CRIME DE FURTO
RESOLUÇÃO CRIMINOSA
RENOVAÇÃO
PLURALIDADE DE CRIMES
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DE FACTOS
Sumário

I – A mera alteração da qualificação jurídica, embora agravando o quadro punitivo, que passou de um crime de furto qualificado a eventualmente dois crimes de furto qualificado, um tentado e um consumado, constitui apenas uma alteração não substancial de factos sujeita ao regime previstos no artigo 358º, nºs. 1 e 3, do Código de Processo Penal.
II – Uma vez que o quadro punitivo se agravou, a tramitação conferida ao processo não está isenta de ser considerada inconstitucional, caso não tenha sido respeitado o direito ao contraditório.
III – Apesar de ter existido uma resolução inicial de ir furtar veículos, quem, com esse propósito, partir os vidros de dois veículos estacionados na mesma rua, um de cada vez, para deles retirar os respectivos objectos que ali encontrasse, comete dois crimes de furto qualificado, pois estamos perante um concurso real e homogéneo de crimes.
IV – Isto porque a segunda conduta tem necessariamente na sua origem uma renovação da resolução criminosa de retirar bens de valor de veículos estacionados no local mencionado, posto que exigiu uma energia, quer ao nível da conduta física (selecção de outra viatura que, pelo menos, levaria a suspeitar ser de diferente proprietário, e quebra do vidro respectivo) quer em termos anímicos (determinação para executar estas novas acções) suficiente para ultrapassar o obstáculo que um novo veículo e cada uma destas acções representam em termos de negação dos valores protegidos pelo tipo de crime.

Texto Integral

Proc. n.º395/19.2PBMTS.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Matosinhos – Juiz 1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular n.º 395/19.2PBMTS, a correr termos no Juízo Local Criminal de Matosinhos, Juiz 1, por sentença datada de 21-02-2020 foi decidido, entre o mais:
«a) condenar o arguido B… pela prática de um crime de furto qualificado, na forma consumada, p.p. pelos artºs 203º, nº 1 e 204º, nº 1, al. b) do Cód. Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão;
b) em concurso efetivo real com o crime enunciado em –a)-, condenar o arguido B… pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada p.p. pelos artºs 22º, 23º e 203º, nº 1 e 204º, nº 1, al. b) do Cód. Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão;
c) em cúmulo jurídico das penas de prisão enunciadas supra em –a)- e –b)-, condenar o arguido B… na pena única de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão;
no entanto, por considerar que as exigências de prevenção ficam devidamente salvaguardadas, decide-se suspender a execução da pena de prisão aplicada, condenando-se assim o arguido B… na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, prisão suspensa na execução pelo período de 2 (dois) anos, suspensão
i) sujeita a regime de prova, obrigando-se o arguido ao cumprimento do plano de reinserção social que venha a ser homologado (do plano de reinserção social deverá constar, se necessário, a submissão ao tratamento à toxicodependência, tratamento para o qual o arguido deu o seu consentimento) e impondo-se, ainda, ao arguido, que, nos termos do disposto no artº 54º, nº 3, do Cód. Penal se sujeite a:
- responder a convocatórias dos técnicos de reinserção social, no âmbito da elaboração e acompanhamento dos planos de reinserção social;
- receber as visitas dos técnicos de reinserção social e comunicar-lhes ou colocar à disposição informações necessárias elaboração e acompanhamento do plano de reinserção social;
- informar os técnicos de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso;
- obter autorização prévia do magistrado, que à data da deslocação seja titular deste processo, para se deslocar para o estrangeiro; e
ii) subordinada ao pagamento, por parte do arguido B…, no prazo de 1 (um) ano, a
- C… e a
- D…,
a cada um deles, o valor de €200,00 (duzentos euros), para o IBAN que estes venham a indicar no processo;
d) condenar o arguido B… nas custas penais e demais encargos, fixando ainda em 1,5 Uc o valor da taxa de justiça (3 Uc, reduzidas a metade, face á confissão livre, integral e sem reservas).»

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Inconformado, o arguido interpôs recurso, solicitando que não seja reconhecida a alteração da qualificação jurídica operada, mas antes que ocorreu uma verdadeira alteração substancial dos factos descritos da acusação e que a mesma não seja tida em conta, nos termos do art. 359.º, n.º 1, do CPPenal, condenando-se o recorrente apenas pela prática de um crime de furto qualificado, conforme constava da acusação.
Apresenta em defesa da sua posição as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1- O Ministério Público deduziu acusação contra B…, imputando-lhe a prática de um crime de furto qualificado, p. p. pelos artigos 203º, n.º 1 e 204º, n.º 1 alínea b) do Código Penal.
2- A defesa do Recorrente foi preparada tendo em conta a imputação de apenas um crime de furto qualificado.
3- Em sede de audiência de julgamento, no dia 10/02/2020, foi comunicada ao Recorrente a alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, considerando que os factos eram subsumíveis à prática, em concurso efectivo real, de um crime de fruto qualificado, na forma consumada, e à prática de um crime de furto, na forma tentada.
4- No dia 17/02/2020, foi junto aos autos requerimento defendendo posição oposta à alteração da qualificação dos factos descritos na acusação, argumentando que, tal como originalmente estava descrito na acusação, o Recorrente só deveria ser acusado pela prática de um crime de furto qualificado, na forma consumada.
5- O afastamento da posição, embora, argumentada se apresente analisada e contra-argumentada de forma bastante capaz e elucidativa, em sede de sentença, não consegue responder de forma satisfatória à situação em apreço.
6- Na acusação é descrito, primeiramente, que “no dia 12 de Março de 2019, por volta das 12h00, o arguido dirigiu-se à Rua …, Matosinhos, a fim de se apoderar de objectos de valor que se encontrassem no interior dos veículos estacionados”.
