CONTRATO PROMESSA
SINAL
MORA
INCUMPRIMENTO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
Sumário


I- Impende sobre a parte que apresenta o contrato-promessa o ónus de provar a autenticidade do contrato e da autoria das assinaturas nele apostas se a parte contrária tiver impugnado a sua autenticidade (cfr. artigo 374º n.º 2 do Código Civil), podendo essa prova ser feita através de qualquer meio de prova e não apenas através de prova pericial.
II- O reconhecimento por semelhança de assinaturas, salvo disposição legal em contrário, vale como mero juízo pericial (cfr. artigo 375º n.º 3 do Código Civil) e, por isso, a sua força probatória é fixada livremente pelo tribunal (cfr. artigo 389º do Código Civil).
III- Salvo se da interpretação da vontade negocial resultar diversamente, o regime legal do sinal é inaplicável em caso de simples atraso no cumprimento.
IV- Só o incumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa, e já não a simples mora, poderá dar lugar à aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 442° do Código Civil (e à resolução do contrato), não havendo incumprimento, lato sensu, enquanto a mora não for convertida em incumprimento definitivo.
V- A mora do devedor é pressuposto da execução específica do contrato-promessa.
VI- Não se mostrando efectuada qualquer interpelação de cumprimento a um dos herdeiros do falecido promitente vendedor inexiste mora, não se verificando o incumprimento por parte dos herdeiros suscetível de fundamentar a execução específica.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

A. L. intentou ação declarativa em processo comum contra J. R. e M. R., pedindo seja proferida sentença que produza os efeitos da declaração negocial do promitente-vendedor, ordenando-se o cancelamento de todos e quaisquer registos que obstam a realização desse direito.
E, se assim não se entender, pedem que sejam os Réus condenados a reconhecerem o direito de propriedade do Autor por usucapião e a entregarem ao Autor os Prédios livres e desocupados de pessoas e bens e sem quaisquer ónus ou encargos.
Se ainda assim não se entender que sejam os Réus condenados a pagar ao Autor a quantia igual ao dobro do sinal, ou seja a quantia de €10.000.00.
Os Réus contestaram pugnando pela absolvição, quer da instância quer do pedido, e ainda pela condenação do Autor como litigante de má-fé.
Foi realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial e foi proferido despacho destinado à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova.
A mulher do Autor R. L. declarou em audiência prestar consentimento ao Autor para interposição da acção.

Veio a efectivar-se a audiência de discussão e julgamento com a prolação de sentença nos seguintes termos, no que concerne à parte dispositiva:
“Pelo exposto, julga-se a presente ação procedente, por provada e, consequentemente, decide-se declarar, em substituição dos réus, que estes:
A - Vendem ao autor, pelo preço de €2.493,99 (dois mil quatrocentos e noventa e três euros e noventa e nove cêntimos), já pago, os seguintes prédios rústicos situados em ..., Ponte de Lima:
a) Bouça ..., constituído por terreno de mato e pinheiros, sito no Lugar de ..., com a área de 3680 m2, a confrontar do Norte com Ribeiro, do Sul com Freguesia, do Nascente com M. C. e do Poente com caminho, então inscrito na matriz predial da Freguesia de ... sob o artigo n.º ... e com descrição na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º .../20000119, freguesia ....
b) Terreno de mato e pinheiros na Bouça ... com a área de 3200 m2, a confrontar do Norte com a Freguesia e A. F., do Sul com ribeiro e rego, do Nascente com Junta de Freguesia e do Poente com A. F., inscrito na matriz predial sob o artigo n.º ..., e com descrição na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º .../20000119, freguesia ....
B. Vendem ao autor, pelo preço de €2.493,99 (dois mil quatrocentos e noventa e três euros e noventa e nove cêntimos), já pago, o prédio rústico denominado “Bouça do ...”, constituído por terreno de mato e pinheiros, com a área de 3000 m2, a confrontar do Norte com A. F. e Freguesia; do Sul com J. G. (herdeiros), do Nascente com J. M. (herdeiros) e do Poente com A. F., inscrito na matriz predial sob o artigo …, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º .../20000119, freguesia ....
As custas processuais serão a cargo dos réus, que à ação deram causa – artigo 527.º do CPC.
Custas do incidente de litigância de má-fé também correm pelos réus, que se fixam em 2 UC.
Notifique, registe e, após trânsito, comunique ao Serviço de Finanças”.

