CONTRA-ORDENAÇÃO
AUTO DE NOTÍCIA
FÉ EM JUÍZO
Sumário


1 - Em processo contraordenacional, tal como em processo criminal (sendo aplicáveis subsidiariamente, com as devidas adaptações e sempre que o contrário não resulte do RGCO, os preceitos reguladores do processo criminal - cf. artigo 41º, n.º 1, do RGCO), o auto de notícia não faz fé em juízo, sendo o seu valor probatório livremente apreciado pelo tribunal, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.

2 - Estando em causa matéria de direito probatório, não tem aplicação o disposto no artigo 66º do RGCO que prevê a aplicação subsidiária das normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, isto é, das regras do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10 de Janeiro, à audiência de julgamento em 1ª instância, no processo de contraordenação.

Texto Integral




Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1 - RELATÓRIO
1.1. Nos autos de contraordenação em referência, por decisão de 04/07/2019, da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve, foi a arguida (…) condenada pela prática de uma contraordenação ambiental muito grave, p. e p. pelos artigos 5º, n.º 1, al. b) e 25º, n.º 1, al. a), ambos do Decreto-Lei n.º 153/2003, de 11 de julho (regime jurídico da gestão de óleos usados), alterado pelo Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17 de junho (diploma que altera o regime geral da gestão de resíduos e transpõe a Diretiva n.º 2008/98/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de Novembro, relativa aos resíduos), conjugado com o artigo 22º, n.º 4, al. b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (Lei Quadro das contraordenações ambientais), na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 42-A/2016, de 18 de agosto, na coima de €12.000,00 (doze mil euros).
1.2. A arguida impugnou judicialmente esta decisão administrativa.
1.3. Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, em 10/03/2020, julgando procedente a impugnação judicial, revogando a decisão administrativa condenatória e absolvendo a arguida da prática da contraordenação por que vinha condenada.
1.4. Inconformado com o assim decidido, o Ministério Público interpôs recurso para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação apresentada, as seguintes conclusões:
«1 - Os julgamentos dos recursos de contraordenação regem-se pelas normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, previstas no Dec.-Lei nº 17/91, de 10/01, por força do disposto no art. 66°, do RGCO;
2 - Nos termos do disposto no art. 6°, nº1, do Dec.-Lei nº 17/91, de 10/01, o auto de notícia levantado nos termos do nº1 do art. 3° (ou seja, quando os factos sejam presenciados pelo agente autuante), faz fé em juízo, até prova em contrário;
3 - A prova produzida em julgamento impunha que se mantivesse a decisão administrativa e a coima aplicada, tendo resultado à evidência, para além dos elementos documentais juntos aos autos (nomeadamente, as fotografias), como da própria prova testemunhal, a existência de manchas de óleo no solo;
4 - Da prova produzida não foi feita prova em contrário do que consta no auto de notícia, inclusive quanto à existência de bacia de retenção - o que teria sido facilmente demonstrável ao agente autuante e durante o processo administrativo - o que não aconteceu, tendo o local de armazenamento sido deslocalizado após a autuação;
5 - Ao dar como provados e não provados os factos descritos na sentença, a Mmª Juiz “a quo" violou o disposto no art. 6º, nº1, do Dec.-Lei nº 17/91, de 10/01, que, de resto, sequer foi considerado;
6 - A contraordenação em causa, ambiental e muito grave, prevê, nos casos mais graves, as descargas no solo, mas também, qualquer depósito ou descarga de óleos usados no solo, não estabelecendo qualquer medida de quantificação;
7 - A arguida é produtora de resíduos legalmente classificados como perigosos (óleos usados), cabendo-lhe, assim, o dever de não efetuar qualquer depósito ou descarga de óleos usados no solo, sendo este um dever geral, e, no caso, de exigência acrescida, em face da sua atividade;
8 - Os elementos descritos na decisão administrativa integram a prática da contraordenação p. e p. pelo art. 5°, al. b) do Dec.-Lei nº 153/2003, de 11/07, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei nº 73/2011, de 17 de junho, Dec.-Lei nº 67/2014, de 07/05 e Dec.-Lei nº 165/2014, de 05/11;
9 - Estamos perante a prática de contraordenação ambiental muito grave, que visa evitar a contaminação de resíduos perigosos no solo, com consequências gravíssimas para a saúde pública; defender que pequenos derrames de óleos usados não integram a prática da referida contraordenação, não só implica, na prática, que a referida contraordenação nunca venha a ser considerada praticada, pois a quantificação relevante para os efeitos legais cairia na subjetividade, como permite pequenos derrames generalizados, com os prejuízos gravíssimos para a saúde pública derivados da contaminação dos solos;
10 - Ao contrário do que consta na sentença, foram detetadas manchas de óleo não só na pedra e no estrado em madeira (sendo visível, nas fotografias a fls. 134, a existência de solo por debaixo do mesmo, na parte visível), bem como no próprio solo, conforme descrito no auto de contraordenação a fls. 8, verso incluído, não podendo deixar de se referir, ainda, que a simples ocorrência de manchas de óleo na pedra já potencia a existência de escorrências para o solo, já que não tem capacidade de absorção;
11 - Por tudo o exposto, entende o Ministério Público, nesta instância, que a sentença de absolvição proferida deve ser revogada, e mantida a decisão administrativa e respetiva coima.
VªS EXªS, VENERANDOS DESEMBARGADORES, CONTUDO, DECIDIRÃO CONFORME MELHOR FOR DE JUSTIÇA.»
1.5. O recurso foi regularmente admitido.
1.6. A arguida apresentou resposta ao recurso, pugnando para que lhe seja negado provimento e mantida a sentença recorrida, formulando as seguintes conclusões:
«1- Vem a Digníssima Magistrada do Ministério Público pedir a revogação da sentença proferida nos presentes autos e a manutenção da decisão administrativa e respetiva coima;
2- Razão não lhe assiste, em virtude de em sede de audiência e julgamento ter ficado provado, quer através de prova testemunhal, quer documental que o armazenamento de óleos não era num telheiro sem resguardos laterais, e sem bacia de retenção; mas num contentor de metal, que possuía no seu interior um depósito de 1000l, que estava dentro de uma bacia de retenção, em solo impermeabilizado.
3- No que concerne às manchas, ficou provado também através de prova testemunhal que o solo era impermeabilizado, em betão e cimento, para além de que uma das fotos que aparenta ser óleo, afinal são folhas decompostas, mas em nenhuma das situações existe qualquer mancha em solo permeável;
4- O elemento objectivo do tipo não se encontra in casu preenchido, conforme e bem foi decidido pelo Tribunal a quo.
5- A testemunha (…), Gestora Ambiental Especialista em Gestão de Resíduos foi peremptória em afirmar que não se aplica o preceito legal ao que está nas fotografias (16:25), prosseguindo: “Não podemos estar a julgar este procedimento como se estivesse a poluir a água e o solo (17:18), que não é isso que acontece, que é a intenção desse artigo (17:22), não estava a contaminar nem o solo nem as águas (23:15), Betão não deixa passar, fica impermeabilizado (24:16).
6- Ficou provado em sede de audiência de julgamento que os factos constantes do auto de notícia não estavam corretos.
7- Tanto não existiu qualquer derrame para o solo, que as análises de captação de água e das águas residuais não revelou a existência de qualquer vestígio de óleos (conforme depoimento … aos 26:00).
8- A relocalização do local de armazenamento dos óleos usados ocorreu apenas e só por melhoramento das instalações, uma vez que o contentor existente à data da fiscalização cumpria com a legislação (conforme depoimento … aos 11:00 e 19:53).
9- A sentença do Tribunal a quo encontra-se em conformidade, uma vez que em sede de audiência de julgamento foi efetuada prova contrária aos factos constantes do auto de noticia.
10- A sentença não merece qualquer reparo, constando da mesma uma criteriosa análise de toda a prova produzida e apresentada,
11- Da mesma consta uma descrição pormenorizada, tendo sido cumprido na integra o dever de fundamentar, constante do n.º 2 do art.º 374° do CPP.
12- Nesta conformidade, nenhuma censura merece a douta sentença a quo, a qual se deve manter.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto pela Digníssima Magistrada do Ministério Público, mantendo-se na integra, a douta sentença recorrida, fazendo-se assim a acostumada justiça!»
1.7. Nesta Relação, o Exmº. Procurador da República emitiu parecer no sentido de o recurso dever ser julgado improcedente e, consequentemente, ser confirmada a decisão recorrida.
1.8. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, tendo a arguida exercido o direito de resposta, manifestando concordância com o parecer emitido pelo Exm.º PGA.
1.9. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

