CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO DOS ARTICULADOS
NULIDADE PROCESSUAL
Sumário

1 – O mútuo bancário é o contrato pelo qual o banco se obriga a colocar à disposição do cliente uma determinada quantia pecuniária, por tempo indeterminado ou não, ficando este obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respectivos juros e comissões.
2 – Na sua forma este contrato pode constituir um acto complexo sequencial que se inicia com a celebração de um contrato onde está presente uma declaração de dívida assinada pelo devedor e culmina com a transferência do montante mutuado para a conta bancária dos outorgantes.
3 – A constituição da obrigação pecuniária contratualizada, a transferência do dinheiro mutuado e o quadro de incumprimento contratual pode resultar da análise e da interpretação integrada da declaração negocial ou dos demais instrumentos complementares que possam existir.
4 – O juiz da causa deve convidar as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
5 – O convite ao aperfeiçoamento de articulados é um dever a que o juiz está sujeito e cujo não cumprimento leva ao cometimento de nulidade processual.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Processo n.º 1544/18.3T8STR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Competência Genérica de Rio Maior – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, proposta por “(…) Bank – Sucursal em Portugal” contra (…) e (…), a sociedade Autora veio interpor recurso da sentença final.
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A Autora pediu a condenação solidária dos Réus a pagar-lhe a quantia de € 18.125,12, resultante da soma do montante de capital de € 17.926,46 e dos juros normais e impostos no valor de € 198,66, acrescida de juros normais e penalizados de mora vincendos, à taxa contratual convencionada, até efectivo pagamento.
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Para tanto e em síntese, a instituição bancária afirma que, no âmbito da sua actividade comercial, concedeu um crédito aos Réus através de conta corrente no valor de €15.000,00, a liquidar em 96 meses, por via de prestações mensais no valor de €322,02, acrescidas de imposto de selo, aplicando-se a TAN de 12,99%, a que corresponde uma TAEG de 15,30%.
Mais alega que não foram efectuados alguns dos pagamentos e que os Réus se encontram em incumprimento definitivo, o qual lhes foi comunicado, sendo a dívida exigível na sua totalidade.
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Devidamente citados, os Réus não deduziram contestação.
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Os factos articulados na petição inicial foram dados como provados, tendo as partes sido notificadas para, querendo, alegarem nos termos do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 567.º do Código de Processo Civil.
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Prosseguiram os autos e a sentença proferida julgou a acção improcedente, absolvendo os Réus (…) e (…) do pedido formulado pela Autora “(…) Bank – Sucursal em Portugal”.
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Inconformada com tal decisão, a recorrente apresentou recurso e as suas alegações continham as seguintes conclusões:
«I. A sentença proferida pelo Tribunal a quo considerou a acção totalmente improcedente com absolvição dos RR do pedido.
II. Os RR regularmente citados não contestaram a presente acção, considerando-se confessados os factos nos termos do 567.º do Código de Processo Civil.
III. Da prova produzida pelo Apelante, o Tribunal a quo considerou como não provado o valor de mútuo, das prestações e o prazo do contrato.
IV. Considerando os demais factos alegados pelo Apelante como provados, nos termos do artigo 567.º do CPC, nomeadamente a comunicação aos RR do vencimento integral da dívida e respectiva resolução contratual, concedendo um prazo de 15 dias para a regularização das prestações em atraso.
V. O Apelante considera existir um erro na apreciação da prova junta aos autos, na medida em que dos documentos juntos consegue-se apurar os valores mutuados, os valores pagos, a taxa de juro aplicada e o valor vencido.
VI. Pelo que, salvo melhor opinião, da prova produzida e não contestada pelos RR, consegue-se a apurar que o valor foi efectivamente mutuado e as suas condições de reembolso.
VII. Contudo, permanecendo o Tribunal com dúvida, deveriam as partes ter sido chamadas a pronunciarem-se por escrito ou em sede de Audiência de julgamento, sobre as mesmas.
VIII. Mais, o Apelante não se conforma com o facto de o Tribunal a quo considerar como provado o cumprimento do disposto no artigo 20.º do Decreto-Lei 133/2009, de 2 de junho.