7- É nosso entendimento que o objectivo de se apoderar de objectos que se encontrassem no interior dos veículos se revela como o facto relevante para a situação descrita, sendo de concluir que este é um facto globalizante, enquanto que o acto contínuo de partir os vidros de duas viaturas estacionadas, no local em causa, nada mais é que o concretizar do facto relevante.
8- Destarte, ao se autonomizar um facto que, anteriormente, se encontrava totalizado na esfera de outro, dá-se uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, e não apenas uma alteração da qualificação, comportando consigo um agravamento da posição processual do arguido, que passou a ser acusado de dois crimes e não de apenas um.
10- A alteração aqui em análise comporta consigo consequências que não se encontravam presentes na descrição da acusação, e às quais o arguido não teria possibilidades de ter conhecimento, tendo constituído uma surpresa, uma vez que era clara a posição do Ministério Público, que apenas considerou existir uma única resolução criminosa.
11- Altera também, de sobremaneira, a moldura penal no caso julgado, de tal forma que ocorreria, simultaneamente, uma alteração do tribunal competente, estando, deste modo, enquadrado nas competências de Tribunal Colectivo, questão resolvida com o uso da faculdade do artigo 16º n.º 3 do Código de Processo Penal.
12- Observa-se, simultaneamente, uma alteração de grau, uma vez que do novo facto retira-se uma acumulação de crimes que o arguido vinha acusado, imputando, assim, um novo crime, e, consequentemente, agravando o limite máximo da sanção aplicável, estando, deste modo, preenchidos integralmente os pressupostos de uma alteração substancial dos factos, conforme o disposto no artigo 359º do Código de Processo Penal.
13- Visto que o Recorrente não tomou posição, que seria sempre no sentido da não-aceitação da alteração substancial dos factos, esta não deveria ter sido tomada em consideração pelo Tribunal a quo Tribunal a quo, para o efeito de condenação, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 359º do Código de Processo Penal.
14- O Tribunal a quo ao autonomizar os factos do facto globalizante, alterou de sobre maneira os factos imputados pelo Ministério Público, que de forma evidente optou por aglomerar os factos apenas num, por considerar existir uma única resolução criminosa.
15- Deste modo, a interpretação normativa do artigo 359º n.º 1 do Código de Processo Penal, de que a imputação de mais um crime, não exige a comunicação ao arguido para prosseguimento dos autos, é inconstitucional, por violação do princípio ínsito ao art.º 32º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.»
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, sintetizando a sua posição nas seguintes conclusões (transcrição[as notas-de-rodapé alteraram a numeração ao serem inseridas num outro texto]):
«1) O recurso apresentado pelo identificado arguido, de que ora se responde, assenta em duas linhas de argumentação:
2) 1.ª- O Tribunal a quo não se limitou a realizar uma alteração da qualificação dos factos, devidamente comunicada, mas antes uma alteração substancial dos mesmos, ao ter considerado que os factos constantes da acusação importam o cometimento não de um, mas de dois furtos qualificados (um na forma consumada e outro na forma tentada).
3) 2.ª – Tendo havido uma só resolução criminosa, o arguido só poderia ter sido condenado pela prática de um crime.
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4) Começando pelo primeiro argumento: discordamos em absoluto com esta posição na medida em que não se verificando a alteração dos factos, nem sequer é equacionável a possibilidade de verificação de uma alteração substancial dos mesmos. Ou seja, o que esteve em causa, foi sempre a entrada do arguido em duas viaturas distintas, com vista à apropriação de bens, o que só num dos casos foi realizado com sucesso. E foi desta factualidade, que permaneceu imutável desde a acusação até à sentença, que o arguido se defendeu devidamente.
5) Ademais, é inegável a liberdade conferida pelo sistema processual penal ao julgador português para realizar o mais ajustado enquadramento jurídico dos factos, trazidos, de forma vinculada, pelo acusador – cfr. n.º 3 do art. 358.º do Código de Processo Penal.
6) Relativamente ao segundo argumento, vejamos o que se diz na douta sentença recorrida, já que a referida argumentação do arguido já tinha sido trazida ao processo, em momento anterior à sua prolação, na sequência da prévia comunicação de intenção de alteração da qualificação jurídica:
7) “(…) Descendo ao caso concreto, nos presentes autos provou-se que:
8) no dia 12 de Março de 2019, por volta das 12h00, o arguido dirigiu-se à Rua …, Matosinhos, a fim de se apoderar de objectos de valor que se encontrassem no interior dos veículos ali estacionados.
9) Aí, partiu o vidro triangular da porta traseira do veículo com a matrícula ..-OU-.., de marca Audi, de cor branca, pertencente a D…, que ali estava parqueado, mas do seu interior não retirou qualquer objecto de valor por não o ter encontrado.
10) Acto contínuo, partiu o vidro da porta traseira do lado direito do veículo com a matrícula ..-OV-.., de marca BMW, de cor preta, pertencente a C…, que ali estava estacionado, e do seu interior retirou e levou consigo dois pares de óculos de sol, de marca “Ray Ban” e “Morel”, no valor global de cerca de 700€.
a. Estão assim preenchidos os elementos objetivos dos tipos penais qualificados pelo Tribunal (furto qualificado tentado e furto qualificado consumado).
b. Isto porque, considerando os factos, é possível efetuar dois sentidos sociais de ilicitude[1], correspondentes a atuação do arguido sobre dois automóveis parqueados na rua e que pertencem a diferentes titulares, como seria expectável a qualquer indivíduo, incluindo o arguido.
11) Nas suas alegações orais, veio a defesa mencionar a existência de uma só resolução criminosa, o que levaria à imputação de um só crime.
12) Trata-se de um desvirtuamento completo do pensamento do Sr. Prof. Eduardo Correia, que estabeleceu critério da resolução criminosa.