2 – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. É consabido que as conclusões formuladas pelo recorrente extraídas da motivação do recurso balizam ou delimitam o objeto deste último (cf. art.º 412º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi do disposto nos artigos 41º n.º 1 e 74º n.º 4, do Regime Geral das Contraordenações, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro).
Tal não exclui o conhecimento oficioso dos vícios enumerados no artigo 410º, nº. 2, do C.P.P., quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou em sua conjugação com as regras da experiência comum, bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
2.2. In casu, atentas as conclusões extraídas da motivação do recurso interposto pelo Ministério Público, são suscitadas as seguintes questões:
- Impugnação da matéria de facto dada como provada e não provada na sentença recorrida;
- Existência de violação do disposto no artigo 6º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 17/91, de 10 de janeiro;
- Verificação dos elementos que integram a prática pela arguida da contraordenação p. e p. pelo art. 5º, al. b) do Dec.-Lei nº 153/2003, de 11 de julho, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei nº 73/2011, de 17 de junho, Dec.-Lei nº 67/2014, de 07 de maio e Dec.-Lei nº 165/2014, de 05 de novembro e da consequente condenação da arguida.

2.3. A sentença recorrida tem o seguinte teor:
«Nos presentes autos de recurso de contraordenação, (…), vem acusada de:
- armazenar óleos usados num telheiro sem resguardos laterais, em solo permeável e sem bacia de retenção, não prevenindo escorrências diretas para o solo e existindo manchas de óleo, no solo, nesse local,
Integrando, assim, com a sua conduta, a prática da contraordenação p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 5.º, b) e 25.º, 1, a), ambos do Decreto-Lei n.º 153/2003, de 11/07, alterado pelo Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17/06, e do art. 22.º, 4, b), da Lei n.º 50/2006, de 29/08, na redação do Decreto-Lei n.º 42-A/2016, de 12/08.
A arguida, ora recorrente, vem acusada de ter infringido tais normas em erro (censurável) sobre a ilicitude, referindo-se, porém, também, na decisão sob impugnação, ter atuado com negligência.