IX. E depois absolver os RR do pedido com fundamento no incumprimento de tal disposição legal.
X. E uma vez mais, caso dúvidas existissem, deveria o Tribunal a quo ter chamado o Apelante a esclarecer.
XI. Note-se que o facto que fundamentou a absolvição dos RR do pedido foi considerado matéria provada, não estando a decisão coerente com a fundamentação.
XII. Assim, a presente acção deveria ter sido totalmente procedente, por provada, condenando os RR a pagar ao Autor nos exactos termos peticionados.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, anulando-se a sentença proferida e, em consequência, serem as partes convidadas a se pronunciarem sobre a resolução contratual.
Decidindo em conformidade, farão Vossas Excelências Justiça!».
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Os recorridos não apresentaram resposta.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais. *
II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
i) erro de facto.
ii) erro de direito, traduzido na improcedência da obrigação de devolução do capital mutuado ou, eventualmente, na não emissão de despacho de aperfeiçoamento.
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III – Da decisão de facto:
3.1 – Factos provados:
Com relevância para a boa decisão da causa, encontram-se provados os seguintes factos:
1. A Autora tem por objecto a emissão e gestão de cartões de crédito, bem como a concessão de crédito, incluindo a prestação de serviços conexos.
2. No âmbito da sua atividade, lançou o serviço “Crédito Projecto”, o qual consiste na concessão de crédito em conta corrente, possibilitando ao seu subscritor a aquisição de bens e/ou serviços através do crédito concedido.
3. Em 2015/07/19 os Réus procederam à subscrição do serviço “Crédito Projecto”, mediante o preenchimento e assinatura da proposta de adesão respetiva.
4. Das “Condições Gerais” da proposta de adesão referida no ponto 3 supra consta o seguinte, no que ao caso releva:
“(…) 4. Utilização do crédito
4.1 A (…) autoriza o(s) Titular(es) a utilizar(em) livremente o “Crédito Projecto”, pelo montante concreto que lhe(s) for autorizado, o qual se encontra indicado nas Condições Particulares.
4.2 A utilização do montante de crédito autorizado será feita mediante a transferência da totalidade desse montante para a conta bancária constante do Mandato (…) em vigor indicada pelo(s) Titular(es), a pedido deste(s), por sua conta e benefício. A(s) utilização(ões) do crédito autorizado será(ão) efectuada(s) pelo montante total do mesmo.
4.3 Os Titulares reconhecem a exigibilidade da dívida, e são solidariamente responsáveis perante a (…) pelo pagamento de todos os montantes devidos por força do presente contrato.
5. Prazo:
5.1. Sem prejuízo do disposto na cláusula 2.2, o contrato de crédito é celebrado pelo prazo determinado nas Condições Particulares ou, se este não for aceite, pelo prazo indicado posteriormente pela (…), no momento da aceitação, findo o qual terminará, mantendo-se as obrigações do(s) Titular(es) nas condições aqui previstas, caso o montante em dívida não esteja integralmente pago. (…)
6. Limite de crédito (Plafond)
6.1 O montante de crédito autorizado, é fixado pela (…), constando das Condições Particulares do contrato. (…)
7. Obrigações do(s) titular(es)
Os Titular(es) obriga(m)-se, nomeadamente a:
a) Pagar pontualmente as mensalidades a que está(ão) obrigado(s); (…)
8. Custo do crédito:
8.1. O crédito utilizado ao abrigo deste contrato vence juros à taxa nominal fixa e respectiva TAEG indicadas no quadro do Anexo I ao presente Contrato. (…)
9. Reembolso e prestação mensal
9.1 O(s) Titular(es) pagará(ão) de forma parcial, em mensalidades sucessivas, uma quantia pré-definida em função do montante de crédito utilizado de acordo com as mensalidades constantes no quadro do Anexo I ao presente Contrato. (…)
12. Incumprimento definitivo
12.1 Verifica-se incumprimento definitivo do contrato por parte do(s) Titular(es) quando, cumulativamente:
i) se encontrar em falta o pagamento de, pelo menos, duas prestações sucessivas, desde que o valor em conjunto das prestações em falta exceda 10% do montante total do crédito em dívida;
e ii) o(s) Titular(es) não proceda(m) ao pagamento das prestações em atraso no prazo concedido para o efeito pela (…) nos termos do número seguinte.
