IMPUGNAÇÃO PAULIANA
LEGITIMIDADE PASSIVA
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
CASO JULGADO
EXTENSÃO DO CASO JULGADO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
NULIDADE DO CONTRATO
SIMULAÇÃO
Sumário


I - A acção de impugnação pauliana deve ser instaurada contra o devedor alienante e os terceiros adquirentes e sub-adquirentes, por terem interesse directo em contradizer, sendo a falta de qualquer deles motivo de ilegitimidade dos restantes.

II - Uma sentença que declarou a nulidade do acto, por simulação, mas que não apreciou o pedido de impugnação pauliana, não tem eficácia de caso julgado material, nomeadamente quanto à sua fundamentação de facto, relativamente a outra acção pauliana instaurada contra os sub-adquirentes.

Texto Integral




Processo n.º 4278/19.8T8GMR.G1.S1[1]

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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:

I. Relatório

Avirefojos – Sociedade Unipessoal, Ldª, instaurou, em 18/7/2019, a presente acção declarativa, com processo comum, contra AA e BB, todos melhor identificados nos autos, formulando os seguintes pedidos:

a) ser reconhecido e assegurado à autora o direito pessoal de restituição do prédio urbano que identifica no art.º 8.º da petição inicial, na medida do seu interesse, como se o referido bem vendido aos réus nunca tivesse saído do património dos seus primitivos proprietários, face à ineficácia relativa de tal aquisição em relação à autora;

b) ser reconhecido à autora o direito de executar o referido bem, na exacta medida do necessário para a satisfação do seu crédito – no valor de € 71.308,84, a título de capital, acrescido dos juros de mora vencidos, no montante actual de € 38.873,98, e vincendos até eventual pagamento – sem a concorrência de qualquer outro eventual credor.

Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:

Detém um crédito sobre os pais do réu no valor de 71.308,84 €, acrescido de juros contados desde 2001, o qual foi já reconhecido por sentença proferida em 08/04/2019 e transitada em julgado em 21/05/2019, a qual também declarou nulo o negócio de transmissão do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ……… sob o n.º ………-…….. e inscrito na matriz predial urbana da actual União de freguesias de ……………… sob o artigo ……….. .

Os ali transmissários alienaram o referido prédio aos ora réus (antes do registo dessa acção) e, quanto a este concreto negócio, não foi requerida nem proferida decisão.

Pretende ver reconhecida quanto a este negócio a impugnação pauliana.

Os réus contestaram, por excepção, invocando a caducidade considerando a data em que foi celebrado o primeiro negócio (já declarado nulo na aludida sentença) e, por impugnação, sustentaram que  a impugnação pauliana não pode versar sobre um negócio viciado (o negócio que conduziu à transmissão do bem para o património de quem figurou como transmitente no negócio ora impugnado foi declarado nulo), concluindo improcedência do pedido.

A autora respondeu, sustentando que o prazo de caducidade a considerar tem por referência o negócio impugnado e não o outro que o precedeu e pugnando pelo prosseguimento dos autos, na medida em que a invalidade do negócio que conduziu à transmissão impugnada não obsta ao mérito da sua pretensão.

           

Dispensada a realização da audiência prévia, em 6/11/2019, foi proferido despacho saneador, que julgou improcedente a excepção de caducidade nos seguintes termos: “Não se verifica a excepção de caducidade invocada pelos réus, já que o negócio impugnado nestes autos foi celebrado em 17 de Novembro de 2016, tendo a acção sido intentada em 18.07.2019, não tendo, por conseguinte, passado os cinco anos a que alude o art. 618º do CC.

Foi, ainda, decidido que nada obstava ao conhecimento do mérito da acção de impugnação pauliana, nomeadamente a invalidade do negócio que a precedeu. Foi fixado o objecto do litígio, tendo-se elencado os factos considerados assentes, e foram enunciados os temas de prova.

Os réus, não se conformando com a decisão sobre a improcedência da excepção da caducidade, dela interpuseram recurso de apelação, que foi admitido com subida diferida.

Os réus, em 9/1/2020, invocaram a ilegitimidade passiva e requereram a sua absolvição da instância.

            Por despacho de 27/1/2020, o Tribunal da 1.ª instância determinou o desentranhamento do requerimento, por entender que era “processualmente inadmissível”.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, em 27/1/2020, que decidiu:

Pelo exposto, vai a presente acção julgada procedente e, em consequência, reconhece-se à autora "Avirefojos – Sociedade Unipessoal, Ld.ª" o direito de executar o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ………. sob o n.º ………-………., e inscrito na matriz predial urbana da actual União das freguesias de ……… sob o art. ………., na medida do necessário para a satisfação do seu crédito, nos termos reconhecidos pela sentença identificada no artigo 5) dos factos provados.

Custas pelos réus – nº 2 do art. 527º do CPC.”

Interposto recurso de apelação pelos réus, o Tribunal da Relação, por acórdão de 28/5/2020, deliberou nos seguintes termos:

“a) Julgar improcedente o recurso da decisão que julgou improcedente a exceção de caducidade, confirmando a decisão recorrida;

b) Condenar os Recorrentes nas custas desse recurso;

c) Julgar procedente o recurso da sentença e, em consequência, revogar a sentença recorrida e julgar os Réus/Recorrentes parte ilegítima por preterição de litisconsórcio necessário passivo, absolvendo-os da instância.

d) Condenar a Autora/Recorrida nas custas deste recurso e nas custas da acção.”

Não conformada, agora, a autora/apelada interpôs recurso de revista e apresentou as correspondentes alegações que terminou com as seguintes extensas conclusões:

                “I. Considerou o Acórdão recorrido que «no caso concreto, em face da transmissão pelos devedores para o terceiro adquirente, e da transmissão deste para os Recorrentes» (ora Recorridos) «temos de concluir que a Autora deveria ter instaurado a presente acção não apenas contra estes mas também contra aqueles, e que tal não está na dependência da vontade da Autora/credora e nem se apresenta como uma opção; a falta dos devedores e do adquirente é susceptível de gerar a ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário como sustentam os Recorrentes, assistindo-lhes razão.»