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Notificada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 49.º da Lei n.º 50/2006, de 29/08, na aludida redação aplicável, a arguida/recorrente apresentou a defesa constante de fls. 18 e seguintes dos autos.
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Pelo Exmo. Sr. Presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Algarve foi decidido aplicar à arguida/recorrente a coima especialmente atenuada de €12.000,00 - cfr. fls. 57 a 62-verso.
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A arguida/recorrente apresentou a sua defesa interpondo o presente recurso de impugnação, sustentando, e muito em síntese, que:
- A decisão administrativa é nula, por não haver sido realizado o exame crítico da prova;
- Por outro lado, explora o seu estabelecimento comercial, aberto ao público, desde há 25 anos a esta parte;
- Em todo o período de laboração, não lhe foi imputada a prática de qualquer contraordenação;
- O que deriva do facto de o seu sócio gerente recorrer a pessoas qualificadas para o apoiar no exercício das suas funções, explorando, assim, a arguida, o estabelecimento no respeito das normas vigentes no seu sector de atividade;
- Com efeito, na sequência da fiscalização em que se radicaram os autos, contratou os serviços de uma empresa externa de apoio ambiental, a qual, pese embora haja considerado que o local de armazenamento dos óleos usados não violava a legislação vigente, recomendou que o mesmo fosse objeto de melhorias, o que foi feito, daí a sua relocalização;
- Todavia, o local de armazenamento anterior, ao contrário do que consta da decisão sob impugnação, era fechado e não aberto, estando a respetiva porta aberta ao tempo da fiscalização; - No interior desse local de armazenamento dos óleos usados, fotografado, apenas exteriormente, pelo militar autuante (fotografias 1 a 3 anexas ao auto de notícia), encontrava-se o recipiente onde estavam depositados aqueles óleos bem como a respetiva bacia de retenção;
- Estes elementos, por seu turno, encontravam-se colocados sobre piso impermeável, não havendo contacto com o solo;
- E não existia qualquer escorrência para o solo permeável, sendo que a fotografia 3 revela apenas uma pequena parte da madeira sobre a qual estava implantado o local de armazenamento e uma pedra aí existente à data;
- Explora uma oficina, a qual labora diariamente com inúmeros tratores a serem objeto de reparação;
- Não obstante, o local prima por se encontrar em boas condições de limpeza, sendo que os funcionários receberam formação, designadamente, sobre como atuar em caso de derrames acidentais de óleos;
- O veículo trator a que se reportam as fotografias 4 a 6, anexas ao auto de notícia, encontrava-se numa zona impermeabilizada, sendo, todavia, o material de impermeabilização ali colocado diferente do demais, visível naquelas imagens;
- É cumpridora da legislação e não efetuou qualquer depósito ou descarga de óleos usados no solo, nem qualquer descarga não controlada de resíduos resultantes das operações de gestão de óleos usados, não estando preenchidos, desde logo, os elementos objetivos do tipo contraordenacional cuja prática lhe está imputada.
Pugnou pela sua absolvição ou, se assim se não entende-se, pela suspensão da sanção nos termos previstos no art. 20.º-A da Lei n.º 50/2006, de 29/08.
Arrolou testemunhas e juntou documentos.
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O processo foi remetido a este Tribunal para os efeitos do n.º 1 do art. 52.º da Lei n.º 50/2006, de 29/08.
A autoridade administrativa apresentou alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida - cfr. fls. 4 a 6.
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Os autos tiveram vista, o recurso foi recebido e foi designada data para realização da audiência de julgamento, tendo, ainda, sido determinada:
- a solicitação e junção aos autos de cópia das declarações de IRC apresentadas pela arguida/ recorrente, atinentes aos exercícios fiscais de 2016 a 2018;
- a solicitação, à Guarda Nacional Republicana - Comando Territorial de Faro - Núcleo de Proteção Ambiental, de ficheiro contendo todas as fotografias recolhidas durante a ação de fiscalização em que se radicaram os autos;
- A obtenção e junção aos autos de certidão permanente da matrícula da arguida/ recorrente.
No mesmo despacho, que faz fls. 119 a 123, foi julgada improcedente a invocada nulidade da decisão administrativa.
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Realizou-se a audiência de julgamento com observância dos formalismos legais, conforme consta das respetivas atas.
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Mantêm-se os pressupostos de validade e regularidade da instância afirmados no despacho de fls. 119 e seguintes, inexistindo nulidades ou quaisquer outras questões prévias ou prejudiciais que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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DA AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO, E COM INTERESSE PARA A DECISÃO A PROFERIR, RESULTARAM PROVADOS OS SEGUINTES FACTOS:
1. No dia 06 de setembro de 2016, pelas 10:45 horas, no interior do estabelecimento comercial/de oficina sito na Estrada Nacional n.º (…), a arguida/recorrente armazenava, numa cuba com uma capacidade de 1.000 litros, colocada sobre uma bacia de retenção em chapa quinada, óleos usados.
2. Naquelas circunstâncias de tempo e de lugar, as referidas cuba e bacia de retenção encontravam-se colocadas sobre um estrado em madeira e no interior de um contentor em metal, cuja porta se encontrava, momentaneamente, aberta.
3. Este contentor em metal, por seu turno, encontrava-se depositado sobre pavimento betuminoso impermeabilizante do solo natural.
4. Numa pedra colocada sobre esse pavimento impermeável e numa parte do referido estrado em madeira, junto à entrada do contentor metálico, encontravam-se, ao tempo da fiscalização, manchas de óleo de dimensões não concretamente apuradas.
5. A arguida/recorrente mantém o referido estabelecimento comercial aberto ao público desde há pelo menos 25 anos a esta parte.
6. Em todo o período de laboração, não lhe foi imputada a prática de qualquer contraordenação para além da em referência nos presentes autos.
7. Na sequência da fiscalização em que se radicaram os autos, o sócio gerente da arguida/recorrente contratou os serviços de uma empresa externa de apoio ambiental, a qual, pese embora haja considerado que o local de armazenamento dos óleos usados não violava a legislação vigente, recomendou que o mesmo fosse objeto de melhorias, tendo a sociedade procedido à sua relocalização e instalação em novo contentor, de abertura mais facilitada.
8. A arguida/recorrente explora, no identificado local, uma oficina, a qual labora diariamente com inúmeros veículos tratores a serem objeto de reparação.
9. A arguida/recorrente mantém, nesse local, boas condições de limpeza, sendo que os funcionários daquela receberam formação, designadamente, sobre como atuar em caso de derrames acidentais de óleos.
10. O veículo trator a que se reportam as fotografias n.ºs 4 a 6, anexas ao auto de notícia em que se radicaram os autos, encontrava-se sobre pavimento betuminoso impermeabilizante do solo natural.
11. Nos exercícios fiscais de 2016, 2017 e 2018 a arguida/recorrente declarou perante a Autoridade Tributária e Aduaneira lucros tributáveis ascendentes a €149.685,05, €263.965,15 e €226.904,00, respetivamente.
x
FACTOS NÃO PROVADOS:
Com relevo para a decisão a proferir, não se provou que:
1. Nas circunstâncias de tempo e de lugar identificadas no ponto 1. dos factos provados a arguida/recorrente estivesse a armazenar óleos usados num telheiro sem resguardos laterais, em solo permeável e sem bacia de retenção, não prevenindo escorrências diretas para o solo e existindo manchas de óleo, no solo, nesse local;
2. A arguida/recorrente não tenha atuado com o cuidado a que, nas circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz;
3. A arguida desconhecesse as imposições legais relativas ao armazenamento de óleos usados.
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FUNDAMENTAÇÃO
MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do Tribunal formou-se com base na prova globalmente produzida em sede de audiência de julgamento, analisada crítica e conjugadamente, à luz das regras da experiência comum, da lógica, da normalidade da vida e da inteligência, designadamente, na ponderação do teor do auto de notícia de fls. 8 a 8-verso e relatório fotográfico de fls. 134 a 135, das fotografias de fls. 24 a 25 e de fls. 89 a 101, da cópia da Guia de Acompanhamento de Resíduos de fls. 102 datada de 19 de setembro de 2016 (na qual se certifica que nessa data foram recolhidos, no estabelecimento da arguida/recorrente, 1.200 litros de óleos usados, no estado líquido, pela (…), com vista à sua subsequente gestão, enquanto resíduos perigosos), das cópias das declarações de rendimentos de fls. 137 e seguintes e da certidão permanente de fls. 153 a 157, conjugada com as declarações prestadas pelo legal representante da arguida/recorrente e com os depoimentos das testemunhas inquiridas, nos termos que se passam, sinteticamente, a explanar.