12.2 Verificada a mora em duas prestações sucessivas, a (…) informará o(s) Titular(es), por qualquer meio escrito, de que possui(em) um prazo suplementar de 15 dias de calendário para proceder(em) ao pagamento de todas as quantias em mora, acrescidas da sobretaxa de mora e eventuais encargos ou indemnizações devidas.
12.3 Com o incumprimento definitivo do contrato, são imediatamente devidas todas as prestações em falta, acrescidas da sobretaxa de mora e eventuais encargos ou indemnizações devidas, nomeadamente as previstas na cláusula 10.4.
13. Resolução (…)
13.2 A (…) pode resolver o contrato de crédito no caso de incumprimento definitivo ou outras razões objetivamente justificadas, sendo estas comunicadas ao(s) Titular(es) através de papel ou outro suporte duradouro, sempre que possível, antes da extinção do contrato. (…)
Anexo I
Limite do Crédito € 15.000,00 (…)
Prazo indicativo de reembolso 96 meses (…)
Mens. TAN TAEG
€ 256,50 12,99% 15,3% (…).”
5. Para pagamento do débito decorrente do crédito referido no ponto 3 supra, o primeiro Réu subscreveu a respectiva autorização de débito da sua conta bancária.
6. Os Réus não procederam ao pagamento de algumas das prestações.
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3.2 – Factos não provados:
Com relevância para a boa decisão da causa, não se provou, nomeadamente, que:
a) Das “Condições Particulares” da proposta de adesão referida no ponto 3 da matéria de facto provada consta que o montante máximo do plafond de crédito autorizado é de € 15.000,00, a liquidar em 96 meses.
b) (…) tendo cada mensalidade o valor de € 322,02, acrescido de imposto de selo, aplicando-se a TAN 12,99%, a que corresponde uma TAEG de 15,30%.
c) A quantia referida no ponto a) supra foi disponibilizada através de transferência bancária efectuada pela Autora para conta bancária indicada na autorização de débito e comunicada aos Réus.
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IV – Fundamentação:
Os recorrentes discordam da posição do Tribunal «a quo» quanto aos factos inscritos nas als. a)[1], b)[2] e c)[3] dos factos não provados.
Na visão do Meritíssimo Juiz «a quo» o acordo celebrado entre as partes constitui um contrato de mútuo oneroso, de natureza bancária, ao qual é aplicável o Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho (regime aplicável aos contratos de crédito a consumidores). Em função deste entendimento, o acto postulativo recorrido defende que, «nos termos do art.º 12.º, n.º 1, deste diploma legal, deve ser exarado em papel ou noutro suporte duradouro, em condições de inteira legibilidade, não sendo admissível a sua substituição por confissão ficta resultante da falta de contestação pelos Réus (art.º 364.º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, quer o montante do crédito concedido aos Réu, quer a duração do contrato em apreço encontram-se absolutamente omissos das “Condições Particulares” juntas aos autos pela Autora (cfr. doc. n.º 1 junto com a petição inicial), pelo que não é possível apurar igualmente, por força da falta daqueles elementos, e por referência ao Anexo I do contrato em apreço, qual o montante das prestações da responsabilidade dos Réus em falta e, bem assim, quais as taxas de juro aplicáveis, in casu, nos termos dos pontos 7 e 8 das cláusulas gerais do contrato (cfr. ponto 4 da matéria de facto provada)».
Em contraponto, ao divergir desta solução, a sociedade bancária entende que dos documentos juntos se consegue apurar os valores mutuados, os valores pagos, a taxa de juro aplicada e o valor vencido.
Este colectivo de juízes do Tribunal da Relação de Évora já se pronunciou sobre uma questão próxima, mas axiologicamente convergente na respectiva teleologia e finalidade, afirmando que «à luz do regime vigente antes da alteração promovida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, enquanto documento particular dotado de características de exequibilidade, o contrato de abertura de crédito constitui título executivo, desde que seja acompanhado por documentação demonstrativa de que efectivamente foi emprestada alguma quantia»[4].