II. E, por essa razão, considerou o Acórdão recorrido que «está verificada nos autos a

preterição de litisconsórcio necessário passivo, pelo que estamos perante uma situação de ilegitimidade passiva, que constitui uma exceção dilatória», razão pela qual revogou a decisão da primeira instância e absolveu os Réus da instância.

III. E, por isso, assim sumariou, nesta parte do Recurso, o Acórdão ora recorrido:

«(…)

V - Na acção de impugnação pauliana, a relação controvertida envolve três sujeitos:

o credor, o devedor alienante e o terceiro adquirente e, no caso de transmissões posteriores, envolve ainda os subadquirentes, sendo necessária a intervenção de todos sob pena de se verificar a ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário».

IV. Ora, o entendimento do Acórdão recorrido seria aceitável, e correto, se, encontrando-nos perante uma dupla alienação do imóvel “garantia”, a aqui A. viesse apenas agora impugnar ambas as transmissões, caso em que a relação controvertida envolveria, no que respeita à 1ª transmissão, o credor (a aqui A), os devedores alienantes (os pais do aqui Réu AA) e o terceiro adquirente (o tio do aqui Réu AA, e, portanto, irmão e cunhado dos devedores), e no que concerne à 2ª transmissão, posterior, deveria, então, envolver ainda, além daqueles, os subadquirentes.

V. Contudo, não é, nem foi esse o caso, ignorando, e desvalorizando, o Acórdão recorrido que antes da presente Acção a aqui A., que então não tinha ainda conhecimento da 2ª transmissão, havia já instaurado a Acção de impugnação referida e identificada supra em “2”, apenas – e bem – contra os seus devedores alienantes (pais do aqui R. AA) e contra o

terceiro adquirente, CC, na qual, entre outros pedidos, e a titulo subsidiário, deduziu pedido de Impugnação Pauliana daquela transmissão – a qual só não veio

a ser conhecida por impedimento legal, na medida em que foi julgado procedente o pedido

principal, de nulidade daquela, por simulação absoluta.

VI. Assim como ignorou, e desvalorizou, que a aqui A., logo que tomou, já na decorrência daquela Acção, conhecimento da segunda transmissão do imóvel “garantia” (por parte do 3º adquirente a favor dos aqui Réus, AA e BB) logo tratou, ali e de imediato, de requerer a ampliação da causa de pedir e intervenção da aqui Ré BB (uma vez que o Réu AA já ali era, por outros motivos, Réu).

VII. E que, não obstante até tenham sido – e bem – tais pedidos admitidos pelo Tribunal a quo, acabou a aqui A. impedida, por Acórdão do Tribunal da Relação de ………, de prosseguir com aquela Acção também para apreciação de tais pedidos e, consequentemente da ineficácia da 2ª transmissão do imóvel “garantia”, também ali, entretanto, suscitada.

VIII. Assim, impedida que foi a aqui A. de, ali, deduzir Impugnação Pauliana também

relativamente à 2ª transmissão, e obter a consequente declaração da sua Ineficácia em relação a si, credora, outra alternativa não lhe restou senão a de a Impugnar, agora, no âmbito da presente Acção e autos, já depois do trânsito em julgado daquela primeira Acção.

IX. Só que o fez – e bem - com a particularidade de já demandar apenas os subadquirentes (adquirentes na 2ª transmissão do prédio, em partes iguais), os aqui Réus AA e BB, não podendo, nem devendo, voltar a demandar os seus devedores (pais do Réu AA) nem o terceiro adquirente, CC (apesar de alienante na 2ª transmissão), sob pena de – se o fizesse – correr o risco de estes virem a invocar e excepcionar a força e autoridade do caso julgado resultante da sentença proferida naquela 1ª

Acção, já, então, transitada em julgado.

X. Isto porque, não obstante não tenha sido julgada a Impugnação Pauliana ali deduzida a título subsidiário, por força da procedência do pedido principal – nulidade da 1ª transmissão, por simulação absoluta –, não deixaram de ser apreciados e considerados por provados factos ali invocados como causa de pedir daquele pedido subsidiário, ao ponto deles resultarem por verificados todos os requisitos de que dependeria a procedência da Impugnação Pauliana deduzida.

XI. Com efeito, em “7” dos factos provados, daquela sentença, resulta, desde logo, o

reconhecimento da existência de um crédito da A. sobre os alienantes na 1ª transmissão do imóvel “garantia”, no valor de € 71.308,84;

XII. Em “12” dos factos provados resulta que o 3º adquirente, CC, tinha conhecimento daquele crédito da A. sobre os alienantes do imóvel “garantia”, os RR pais do aqui R. AA;

XIII. Em “11” dos factos provados resulta que com a 1ª transmissão do imóvel pretenderam os RR (alegados vendedores e comprador), de comum acordo, subtrair o imóvel ao património dos Réus alienantes, para impedir a aqui, e ali, A. de cobrar o seu crédito sobre estes RR, pais do aqui R. AA.

XIV. E em “16” dos factos provados resulta que o aqui Réu AA sabia da dívida dos 1ºs RR, seus pais, para com a A.

XV. Ou seja, ficou já, ali, provado, relativamente à 1ª alienação/transmissão do imóvel

“garantia”, que os devedores da aqui A. não só foram parte do acto impugnado (enquanto alienantes), como ficou ainda provado que actuaram com notória MÁ-FÉ, juntamente com o 3º (alegado) adquirente.

XVI. Por outro lado, sendo verdade que «implicitamente o legislador reconheceu a exigência do litisconsórcio no art. 611º do C.P.C. ao impor ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto o ónus da prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor», também não restam dúvidas de que naquela primeira Acção nem os devedores, nem o 3º adquirente, lograram fazer a referida prova, não obstante tenham tido a oportunidade de o fazer, face ao pedido de impugnação pauliana deduzido e ao claro interesse de ambos na manutenção do acto impugnado, e na não restituição do imóvel à A., credora, tudo conforme resulta da sentença respectiva, junta com a P.I. dos presentes autos.