Assim, (…), legal representante da arguida/recorrente, prestou declarações de modo simples e sereno e esclareceu que, ao tempo da fiscalização, na qual esteve presente, o local de armazenamento dos óleos usados extraídos dos tratores e máquinas agrícolas objeto de manutenção/reparação na oficina explorada pela (…), consistia num contentor em metal (que não um telheiro sem proteções laterais, conforme é visível, aliás, nas fotografias juntas a fls. 90 a 91 e 134), cuja porta estava momentaneamente aberta e em cujo interior existia uma cuba com a capacidade de 1.000 litros, colocada, por seu turno, sobre uma bacia de retenção com uma profundidade de 12 a 15 cm, em chapa quinada; mais esclareceu que tais elementos - cuba e bacia de retenção - estavam colocados, por seu turno, sobre um estrado em madeira assente no chão, metálico, do contentor; explicou, ainda, que esse contentor em metal não estava colocado sobre o solo natural mas, sim, sobre pavimento impermeabilizante daquele. Confrontado com as fotografias n.ºs 4 a 6, anexas ao auto de notícia [sendo certo, adianta-se, que sobre os factos que delas podiam extrair-se a autoridade administrativa não se pronunciou, apenas tendo acusado a ora recorrente pelas alegadas escorrências para o solo existentes no "telheiro" de armazenamento dos óleos usados identificado nos factos que consignou como demonstrados na decisão impugnada sob o ponto 1.], referiu tratar-se igualmente de pavimento impermeabilizado (embora em betuminoso, material distinto daquele que lhe é contíguo, de cor mais clara), bem como que as manchas ali visíveis, na sua perspetiva, não seriam de óleo mas, eventualmente, folhas decompostas retiradas, com jato de compressor, do interior das máquinas agrícolas e dos tratores objeto de posterior manutenção e/ou reparação no interior da oficina. Reportou, ainda, o legal representante da arguida/recorrente que, na sequência da fiscalização em referência nos autos, face à apreensão gerada pelo levantamento do auto de notícia pela Guarda Nacional Republicana, contratou os serviços de uma empresa externa de apoio ambiental, tendo sido aconselhado, pela Dra. (…) (também inquirida na qualidade de testemunha), a adquirir um novo contentor, de abertura mais simples, para armazenar os óleos usados e a relocalizar o mesmo, o que fez, como melhoria e, não, para passar a cumprir a lei, o que já fazia e lhe foi confirmado por aquela. Mais disse que, pese embora a ação de fiscalização haja perdurado durante cerca de 3 horas, o Militar autuante nunca o questionou acerca da existência, ou não, da bacia de retenção; explicou, ainda, que os bidons visíveis nas fotografias n.ºs 1 a 3, anexas aos autos de notícia, se encontravam vazios e que serviam para o transporte, entre a oficina e a cuba de armazenamento, referida, dos óleos usados extraídos dos tratores e máquinas agrícolas ali intervencionados. Explicou, por fim, ser a (…), a empresa que desde há muitos anos faz a recolha, no estabelecimento da ora recorrente, dos óleos usados, com vista à gestão de tais resíduos.
Por seu turno, a testemunha (…), mecânico ao serviço da ora recorrente desde há cerca de 5 anos, reportou, de modo simples e que se nos afigurou sincero, a existência e características do local de armazenamento dos óleos usados em conformidade com o anteriormente descrito pelo legal representante da arguida (referindo o contentor, a cuba com capacidade de 1.000 litros e a bacia de retenção sob ela colocada), asseverando que quando iniciou a sua prestação de trabalho para a empresa era essa, já, a realidade existente. Confrontado com as fotografias n.ºs 1 a 3 anexas ao auto de notícia, esclareceu que os bidons ali visíveis se encontravam vazios e que a mancha visível sobre a pedra colocada na entrada do contentor, poderá dever-se a um pingo de óleo, logo absorvido, conforme são instruções da sua entidade patronal, com um pano; acrescentou que, de todo o modo, o piso sobre o qual o contentor metálico estava colocado era em material impermeabilizante. Confrontado com as demais fotografias anexas ao auto de notícia, v.g., as 5 e 6, referiu tratar-se de outro local, distinto e distante do contentor de armazenamento dos óleos usados, referindo também que o piso aí visível é impermeável e atribuindo as manchas a restos de folhagens retiradas, a jato de compressor, dos tratores e máquinas agrícolas alvo de manutenção no estabelecimento da recorrente.
A testemunha (…), secretária ao serviço da ora recorrente desde há cerca de 20 anos a esta parte, por sua vez, depondo de modo simples e escorreito, confirmou, em conformidade com o declarado pelo legal representante da arguida e pela testemunha (…), a existência e características do local de armazenamento dos óleos usados, referindo o contentor metálico, a cuba com capacidade de 1.000 litros e a bacia de retenção sob ela colocada, a qual asseverou existir; mais disse ser ela quem contacta a empresa de gestão de resíduos (…), com vista à remoção e transporte dos óleos usados. Por fim, referiu que no local retratado nas imagens n.ºs 4 a 6 anexas ao auto de notícia o pavimento é impermeável, referindo que, se ali despejar um balde de água, a mesma não é absorvida.
Também a testemunha (…), Gestora Ambiental Especialista em Gestão de Resíduos ao serviço da (…) (pessoa que foi funcionária do Ministério do Ambiente até 2014), depôs de forma escorreita e serena, esclarecendo ter sido contactada pelo legal representante da ora recorrente, ainda em setembro de 2016 e no máximo, uma semana após a fiscalização em que se radicaram os autos, recordando-se, segundo disse, de haver ligado ao Militar autuante na expetativa de compreender o motivo da autuação, posto que, da sua análise do local, nada de ilícito resultava, na sua perspetiva e segundo os seus conhecimentos, no exercício da sua atividade profissional dos últimos 20 anos. Esclareceu que, quando iniciou a prestação dos seus serviços, constatou que os óleos usados eram armazenados numa cuba com a capacidade de 1.000 litros colocada sobre uma bacia de retenção, bem como que estas estavam, por seu turno, no interior de um contentor metálico fechado - protegidas do vento e da chuva -, o qual estava depositado sobre pavimento betuminoso (cuja composição específica descreveu) impermeabilizante do solo natural; mais disse que, ao tempo, em cima do piso metálico do contentor, ainda existia, conforme também se vê nas fotografias n.ºs 1 a 3 anexas ao auto de notícia, uma estrutura em madeira, de permeio, sobre a qual estava a bacia de retenção, acrescentando que os bidons aí visíveis haviam sido retirados. Mais disse ter sugerido a aquisição de outro contentor para guardar a cuba e a bacia de retenção para que a abertura do espaço fosse mais simples, bem como a sua relocalização, tornando-o mais próximo da oficina. Confrontada com as fotografias n.ºs 4 a 6, asseverou que, ao tempo em que iniciou os seus serviços o pavimento era o que é hoje, em betuminoso impermeável, inclinado na direção do separador de hidrocarbonetos aí instalado. Explicou, nesta sede, que na unidade explorada pela arguida/ recorrente todas as águas pluviais ou de lavagem passam obrigatoriamente pelo separador de hidrocarbonetos e que das análises efetuadas sucessivamente, bem como à água do furo, não resultou, jamais, a existência de qualquer contaminação (a qual resultaria, mesmo, de uma escorrência ocasional, segundo explicou). Disse, por fim, que de acordo com os seus conhecimentos e experiência profissional, a arguida/recorrente não violou as normas invocadas pela autoridade administrativa, não tendo poluído a água nem o solo natural, nem tendo efetuado qualquer deposição ou descarga.
Por seu turno, a testemunha (…), Militar da Guarda Nacional Republicana integrada no Núcleo de Proteção Ambiental do Destacamento Territorial de Faro, relatou que na data e hora mencionados no auto de notícia por si elaborado e assinado, "foi perceber como era feita a gestão dos resíduos" (óleos usados) no estabelecimento da ora recorrente, tendo visto uns bidons "debaixo de um telheiro em chapa, que não havia bacia de retenção e que o chão estava babado com umas manchas" que, segundo a sua experiência, conforme disse, "seriam de óleo"; mais disse ter visto um trator, para ser reparado e manchas que, "a seu ver, seriam de óleo". Questionada, disse que na sua perspetiva, o pavimento, nos dois locais por si assinalados seria, "na sua maneira de ver", em "pó de pedra" e, por isso, permeável. Questionada, disse esta testemunha não ter procedido à análise do espaço interior do dito "telheiro", não ter verificado se os bidons ali existentes tinham óleo ou estavam vazios e desconhecer se, por baixo do estrado em madeira, aí visível, existia o solo natural ou qualquer outra estrutura, v.g., o chão, metálico, do "telheiro". Por fim, disse não se recordar do tamanho da mancha visível sobre a pedra colocada à entrada do dito "telheiro".
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Concatenada toda a prova produzida, documental, por declarações e testemunhal, resultou a convicção quanto aos factos considerados provados nos pontos 1. a 11., nos termos em que o foram.