14) De facto, mesmo adotando esse critério (que não é o nosso), a resolução criminosa não é meramente natural, mas uma conceção jurídica.
a. E sendo vários os ofendidos, terão de operar várias resoluções, no sentido de que o número de vezes que o bem jurídico é atingido irá corresponder ao número de crimes praticados (sem prejuízo dos crimes continuados)[2].
15) A posição assumida pela defesa é de rejeitar.
a. Aliás, levaria mesmo a resultados escabrosos.
b. A posição assumida pela defesa conduziria a que um bombista que matasse centenas de pessoas ao colocar uma bomba num avião, praticasse um único crime. Ou um agente que assaltasse 500 habitações fosse punido por um único crime, coma desculpa de que “resolveu assaltar todas as casas numa cidade”. Posição jurídica que é de afastar. (…)”
16) Ou seja: para sabermos o número de crimes praticados, temos que recorrer ao regime regra estabelecido no n.º 1 do art. 30.º do Código Penal: número de vezes que o tipo de crime é preenchido. Este regime regra é o aplicável ao caso concreto, por falta de consagração expressa do seu afastamento.
17) Entendimento diverso poderia efetivamente conduzir a resultados indesejáveis: ser indiferente, em termos de número de crime, furtar uma loja no E…, ou todas as lojas deste centro comercial, porque se cometeria sempre um único crime de furto.»
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de acompanhar integralmente a posição do Ministério Público junto do Tribunal a quo, pugnando, igualmente, pela improcedência total do recurso.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[3].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as de saber se:
- a comunicação efectuada pelo Tribunal a quo ao abrigo do art. 358.º, n.º 3, do CPPenal integra uma alteração substancial dos factos da acusação, a ser tratada nos termos do art. 359.º do mesmo diploma legal;
- a factualidade dada como provada corresponde à prática de um e não dois crimes de furto qualificado.
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Com relevo para a decisão que importa tomar, o Tribunal a quo deu como provados (entre outros) os seguintes factos que constavam da acusação deduzida nos autos:
«II. Fundamentação de Facto
a) Factos Provados
1. No dia 12 de Março de 2019, por volta das 12h00, o arguido dirigiu-se à Rua …, Matosinhos, a fim de se apoderar de objectos de valor que se encontrassem no interior dos veículos ali estacionados.
2. Aí, partiu o vidro triangular da porta traseira do veículo com a matrícula ..-OU-.., de marca Audi, de cor branca, pertencente a D…, que ali estava parqueado, mas do seu interior não retirou qualquer objecto de valor por não o ter encontrado.
3. Acto contínuo, partiu o vidro da porta traseira do lado direito do veículo com a matrícula ..-OV-.., de marca BMW, de cor preta, pertencente a C…, que ali estava estacionado, e do seu interior retirou e levou consigo dois pares de óculos de sol, de marca “Ray Ban” e “Morel”, no valor global de cerca de 700€.
4. O arguido agiu de forma livre e voluntária, com o propósito de fazer seu os objectos que estavam no interior daqueles veículos automóveis, não obstante saber que não lhe pertenciam e que actuava sem o consentimento e contra a vontade dos seus donos, só não logrando atingir o seu desiderato relativamente ao veículo com a matrícula -OU-.. por motivos alheios à sua vontade.
5. Tinha, ainda, conhecimento que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.»

Vejamos
1.ª Questão – A comunicação efectuada pelo Tribunal a quo ao abrigo do art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPPenal integra uma alteração substancial dos factos da acusação, a ser tratada nos termos do art. 359.º do mesmo diploma legal?
Argumenta o recorrente em abono da sua posição, que responde afirmativamente à questão colocada, que o facto relevante da situação em apreço é o objectivo [do arguido] de se apoderar de objectos que se encontrassem no interior dos veículos, no local descrito, sendo o acto contínuo de partir vidros de duas viaturas estacionadas apenas o concretizar do facto relevante.
Acrescenta que a autonomização, através daquela comunicação, de dois crimes de furto qualificado, um consumado e outro tentado, quando na acusação apenas era imputada a prática de um crime de furto qualificado, corresponde a uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, sobre a qual não se pronunciou nem manifestou a sua aceitação, mostrando-se sobremaneira alterada a moldura penal aplicável.
Termina defendendo que, considerando que a posição do Ministério Público na acusação é a de se verificou uma única resolução criminosa, não pode o recorrente deixar que considerar que a alteração definida nos autos, que lhe imputa mais um crime, comporta consequências que se apresentam como uma surpresa. Assim, a opção assumida pelo Tribunal a quo viola o princípio do acusatório, sendo inconstitucional por afrontar o n.º 5 do art. 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Esta primeira questão cuja apreciação o recorrente suscita gerou em tempos muita polémica e muita tinta correu em termos doutrinais e jurisprudenciais sobre o tema.
Mas hoje, apesar de divergências doutrinais que ainda existem sobre os termos em que pode ocorrer a alteração da qualificação jurídica, a matéria está pacificada ao nível jurisprudencial, até por força de alteração legislativa entretanto ocorrida, podendo aceitar-se como correctas as seguintes premissas:
- Uma alteração da qualificação jurídica, sem que ocorra modificação da factualidade, não é uma alteração, substancial ou não substancial, de factos;
- A liberdade de qualificação jurídica por parte do Tribunal, não ficando vinculado à posição assumida pelo Ministério Público, é um traço da independência da função jurisdicional;
- Nos casos em que a alteração da qualificação jurídica determina a verificação de uma moldura penal agravada (por a figura penal ser mais grave ou existirem mais crimes) deve ser dada ao arguido a possibilidade de se defender, exercendo o contraditório;
- Essa comunicação ao arguido e subsequente apresentação da defesa deve ocorrer no Tribunal de 1.ª Instância caso surja no decurso da audiência.