XVII. Além do mais, não se justificava, nem foi necessária, a demanda dos devedores, na medida em que não foram intervenientes na 2ª alienação, para além de que os requisitos para a procedência da Impugnação Pauliana, no que aos mesmos respeitava, já se encontravam cabal e suficientemente apreciados e reconhecidos, por provados, pela sentença da 1ª Acção, já transitada em julgado aquando da instauração da presente.

XVIII. Assim como se não justificava, nem foi necessária, a demanda do 3º adquirente (na 1ª transmissão), por um lado por força da declaração de nulidade da sua alegada aquisição, na 1ª Acção; por outro, porque, estando a segunda transmissão abrangida pela impugnação, e já provados os requisitos legais para a impugnação da 1ª transmissão, visando-se agora a execução do imóvel no património dos subadquirentes (e já não do 3º adquirente), bastaria, pois, e agora, apenas a demanda destes, de modo a que fosse possível provar os requisitos legais para a impugnação da 2ª alienação.

XIX. Ou seja, os subadquirentes, aqui RR AA e BB, passaram a ser os únicos

interessados na manutenção do acto impugnado (2ª transmissão), na não declaração de ineficácia daquele relativamente à credora, a aqui A., e na não restituição do imóvel, sendo que relativamente a eles se tornava ainda necessário comprovar a verificação de todos os requisitos para a procedência da Impugnação Pauliana.

XX. Comprovação essa que veio a verificar-se, na presente Ação, conforme reconhecido na respectiva Sentença, do Tribunal a quo, da seguinte forma:

– «Na situação em análise verifica-se o primeiro requisito enunciado – existência de determinado crédito, como resulta do artigo 3) dos factos provados. Esse direito de crédito da autora advém da dívida titulada pelos proprietários do bem que foi alienado no negócio posto em causa nos autos [artigos 8), 12) e 13)].»

- «(…) no presente caso a anterioridade (do crédito) «ocorre, tendo havido inclusivamente uma sentença a reportar o crédito ao período compreendido entre 2008 e 2011.»

- «Exige-se também que a impossibilidade ou o agravamento da impossibilidade para o credor de obter a satisfação integral do seu crédito resulte necessariamente da diminuição dos valores patrimoniais gerada pelo acto impugnado (…), o que aqui também ocorre (vd. artigo 7º dos factos provados). Caberia a algum dos réus demonstrar a existência de património bastante à data da celebração dos negócios impugnados: «incumbe ao credor a prova do montante das dívidas e ao devedor ou terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor» – art. 611º do CC, sendo que nada nesse sentido veio a ser sequer alegado.»

– «Por fim, a má-fé exigida é-o em sentido subjectivo, ou seja, está em causa um estado do sujeito – (…), tendo-se por preenchido também este requisito, atento o referido em 12) a 15) dos factos provados.»

- «Nessa medida, considero estarem verificados todos os pressupostos de que depende

a procedência da impugnação pauliana, pelo que a acção será julgada procedente.»

XXI. Não colhe também o entendimento, vertido no Acórdão recorrido, de que «A declaração de nulidade do negócio declarado pela sentença proferida naquela acção não é oponível sem mais aos aqui Réus uma vez que não estamos perante a situação prevista no n.º 2 do artigo 291º do Código Civil, pois a acção não foi proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (este data de 2012 e a acção foi intentada em 2016).»

XXII. E não colhe pela simples razão de que tal oponibilidade apenas opera relativamente a terceiros de boa-fé, o que não é, claramente o caso, conforme resulta do constante em 12) a 15) dos factos provados da sentença destes autos.

XXIII. Termos em que mal andou o Acórdão recorrido, violando o disposto nos artigos 291º, n.ºs 1 e 3, 610º a 616º, todos do C.Civil, e no art. 33º do C.P.C.

XXIV. Devendo, por isso, e por provimento do presente recurso, ser o Acórdão recorrido revogado, e substituído por outro que mantenha, na íntegra, a douta sentença proferida em 1ª Instância.

Nestes termos, nos melhores de Direito e com o douto suprimento de V.s Ex.ias, deverá o presente recurso obter total provimento, revogando-se o Acórdão recorrido e substituindo-se por outro que mantenha, na íntegra, a douta Sentença proferida na 1ª Instância, só assim se fazendo a costumada JUSTIÇA”.

Os réus contra-alegaram pugnando pela confirmação do acórdão recorrido. Subsidiariamente, requereram a ampliação do objecto do recurso, oferecendo as seguintes conclusões:

i.- Na presente ação não intervêm os devedores da autora – os pais do aqui recorrido – nem tampouco CC, adquirente inicial do bem objeto da presente impugnação, o que determina a ilegitimidade passiva dos recorridos.

ii.- Nenhuma censura merece, nesta parte, o Acórdão proferido.

iii.- Os aqui recorridos, nos recursos de apelação que interpuserem, impugnaram as seguintes decisões:

a) a que julga não verificada a exceção de caducidade invocada pelos réus, ali recorrentes;

b) a decisão de julgar procedente a ação e, em consequência, de reconhecer à autora "Avirefojos – Sociedade Unipessoal, Ld.ª" o direito de executar o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de ………… sob o n.º …….-……., e inscrito na matriz predial urbana da actual União das freguesias de …….., ……. e …… sob o art. ……, na medida do necessário para a satisfação do seu crédito, nos termos reconhecidos pela sentença identificada no artigo 5) dos factos provados.

iv.- Na eventualidade de as questões suscitadas pela autora/recorrente vierem a ser acolhidas pelo tribunal «ad quem», importará para os ora recorridos a apreciação das questões levantadas nos recursos por si interpostos, nomeadamente aquelas mencionadas nas alíneas a) e b) supra.

v.- Considerando que o ato lesivo da garantia patrimonial da autora ocorreu, conforme afirma a própria, no dia 11 de abril de 2012, e tendo o direito à impugnação sido exercido no dia 18 de julho de 2019, evidente é que este direito caducou, tal qual oportunamente invocado.