Nesta sede, importa referir terem as declarações prestadas pelo legal representante da arguida/recorrente merecido, globalmente, credibilidade, atenta a sua verosimilhança e na medida em que foram corroboradas, de modo objetivo, pelas testemunhas arroladas pela ora recorrente. Dir-se-á, neste particular, ter sido particularmente impressivo o depoimento prestado pela testemunha (…), não sendo minimamente credível que a realidade fáctica existente à data da fiscalização houvesse sido alterada antes do início, da prestação dos serviços daquela, ocorrida, no máximo, uma semana após o dia 06 de setembro de 2016; com efeito, se era suposto esta testemunha, na qualidade de Gestora Ambiental Especialista na Gestão de Resíduos auxiliar a sociedade arguida na eliminação de eventuais procedimentos violadores da legislação vigente, nenhum sentido faria que a realidade de facto sujeita a fiscalização fosse alterada antes da intervenção da pessoa que iria proceder à respetiva análise e sugerir eventuais melhorias. Concomitantemente e como contraponto, foi também impressivo, mas no sentido oposto, o depoimento prestado pelo Militar autuante, na medida em que dele fluiu, à saciedade, uma marcada ausência de rigor nos procedimentos de fiscalização e de documentação adotados, sendo incompreensível que haja concluído pela inexistência de bacia de retenção (não sabendo sequer da existência da cuba referida por todas as demais testemunhas) sem que sequer houvesse apurado o que existia no interior do contentor (que não do "telheiro") que lhe foi indicado como sendo o local de armazenamento dos óleos usados; todavia, da prova documental produzida, designadamente, da guia cuja cópia está a fls. 102, resulta inequívoca a recolha de 1.200 litros de óleos usados, no dia 19 de setembro de 2016, pela sociedade de gestão de resíduos aí identificada, supra referida.
Perante a objetividade da prova produzida, nos termos acima apontados, ficou o Tribunal convicto de que a realidade fáctica existente à data da fiscalização em que se radicaram os autos era aquela descrita como demonstrada.
Consequentemente, impôs-se consignar como não demonstrada a vertida nos pontos 1. a 3. dos factos julgados não provados.
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Sublinha-se que a materialidade constante do ponto 10. dos factos julgados provados aí foi consignada apenas por ter sido invocada na impugnação e para justificar que se não extrairá certidão dos autos (para remessa à autoridade administrativa) por não existirem indícios da prática de qualquer infração contraordenacional. Com efeito, conforme acima se referiu, sobre os factos em referência, alegadamente documentados pelo Militar autuante nas fotografias n.ºs 4 a 6, anexas ao auto de notícia, a autoridade administrativa não se pronunciou, nem deles retirou consequências legais, apenas tendo acusado a ora recorrente pelas alegadas escorrências para o solo existentes no "telheiro" de armazenamento dos óleos usados identificado nos factos que consignou como demonstrados na decisão impugnada sob o ponto 1..
Estão em causa, pois, factos subtraídos à apreciação do Tribunal.
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No que concerne, por fim, ao demais vertido, quer na decisão recorrida, quer nas alegações de recurso, que não foi feito constar dos factos provados, nem dos não demonstrados, trata-se de matéria irrelevante para a decisão a proferir ou de conceitos conclusivos ou de Direito.
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DO DIREITO
À arguida/recorrente está imputada a infração prevista pelas disposições conjugadas dos arts. 5.º, b) e 25.º, 1, a), ambos do Decreto-Lei n.º 153/2003, de 11/07, alterado pelo Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17/06, e do art. 22.º, 4, b), da Lei n.º 50/2006, de 29/08, na redação do Decreto-Lei n.º 42-A/2016, de 12/08.
Estabelece o art. 5.º do Decreto-Lei n." 153/2003, de 11/07, alterado pelo Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17/06, na sua alínea b), que:
"Sem prejuízo do cumprimento de outras disposições legais aplicáveis, é expressamente proibido: (…) Qualquer depósito e ou descarga de óleos usados no solo, assim como qualquer descarga não controlada de resíduos resultantes das operações de gestão de óleos usados".
Nos termos do art. 25.º do mesmo diploma legal, "constitui contraordenação ambiental muito grave, punível nos termos da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, alterada pela Lei n.º 89/2009, de 31 de agosto, e retificada pela Declaração de Retificação n.º 70/2009, de 1 de outubro, a prática dos seguintes atas: (…) A violação das proibições estabelecidas no artigo 5.º, n.º 1, alínea a).
Nos termos do n.º 4, "a tentativa e a negligência são puníveis".
Por seu turno, dispõe o art. 21.º da Lei n.º 50/2006, de 29/08, na redação do Decreto-Lei n.º 42-A/2016, de 12/08, aplicável, que "para determinação da coima aplicável e tendo em conta a relevância dos direitos e interesses violados, as contraordenações classificam-se em leves, graves e muito graves".
Nos termos do art. 22.º do mesmo diploma, "a cada escalão classificativo de gravidade das contraordenações corresponde uma coima variável consoante seja aplicada a uma pessoa singular ou coletiva e em função do grau de culpa, salvo o disposto no artigo seguinte" - n.º 1 -, sendo que, "às contraordenações muito graves correspondem as seguintes coimas: (…) Se praticadas por pessoas coletivas, de (euro) 24 000 a (euro) 144 000 em caso de negligência e de (euro) 240 000 a (euro) 5 000 000 em caso de dolo - n.º 4, alínea b).
Da conjugação das disposições transcritas, flui que constituem elementos objetivos da contraordenação ora em apreço, cujo cometimento vem imputado à arguida/recorrente: a) depósito e ou descarga; b) de óleos usados; c) no solo, e/ou, d) qualquer descarga não controlada de resíduos resultantes das operações de gestão de óleos usados.
No que concerne ao elemento subjetivo do tipo, pode o ilícito ser praticado a título doloso ou negligente.
Revertendo à factualidade cujo apuramento se logrou (e sendo por demais evidente a não subsunção daquela à modalidade da conduta reportada a qualquer descarga não controlada de resíduos resultantes das operações de gestão de óleos usados, posto que a arguida não efetua operações de gestão de resíduos, apenas o seu armazenamento), patenteia-se não ter havido qualquer depósito e ou descarga de óleos usados no solo.
Dos factos apurados resulta a existência de umas manchas (pingos, escorrências) de óleo sobre o estrado em madeira colocado sobre o chão do contentor em referência e sobre uma pedra existente à entrada desse contentor. Todavia, nenhuns factos se apuraram que permitam a afirmação de qualquer depósito ou descarga, no solo - no solo natural, evidentemente, pressuposto no diploma cuja violação se imputa à ora recorrente - de óleos usados.
Com efeito, conforme pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de junho de 2019 (disponível em www.dgsi.pt.processo n.º 5053/18.2T8LRS.Ll-3). "o conceito de solo vertido no art. 5.º, al. b) do Decreto-Lei n.º 153/2003, de 11 de julho, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17 de junho e no art. 49º, n.º 3) al. b) do Decreto-Lei n.º 152-D/2017) de 11 de Dezembro vai no sentido ecológico uma vez que estamos a tratar de ilícito ambiental.
O solo é um corpo de material não consolidado que cobre a superfície terrestre e é o resultado da erosão ou decomposição de rochas por meio calor, ação de seres vivos) tais como bactérias e fungos.
Para um engenheiro agrónomo o solo é a camada na qual se pode desenvolver vida vegetal e animal.
Para um engenheiro civil sob o ponto de vista da mecânica dos solos) solo é um corpo possível de ser escavado) sendo utilizado dessa forma como suporte para construções ou material de construção.
Para um biólogo) através da ecologia e da pedologia) o solo interfere com o ciclo bioquímico dos nutrientes minerais e determina os diferentes ecossistemas e habitats dos seres vivos.
Para o legislador há de ser algo poroso que possa alimentar árvores de fruto, vida ou deixar escoar para veios de água o que nele é vertido.
Sendo o "solo" que tinha o óleo derramado um material de construção - cimento ¬não estamos perante um ilícito contra o ambiente e, o solo, é aqui entendido como um dos componentes naturais do ambiente, como resulta da Lei de Bases do Ambiente - art. 6.º da Lei n.º 11/87, de 7 de Abril e agora do art. 1.º da Lei n.º 19/2014, de 14 de Abri!”.
Refira-se, ainda que, dos factos apurados, não resulta que a arguida haja violado, a qualquer trecho, as obrigações que lhe incumbiam enquanto produtora de resíduos perigosos, como o são os óleos usados. Estes, conforme se apurou, eram armazenados no interior de uma cuba aposta sobre uma bacia de retenção e não estavam expostos à chuva e ao vento.
N esta conformidade, em nosso modesto entendimento, é mister concluir, ante a materialidade fáctica apurada, que a mesma não é subsumível, desde logo, aos elementos objetivos do tipo contraordenacional imputado à arguida, impondo-se, assim, a sua absolvição.
Será, pois, de revogar a decisão sob impugnação, o que se decide.
*
DECISÃO
Em face do exposto, julgo a presente impugnação judicial procedente e, em consequência, decido absolver a arguida/recorrente, (…), da prática da contraordenação, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 5.º, b) e 25.º, 1, a), ambos do Decreto-Lei n.º 153/2003, de 11/07, alterado pelo Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17/06, e do art. 22.º, 4, b), da Lei n.º 50/2006, de 29/08, na redação do Decreto-Lei n.º 42-A/2016, de 12/08, que lhe vinha imputada, revogando, assim, a decisão administrativa que lhe aplicou a coima de € 12.000,00 (doze mil euros).
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Sem custas, por não serem devidas.
(…).»

