I- Segundo o entendimento do STJ, para efeitos do Recurso para Uniformização de Jurisprudência a contradição jurisprudencial relevante pressupõe sempre a identidade da questão de direito sobre que incidiu o acórdão em oposição, que tem pressuposta a identidade dos respetivos pressupostos de facto e a oposição emergente de decisões expressas e não apenas implícitas;
II- No caso presente, não se verifica identidade de pressupostos de facto.
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório
1. AA veio, por apenso ao processo n.º20427/16.5T8LSB.L1.S2, interpor Recurso para Uniformização de Jurisprudência, formulando a seguinte pretensão:
“deve ser concedido provimento ao presente recurso, e, por via disso, após a normal tramitação, ser revogado o Colendo Acórdão recorrido, determinando-se o prosseguimento dos autos”.
Alega que:
- O Acórdão recorrido relativamente à mesma questão fundamental de direito está em oposição com o acórdão do STJ de 18/09/2018, no processo n.º21852/15.4T8PRT.S1 (entretanto escolhido em face de o Recorrente ter indicado mais do que um Acórdão-fundamento), porquanto no Acórdão recorrido se refere que “o caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objeto apreciado, porque o que releva é a identidade da causa de pedir (isto é, dos factos com relevância jurídica) e não de qualificações jurídicas”, enquanto o Acórdão-fundamento considera que a mesma factualidade pode ser objeto de ação posterior desde que revele um alcance da essencialmente diferente da pretensão anterior quanto à valoração dos comportamentos ílicitos em causa.
2. Notificada, a Recorrida não veio responder.
3. Foi proferido despacho, não admitindo o presente recurso, por não se verificar o pressuposto da oposição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento.
4. Notificado, o Recorrente veio apresentar Reclamação para a Conferência do despacho liminar do Relator, continuando a referir a existência de contradição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento.
5. A Recorrida não veio responder.
6. Cumpre decidir.
II. Do objeto da reclamação
Os Reclamantes vieram manifestar a sua discordância do despacho do Relator por, no seu entendimento, se verificar a contradição de Acórdãos.
III. Fundamentação
1. Releva para a decisão o que consta do relatório que antecede.
2. Do mérito da Reclamação
Como se referiu no despacho de fls.72/79, com a qual este coletivo concorda e se reproduz, as partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito (nº1 do artigo 688º do Código de Processo Civil).
Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior com trânsito em julgado, presumindo-se o trânsito (n.º2 do artigo 688.º do Código de Processo Civil).
O recurso é interposto no prazo de 30 dias, contados do trânsito em julgado do acórdão recorrido (n.º1 do artigo 689.º do Código de Processo Civil).
O requerimento de interposição, que é autuado por apenso, deve conter a alegação do recorrente, na qual se identificam os elementos que determinam a contradição alegada e a violação imputada ao acórdão recorrido (n.º1 do artigo 690.º do Código de Processo Civil).
Recebidas as contra-alegações ou expirado o prazo para a sua apresentação, é o processo concluso ao relator para exame preliminar (n.º1 do artigo 692.º do Código de Processo Civil).
Nos termos do disposto no n.º1 do artigo 692.º do Código de Processo Civil, aquando do despacho liminar, o recurso deve ser rejeitado, além dos casos previstos no n.º2 do artigo 641.º, sempre que o recorrente não haja cumprido os ónus estabelecidos no artigo 690.º, não exista a oposição que lhe serve de fundamento ou ocorra a situação prevista no n.º3 do artigo 688.º.
Assim, e desta disposição legal, resulta, com clareza, que o Relator deve rejeitar o recurso quando:
- verificar que a decisão não admite recurso (alínea a) do n.º2 do artigo 641.º do Código de Processo Civil);
- o recurso for interposto fora de prazo (alínea a) do n.º2 do artigo 641.º do Código de Processo Civil);
- o recorrente não tiver as condições necessárias para recorrer (alínea a) do n.º2 do artigo 641.º do Código de Processo Civil), carecendo de legitimidade;
- o requerimento de interposição não contém a alegação do recorrente ou quando não tenha conclusões (alínea b) do n.º2 do artigo 641.º do Código de Processo Civil);
- o recorrente não cumprir os ónus estabelecidos no artigo 690.º do Código de Processo Civil (identificação dos elementos que determinam a contradição alegada, a violação imputada ao acórdão recorrido e junção de cópia do acórdão-fundamento);
- o acórdão-fundamento não tiver transitado em julgado (n.º2 do artigo 688.º do Código de Processo Civil);
- não exista a oposição que lhe serve de fundamento (n.º1 do artigo 692.º do Código de Processo Civil);
- a orientação perfilhada no acórdão recorrido está de acordo com a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça (n.º3 do artigo 688.º do Código de Processo Civil).
Desta forma, o Relator não só deve verificar, no despacho liminar, os requisitos previstos no n.º2 do artigo 641.º do Código de Processo Civil, mas deve, também, verificar, no que releva para o caso presente, se existe oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento.
No caso presente, verifica-se a oposição de julgados (entre o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento), como o disposto no n.º1 do artigo 692.º do Código de Processo Civil impõe que verifique?