vi.- Os efeitos previstos no artigo 616.º, do código civil, somente poderão ser possíveis relativamente aos subadquirentes – os aqui recorrentes – se estes ficarem obrigados à restituição, em consequência da procedência da impugnação contra a transmissão posterior (cfr., artigo 613.º, do código civil), apresentando-se esta como pressuposto necessário dos efeitos previstos na norma, de tal maneira que faltando aquela não são possíveis estes.

vii.- Não tendo procedido a impugnação, ou inexistindo tal procedência, contra o ato lesivo de garantia patrimonial da autora, ou suas transmissões posteriores, os efeitos e direitos previstos no artigo 616.º do código civil são evidentemente inexistentes na esfera jurídica da autora.

viii.- Para que a impugnação vingasse contra a transmissão posterior – i.e., o ato pelo qual o bem foi vendido aos aqui réus - seria necessário que, relativamente à primeira transmissão, se verificassem os requisitos da impugnabilidade referidos nos artigos 610.º e 612.º (cfr., artigo 613.º, n.º 1, al. a), do código civil), designadamente, 1) a prática ou celebração de um ou mais atos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e que não sejam de natureza pessoal, 2) ser o crédito anterior ao ato, o sendo posterior, ter sido o ato realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor, 3) resultar do ato a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade e 4) que o devedor e o terceiro agissem de má-fé (tendo sido o ato oneroso).

ix.- Os requisitos são de verificação cumulativa, de tal modo que, se faltar um deles, deve improceder a impugnação.

x.- Ora, relativamente ao primeiro requisito – i.e., a prática ou celebração de um ou mais atos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e que não sejam de natureza pessoal – evidente é que o mesmo, considerados os factos provados, não se verifica - ou é suscetível de se verificar -, na medida em que a primeira transmissão foi anulada por simulação e, por isso, anulados os efeitos do ato que, a subsistir, envolvia – mas não envolve já, por ter sido anulado – a diminuição da garantia patrimonial do crédito: «(…) se os bens, cuja alienação tinha sido impugnada regressarem ao património do devedor em consequência do reconhecimento voluntário ou judicial (noutro processo) da nulidade do negócio de alienação, cessa o direito de impugnação, por ter sido restabelecida a garantia patrimonial» - JOÃO CURA MARIANO, in IMPUGNAÇÃO PAULIANA, 2.ª edição revista e atualizada, páginas 128 e 129, Almedina.

xi.- Anote-se que tendo sido o ato anulado, não poderá o mesmo ser sujeito à pauliana, uma vez que a procedência desta pressupõe a validade do ato impugnado.

xii.- Tal entendimento é, segundo se crê, pacífico: «(…) o acto sujeito à impugnação pauliana não tem vício genético algum, sendo totalmente válido, pelo que mantém a sua pujança jurídica em tudo quanto exceda a medida do interesse do credor (…)», PEDRO ROMANO MARTINEZ e PEDRO FUZETA DA PONTE, in GARANTIAS DE CUMPRIMENTO, 4.ª edição, página 20, Almedina; «(…) é possível a impugnação de atos que sofram de vícios que afectem a sua validade, ignorando, no entanto, o fenómeno da impugnação essa deficiência» (JOÃO CURA MARIANO, ob. cit., nota 146, página 91); «(…) o acto impugnado tal como não sofre necessariamente de um vício genético, também não é um acto ilícito pelo facto de prejudicar os interesses do credor (…) perante um acto perfeitamente válido, lícito e eficaz entre as partes que o outorgaram, mas que lesa a expectativa jurídica dos credores (…) de poderem vir a obter a satisfação dos seus créditos (…) foi resolvida pelo legislador pela prevalência dos interesses dos credores (…) através da possibilidade destes poderem neutralizar - apenas - o efeito secundário dos atos impugnados que se traduzam na diminuição do património garante dos seus créditos, através de uma ineficácia duplamente parcial (idem, páginas 93 e 94).

xiii.- Concluindo: não pode ser impugnado um ato que não foi mantido na ordem jurídica, em razão da anulação dos seus efeitos, certo que a procedência da impugnação pauliana somente é possível perante um ato válido. Na verdade, só assim se justifica que os efeitos da impugnação aproveitem apenas o credor que a tenha requerido (cfr., artigo 616.º, n.º 4, do código civil).

Sem prescindir,

xiv.- Da interpretação do disposto nos artigos 613.º e 616.º, conclui-se que a respetiva estatuição apenas é possível, no que respeita aos subadquirentes, aqui réus, caso fosse julgada procedente a impugnação da primeira transmissão.

xv.- A suscetibilidade de procedência de uma tal impugnação encontra-se definitivamente arrumada, por força do caso julgado decorrente da decisão, entretanto transitada em julgado, proferida no âmbito do processo …………., que correu termos pelo juízo central cível de …………, juiz ……., do Tribunal Judicial da Comarca de ………. (cfr., documento junto com a petição sob o número 3), que considerou nula, por simulação, a primeira transmissão.

xvi.- Por conseguinte, ao decidir como decidiu violou o tribunal «a quo» o disposto nos artigos 613.º e 616.º, do código civil.

TERMOS EM QUE

a) deve o recurso ser julgado improcedente, ou, subsidiariamente,

b) deve ser admitida a ampliação do objeto do recurso e, em consequência:

1) ser julgada verificada a caducidade da presente ação; e/ou

2) ser julgada a mesma improcedente.”

O recurso foi admitido como de revista, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo actual Relator.

            Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.

Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, a única questão que importa dirimir consiste em saber se há, ou não, ilegitimidade dos réus por preterição de litisconsórcio necessário passivo.

            Subsidiariamente, concluindo-se pela legitimidade, considerando o decidido e a ampliação do âmbito do recurso, importa saber se ocorreu a caducidade do direito de impugnação.

II. Fundamentação

1. De facto

No acórdão recorrido, foram dados como provados (tal como já o haviam sido pela 1.ª instância) os seguintes factos:

1. A autora dedica-se profissionalmente e com intuito lucrativo à criação de aves, comércio em bancas, feiras e unidades móveis de venda de aves, rações e suplementos de aves, comércio de produtos alimentares frescos e congelados.