E, por maioria de razão, por via da inferência lógica de regras imanentes, a referida tese é integralmente aplicável à fase declarativa, podendo, nesta sede, a documentação contratual constar de diversos suportes comprovativos da concessão de crédito.
Do ponto de vista negocial é chamado à colação um contrato de abertura de crédito, que, na prática, configura um mútuo comercial. Este é o contrato pelo qual o banco se obriga a colocar à disposição do cliente uma determinada quantia pecuniária, por tempo indeterminado ou não, ficando este obrigado ao reembolso das somas utilizadas e ao pagamento dos respectivos juros e comissões.
A lei portuguesa não regula, de modo expresso, a abertura de crédito mas a mesma é definida como uma operação de banco ao abrigo do artigo 362º[5] do Código Comercial. Como afiança Menezes Cordeiro «a abertura de crédito é simples ou em conta-corrente: no primeiro caso, o crédito disponibilizado pode ser usado uma vez; no segundo, o cliente pode sacar diversas vezes sobre o crédito, solvendo as parcelas de que não necessite, numa conta-corrente com o banqueiro. Nesta última hipótese há, ainda, que lidar com as regras da conta-corrente»[6].
Este contrato de abertura de crédito desempenha uma importante função prática, servindo os interesses de ambas as partes. Para o creditado, ele assegura de antemão a disponibilização dos fundos necessários para concretizar um determinado negócio em vista em condições financeiras e operacionais mais vantajosas do que no caso de um empréstimo bancário (que implicaria o pagamento imediato de juros, além de lhe permitir mobilizar o montante disponibilizado na estrita medida das suas necessidades). Para o creditante, ele assegura o encaixe de uma remuneração sem risco, consistente na comissão de abertura de crédito (também designada comissão de reserva) acrescida, relativamente aos fundos disponibilizados não utilizados, de uma comissão de imobilização[7].
Em tese e numa dimensão abstracta, um contrato de abertura de crédito em que uma entidade bancária concede a alguém um empréstimo, alegando aquela instituição que este não pagou uma prestação vencida e todas as que lhe seguiram pode ser complementado por documentação demonstrativa de que efectivamente foi emprestada alguma quantia[8].
Aliás, esta é uma prestação com diversas etapas em que num primeiro momento é assinado o contrato de crédito e só após ocorre a transferência do capital para o mutuário, podendo esta entrega ser concretizada através de um depósito bancário. E, nesta ordem de ideias, pela própria natureza das coisas, ainda que uma das partes afirme no contrato base que transferiu a propriedade e a outra que recebeu o bem e se compromete a devolver uma coisa da mesma espécie, qualidade e quantidade, por norma, em sede de mútuo bancário, a prova da tradição destes bens móveis fungíveis só pode ser demonstrada em instrumento probatório autónomo e emitido subsequentemente.
É certo que do texto do alegado contrato de mútuo não resulta que o creditante tenha disponibilizado ao cliente qualquer importância. Porém, existe suporte documental complementar que demonstra que foi disponibilizada a quantia referida no contrato de abertura de crédito (ou outro equivalente de crédito ao consumo), tal como resulta da análise documentação junta com a petição inicial.
Somos aqui confrontados com uma situação em que o empréstimo bancário é composto pelo conjunto de vários documentos juntos e dessa análise integrada resulta que ocorreu a constituição da obrigação pecuniária contratualizada, a transferência do dinheiro mutuado e o quadro de incumprimento contratual nos termos avançados na petição inicial.
E isto invalida claramente o juízo negatório contido nas alíneas dos factos não provados, ainda que não se admitisse a confissão da dívida por parte dos devedores. Na realidade, através da análise e interpretação da declaração negocial ou dos demais instrumentos complementares está patenteada a constituição e o reconhecimento da existência de uma obrigação de natureza pecuniária, cujo montante é passível de determinação ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas deles constantes.
Ao estar demonstrado o preenchimento de um dos elementos essenciais do contrato de mútuo[9] – que consiste na entrega a outrem de dinheiro ou coisa fungível –, a soma dos elementos contidos na documentação apresentada atesta que, na realidade, foi perfectibilizada a transferência da propriedade do bem com a sua entrega ao mutuário, como ressalta da leitura dos extractos de conta juntos aos autos.