2.4. Conhecimento do recurso
2.4.1. Da impugnação da matéria de facto dada como provada e como não provada
O Ministério Público/recorrente impugna a matéria de facto dada como provada e como não provada, respetivamente, na sentença recorrida, sustentando que a prova produzida na audiência de julgamento e a prova documental junta aos autos, especialmente o auto de notícia de fls. 8, que faz fé em juízo, até prova em contrário – nos termos do disposto no artigo 6º, n.º 1, do DL n.º 17/91, de 10 de janeiro – prova esta que o recorrente entende que não ter sido feita, impunha que se desse como provado o que dele consta, designadamente, quanto à inexistência de bacia de retenção no momento da autuação e quanto à constatação da existência de manchas de óleo no solo.
Manifesta ainda o recorrente que a simples existência de manchas de óleo na pedra, que foi dada como provada, já potencia a existência de escorrências para o solo, já que não tem capacidade de absorção.
Embora, não o refira expressamente, invoca o recorrente o erro de julgamento, na apreciação/valoração da prova.
Vejamos:
No âmbito do recurso que tenha por objeto decisão da 1ª instância sobre a impugnação judicial de decisão administrativa contraordenacional, o Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista, apenas conhecendo da matéria de direito (cf. art.º 75, do RGCO).
Em relação à matéria de facto, apenas pode ser impugnada, por via, da invocação dos vícios (que também são de conhecimento oficioso), previstos no artigo 410º n.º 2 do Código Processo Penal, aplicável ex vi, art.º 74º n.º 4 do RGCO, quais sejam: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova.
Estamos perante vícios que têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos estranhos à decisão, para fundamentar a existência do vício, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos e mesmo que tenham resultado do próprio julgamento.
Os enunciados vícios decisórios, não se confundem com a divergência existente entre a prova produzida e os factos dados como provados e/ou como não provados, reconduzindo-se esta situação ao erro de julgamento, na apreciação/valoração da prova, que não pode ser invocado no processo contraordenacional, para a impugnação da matéria de facto da decisão da 1ª instância, no recurso interposto para o Tribunal da Relação.
Por conseguinte, não pode ser considerada, nesta sede, a produzida na audiência de julgamento, que é convocada pelo recorrente, para impugnar a matéria de facto que foi dada como provada e como não provada, respetivamente, na sentença recorrida, pretendendo a respetiva alteração em termos de ser dada como provada a factualidade que é descrita no auto de notícia e que foi dada como assente na decisão administrativa que foi objeto de revogação na sentença recorrida, designadamente, que, quando foi levantado o auto de notícia, não existia bacia de retenção e que existiam manchas de óleo no solo.
A jurisprudência maioritária dos nossos Tribunais Superiores defende o entendimento, que se perfilha, de que em processo contraordenacional, tal como em processo criminal (sendo aplicáveis subsidiariamente, com as devidas adaptações e sempre que o contrário não resulte do RGCO, os preceitos reguladores do processo criminal - cf. artigo 41º, n.º 1, do RGCO), o auto de notícia não faz fé em juízo, sendo o seu valor probatório livremente apreciado pelo tribunal, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal[1].
O entendimento em sentido divergente e que é defendido pelo Ministério Público recorrente, de que, em processo contraordenacional, o auto de notícia faz fé em juízo até prova em contrário, devendo considerar-se provados os factos dele constantes, no caso de não ser posta em causa, fundadamente, a sua veracidade[2], fazendo, desse modo, recair sobre o arguido o ónus probatório de refutar o que consta do auto de notícia, implicaria o afastamento do princípio do acusatório, que norteia o processo penal e que é consagrado no artigo 32º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, e aplicável ao processo contraordenacional, por força do disposto no n.º 1 do artigo 41º do RGCO, sendo passível, em certos casos, de constituir violação do princípio da presunção da inocência, constitucionalmente consagrado no artigo 32º, n.º 2.
Refira-se que estando em causa matéria de direito probatório, não tem aplicação o disposto no artigo 66º do RGCO, convocado pelo recorrente e que prevê a aplicação subsidiária das normas relativas ao processamento das transgressões e contravenções, isto é, das regras do Decreto-Lei n.º 17/91, de 10 de janeiro, à audiência de julgamento em 1ª instância, no processo de contraordenação.
Entendemos, assim, que em processo de contraordenação e na fase de julgamento, que é aquela que ao caso importa, o valor probatório do auto de notícia, levantado pela autoridade competente, no que concerne aos factos materiais nele descritos, está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, estabelecido no artigo 127º do CPP, aplicável ex vi do disposto no artigo 41º, n.º 1, do RGCO.
Tal que significa que, em nosso entender, «nenhum especial valor probatório é atribuível ao auto de notícia no nosso ordenamento processual penal[3]» e também no processo contraordenacional, sendo em relação a este último, mesmo nos casos em que exista disposição expressa atribuindo fé ao auto notícia relativamente aos factos presenciados pelos autuantes que lavraram o auto[4], havendo impugnação da decisão administrativa, abrangendo os factos constantes do auto de notícia, na fase judicial do processo de contraordenação, exige-se que tais factos sejam objeto de prova, testemunhal ou outra, que, estando sujeita à livre apreciação do tribunal, podem ou não resultar comprovados.
Como se faz notar no Acórdão da RE de 16/04/2015[5], na fase judicial do processo contraordenacional a apresentação dos autos ao juiz vale como acusação (cfr. artigo 62º, n.º 1, do RGCO) mas, à semelhança do que sucede em qualquer processo criminal, é ao Ministério Público que compete promover a prova dos factos que considere relevantes para a decisão (cfr. artigo 72º, n.º 1, do RGCO). «A impugnação judicial põe necessariamente em causa o valor probatório do auto de notícia, enquanto documento autêntico, que passa então a constituir um meio de prova, a par de outros, a valorar livremente pelo tribunal (cfr. arts.º 127º e 169º do C.P.P.).»
Ora, no caso concreto, tal como resulta da motivação da decisão de facto consignada na sentença recorrida, perante a prova produzida, na audiência de julgamento e a prova documental junta aos autos, tendo a testemunha/militar da GNR, que levantou o auto de notícia que deu origem ao processo contraordenacional de que se trata, prestado depoimento e respetivo exame crítico, entendendo o tribunal a quo ter existido «uma marcada ausência de rigor nos procedimentos de fiscalização e de documentação adotados, sendo incompreensível que haja concluído pela inexistência de bacia de retenção (…), sem que sequer houvesse apurado o que existia no interior do contentor (…), que lhe foi indicado como sendo o local de armazenamento dos óleos usados» e sedimentado a convicção que o levou a dar como provados e não provados, respetivamente, os factos que agora são impugnados pelo Ministério Público/recorrente, pelas razões que devidamente explicitou, decidindo de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do CPP.
E analisado o texto da decisão recorrida não se vislumbra que enferme de qualquer dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código Processo Penal, aplicável ex vi, art.º 74º n.º 4 do RGCO.
Tem-se, pois, por definitivamente fixada a matéria factual dada como provada e como não provada, respetivamente, na sentença recorrida.