2. O réu AA nasceu em … 1986 e é filho de EE e de FF.

3. Nos anos de 2008 a 2011, a autora vendeu a EE diversos bens alimentares, destinados a um estabelecimento comercial que este explorava, denominado “Churrasqueira …………”, cujo preço ascendia, em 31.08.2011, ao valor global de € 71.308,84;

4. EE retirava da exploração daquele estabelecimento comercial os rendimentos necessários à subsistência do seu agregado familiar, dos quais, por isso, beneficiava também FF, cônjuge daquele.

5. Para reconhecimento do direito de crédito referido em 3), a autora instaurou contra EE e FF, entre outros, acção declarativa com processo comum, a qual correu termos sob o n.º ………., pelo Juiz …. do Juízo ………….., do Tribunal Judicial da Comarca de ………, no âmbito da qual, e por sentença proferida em 08.04.2019, transitada em julgado em 21.05.2019, EE e FF foram condenados a reconhecer e pagar à autora o valor de € 71.308,84, reportado a fornecimentos do ano de 2011, a título de capital, acrescido dos respectivos juros de mora vencidos nos cinco anos anteriores à data da citação dos réus para a acção, até efectivo e integral pagamento, à taxa de juro aplicável às operações de natureza comercial.

6. Em Setembro de 2011, EE e FF eram donos e legítimos proprietários de um prédio urbano, composto de casa de habitação de r/c, 1º andar e quintal, sito no referido Lugar de ……… da então freguesia de …………., actual União de Freguesias de ………., descrito na Conservatória do Registo Predial de ………. sob o n.º …..-…………., e inscrito na matriz predial urbana da actual União das freguesias de ………… sob o art. ……., proveniente do artigo …….. da extinta freguesia de ……….. .

7. Por escritura de 11 de Abril de 2012, EE e FF declararam vender a CC, irmão da referida FF, que declarou comprar-lhes, pelo preço de € 90.000,00, o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial …………. sob o n.º ……….-…………..

8. Esse negócio de compra e venda datado de 11 de Abril de 2012 foi declarado nulo pela sentença proferida no P. n.º ……………, por simulação absoluta, tendo sido ordenado o cancelamento dos registos de aquisição do imóvel.

9. Por documento autenticado datado de 17 de Novembro de 2016, CC, com o expresso consentimento da mulher, DD, declarou vender, pelo preço de € 90.000,00, aos ora réus AA e BB, na proporção e ½ para cada um, o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ………. sob o n.º ……….-……….. .

10. No mesmo acto, os ora réus declararam-se devedores da importância de € 82.750,00 perante o Banco Comercial Português, que deste declararam ter recebido a título de empréstimo para aquisição do prédio em causa.

11. Em 17.11.2016, AA e BB registaram o prédio a seu favor e sobre ele constituíram hipoteca a favor do BCP.

12. Aquando do referido em 9) e 11), os réus AA e BB sabiam da existência da dívida referida em 3).

13. Os réus AA e BB sabiam que, aquando do negócio referido em 7), nem os ali vendedores, nem os ali compradores, quiseram vender ou comprar, tendo o acordo sido celebrado com intuito de impedir que o bem em questão respondesse pelas dívidas de EE e FF.

14. O referido 9) e 11) visou impedir que o prédio objecto desse negócio viesse a responder pela dívida referida em 3).

15. Os ora réus sabiam da inexistência de bens de valor suficiente à liquidação da dívida referida em 3) no património EE e FF.

2. De direito

Como é sabido, a acção ou impugnação pauliana constitui um meio de conservação da garantia patrimonial, colocado à disposição do credor pelo ordenamento jurídico, que visa permitir-lhe reagir contra actos que ponham em perigo a garantia geral dos seus créditos, praticados pelo devedor, mediante a redução do activo ou o aumento do passivo[3].

Os requisitos ou pressupostos da sua aplicação resultam do disposto nos art.ºs 610.º e 612.º, ambos do Código Civil, e são:

- a existência de um crédito;

- a prática, pelo devedor, de um acto que não seja de natureza pessoal;

- esse acto provoque ao credor a impossibilidade de satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade;

- a anterioridade do crédito relativamente ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor;

- o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé[4].

No que concerne ao ónus da prova, cabe ao credor provar o montante do crédito que tem contra o devedor e da anterioridade dele em relação ao acto impugnado, bem como a má fé quando o acto for oneroso, enquanto ao devedor ou ao terceiro adquirente compete demonstrar a existência de bens penhoráveis de valor igual ou superior na titularidade do obrigado (art.º 611.º do Código Civil).

Esta norma impõe, assim, o litisconsórcio necessário passivo, pelo que a acção de impugnação pauliana deve ser intentada contra o devedor e contra o terceiro adquirente e, havendo mais do que uma alienação, também contra os sub-adquirentes.

Note-se que o art.º 613.º do Código Civil admite, expressamente, a impugnação pauliana quando haja transmissões subsequentes à realizada pelo devedor, bastando, para tanto, nos termos do n.º 1 daquele artigo que:

- na primeira transmissão se verifiquem os requisitos gerais da pauliana;

- na segunda (ou subsequentes) transmissão(ões) haja má fé dos intervenientes, quando seja onerosa ou, simplesmente, que tal transmissão seja gratuita.

Do que a lei não prescinde é da intervenção de todos na acção pauliana. Desde logo, do devedor, enquanto participante no acto impugnado. E também do terceiro adquirente, visto que é sobre ele que incide o “dever de restituição” que resulta da impugnação.[5]

No mesmo sentido, tem decidido a jurisprudência deste Supremo, como se pode ver dos acórdãos que conseguimos identificar em www.dgsi.pt, a saber:

- de 25/5/99, processo n.º 99A382, com o seguinte sumário na parte que para aqui interessa:

“…

II - Na acção de impugnação pauliana, a relação controvertida envolve três sujeitos - o credor prejudicado, o devedor alienante e o terceiro adquirente - sendo necessária a intervenção de todos, como salvaguarda do princípio do contraditório, pelo que há litisconsórcio passivo.

