza particular e o recorrente considera que a sua natureza será semi-pública.
ii.–Determina o nº 3 do artº 203 que o crime de furto simples tem natureza semi-pública. Assim, o crime-padrão reveste tal modalidade, carecendo o MºPº, para exercício da acção penal, de apresentação de queixa.
iii.–No caso dos autos, a subtracção ocorreu em estabelecimento comercial, durante o período de abertura ao público.
Nessas situações, estipula o nº2 do artº 207, que havendo subtracção de uma coisa móvel exposta, de valor diminuto e desde que tenha havido recuperação imediata desta, se o acto for cometido por uma única pessoa, o procedimento criminal depende de acusação particular (isto é, o ilícito terá natureza particular).
iv.–Foi com fundamento no estipulado em tal artigo, que o tribunal “a quo” entendeu que o crime cometido se trataria de crime de natureza particular e, inexistindo constituição de assistente, bem como acusação particular, a acusação formulada pelo MºPº não podia ser recebida, por carecer o MºPº de legitimidade para exercer, sozinho, a acção penal.
v.–Sucede, todavia, que a mera análise dos factos constantes na acusação permite concluir que os requisitos cumulativos, constantes no citado nº2 do artº 207 do C.Penal, se não mostram reunidos, designadamente o relativo à recuperação imediata do bem.
vi.–De facto, esta recuperação imediata tem de ser entendida no sentido de se mostrar possível que o bem subtraído possa ser de novo e de imediato, posto em venda, o que implica que o objecto alvo de subtracção se encontre em perfeitas condições; isto é, no mesmo estado em que se encontrava quando o agente o subtraiu.
No caso, um dos bens objecto de subtracção ficou danificado, por virtude de uma acção da arguida (a arguida, retirou o alarme colocado no referido vestido, que assim ficou danificado)pelo que se não pode entender que o mesmo tenha sido recuperado, já que se não encontrava nas mesmas condições em que se mostrava exposto na loja (vide, no mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo: 118/15.5PEGDM.P1, de 22-02-2017, consultável http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/99a19befe8e3ffb7802580de003c4bab?OpenDocument).
4.–Assim, não se mostrando verificado um dos requisitos cumulativos consignado no nº2 do artº 207 do C.Penal, há que concluir que se mantém a natureza semi-pública do ilícito e, por tal razão, não há fundamentos para a acusação não ser recebida, pelas razões que constam no despacho ora alvo de recurso.
iv–DECISÃO.
Face ao exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso interposto pelo MºPº e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se o prosseguimento dos autos, com a prolação do despacho previsto no artº 311 do C.P.Penal, designadamente recebimento de acusação e designação de dia para julgamento.
Sem tributação.