Ora, “a contradição, para efeitos do Recurso para Uniformização de Jurisprudência, pressupõe: identidade da questão de direito sobre que incidiu o acórdão em oposição, que tem pressuposta a identidade dos respetivos pressupostos de facto e a oposição emergente de decisões expressas e não apenas implícitas” (Acórdão do STJ, de 10 de janeiro de 2013, consultável in www.dgsi.pt)
- cfr., entre muitos outros, Acórdão do STJ, de 17 de junho de 2014, Sumários, junho/2014, consultável in www.stj.pt; Acórdão do STJ, de 2 de outubro de 2014, Sumários, outubro/2014, consultável in www.stj.pt; Acórdão do STJ, de 13 de novembro de 2014, Sumários, novembro/2014, consultável in www.stj.pt; Acórdão do STJ, de 20 de novembro de 2014, Sumários, novembro/2014, consultável in www.stj.pt; Acórdão do STJ, de 25 de novembro de 2014, Sumários, novembro/2014, consultável in www.stj.pt; Acórdão do STJ, de 13 de janeiro de 2015, Sumários, janeiro/2015, consultável in www.stj.pt; Acórdão do STJ, de 29 de janeiro de 2015, consultável in www.dgsi.pt –
O Recorrente veio interpor o presente recurso para uniformização de jurisprudência, referindo que existe contradição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão do STJ, 18 de setembro de 2018, proferido no processo n.º21852/15.4T8PRT.S1, ambos proferidos no domínio da mesma legislação, porquanto no acórdão recorrido, decidiu-se que “o caso julgado abrange todas as possíveis qualificações jurídicas do objeto apreciado, porque o que releva é a identidade da causa de pedir (isto é, dos factos com relevância jurídica) e não de qualificações jurídicas” e que “o facto de o recorrente ter qualificado juridicamente os factos alegados, invocando a responsabilidade contratual, de forma diferente da qualificação jurídica efetuada em outro processo (na decisão proferida nesse outro processo considerou-se que se estava perante responsabilidade extracontratual), não faz alterar a causa de pedir nem afasta a exceção do caso julgado, porquanto a causa de pedir, é o ato ou facto jurídico donde o autor pretende ter derivado o direito a tutelar e não a valoração jurídica que ele entende atribuir-lhe” e no acórdão-fundamento referiu-se que “embora a diferenciação de causas de pedir seja feita, em regra, por via da conjugação da concreta factualidade alegada com o aludido quadro normativo aplicável, casos há em que a mesma factualidade empírica é suscetível de preencher quadros normativos distintos com estatuição de modos de tutela jurídica qualitativamente diversos. Nestes casos, tal diferenciação será feita, basicamente, em função do vetor normativo da causa de pedir” e que “importa, no entanto, moderar essa liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualitativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º609.º, n.º1, do CPC e atentando contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa” e que “…num caso em que (…) em ação anterior foi julgada improcedente uma pretensão indemnizatória por danos patrimoniais, fundada na violação do interesse contratual negativo na decorrência da invocada nulidade de contratos celebrados, tal não preclude, por via do efeito de caso julgado, a possibilidade de se deduzir, em ação posterior, pretensão indemnizatória por danos patrimoniais sustentada na mesma factualidade mas agora com fundamento em violação do interesse contratual positivo, na medida em que esta pretensão revele, sob o ponto de vista normativo, um alcance essencialmente diferente da pretensão anteriormente julgada, quanto à valoração dos comportamentos ilícitos em causa e dos danos ressarcíveis e, nesta medida, um modo específico de tutela distinto com reflexo no efeito prático-jurídico pretendido”.
O Relator, no despacho de fls.72/79 destes autos em papel, entendeu que não era de admitir o recurso para uniformização de jurisprudência, pois não se verificava a contradição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento.
Perante esta decisão, o Recorrente veio reclamar para a Conferência.
Contudo, e dado que os termos da questão se mantêm, adere-se à posição assumida pelo Relator no despacho de fls.72/79 destes autos em papel, no que respeita à não existência de contradição e pelos fundamentos aí avançados.
Assim, “como atrás se afirmou, e é unânime a posição do STJ nesta questão, para efeitos de uniformização de jurisprudência é necessária a identidade dos respetivos pressupostos de facto e, no caso presente, não se verifica essa identidade de pressupostos de facto.
Assim, verifica-se que em ambos os acórdãos se coloca a questão de saber se ocorre a verificação da exceção do caso julgado.
Contudo, como se referiu os pressupostos de facto são diversos:
- no Acórdão-fundamento, em ação anterior foi julgada improcedente uma pretensão indemnizatória por danos patrimoniais, fundada na violação do interesse contratual negativo, tendo o autor invocado a nulidade dos contratos celebrados com o Réu;
Como consta do acórdão-fundamento, “sucede que todas as questões sustentadas nas violações legais acima indicadas foram julgadas improcedentes, por se considerar que tais violações ou nem sequer se verificavam, como no caso da invocada fraude à lei, ou não eram suscetíveis de constituir fundamento de nulidade dos negócios em causa, a começar pela ofensa dos bons costumes e violação da ordem pública.