- de 13/9/2007, processo n.º 07B1942, com o seguinte sumário:

“…

II. Sob pena de ilegitimidade, a acção de impugnação pauliana deve ser proposta, tanto contra o devedor, como contra o terceiro interessado na manutenção do acto.

Na fundamentação deste acórdão remete-se para a daquele, onde, servindo-se dos ensinamentos dos Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, do Prof. Henrique Mesquita, Rev. Leg. Jur. 128, 22 e do Prof. Manuel de Andrade, A Legitimidade nas Acções Anulatórias, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, X 612, se escreveu relativamente à legitimidade passiva:

Pelo lado passivo é indispensável a intervenção do alienante, que pode alegar factos que demonstrem que não agiu de má fé e que conduzam à improcedência da acção e, consequentemente, da responsabilidade que lhe pode ser assacada. Não se pode proceder a julgamento de uma causa em que se imputa um facto a uma pessoa, sem que ela necessariamente seja chamada a defender-se.

É, também, necessária a presença do terceiro adquirente, que tem a coisa alienada na sua esfera patrimonial, e a quem é imputada má fé ao outorgar no acto impugnado.

A intervenção dos três é necessária, como salvaguarda do princípio do contraditório, e para que a decisão possa definir com força de caso julgado a relação controvertida, tal como é configurada pelo A - artigo 26 [6]do CPC - pois, um e outros, têm interesse directo em demandar e interesse directo em contradizer, sendo a falta de qualquer deles motivo de ilegitimidade dos restantes (artigos 610 e 612 do C.Civil). Se o alienante não intervier a decisão a proferir não tem força de caso julgado quanto a ele.

Desta opinião é o Prof. Antunes Varela, Rev. Leg. Jur., 126, 370, quando diz que na impugnação pauliana, (pelo facto da relação controvertida envolver três sujeitos), a acção deve ser proposta, sob pena de ilegitimidade, tanto contra o devedor, como contra o terceiro interessado na manutenção do acto, porque, apesar de a pretensão poder causar prejuízo apenas a este terceiro quando o acto for gratuito, a relação controvertida, pelos diversos aspectos que envolve, diz respeito aos três sujeitos: ao devedor e ao terceiro interessado na validade do acto, quanto ao acto de diminuição da garantia patrimonial do crédito; ao credor (impugnante) e ao devedor, quanto à relação de crédito cuja garantia patrimonial se pretende acautelar.

E no Manual de Processo Civil, de colaboração com os Drs. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, 2 ed., 137, afirma que nos casos de impugnação pauliana sujeitos da relação controvertida são o titular do direito, como autor, de um lado, e os sujeitos do estado de sujeição corresponde (ou sejam, o alienante e o adquirente) como réus, do outro lado; e a fls. 157, que na impugnação pauliana (artigo 610 do C.Civil), bem como na generalidade de casos em que o titular duma relação conexa com outra pretende, ao abrigo da lei, interferir nesta, a legitimidade do autor, ligada à titularidade do direito potestativo, depende da prova do crédito e da sua anterioridade; a legitimidade passiva, conexionada por seu turno com a titularidade do estado de sujeição e do acto impugnado, consiste em serem os réus o devedor (alienante) e o terceiro adquirente.”

Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, no Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 63, em anotação ao art.º 33.º do CPC também, indicam a impugnação pauliana como exemplo de litisconsórcio necessário com origem legal, de forma implícita (art.º 612.º do CC).

O acórdão recorrido, depois de admitir a invocação da excepção da ilegitimidade, até porque se trata de questão de conhecimento oficioso, passou a apreciá-la e, conhecendo-a, concluiu que “estamos perante um caso de litisconsórcio passivo de origem legal (implícita) cuja preterição determina a ilegitimidade passiva.”

Para chegar a esta conclusão, além das normas legais dos art.º 33.º do CPC e art.º 612.º do Código Civil, serviu-se dos ensinamentos do Conselheiro Abrantes Geraldes e outros na obra e local citados, do agora também já Conselheiro Cura Mariano na obra citada e, ainda, de Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte (ob. cit. Págs. 40 e 41), onde afirmam “a relação controvertida, pelos diversos aspectos que envolve, diz respeito a três sujeitos: ao devedor e ao terceiro interessados na eficácia do negócio, quanto ao acto de diminuição da garantia patrimonial; ao credor impugnante e ao devedor, quanto à relação de crédito cuja garantia patrimonial se pretenda acautelar”. Consideram ainda estes autores que, no caso de se verificarem transmissões posteriores, é igualmente necessário, para que a acção seja eficaz, que esta seja também dirigida contra os sub-adquirentes, sob pena de tal omissão implicar a ilegitimidade dos restantes réus.

            E, aplicando aquelas normas e estes ensinamentos ao caso concreto, concluiu que a autora devia ter instaurado a acção, não apenas contra os sub-adquirentes, mas também contra os devedores e o terceiro adquirente, pelo que a falta destes é motivo de ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo, dando lugar à absolvição da instância dos réus.

            Adiantou, ainda, que:

“O facto de a Autora ter instaurado a acção n.º ………. contra os devedores e o terceiro adquirente onde subsidiariamente impugnou a primeira transmissão e a título principal pediu a declaração da nulidade do negócio de compra e venda do prédio por simulação, não altera no caso concreto a necessidade da presente acção ser intentada também contra eles.

A declaração de nulidade do negócio declarada pela sentença proferida naquela acção não é oponível sem mais aos aqui Réus uma vez que não estamos perante a situação prevista no n.º 2 do artigo 291º do Código Civil pois a acção não foi proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio (este data de 2012 e a acção foi intentada em 2016), e por outro lado, a impugnação pauliana e respetivos requisitos, deduzida com carácter subsidiário, não chegou a ser apreciada e decidida relativamente ao imóvel (mas apenas quanto aos veículos automóveis transmitidos para os Réus, tendo estes intervenção naquela acção apenas nessa qualidade e já não de adquirente do prédio).”