O contrato de mútuo bancário é configurado como um acto complexo sequencial que se inicia com a celebração de um contrato onde está presente uma declaração de dívida assinada pelo devedor e culmina com a transferência do montante mutuado para a conta bancária dos outorgantes.
Deste modo, ao contrário do veredicto firmado pelo Juízo de Competência Genérica de Rio Maior existem elementos comprovativos da constituição do contrato real quod constitutionem e os demais elementos constitutivos do direito que a Autora invoca e que judicialmente pretende ver tutelado estão presentes nos autos.
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O dinheiro foi transferido e utilizado e a articulação entre o documento base e a documentação complementar permite reconstituir toda a operação bancária.
Porém, ainda que existissem dúvidas, neste segmento, o recorrente defende o entendimento que, «não obstante e caso se mantivessem dúvidas quanto à pretensão do Autor, deveria o Apelante ter sido convidado para aperfeiçoar a sua petição inicial ou juntar documento complementar da prova do valor efetivamente mutuado aos RR.
Efectivamente, caso não perfilhasse deste juízo valorativo, o Tribunal «a quo» estava vinculado, ao abrigo dos poderes de gestão processual[10] [11], a proceder ao convite ao aperfeiçoamento do articulado em questão ou, no mínimo, a ordenar a junção da documentação ilustrativa do cumprimento da injunção precipitada no artigo 20.º, n.º 1, alíneas a) e b)[12], do Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de Junho.
À luz da densificação legal constitui articulado deficiente aquele que encerra insuficiência ou imprecisão na exposição da matéria de facto alegada. Na leitura de José Lebre de Freitas e de Isabel Alexandre o preceito reporta-se, fundamentalmente, aos factos principais da causa. Ou seja, à factualidade que integra a causa de pedir ou que fundamenta a defesa por excepção, pois só essa tem idoneidade para comprometer o êxito da acção ou da defesa.
Nesta lógica, «o aperfeiçoamento é, pois, o remédio para casos em que os factos alegados por autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundamentam as excepções) são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados. No primeiro caso, está em causa a falta de elementos de facto necessários à completude da causa de pedir ou duma excepção, por não terem sido alegados todos os que permitem a subsunção na previsão da norma jurídica expressa ou implicitamente invocada. No segundo caso, estão em causa afirmações feitas, relativamente a esses elementos de facto, de modo conclusivo (abstracto ou jurídico) ou equívoco»[13].
No domínio da nova legislação processual a posição supra relatada é pacífica na literatura jurídica nacional. Também Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro sublinham que o superior interesse da justa composição do litígio impõe o convite «ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada é agora uma incumbência do juiz, isto é, um seu dever. A intenção do legislador é clara: a acção ou a excepção não podem naufragar por insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada»[14].
Esta linha de pensamento já se encontrava presente de forma mitigada na legislação processual civil revogada, a qual reconhecia a necessidade do aperfeiçoamento dos articulados com recurso à ideia matricial de que a Justiça não se deveria bastar com decisões apenas formalmente correctas, mas antes procurar que o relato da relação material controvertida apresentado fosse suficiente em ordem a perfectibilizar um raciocínio silogístico completo.
Efectivamente, no domínio da legislação precedente, Abrantes Geraldes assinalava que, quando confrontado com insuficiências ou imprecisões em qualquer dos articulados, o Tribunal tinha o poder-dever ou de um poder funcional de ordenar a correcção. Esta sua posição estribava-se no dever de cooperação recíproco e na «invocação do verdadeiro papel dos Tribunais como órgãos de administração da justiça e de resolução de conflitos para fundar a ilegitimidade de tal conduta omissiva»[15].
Ainda que subsistissem dúvidas quanto ao alcance da norma revogada, na actualidade, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa reforçaram o entendimento expresso pelo primeiro autor, ao sublinharem que «a formulação conferida ao n.º 4 do artigo 590.º pôs termo à discussão que vinha existindo, por referência ao artigo 508º, nº 3, do CPC de 1961, acerca da natureza do despacho destinado ao aperfeiçoamento dos articulados, ficando agora (mais) claro o seu carácter vinculado, arredando a possibilidade de o juiz optar entre proferir ou não tal despacho»[16].