Inconformados, apelaram os Réus da sentença, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“III - CONCLUSÕES

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, na parte em que foi desfavorável aos Réus (procedência da acção).
2. O presente recurso visa a impugnação da decisão da matéria de facto e de direito e pressupõe a reapreciação da prova gravada.
3. O Réu discorda do julgamento da matéria de facto contida nos pontos A, C, E e F dos factos provados, pois entende que a mesma deveria ter sido dada como não provada.
4. Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são as declarações de parte prestadas pelo Réu marido na sessão de 15/02/2018, no excerto de minutos 01:00 a 05:15, doc. n.º 4, junto com a p.i. (mera fotocópia, com letras e assinaturas impugnadas pelos Réus) e o ofício remetido pelo Exmo. Senhor Dr. J. B., actualmente Notário, que deu entrada nos autos em 21/04/2017.
5. O contrato-promessa que tem por objecto a transmissão ou constituição de direitos sobre bens imóveis (como sucede no caso dos autos) é um negócio formal, já que, para ser válido, tem necessariamente de ser sujeito a forma escrita e de conter a assinatura da parte ou partes que se obriguem.
6. Por força do disposto no art. 364.º, n.º 1 do Cód. Civil, uma vez que a lei exige que o contrato-promessa que respeite à transmissão de direitos sobre imóveis seja reduzido a escrito, o mesmo só pode ser demonstrado mediante a apresentação de tal documento.
7. Para que pudesse provar a celebração do contrato-promessa de 29/05/1995, o Autor teria, em alternativa, de exibir esse contrato, juntando aos autos o seu original, demonstrar a celebração desse contrato através de documento com valor probatório superior – documento autêntico ou documento particular autenticado – ou obter dos Réus a confissão quanto à sua celebração.
8. Nenhuma dessas hipóteses se verificou no caso dos autos.
9. A mera fotocópia simples, quando impugnada pela contraparte, não tem o mesmo valor probatório do documento original.
10. Não tendo o Autor junto aos autos o original do contrato e tendo os Réus impugnado a autenticidade da fotocópia junta pelo Autor, estava vedado ao Tribunal recorrido dar como provado a celebração de tal contrato e, por inerência, a factualidade contida nos pontos A, C, E e F dos factos provados.
11. Não tendo o Autor demonstrado a existência de documento escrito (em virtude de a mera fotocópia não se revestir de igual valor probatório), o art. 364.º, n.º 1 do Cód. Civil vedava ao Tribunal recorrido que desse como provada a celebração desse contrato.
12. Por força de restrições de cariz substantivo, estava vedado ao Tribunal recorrido dar como provada a factualidade contida nos pontos A, C, E e F dos factos provados, o que é quanto baste para determinar a procedência do recurso, com a consequente alteração da decisão da matéria de facto, dando-se essa factualidade como não provada.
13. Os Réus, nos arts. 38.º a 41.º da sua contestação, impugnaram expressamente esse documento – doc. n.º 4, junto com a p.i. - quanto à autenticidade do seu conteúdo e das assinaturas nele contidas, negando a celebração do negócio titulado pelo mesmo –com os efeitos previstos no art. 444.º, n.º 1do Cód. Proc. Civil.
14. Por estar em causa um documento particular, o ónus da prova da sua autenticidade impendia sobre o Autor, tal como resulta expressamente do art. 374.º, n.º 2 do Cód. Civil.
15. O Tribunal recorrido deveria ter sancionado a não apresentação do original do contrato de 29/05/1995 com a aplicação do regime do art. 417.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, aplicável por remissão do art. 430.º do mesmo diploma, designadamente, levando em conta tal conduta para efeitos probatórios e concluindo pela não demonstração do facto que se pretendia demonstrar (celebração do contrato datado de 29/05/1995) por facto imputável aos Réus.
16. As declarações de parte do Autor não tinham nem têm o condão de, singelamente e desacompanhadas de qualquer outro meio de prova, cumprir comas exigências probatórias em matéria de ónus da prova e concretamente, permitir a prova da autenticidade do contrato-promessa de 29/05/1995.
17. Face à exiguidade da prova produzida, deveria o Tribunal recorrido ter considerado como não cumprido o ónus probatório que impendia sobre o Autor, dando como não provada a factualidade contida nos ponto A, C, E e F dos factos provados.
18. Daí que se imponha julgar procedente o presente recurso, alterando-se a resposta a esses pontos da decisão da matéria de facto, que deverão ser dados como não provados.
19. Os Recorrentes discordam do julgamento dos pontos B, D, E e F dos factos provados, pois entendem que tais factos deveriam ter sido dados como não provados.
20. Os meios de prova que impunham a prolação de decisão diversa são a perícia realizada pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária em 29/02/2016 e as declarações de parte prestadas pelo Réu marido na sessão de 15/02/2018, no excerto de minutos 01:00 a 05:15.