No recurso, a recorrente, embora admitindo que a lei impõe o litisconsórcio necessário passivo, devendo ser demandados os devedores, o adquirente e os sub-adquirentes (cfr. conclusões IV e XVI), sustenta que, no caso, tal não se impunha, nem se justificava, em virtude de os factos que foram dados como provados na sentença proferida na acção n.º …………., transitada em julgado, nomeadamente os que constam dos n.ºs 7, 11, 12 e 16, já permitirem a decisão de mérito  sobre o pedido de impugnação, ali deduzido a título subsidiário, o qual só não foi apreciado por ter ficado prejudicado (cfr. conclusões V, X, XI, XII, XIII, XIV, XV, XVII, XVIII), os sub-adquirentes eram os únicos interessados nesta demanda como foi reconhecido na sentença desta acção (cfr. conclusões  XIX e XX), para prevenir eventual invocação do caso julgado (cfr. concl. IX) e porque não tem aplicação o art.º 291.º, n.º 2 do CC, dado que a oponibilidade nele prevista respeita a terceiros de boa fé (cfr. conclusões XXI e XXII).

Afigura-se-nos que nenhuma razão assiste à recorrente, com excepção, claro está, da parte em que confessa a necessidade de intervenção dos devedores e do adquirente, constituindo a sua falta motivo de ilegitimidade, por preterição de litisconsórcio necessário passivo, embora reportando-se às situações ditas normais, que não à dos presentes autos.

Mas, mesmo neste caso, é imperiosa a necessidade da sua intervenção pelas razões supra aludidas, conforme resulta do disposto nos art.ºs 611.º e 612.º, n.º 1, ambos do Código Civil, sendo caso de litisconsórcio necessário legal, ainda que implícito, nos termos do art.º 33.º, n.º 1, do CPC.

Os factos que foram considerados provados na sentença proferida na acção n.º ………….. e que a recorrente invoca aqui são irrelevantes, porquanto, por definição, o caso julgado material pressupõe, desde logo, uma decisão sobre o mérito da causa (cfr. art.º 619.º, n.º 1, do CPC) e, no caso, não houve decisão sobre o pedido de impugnação pauliana, ali deduzido a título subsidiário, relativamente ao imóvel aqui em causa, pela simples razão de que ficou prejudicado pela solução dada à questão relativa ao pedido principal – o da nulidade, por simulação.

Não tem, assim, justificação fundada o receio da recorrente na sua invocação, muito menos o caso julgado a impedia de demandar todos os interessados na acção de impugnação que deduziu, por não se colocar a questão da sua eficácia em qualquer das suas vertentes, como tem distinguido, desde há muito, quer a doutrina[7] quer a jurisprudência[8], a saber:

a) – uma função negativa, reconduzida à excepção de caso julgado, consistente no impedimento de que as questões alcançadas pelo caso julgado se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em acção futura; 

b) – uma função positiva, designada por autoridade do caso julgado, através da qual a solução nele compreendida se torna vinculativa no quadro de outros casos a ser decididos no mesmo ou em outros tribunais.

Quanto à função negativa ou excepção de caso julgado, é unânime o entendimento de que, para tanto, tem de se verificar a tríplice identidade estabelecida no artigo 581.º do CPC: a identidade de sujeitos; a identidade de pedido e a identidade de causa de pedir.

Já quanto à autoridade de caso julgado, existem divergências. Para alguns, entre os quais Alberto dos Reis, a função negativa (excepção de caso julgado) e a função positiva (autoridade de caso julgado) são duas faces da mesma moeda, estando uma e outra sujeitas àquela tríplice identidade[9]. Segundo outra linha de entendimento, incluindo a maioria da jurisprudência, a autoridade do caso julgado não requer aquela tríplice identidade, podendo estender-se a outros casos, designadamente quanto a questões que sejam antecedente lógico necessário da parte dispositiva do julgado[10].

Lebre de Freitas e outros[11] consideram que:

“(…) a autoridade do caso julgado tem (…) o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (…). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida.”      

“Em suma, a autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em acção anterior cujo objecto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objecto de uma acção posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa”[12]

Para tal efeito, embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, tem-se entendido,…, que “a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.”[13]

Nas palavras de Teixeira de Sousa ali citado[14]:

“Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.

Ora, não tendo existido decisão, não pode falar-se nos seus fundamentos, nomeadamente de facto, para impor nesta acção como eficácia de caso julgado, pela simples razão de que este não se formou. Muito menos poderia suscitar-se a sua função negativa, por via de excepção, dada a falta da tríplice identidade acima aludida.

Além do receio ser injustificado, não podem ser tidos em consideração aqui os factos dados como provados naquela acção.

Também é irrelevante a tramitação processual verificada na primeira acção, visto que a decisão ali proferida relativamente à intervenção de terceiros e à ampliação do pedido não têm aqui força de caso julgado material.

E não se compreende a crítica feita à não aplicabilidade do disposto no n.º 2 do art.º 291.º do Código Civil, porquanto esta norma foi afastada, como se diz no acórdão, por a acção não ter sido “proposta e registada dentro dos três anos posteriores à conclusão do negócio” e não pela existência, ou não, de boa fé por parte do terceiro.

São, ainda, irrelevantes as demais considerações feitas a propósito do mérito da acção.
Tratando-se de uma questão de natureza adjectiva ou processual que contende com os limites cognitivos que se impõem ao tribunal, é evidente que não pode ser apreciada a questão substantiva que a recorrente pretende ver solucionada em sede de recurso de revista.

O acórdão versou sobre o pressuposto processual da legitimidade, ou falta dele.

Tudo o que o ultrapasse incide sobre matéria nova, sobre a qual não podemos, nem devemos, pronunciar-nos, uma vez que, não tendo sido apreciada pela Relação no acórdão recorrido, não pode ser apreciada pelo STJ.  

Com efeito, o objecto do recurso é a decisão, pois os recursos visam modificar decisões e não proferi-las sobre matéria nova, tal como tem sido entendimento unânime na jurisprudência e na doutrina[15].

Na presente acção, nesta fase, para aferir da legitimidade passiva, releva a forma como a autora configurou a relação material controvertida na petição inicial (cfr. art.º 30.º, n.ºs 2 e 3, do CPC).