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Assim sendo, dando-se aqui por reproduzidas as considerações jurídicas expendidas na sentença recorrida sobre os elementos típicos objetivos e subjetivos do ilícito contraordenacional, p. e p. pelos artigos 5º, n.º 1, al. b) e 25º, n.º 1, al. a), ambos Decreto-Lei n.º 153/2003, de 11 de julho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17 de junho, conjugado com o artigo 22º, n.º 4, al. b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 42-A/2016, de 18 de agosto, por cuja prática a arguida (…) foi condenada na decisão administrativa, há que concluir pela inexistência de suporte factual provado passível de levar a imputar à arguida o preenchimento dessa contraordenação.
Relativamente ao segmento da decisão que se prende com a existência de manchas de óleo na pedra e que o Ministério Público/recorrente convoca, defendendo ser essa factualidade subsumível à referenciada contraordenação, por considerar que a «simples ocorrência de manchas de óleo na pedra já potencia a existência de escorrências para o solo, já que não tem capacidade de absorção», não encontra suporte matéria factual dada como provada, constando desta que a aludida pedra estava colocada sobre um pavimento betuminoso impermeabilizante do solo natural (cf. factualidade provada vertida nos pontos 3. e 4.). Assim sendo e não está demonstrado que existisse escorrência do óleo para fora da zona impermeabilizada, que atingisse o solo, entendido este no sentido em que é protegido pela norma dos artigos 5º, n.º 1, al. b) – que estatui: «Sem prejuízo do cumprimento de outras disposições legais aplicáveis, é expressamente proibido: Qualquer depósito ou descarga de óleos usados no solo, assim como qualquer descarga não controlada de resíduos resultantes das operações de gestão de óleos usados.» – e sancionado como contraordenação pelo artigo 25º, n.º 1, al. a), ambos Decreto-Lei n.º 153/2003, de 11 de julho, ou seja, como um dos componentes naturais do ambiente, como resulta da Lei de Bases do Ambiente (cf. artigo 10º, al. e), da Lei n.º 19/2014, de 14 de abril)[6], há que concluir que esses factos não preenchem os elementos do ilícito contraordenacional imputado à recorrente e por que foi condenada, na decisão administrativa, pelo que, nenhuma censura merece a sentença recorrida que, decidindo, naquela conformidade, absolveu a arguida da respetiva prática.
Assim e, sem necessidade de outras considerações, confirma-se a sentença absolutória recorrida.
Por conseguinte, o recurso interposto pelo Ministério Público é improcedente.