Vejamos um pouco do percurso que levou a tal resultado.
No sentido da solução vigente, sublinhando a liberdade de qualificação jurídica, firmou o Supremo Tribunal de Justiça, através do assento n.º 2/93, de 27-01-1993,a seguinte jurisprudência obrigatória: «Para os fins dos artigos 1.º, alínea f), 120.º, 284.º, n.º 1, 303.º, n.º 3, 309.º, n.º 2, 359.º, n.ºs 1 e 2, e 379.º, alínea b), do Código de Processo Penal, não constitui alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica (ou convolação), ainda que se traduza na submissão de tais factos a uma figura criminal mais grave».
Esta decisão veio a ser alvo de juízo de inconstitucionalidade, sustentado no acórdão n.º 279/95, de 31-05-1995, do Tribunal Constitucional, que sublinhou a liberdade de qualificação jurídica, mas não a qualquer custo, acentuando a necessidade de garantir a adequada defesa do arguido face uma nova qualificação jurídica que agravasse a sua situação.
Nesse sentido, escreveu-se nessa decisão:
«Presentemente, mesmo na ausência de disposição expressa equivalente ao artigo 447º, do Código de 1929, a defesa da liberdade de qualificação jurídica do juiz penal relativamente aos factos constantes da acusação ou da pronúncia, continua a sublinhar esta ideia (a defesa do arguido é relativamente aos "factos que lhe são imputados e não das qualificações jurídicas que deles se fazem”, Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e Sua Relevância no Processo Penal Português, Coimbra 1992, pág. 103).
(…)
7. Porém, a questão que se nos coloca neste processo não se resolve satisfatoriamente por simples referência à liberdade de qualificação jurídica na condenação. Estamos no domínio do processo criminal, onde a afirmação dessa possibilidade processual sempre carece de compatibilização com a plenitude de garantias de defesa exigida pelo artigo 32º, nº 1, do texto constitucional.
(…)
O "direito a ser ouvido", enquanto direito a dispor de oportunidade processual efectiva de discutir e tomar posição sobre quaisquer decisões, particularmente as tomadas contra o arguido, traduz um dos aspectos fundamentais do direito de defesa. Esse direito é, na ordem jurídica norte-americana, um elemento fundamental do "justo processo legal" - o "due process of law" referido na V Emenda - possibilitador da aplicação de sanções criminais (Norman Vieira, Constitutional Civil Rights in a Nutshell, 2ª ed. St. Paul, Minnesota, 1990, pág. 36 e segs).
(…)
É da essência das garantias de defesa que a operação de subsunção que conduz o juiz à determinação do tipo penal correspondente a determinados factos, seja previamente conhecida e, como tal, controlável pelo arguido. Através da narração dos factos e da indicação das disposições legais aplicáveis, na acusação ou na pronúncia (v. artigos283º, nº 3 e 308º, nº 2 do CPP), é fornecido ao arguido um modelo determinado de subsunção constituído por aqueles factos entendidos como correspondendo a um específico crime. Tal modelo serve de referência à face do julgamento - destinando-se esta, aliás, à sua comprovação - e é em função dele que o arguido organiza a respectiva defesa. Importa aqui sublinhar que o conhecimento pelo arguido desse modelo, tornando previsível a medida em que os seus direitos podem ser atingidos naquele processo, constitui como se disse um imprescindível ponto de referência na estratégia de defesa, funcionando, assim, como importante garantia de exercício desta.
As limitações quanto à possibilidade de conhecimento de novos factos (artigos 358º e 359º do CPP) visam precisamente impedir que o arguido seja confrontado com uma subsunção diversa daquela em função (na previsão) da qual preparou a sua defesa. Ora, é diverso - e num processo após a acusação ou a pronúncia é novo - tanto o modelo de subsunção que recaindo sobre novos factos leva a uma incriminação diversa, como o modelo que baseando-se nos mesmos factos tem como ponto de chegada uma incriminação diversa.
Sendo mais gravosa para o arguido esta nova incriminação, não pode deixar de se lhe facultar, com a comunicação da eventualidade da sua ocorrência, uma sequência processual, situada na fase de julgamento, em que sendo previsível essa nova incriminação, o arguido possa discuti-la e adaptar a sua defesa a essa alteração.
A solução está assim na compatibilização da liberdade de qualificação com um mecanismo processual que torne efectivo esse direito a ser ouvido, face a uma convolação que, mantendo os factos descritos na acusação ou pronúncia, naturalisticamente considerados, importe condenação em pena mais grave. O arguido deve ser prevenido da possibilidade da nova qualificação, quando esta importar pena mais grave, facultando-se-lhe quanto a ela oportunidade de defesa.»

O mesmo Tribunal, através do acórdão n.º 16/97, de 14-01-1997, voltou a afirmar que a comunicação prévia ao arguido da nova qualificação e a concessão de prazo para reorganizar a sua defesa seriam o suficiente para garantir a efectivação do direito, manifestando tal entendimento nos seguintes termos:
«As garantias de defesa constitucionalmente asseguradas ao arguido impõem a compatibilização da liberdade de qualificação com um mecanismo processual que torne efectivo o seu direito a ser ouvido, face a uma convolação que, mantendo os factos descritos na acusação ou na pronúncia, naturalisticamente considerados, importe condenação em penas mais grave. O arguido deve ser prevenido da possibilidade da nova qualificação quando esta importar pena mais grave, facultando-se-lhe quanto a ela oportunidade de defesa.»

O enunciado juízo inconstitucionalidade, por violação do princípio constante do art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, quando tal direito de defesa não era concedido, veio a seu declarado pelo Tribunal Constitucional com força obrigatória geral, no seu acórdão n.º 445/97, de 25-06-1997.