A jurisprudência nacional sufraga claramente o entendimento que o Juiz tem o dever de proferir despacho de aperfeiçoamento sempre que verifique a insuficiência dos factos alegados na petição inicial para sustentar o pedido formulado e classifica a omissão desta imposição processual como uma nulidade susceptível de ser conhecida directamente em sede de impugnação por via recursal[17] [18] [19] [20].
A referida solução está inclusivamente estabilizada na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que, de forma constante, assume que o convite ao aperfeiçoamento de articulados, nos termos do n.º 4 do artigo 590.º do Código de Processo Civil, é um dever a que o juiz está sujeito e cujo não cumprimento leva ao cometimento de nulidade processual[21] [22].
Alerte-se que a nulidade resultante da omissão do despacho de aperfeiçoamento só se verifica se, na apreciação do pedido da parte, for dada relevância à deficiência do articulado, ou seja, se o pedido formulado pela parte for julgado improcedente precisamente com fundamento naquela deficiência[23]. E da leitura do acto postulativo recorrido resulta de forma transparente que foi isto que aconteceu na presente situação. E esta é a posição perfeitamente estabilizada deste colectivo de Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Évora[24] [25] [26].
Contudo, ao invés, o Tribunal «a quo» entendeu absolver os Réus do pedido, por não se estar perante um incumprimento definitivo. Para a construção deste silogismo judiciário, a decisão recorrida funda-se na seguinte argumentação: «ainda que a Autora houvesse demonstrado o número de prestações em falta, o seu montante, e que este excedia 10% do montante do crédito, o que manifestamente não logrou, sempre se lhe exigiria ainda que tivesse concedido aos Réus um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato. Porém, a Autora não logrou ter procedido à interpelação dos Réus naquele sentido, nem, tão-pouco, sequer, nos termos mais restritos previstos pelo ponto 12 das “Condições Gerais” do contrato».
Ao considerar que esta matéria não era susceptível de confissão e apesar de ter concluído que os Réus não procederam ao pagamento de algumas das prestações, caso a documentação apresentada fosse encarada como insuficiente para a procedência da pretensão jurisdicional em discussão, o Meritíssimo Juiz de Direito deveria fazer uso dos acima assinalados poderes de gestão processual em ordem a obter uma decisão justa, equitativa e que refletisse da melhor forma possível o enquadramento negocial ocorrido.
Assim, pela preterição do exercício do poder vinculado a que se encontrava adstrito o julgador «a quo», o Tribunal da Relação revoga a decisão em discussão, devendo o Tribunal «a quo» convidar a parte a aperfeiçoar a petição inicial ou a apresentar a documentação que considerar pertinente, sem prejuízo de proceder à alteração dos factos nos termos acima expostos. E apenas no caso da mesma não ser correspondido o convite é que existe motivo fundamentado para concluir que não está preenchido um cenário de incumprimento definitivo.
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V – Sumário:
(…)
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se julgar procedente o recurso interposto, revogando-se a decisão recorrida, devendo o Tribunal «a quo» convidar a parte a aperfeiçoar a petição inicial ou a apresentar a documentação que considerar pertinente, sem prejuízo de proceder à alteração dos factos nos termos acima expostos.
Sem tributação, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
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(acto processado e revisto pelo signatário nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 138.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).
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Évora, 14/01/2021
José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho
Mário Branco Coelho
Isabel Maria Peixoto Imaginário

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[1] a) Das “Condições Particulares” da proposta de adesão referida no ponto 3 da matéria de facto provada consta que o montante máximo do plafond de crédito autorizado é de € 15.000,00, a liquidar em 96 meses.
[2] b) (…) tendo cada mensalidade o valor de € 322,02, acrescido de imposto de selo, aplicando-se a TAN 12,99%, a que corresponde uma TAEG de 15,30%.
[3] c) A quantia referida no ponto a) supra foi disponibilizada através de transferência bancária efectuada pela Autora para conta bancária indicada na autorização de débito e comunicada aos Réus.
[4] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 02/10/2018, publicitado em www.dgsi.pt.