21. Uma vez que os Réus impugnaram o as assinaturas e conteúdo do contrato-promessa de 25/07/1996, o ónus da prova da sua autenticidade impendia sobre o Autor, tal como resulta expressamente do art. 374.º, n.º 2 do Cód. Civil.
22. A única prova produzida pelo Autor a esse respeito foram as suas próprias declarações - que, para além de obviamente interessadas, não tinham nem têm o condão de, singelamente e desacompanhadas de qualquer outro meio de prova, cumprir com as exigências probatórias em matéria de ónus da prova e, concretamente, a autenticidade do documento por ele apresentado.
23. Face à exiguidade da prova produzida, deveria o Tribunal recorrido ter considerado como não cumprido o ónus probatório que impendia sobre o Autor, dando como não provada a factualidade contida nos ponto B, D, E e F dos factos provados.
24. Daí que se imponha julgar procedente o presente recurso, alterando-se a resposta a esses pontos da decisão da matéria de facto, que deverão ser dados como não provados.
25. Com a procedência do recurso da decisão da matéria de facto proceda - como se impõe -, fica por demonstrar a celebração dos contratos-promessa invocados pelo Autor como causa de pedir.
26. Não se mostrando provada a celebração de tais contratos, carece de fundamento legal a procedência dos pedidos, nos termos decididos na douta sentença recorrida.
27. Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou, além de outras, as disposições dos arts. 410.º, n.º 1 e 2 e 830.º, n.º 1 do Cód. Civil.
28. Daí que se imponha a procedência do presente recurso, com a consequente revogação da douta sentença recorrida e prolação, em sua substituição, de Douto Acórdão que julgue a acção totalmente improcedente.
29. Em caso de improcedência do recurso da decisão da matéria de facto, a douta sentença recorrida não ficará, ainda assim, isenta de censura.
30. O instituto da execução específica tem como pressuposto prévio o incumprimento da promessa por uma das partes.
31. A matéria de facto provada não permite extrair a conclusão de que os Réus se encontrassem em mora, na data de instauração da presente acção ou, por outras palavras, que tenham incumprimento com qualquer uma das obrigações emergentes dos contratos-promessa em referência.
32. A ser assim – e dúvidas não poderão subsistir a este respeito -, terá forçosamente de se concluir que não se encontrava nem encontra preenchido o pressuposto exigido pelo n.º 1 do art. 830.º do Cód. Civil para aplicação do instituto da execução específica – o incumprimento da promessa pelos Réus.
33. De resto, não tendo a carta que constitui o doc. n.º 6, junto com a p.i., sido enviada por correio registado com aviso de recepção, não foi sequer cumprido o formalismo convencionado pelas partes para a notificação da data da escritura.
34. Nãos e encontrando os Réus em mora, não poderia haver lugar à aplicação do regime da execução específica, pelo que, ao decidir em sentido contrário, a decisão recorrida violou o n.º 1 do art. 830.º do Cód. Civil.
35. E isso é quanto baste para determinar a procedência do recurso, com a consequente revogação da douta sentença recorrida e prolação, em sua substituição, de douto acórdão que julgue a acção totalmente improcedente.
36. Do ponto G dos factos provados consta apenas que o Autor interpelou o Réu nos termos aí descritos.
37. Não consta dos factos provados (nem tal poderia suceder, atento o teor do doc. n.º 6, junto com a p.i.) que a Ré mulher tenha em momento algum sido notificada para outorgar a escritura correspondente ao contrato prometido.
38. Não tendo a Ré mulher sido notificada para outorgar a escritura, nunca poderia a mesma constituir-se em mora.
39. Não se encontrando a Ré mulher em mora, não poderia haver lugar à aplicação do regime da execução específica, pelo que, ao decidir em sentido contrário, a decisão recorrida violou o n.º 1 do art. 830.º do Cód. Civil.
40. E isso é quanto baste para determinar a procedência do recurso, com a consequente revogação da douta sentença recorrida e prolação, em sua substituição, de douto acórdão que julgue a acção totalmente improcedente.
41. Ainda que este Tribunal entendesse submeter a factualidade provada a outro enquadramento jurídico – nomeadamente, o regime do sinal -, não haveria condições para a procedência de um tal pedido.
42. A aplicação do regime do sinal pressupõe a ocorrência de incumprimento definitivo, por parte dos Réus.
43. Para que haja incumprimento definitivo seria necessário que, previamente, fosse feita a interpelação admonitória dos Réus, ou seja, a interpelação para outorgarem as escrituras prometidos num prazo razoavelmente fixado, com a expressa cominação de perda definitiva do interesse na subsistência do negócio, em caso de incumprimento.
44. Não tendo reflexo na matéria de facto provada a existência de interpelação admonitória e muito menos de resolução contratual, não se pode ter por aplicável o regime do sinal, sob pena de violação da disposição do art. 442.º do Cód. Civil.
45. Daí que tal regime se não possa ter por aplicável.”