Em face destas decisões do Tribunal Constitucional, o Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, proferiu, em 13-11-1997, acórdão que reformulou o assento n.º 2/93, fixando a seguinte jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais: «Ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta exista, o tribunal pode proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente dê conhecimento e, se requerido, prazo, para que o mesmo possa organizar a respectiva defesa jurídica».
Mas esta decisão, uma vez que considerou não haver lugar à revisão da decisão recorrida, acabou por ter de ser reformulada, por determinação do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 518/98, de 15-07-1998, para que fosse dado integral cumprimento ao juízo de inconstitucionalidade fixado com força obrigatória geral, do sentido de que a comunicação da alteração da qualificação jurídica e concessão de prazo de defesa, se requerido, devia realizar-se em audiência de julgamento em 1.ª Instância.
É nesta sequência que o Supremo Tribunal de Justiça profere o assento n.º 3/2000, de 15-12-1999, mantendo a posição assumida no acórdão de 13-11-1997 mas reformulando as suas consequências ao nível do processo original na 1.ª Instância.
Assim, foi fixada jurisprudência obrigatória nos seguintes termos:
«Na vigência do regime dos Códigos de Processo Penal de 1987 e de 1995, o tribunal, ao enquadrar juridicamente os factos constantes da acusação ou da pronúncia, quando esta existisse, podia proceder a uma alteração do correspondente enquadramento, ainda que em figura criminal mais grave, desde que previamente desse conhecimento e, se requerido, prazo ao arguido da possibilidade de tal ocorrência, para que o mesmo pudesse organizar a respectiva defesa.»
E decidiu-se ainda que «A doutrina fixada implica, necessariamente, a reformulação da decisão final proferida no processo originário, que neste Supremo teve o n.º 42222 e na 1.ª instância tem o n.º 98/90 da 2.ª Secção do 2.º Juízo do Funchal, por forma a possibilitar-se o exercício do direito de defesa do arguido em relação à apontada alteração da qualificação jurídica dos factos, para o que se anula a correspondente decisão quanto ao arguido Nóbrega e se determina a anulação do decidido, quanto a ele, na 1.ª instância de modo que, antes de encerrada a respectiva audiência, se providencie pela possibilidade de lhe ser dada a apontada oportunidade de defesa contra a alteração da qualificação jurídica que o tribunal entenda dever verificar-se.»

Esta solução veio a ser consagrada no Código de Processo Penal, através das alterações introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25-08, ao art. 358.º, acrescentando-se-lhe o actual n.º 3, respeitante à alteração da qualificação jurídica.
Desde então a jurisprudência é pacífica no sentido de que nos casos em que a alteração da qualificação jurídica determina o agravamento do quadro punitivo do arguido não ocorre qualquer afronta ao direito de defesa do mesmo desde que tal alteração lhe seja comunicada no decurso da audiência e lhe seja dada a possibilidade de, em prazo a conceder se requerido, preparar a sua defesa.
É ainda nesta linha que surge a alteração introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29-08, ao art. 424.º do CPPenal, inserindo-se um n.º 3, segundo o qual, estando o processo em fase de recurso, «Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias.»
Neste sentido já o Supremo Tribunal de Justiça, através do assento n.º 4/95, de 07-06-1995, havia fixado jurisprudência, segundo a qual «O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da «reformatio in pejus»».

O entendimento expresso em tais decisões tem sido mantido na jurisprudência mais recente, podendo consultar-se, entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-12-2018[4], 19-09-2019[5], 23-01-2020[6] e de 19-02-2020[7].
Na mesma linha, contribuindo para a consolidação da interpretação exposta, veja-se o acórdão para uniformização de jurisprudência n.º 7/2008, de 25-06-2008, onde se fixou a seguinte jurisprudência:
«Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º deste último diploma legal.»

Também a jurisprudência constitucional, mesmo após as alterações legislativas mencionadas, continua a sustentar a mesma posição.

Assim, no seu acórdão n.º 481/11, de 12-10-2011, o Tribunal Constitucional afirmou:
«Assim, tem entendido a jurisprudência constitucional relativa à aplicação das normas contidas nos artigos 358.º e 359.º do CPP (para o caso, interessa sobretudo aquela especialmente incidente sobre o nº 3 do artigo 358.º) que não é uma qualquer alteração da qualificação jurídica dos factos que, a ser invocada, pode justificar o juízo de inconstitucionalidade sobre a “norma do caso”. Decorre dessa jurisprudência, atrás citada, que esse juízo, a ser proferido, assenta sobre dois pressupostos fundamentais, constantes aliás da fórmula da decisão proferida, com força obrigatória geral, no Acórdão nº 445/97: primeiro, o de que a diferente qualificação jurídica dos factos (a ocorrer), tenha conduzido a uma agravação da condição jurídico-penal do arguido; segundo, o de que, tendo sido este último desprevenidamente confrontado com essa alteração, não pudesse orientar quanto a ela a sua estratégia de defesa.»

Analisando a situação dos autos e aplicando à mesma os ensinamentos resultantes da jurisprudência analisada, verificamos que no caso em apreço os factos que constam da sentença recorrida são exactamente os mesmos que vinham enunciados na acusação, nada tendo sido acrescentado em termos factuais.
Podemos, pois, concluir que a comunicação levada a cabo pelo Tribunal a quo no decurso da audiência limitou-se a uma mera alteração da qualificação jurídica, agravando, é certo, o quadro punitivo do recorrente (passou de um crime de furto qualificado a eventualmente dois crimes de furto qualificado, um tentado e um consumo), sendo aplicável ao caso o disposto no art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPPenal, e não o preceituado no art. 359.º, respeitante à alteração substancial dos factos.