[5] Artigo 362.º do Código Comercial (Natureza comercial das operações de banco):
São comerciais todas as operações de bancos tendentes a realizar lucros sobre numerário, fundos públicos ou títulos negociáveis, e em especial as de câmbio, os arbítrios, empréstimos, descontos, cobranças, aberturas de créditos, emissão e circulação de notas ou títulos fiduciários pagáveis à vista e ao portador.
[6] Manual de Direito Bancário, 3ª edição, Almedina, Coimbra 2006, pág. 542.
[7] José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, Coimbra 2009, págs. 501-502.
[8] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16/10/2012, in www.dgsi.pt.
[9] Nos termos do artigo 1142.º do Código Civil o mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
[10] Artigo 6.º (Dever de gestão processual):
1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.
[11] Artigo 590.º (Gestão inicial do processo):
1 - Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.
2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;
b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;
c) Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
3 - O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
5 - Os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.
6 - As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos nºs 4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu.
7 - Não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados.
[12] Artigo 20.º (Não cumprimento do contrato de crédito pelo consumidor):
1 - Em caso de incumprimento do contrato de crédito pelo consumidor, o credor só pode invocar a perda do benefício do prazo ou a resolução do contrato se, cumulativamente, ocorrerem as circunstâncias seguintes:
a) A falta de pagamento de duas prestações sucessivas que exceda 10 % do montante total do crédito;
b) Ter o credor, sem sucesso, concedido ao consumidor um prazo suplementar mínimo de 15 dias para proceder ao pagamento das prestações em atraso, acrescidas da eventual indemnização devida, com a expressa advertência dos efeitos da perda do benefício do prazo ou da resolução do contrato.
2 - A resolução do contrato de crédito pelo credor não obsta a que este possa exigir o pagamento de eventual sanção contratual ou a indemnização, nos termos gerais.
[13] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 634.
[14] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras notas ao novo Código de Processo Civil, Vol. I, 1ª ed., Almedina, Coimbra, 2013, págs. 480 e seguintes.
[15] Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. II, 4.ª Edição Revista e Actualizada, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 73.
[16] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 681, em anotação ao artigo 590º.
[17] No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/11/2018, in www.dgsi.pt, pode ler-se que: «I- O artigo 590.º, n.º 2, alínea b), do CPC impõe ao Juiz o dever de proferir despacho de aperfeiçoamento sempre que verifique a insuficiência dos factos alegados na petição inicial para sustentar o pedido que formulou, e configure tal situação como de causa de pedir insuficiente.
II- A omissão do referido dever configura uma nulidade processual sempre que a deficiência da causa de pedir conduza à improcedência da causa e consequente absolvição do pedido (artigo 195.º, n.º 1, parte final, do CPC)».
[18] Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08/01/2018, disponível em www.dgsi.pt, também que: «I – O convite ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada é, por mor do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 590.º do Código de Processo Civil, uma incumbência do juiz, isto é, um seu dever funcional.
II – O estrito cumprimento desse dever implica que o Tribunal não pode deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado que se revele deficiente e, mais tarde (designadamente na sentença final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar essa peça processual.
III – A omissão desse acto devido, influindo no exame e decisão da causa, implica a nulidade da sentença nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 195.º do Código de Processo Civil».
[19] Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/03/2017, publicado em www.dgsi.pt, reforça que: «perante uma petição inicial deficiente, incompleta, no que concerne à descrição dos factos constitutivos do direito a que se arroga o autor, em que não falta nem é ininteligível a causa de pedir, deve o juiz formular o convite de aperfeiçoamento previsto no artigo 590.º, n.º 4, do CPC».
[20] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28/09/2017, in www.dgsi.pt, ao afirmar que: «detectando-se insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto deve a parte ser convidada a suprir tais deficiências, ao abrigo do disposto no artigo 590.º/2, alínea b) e 4, do C. P. Civil».
[21] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/06/2019, in www.dgsi.pt.
[22] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/12/2018, in www.dgsi.pt.
[23] Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, comentando o acórdão da Relação de Lisboa de 15/05/2014.
[24] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24/10/2019, consultável em www.dgsi.pt.
[25] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 02/10/2018, publicado em www.dgsi.pt.
[26] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30/01/2020, publicitado em www.dgsi.pt.