E, segundo ela, não há dúvidas de que, face ao disposto no art.º 33.º, n.º 1, do CPC, a falta dos devedores e do primeiro adquirente é motivo de ilegitimidade, como se afirmou no acórdão recorrido, nos termos referidos supra.

Improcedem, assim, as conclusões recursórias da recorrente e fica prejudicada a apreciação da questão da caducidade, formulada pelos recorridos, a título subsidiário, em sede de ampliação do âmbito do recurso.

           

O recurso não merece, pois, provimento, devendo manter-se o acórdão recorrido.

Sumário:
1. A acção de impugnação pauliana deve ser instaurada contra o devedor alienante e os terceiros adquirentes e sub-adquirentes, por terem interesse directo em contradizer, sendo a falta de qualquer deles motivo de ilegitimidade dos restantes.
2. Uma sentença que declarou a nulidade do acto, por simulação, mas que não apreciou o pedido de impugnação pauliana, não tem eficácia de caso julgado material, nomeadamente quanto à sua fundamentação de facto, relativamente a outra acção pauliana instaurada contra os sub-adquirentes.

III. Decisão

Pelos fundamentos expostos, acorda-se em negar a revista e manter o acórdão recorrido.


*


Custas pela recorrente (art.º 527.º, n.º 1 e 2 do CPC).


*


STJ, 2 de Dezembro de 2020

            Nos termos do art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos que não podem assinar.

            Fernando Samões (Relator)

            Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

            António José Moura de Magalhães (2.º Adjunto)


______________________
[1] Do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Guimarães - Juiz 4.
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães
[3] Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo IV, edição de 2010, pág. 523, e Tratado, X, Direito das Obrigações, Garantias, Almedina, 2015, págs. 311 e segs., Mário Júlio Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5.ª edição, pág. 717, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4.ª edição, pág. 434 e acórdão do STJ de 20/3/2012, processo n.º 29/03.7TBVPA.P2.S1, disponível em www.dgsi.pt., bem como o nosso de 4 de Junho de 2019, processo n.º 65/15.0 T8BJA.E1.S1, disponível no mesmo sítio e na CJ – STJ – ano XXVII, tomo II, págs. 90-95.
[4] Cfr., entre outros, Menezes Cordeiro, obra citada, pág. 524 do tomo IV e págs. 352 a 378 do tomo X, Romano Martinez e Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5.ª edição, pág. 16; Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2.ª edição, páginas 155-209; Almeida Costa, obra citada, págs. 722-728.
[5] Cfr. João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, 2.ª edição – revista e aumentada, Almedina, págs. 288-291 e doutrina aí citada. No mesmo sentido, da exigência de litisconsórcio passivo, também o Prof. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X, Das Obrigações, Garantias, pág. 380.
[6] Ao qual corresponde o actual art.º 30.º do NCPC, com o aditamento ao n.º 3 “tal como é (a relação controvertida) configurada pelo autor.
[7]  Vide, entre outros, Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Edições Ática, pp. 38-39; Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 572; Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 2.ª Edição, 2008, p. 354 e na mesma obra, 2.º volume, Almedina, 3.ª edição, 2017, págs. 599 e 600.
[8] Cfr., nomeadamente, os nossos acórdãos de 9/4/2019, processo n.º 4148/16.1T8BRG.G1.S1, de 4 de Julho de 2019, processo n.º 252/14.9T8GRD-G.C1.S1 e de 24/10/2019, processo n.º 5629/17.5T8GMR.G1.S2, reproduzindo parte do acórdão do STJ de 30/3/2017, proferido no processo n.º 1375/06.3TBSTR.E1.S1, que aqui voltamos a transcrever em parte, e, ainda, o acórdão de 28/3/2019, processo n.º 6659/08.3TBCSC.L1.S1, estes dois últimos relatados pelo Conselheiro Tomé Gomes, disponíveis em www.dgsi.pt.
[9] In Código de Processo Civil anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 3.ª Edição, 1981, pp. 92-93.
[10] Vide, entre outros, os seguintes acórdãos do STJ: de 13/12/2007, relatado pelo Juiz Cons. Nuno Cameira no processo n.º 07A3739; de 06/3/2008, relatado pelo Juiz Cons. Oliveira Rocha, no processo n.º 08B402; de 23/11/2011, relatado pelo Juiz Cons. Pereira da Silva no processo n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1, acessíveis na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj –; o acórdão do STJ de 21/3/2013, processo n.º 3210/07.6TCLRS.L1.S1, disponível naquele sítio e o nosso acórdão de 22 de Outubro de 2013, proferido no processo n.º 272/12.8TBMGD.P1, disponível no mesmo sítio da internet e publicado na CJ, ano XXXVIII, tomo IV, págs. 199-202 e, ainda, os indicados na nota de rodapé n.º 7.
[11] In Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, p. 354, e na mesma obra, 2.º volume, 3.ª edição, pág. 599.
[12] Citado acórdão deste Tribunal de 28/3/2019.
[13] No sentido exposto, vide, a título de exemplo, o acórdão do STJ, de 20/06/2012, processo 241/07.0TLSB.L1.S1, acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[14]  In Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pp. 578-579.
[15] Cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 16/3/72, 13/3/73, 5/2/74, 29710/74, 7/1/75, 25/11/75 e de 12/6/91, publicados no BMJ, respectivamente, n.ºs 217, p. 103; 225, p. 202; 234, p. 267; 240, p. 223; 243, p. 194 e 251, p. 122 e 408, p. 521, e, ainda os mais recentes de 27/11/2012, processo n.º 3843/07.0TCLRS.L1.S1, de 15/3/2012, processo n.º 8383/07.5TBMAI.P1.S1, de 7/3/2017, processo n.º 14328/14.9T8LSB.L1.S1 e os nossos de 17/12/2018, processo n.º 75/15.8T8VRL.G2.S1 e de 3/3/2020, processo n.º 3936/17.6T8PRT.P1.S1, e Castro Mendes, "Recursos", 1980, pág. 27, Armindo Ribeiro Mendes, "Recursos em Processo Civil", 1992, págs.140 e 175 e Abrantes Geraldes "Recursos em Processo Civil - Novo Regime", pág. 90.