Ainda assim, uma vez que o quadro punitivo do arguido se agravou, a tramitação conferida ao processo não está isenta de ser considerada inconstitucional, caso não tenha sido respeitado o seu direito ao contraditório.
Mas tal não ocorreu.
O próprio recorrente reconhece que requereu prazo para defesa e que este lhe foi concedido, tendo respondido à alteração comunicada com requerimento onde se opunha à modificação sugerida.
Independentemente da posição que tomou quanto à comunicação em causa, o certo é que ao recorrente foi dada a possibilidade de se pronunciar sobre esta nova qualificação jurídica dos factos, o que foi realizado ainda no decurso da audiência de julgamento, estando por esta via plenamente cumprido o contraditório, nenhuma ofensa tendo sido cometida ao art. 32.º da Constituição da República Portuguesa.
Nem se diga que a circunstância de o arguido ter confessado os factos antes de ter sido efectuada a comunicação nos termos do art. 358.º, n.º s 1 e 3, do CPPenal lesou os seus direitos de defesa.
Na verdade, bem andou Tribunal a quo ao não agir de forma diferente, isto é, alertando o arguido para eventual modificação da qualificação jurídica antes de ocorrer a produção de prova, e concretamente antes de o mesmo prestar declarações, constituindo tal opção afronta ao acórdão para fixação de jurisprudência n.º 11/2013, de 12-06-2013, segundo o qual «A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do CPP».
Como se firmou no já indicado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 19-02-2020[8], «A circunstância de o arguido haver confessado integralmente e sem reservas os factos imputados não constituiu impedimento ao exercício do seu direito de defesa na sequência da comunicação feita pelo Tribunal da alteração da qualificação jurídica dos factos», aí salientando que «[a] confissão do arguido reporta-se aos “factos” e não à qualificação jurídica dos mesmos, pelo que não há um direito do arguido à imodificabilidade da qualificação jurídica dos factos após a confissão. A posição processual do arguido é protegida pelo dever do tribunal de comunicação prévia da alteração da qualificação jurídica dos factos confessados. Por outro lado, o direito processual Português não dá qualquer protecção à expectativa do arguido que confessa em relação à sua pena».
Perante o que se deixa enunciado, há que concluir não assistir qualquer razão ao recorrente nesta parcela do recurso.
*
2.ª Questão - a factualidade dada como provada corresponde à prática de um e não dois crimes de furto qualificado?
A circunstância de nenhum vício poder ser apontado à comunicação de alteração da qualificação jurídica nos termos do art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPPenal – que, como se sabe, não determina que a decisão de alterar a qualificação jurídica já esteja tomada, por isso se concede ao arguido prazo para defesa caso o requeira – não impede que se aprecie da correcção da qualificação jurídica realizada pelo Tribunal a quo.
O recorrente centra a sua argumentação, embora de forma pouco explicita, na circunstância de ter existido uma única resolução criminosa, a que chama de facto globalizante e relevante para a situação em apreço, considerando que o mesmo está reflectido no segmento da matéria de facto provada que refere que «No dia 12 de Março de 2019, por volta das 12h00, o arguido dirigiu-se à Rua …, Matosinhos, a fim de se apoderar de objectos de valor que se encontrassem no interior dos veículos estacionados.»
Entende ainda que tudo o que se passou em execução deste objectivo, ou seja, o acto contínuo de partir os vidros de duas viaturas estacionadas, no local em causa, nas palavras do recorrente, é apenas o concretizar do facto relevante.
Esta questão transporta-nos para a temática da unidade e pluralidade de infracções, que encontra acolhimento legal no art. 30.º do CPenal, sob a epígrafe «Concurso de crimes e crime continuado», norma tributária na sua essência da doutrina de Eduardo Correia.
Estabelece o n.º 1 deste preceito que «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.»
Não há dúvida, em face da factualidade assente, que o arguido, ao partir os vidros de dois veículos estacionados na mesma rua para deles retirar objectos que ali encontrasse, por duas vezes cometeu o mesmo tipo de crime (furto qualificado), embora num caso tenha alcançado o seu desiderato (crime consumado) e no outro não (crime tentado).
Estamos perante um concurso real e homogéneo de crimes, pelo que há pluralidade de crimes de acordo com o art. 30.º, n.º 1, 2.ª parte, do CPenal.
Esta análise assim enunciada parece resolver o problema.
Contudo, a questão não é assim tão evidente.
Como explica Eduardo Correia[9], no crime, a acção tem uma estrutura «valorativa (é a negação de valores ou interesses pelo homem», pelo que «há-de ser o número de acções assim entendidas que há-de determinar a unidade ou pluralidade de infracções. Ou por outras palavras: o número de infracções determinar-se-á pelo número de valorações que, no mundo jurídico-criminal, correspondem a uma certa actividade.
(…)
Pluralidade de crimes significa, assim, pluralidade de valores jurídicos negados.
E mais adiante acrescenta que se os «tipos legais de crime» são «os portadores da valoração de uma conduta pela ordem jurídica como ilícita», então «se a actividade do agente preenche diversos tipos legais de crime, necessariamente se negam diversos tipos legais de crime e estamos, por conseguinte, perante uma pluralidade de infracções».
Mas, prossegue, «pode acontecer que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes em relação a actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal de crime, a actividades, portanto, que encarnam a violação do mesmo bem jurídico. E encontramos, assim, a culpa como elemento limite da unidade de infracção: a unidade de tipo legal preenchido não importa definitivamente a unidade da conduta que o preenche; pois sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes».
Como claramente se percebe, esta segunda hipótese corresponde à situação dos autos.
De seguida, o Autor, após questionar como se poderá determinar a existência de uma unidade ou pluralidade de juízos de censura, responde afirmando que «Seguro é que, sempre que possa verificar-se uma pluralidade de resoluções – de resoluções no sentido de determinações de vontade, de realizações do projecto criminoso –, o juízo de censura será plúrimo. Restará ainda, porém, saber em que condições se poderá afirmar uma tal pluralidade de processos resolutivos.»