E, no respeitante à alegada violação das normas do CVM, considerou-se … em face dos factos provados, que: tendo presentes os deveres acima enunciados que vinculam a atuação do intermediário financeiro perante o investidor e a factualidade apurada, temos por demonstrada a violação do dever de proteção dos legítimos interesses do seu cliente aqui A., porquanto no contexto da campanha acionista delineada e executada pelo banco este sobrepôs os seus interesse/objetivos – e de incremento da base acionista com um significativo aumento do número de acionistas e aumento do capital colocado junto do público – aos interesses dos investidores, violando o disposto nos artigos 304.º, e 309.º do CVM.
A atuação levada a cabo pelo …. Junto dos seus clientes através dos seus funcionários nas respetivas sucursais e nomeadamente junto do A. (…) evidencia ainda que o aqui R. montou uma campanha baseada nos seus próprios interesses (…), incitando à compra das suas ações com recurso ao crédito (…) com vista a alcançar os seus objetivos, nessa medida violando também o disposto no artigo 310.º, n.º1, na medida em que o fim principal da operação por si incitada não era no interesse do seu cliente mas antes cumprir o objetivo por si banco traçado. Assim incorrendo em intermediação excessiva.
Verificada esta conduta ilícita do banco R., violadora dos seus deveres enquanto intermediário financeiro e culposa, culpa que aliás se presume nos termos do artigo 314.º, n.º2, do CVM, resta aferir se a mesma implica a nulidade dos negócios jurídicos celebrados e em causa nos autos, nos termos do artigo do artigo 294.º do CC, do qual resulta que assim não será se outra for a solução prevista na lei”.
E nessa mesma ação, foi entendido que não ocorria a nulidade dos contratos, mas que o R. poderia incorrer em responsabilidade civil por danos causados ao Autor. Daí que, viesse a julgar improcedente a ação (com o fundamento invocado pelo Autor).
Na ação a que se reportava o Acórdão-fundamento já era o mesmo Autor a formular o pedido de indemnização “estribados no pressuposto da validade dos sobreditos negócios e, por conseguinte, na perspectiva da violação do interesse contratual positivo”, como se refere no Acórdão – fundamento, pelo que refere o mesmo Acórdão “não se trata, pois, de uma mera qualificação formal, mas de duas perspetivas de tutela jurídica ressarcitória suscetíveis de âmbitos essencialmente diferentes”.
Assim, numa primeira ação, esta veio a ser julgada improcedente por o Tribunal ter entendido (no essencial) que não se verificava a nulidade dos contratos celebrados entre o Autor e o Réu, enquanto na segunda o Autor (aceitando a qualificação dada pelo tribunal) apresenta como pressuposto (não a nulidade dos contratos) mas a validade dos contratos.
- no Acórdão recorrido, o Autor, em ação anterior, reclamou o pagamento de uma indemnização por danos que a conduta da Ré (nomeada patrona) lhe causou; o Tribunal veio a qualificar os factos dados como provados (e alegados pelo Autor) de forma diversa, considerando que se estava no âmbito da responsabilidade extracontratual.
Deste modo, e no confronto entre os factos provados no Acórdão recorrido e no Acórdão-fundamento, verifica-se que a factualidade é tão diversa que nos conduzem à conclusão oposta à pretendida pelo Recorrente: no que respeita ao acórdão-fundamento o tribunal não qualificou diferentemente os factos, antes considerou que aqueles factos não conduziram à conclusão que os contratos eram nulos, mas que poderiam conduzir (alguns dos factos provados) a uma eventual indemnização por danos causados pelo Réu, mas não se pronunciou sobre esses mesmos danos;
no acórdão recorrido o Tribunal qualificou os factos (como lhe permite o disposto no n.º3 do artigo 5.º do Código de Processo Civil) de forma diversa e concluiu pela improcedência da ação.
- Aliás, podemos referir que a situação dos autos configura a situação apresentada na conclusão 13ª das alegações do Recorrente no Acórdão – fundamento que refere “cumpre reconhecer, no entanto, a exceção de caso julgado (e não autoridade do caso julgado) no campo dos danos não patrimoniais, por ser essencialmente a mesma factualidade invocada nas duas acções, sendo que não impede a formação de caso julgado a diferente qualificação jurídica (responsabilidade extracontratual na anterior ação; responsabilidade contratual nesta ação)”.
Assim, sendo afastados os quadros factuais, não se pode afirmar que haja contradição entre acórdãos sobre essa questão, pelo que o recurso não é admissível”.
III. Decisão
Posto o que precede, indefere-se a reclamação.
As custas ficam a cargo do Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Lisboa, 2 de dezembro de 2020
Pedro de Lima Gonçalves (Relator)
Fátima Gomes
Acácio das Neves
Nos termos do disposto no artigo 15.º-A do decreto – Lei n.º20/2020, de 1 de maio, declara-se que têm voto de conformidade dos Senhores Juízes Conselheiros Fátima Gomes e Acácio das Neves.