3. DECISÃO
Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Penal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Sem tributação.


Notifique.

Évora, 12 de janeiro de 2021

Fátima Bernardes

Fernando Pina

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[1] Neste sentido, cf., entre outros, Ac.s da RP de 17/09/2003, proc. 0311921, de 05/01/2011, proc. 280/09.6TAVCD.P1 e de 11/09/2013, proc. 597/11.0EAPRT-A.P1, Ac. da RE de 28/01/2014, proc. 467/13.7TBLGS.E1 e Ac. da RL de 25/11/2020, proc. 16/15.2PFALM.L1-3, acessíveis em www.dgsi.pt.
[2] Neste sentido, defendendo equiparação do auto de notícia a documento autêntico, nos termos dos artigos 363º, n. 2 e 369º do CC vide, entre outros, Ac. da RE de 20/12/2012, proc. 721/07.7PBEVR.E1 e Ac. da RG de 25/05/2013, proc. 2319/11.6TBFAF.G1, disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] Cf. Ac. da RE de 28/01/2014, proc. 467/13.7TBLGS.E1, acessível em www.dgsi.pt.
[4] O que acontece, por exemplo, no domínio das contraordenações rodoviárias (cf. artigo 170º, n.º 3, do Código da Estrada), das contraordenações laborais (cf. artigo 13º, n.º 3, do Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14/09) e das contraordenações do sector das comunicações (cf. artigo 17º, n.º 1, da Lei n.º 99/2009, de 4 de setembro).
[5] Proferido no proc. 24/14.0T8EVR.E1, acessível em www.dgsi.pt, da secção social, a propósito do valor probatório conferido ao auto notícia pelo artigo 13º, nº 3, da Lei nº 107/2009, de 14 de setembro.
[6] Cfr. Ac. da RL de26/06/2019, proferido no proc. 5053/18.2T8LRS.L1-3, acessível em www.dgsi.pt, que é citado e foi seguido de perto na sentença recorrida.