Após afastar o critério da descontinuidade na actuação do agente[10], conclui o mesmo Autor que não resta outro [critério] «se não o de considerar a forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. E justamente no sentido de que para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação».
Mas este índice de conexão temporal, explica ainda o Autor, não pode ser afirmado sem limites, como mero critério de normalidade, antes deve ser amplamente sujeito a prova da real determinação da vontade.
Transpondo estes ensinamentos para a situação em análise, podemos concluir que o arguido com a sua conduta atentou por duas vezes contra o mesmo tipo legal de crime mas só poderemos afirmar que cometeu uma pluralidade de crimes (dois) caso tenha ocorrido renovação do projecto delitivo.
Ora, quando se diz no ponto 1. da factualidade assente que o arguido dirigiu-se à Rua …, Matosinhos, a fim de se apoderar de objectos de valor que se encontrassem no interior dos veículos ali estacionados podemos afirmar estar aí contida a essência da resolução criminosa do arguido.
É, porém, uma mera resolução genérica, indeterminada, pois o arguido ainda não sabe o que vai encontrar na Rua …. O arguido quer ir até àquele local para se apoderar de objectos de valor que encontrar no interior dos veículos estacionados e age em execução desse propósito. Mas ao chegar ao local seleccionado muitas outras decisões lhe compete tomar. Desde logo, se avança com o seu projecto. Imaginemos que chegando ao local escolhido o arguido se apercebia que ali estavam agentes das autoridades a realizar uma operação Stop. Dificilmente se percebe que levasse por diante a sua vontade. Assim, esta resolução necessita de uma concretização que verdadeiramente negue a valoração que o tipo de crime protege. Esse momento só ocorre quando o arguido escolhe o primeiro veículo cujo vidro vai partir e executa o seu projecto delitivo.
Quando num segundo momento, depois de nenhum objecto de valor ter retirado do primeiro veículo, por nenhum ter encontrado, o arguido se dirige a uma outra viatura, parte o vidro da porta traseira do lado direito da mesma e do seu interior retira e leva consigo dois pares de óculos de sol, no valor global de cerca de € 700 (setecentos euros), já não estamos no âmbito da resolução inicial, apesar do pouco espaço de tempo que medeia ambas as acções.
Esta segunda conduta tem necessariamente na sua origem uma renovação da resolução criminosa de retirar bens de valor de veículos estacionados no local mencionado, posto que exigiu uma energia, quer ao nível da conduta física (selecção de outra viatura que, pelo menos, suspeitou ser de diferente proprietário e quebra do vidro respectivo) quer em termos anímicos (determinação para executar estas novas acções) suficiente para ultrapassar o obstáculo que um novo veículo e cada uma destas acções representam em termos de negação dos valores protegidos pelo tipo de crime.
Este percurso leva-nos a concluir que o arguido não podia ter agido nos termos consignados na decisão recorrida sem ter renovado a sua resolução criminosa.
Se aceitássemos a posição defendida pelo arguido desembocávamos no seguinte paradoxo: se o agente se dirige a uma rua com o objectivo de se apoderar de objectos de valor que encontre no interior dos veículos ali estacionados e retira objectos de dois veículos comete um crime de furto qualificado; mas se o agente se dirige a uma rua com o objectivo de se apoderar de objectos de valor que encontre no interior de um veículo ali estacionados e retira objectos desse veículo e de seguida de um outro já comete dois crimes de furto qualificado.
Segundo este entendimento do recorrente, perante resultados iguais (furto de objectos do interior de duas viaturas) mas propósitos iniciais diferente deve contemporizar-se com aquele que é mais grave (objectivo de furtar objectos do interior de todos os veículos estacionados numa rua) e penalizar-se o menos grave (objectivo de furtar objectos do interior de um veículo estacionado numa rua).
Ninguém pode aceitar um tal entendimento.
Na verdade, o desvalor global de uma e de outra conduta, ou seja, os sentidos da vida jurídico-penalmente relevantes que vivem no comportamento global, nas palavras de Figueiredo Dias[11], é exactamente igual numa situação ou noutra, nada justificando a diferenciação que o recorrente sugere[12].
Nenhuma censura deve recair, pois, sobre a sentença recorrida em sede de qualificação jurídica dos factos.
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar total provimento ao recurso interposto pelo arguido B… e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça devida (arts. 513.º, n.ºs. 1 e 3, do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).

Porto, 11 de Novembro 2020
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
______________
[1] Sobre a noção e critério de sentido social da ilicitude, veja-se Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2007, p. 989.
[2] Veja-se Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infrações, Coimbra editora, 1983 (reimpressão), p. 27 e ss.
[3] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[4] Proferido no âmbito do Proc. n.º 72/17.9TRPRT.S1, relatado por Raul Borges, acessível inwww.dgsi.pt.
[5] Proferido no âmbito do Proc. n.º 724/17.3PDCSC.L1.S1, relatado por Francisco Caetano, acessível inwww.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler:
«I - Constando da acusação que “em datas não concretamente apuradas, mas localizadas entre Maio de 2017 e Setembro de 2017, com frequência não concretamente apurada, nas noites em que AA estava a trabalhar no Hotel BB, o arguido procurava a ofendida no seu quarto, que se encontrava já de pijama” e dando o acórdão recorrido como provado que “entre data não concretamente apurada, mas entre 22.01.2017 e Setembro de 2017, em pelo menos duas ocasiões, nas noites em que AA estava a trabalhar no Hotel BB, o arguido procurava CC no seu quarto, que se encontrava já de pijama”, mais se não fez que limitar e reduzir a duas situações, ou seja, ao mínimo interpretativo da pluralidade, aquelas datas não concretamente apuradas, no dizer da acusação.
II - Não há, assim, qualquer modificação de factos, antes alteração ao nível da qualificação jurídica (alteração não substancial) pois, em vez de um crime objecto da acusação, ter-se-iam que considerar dois crimes.
III - Daí que, assim tendo decidido o tribunal a quo, após cumprimento do disposto no n.º 1 do art. 358.º e sobre o que o arguido ora recorrente nada requereu com vista à preparação da defesa, nada haveria que censurar, razão por que haveria que indeferir, como foi, a nulidade arguida.»
[6] Proferido no âmbito do Proc. n.º Proc. n.º 1963/17.2T9LSB.L1.S1, relatado por Isabel São Marcos, acessível inwww.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler:
«I - Integra uma situação de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, logo sujeita à disciplina prescrita no n.º 1, por força do disposto no n.º 3 do art. 358.º, do CPP, a imputação, em julgamento, ao arguido - que tinha sido acusado pela prática (entre outros crimes, de que foi absolvido) de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos arts. 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, al. a), do CP - de quarenta nove crimes de burla qualificada, previstos e punidos pelos arts. 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, al. b), do CP.
II - A comunicação que, nos termos e para efeitos do disposto no art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, o tribunal fez ao arguido na sessão da audiência de julgamento designada para a leitura do acórdão e antes desta, proporcionando-lhe oportunidade de exercer o contraditório e de se defender em plenitude quanto à referida alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, não integra a nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP.»
[7] Proferido no âmbito do Proc. n.º 155/16.2JALRA.S1, relatado por Manuel Augusto de Matos, acessível inwww.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler:
«I - Na audiência de julgamento o Tribunal notificou o arguido e a sua defensora da alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, tendo considerado que o comportamento do arguido deverá ser valorado como concurso real de infracções, concretamente como correspondendo a 8 crimes de abuso sexual de crianças p. e p. pelo art. 171.º, n.º 1, do CP, em vez da imputação feita na acusação de 2 crimes de abuso sexual de crianças na forma continuada, um deles agravado.
II - A defensora do arguido declarou então que prescindia do prazo previsto no art. 358.º, n.º 1 (2.ª parte), do CPP, tendo, seguidamente, sido proferido o acórdão agora recorrido.
III - Não ocorreu qualquer alteração, substancial ou não substancial, dos factos imputados na acusação pública, mas sim uma alteração da qualificação jurídica dos mesmos.
IV -O instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa ao arguido pois «[o] que a lei pretende é que aquele não venha a ser julgado e condenado por factos diferentes daqueles por que foi acusado ou pronunciado, por factos que lhe não foram dados a conhecer oportunamente, ou seja, venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender».
V - Sendo que a solução legislativa introduzida pela Reforma de 1998 com o aditamento do n.º 3 ao art. 358.º do CPP dissipou as dúvidas que ao longo do tempo se formaram sobre o alcance da alteração da subsunção jurídica dos factos efectuada pelo tribunal, ao consagrar «a solução da admissibilidade da qualificação jurídica livre pelo tribunal de julgamento, com a restrição da comunicação prévia da alteração ao arguido»
VI -Não assistindo igualmente qualquer razão ao arguido quando afirma que «poderia o Tribunal Colectivo, logo no início da audiência de julgamento, e antes de o arguido ter prestado qualquer tipo de declaração, ter procedido à alteração da qualificação jurídica, alterando a imputação de crime continuado para a prática dos oito crimes pelo qual veio a ser condenado, e aí, já o arguido teria podido, ciente do número de crimes que lhe seriam imputados, de forma esclarecida e consciente, optar entre prestar declarações ou remeter-se ao silêncio».
VII - A alteração da qualificação jurídica dos factos apenas pode ocorrer após o apuramento dos factos o que resulta da produção da prova e da sua análise crítica e concatenada portanto, em momento posterior à produção de prova e anterior à prolação da decisão final, entendimento que encontra desde logo apoio no texto do art. 358.º, n.º 1, do CPP, no segmento «no decurso da audiência», e actualmente consagrado no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 11/2013.
VIII - A circunstância de o arguido haver confessado integralmente e sem reservas os factos imputados não constituiu impedimento ao exercício do seu direito de defesa na sequência da comunicação feita pelo Tribunal da alteração da qualificação jurídica dos factos.
IX -Interessando ainda sublinhar que «[a] confissão do arguido reporta-se aos “factos” e não à qualificação jurídica dos mesmos, pelo que não há um direito do arguido à imodificabilidade da qualificação jurídica dos factos após a confissão. A posição processual do arguido é protegida pelo dever do tribunal de comunicação prévia da alteração da qualificação jurídica dos factos confessados. Por outro lado, o direito processual Português não dá qualquer protecção à expectativa do arguido que confessa em relação à sua pena».
X - Conclui-se, assim, que não foi violado nem o direito de exercício do contraditório nem o de defesa em geral, não se verificando nenhuma das causas de nulidade contempladas no art. 379.º, do CPP.»
[8] Proferido no âmbito do Proc. n.º 155/16.2JALRA.S1, relatado por Manuel Augusto de Matos, acessível inwww.dgsi.pt.
[9] Direito Criminal II, Almedina, reimpressão 2004, págs. 200 a 202.
[10] Dando como exemplo de situação em que ninguém irá afirmar a pluralidade de resoluções o caso do agente que descarregou vários golpes, uns a seguir aos outros, sobre a vítima.
[11] Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª Edição, pág. 988.
[12] No acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29-04-2014, proferido no âmbito do Proc. n.º 5/12.9PEFAR-E1, relatado por Renato Barroso, acessível inwww.dgsi.pt, é esta mesma solução que é encontrada perante quadro factual semelhante.