Pugnam os Recorrentes pela integral procedência do recurso e consequentemente pela revogação da sentença recorrida e sua substituição por outra que esteja em conformidade com as conclusões por si formuladas.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).

As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes, são as seguintes:
1 - Determinar se houve erro no julgamento da matéria de facto quanto aos pontos A, B, C, D, E e F dos factos provados;
2 – Determinar se houve erro na subsunção jurídica dos factos:
2.1 – Saber se não tem aplicação o artigo 830º n.º 1 do Código Civil;
2.2 – Saber se inexiste mora por parte da Ré M. R.;
2.3 – Saber se não tem aplicação o regime do sinal previsto no artigo 442º do Código Civil.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Os factos
Factos considerados provados em Primeira Instância:

A. Por documento datado de 29 de maio de 1995, e pela quantia de 500.000$00, o autor declarou prometer comprar a A. R., que usava também o nome de A. M., solteiro, maior, residente que foi no Lugar de ..., Freguesia de ..., Ponte de Lima, que por sua vez declarou prometer vender, os seguintes prédios rústicos situados em ..., Ponte de Lima:
a) Bouça ..., constituído por terreno de mato e pinheiros, sito no Lugar de ..., com a área de 3680 m2, a confrontar do Norte com Ribeiro, do Sul com Freguesia, do Nascente com M. C. e do Poente com caminho, então inscrito na matriz predial da Freguesia de ... sob o artigo n.º ... e agora com descrição na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../20000119, freguesia ....
b) Terreno de mato e pinheiros na Bouça ... com a área de 3200 m2, a confrontar do Norte com a Freguesia e A. F., do Sul com ribeiro e rego, do Nascente com Junta de Freguesia e do Poente com A. F., inscrito na matriz predial sob o artigo n.º ..., e agora com descrição na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../20000119, freguesia ....
B. Por documento datado de 25 de julho de 1996, e pela quantia de 500.000$00, o autor declarou prometer comprar a A. R., NIF ........., que usava também o nome de A. M., solteiro, maior, residente que foi no Lugar de ..., Freguesia de ..., Ponte de Lima, que por sua vez declarou prometer vender, o prédio denominado “Bouça do ...”, constituído por terreno de mato e pinheiros, com a área de 3000 m2, a confrontar do Norte com A. F. e Freguesia; do Sul com J. G. (herdeiros), do Nascente com J. M. (herdeiros) e do Poente com A. F., inscrito na matriz predial sob o artigo …, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../20000119, freguesia ....
C. Na data do reconhecimento notarial das assinaturas dos outorgantes apostas no documento referido em A, em 12 de junho de 1995, o autor pagou ao promitente vendedor o preço de 500.000$00.
D. O autor pagou a A. R. o preço de 500.000$00 mencionado no documento de 25 de julho de 1996.
E. As assinaturas apostas nos documentos foram reconhecidas no Cartório Notarial de ….
F. Declararam ainda os outorgantes em ambos os documentos que:
a) “a escritura pública de compra e venda será realizada logo que o [o autor] o exija…”; e que “A Escritura Publica do contrato definitivo de compra e venda, será celebrado logo que o [o autor] o entenda…”.
b) Que o acordado ficava submetido ao regime da execução-específica previso no artigo 830.º do Código Civil.
c) A. R. autorizava o autor a entrar na posse dos prédios.
G. O autor, por carta datada de 30 de novembro de 2004, e por intermédio do solicitador M. S., interpelou o réu no sentido de procederem à escritura do contrato prometido.
H. A. R. faleceu em - de junho de 1999, deixando testamento lavrado no Hospital de …, Viana do Castelo, em 17 de junho de 1999.
I. Por esse testamento A. R. instituiu os réus como seus únicos e universais herdeiros.
J. Os prédios acima descritos em A e B mostram-se, desde a data em que foram descritos na Conservatória do Registo Predial – 19.1.2000 – com registo de inscrição de aquisição a favor dos réus, por sucessão hereditária de A. R..
K. Os prédios identificados em A e B têm inscritos, desde 13.01.2005, registo de hipoteca voluntária constituída pelos réus a favor da Caixa …, CRL.
L. A. R. era homem conservador, que fazia uma vida austera, de poucos gastos.
M. Antes e depois de março de 1995, o falecido vendeu pinheiros tanto ao autor como a outros madeireiros.
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Factos considerados não provados em Primeira Instância:

1. O autor está na posse dos prédios acima referidos há mais de 5, 10, 15, 20 anos.
2. Posse que exerce à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.
3. De modo contínuo, público e pacífico.
4. Sem a esconder de quem pudesse ter interesse em contrariá-la.
5. Pagando os respetivos impostos e colhendo dos mesmos os respetivos frutos.
6. As assinaturas e as rubricas com os dizeres “A. R.” e “R.” apostas nos documentos referidos em A e B não são do punho de A. R..
7. Os prédios rústicos referidos em A e B já em 1995 tinham árvores (sobretudo pinheiros e eucaliptos) implantadas que, só elas, no seu conjunto, valiam muito mais do que os 500.000$00 referidos em ambos os contratos.
8. O conjunto desses três prédios já nessa altura valia mais de €15.000,00.
9. O falecido tinha como princípio não vender nada do seu património.
10. Não há memória de ele ter vendido um único imóvel.
11. Sempre que precisava, vendia alguns pinheiros para complemento da sua reforma.
12. Já depois de maio de 1995, o falecido continuou a ir às bouças referidas nestes autos, a visitá-las como às demais que lhe pertenciam e a fazer contas sobre quando e quanto “poderia fazer dali”, referindo-se ao volume e porte dos pinheiros e eucaliptos existentes nos três prédios identificados na petição inicial; fazia o cálculo ao dinheiro que o material lenhoso lhe proporcionaria e ajuizava da melhor altura para vender as árvores.
13. Até morrer, o falecido sempre tratou os prédios identificados em A e B como sendo dele e nunca falou aos réus na existência de qualquer contrato-promessa.
14. O autor fez várias tentativas de aproximação ao falecido nos últimos 5 anos da vida dele.
15. A carteira do falecido, com os documentos, Bilhete de Identidade incluído, andou desaparecida em março ou abril de 1995 e só voltou a aparecer, num silvado próximo da casa dele, cerca de um ano e meio mais tarde.
16. Facto que ele – falecido – contava às pessoas sem sequer desconfiar que alguém pudesse estar por detrás desse evento ou que dele poderia tirar partido.
17. Todos os pinheiros que vendeu foram cortados e levados pelos madeireiros que os compraram, nestes se incluindo o autor.
***
3.2. Da modificabilidade da decisão de facto

O presente recurso, tal como delimitado pelos Recorrentes nas suas conclusões, versa sobre a decisão da matéria de facto, não concordando os Recorrentes com o julgamento do Tribunal a quo relativamente aos pontos A, B, C, D, E e F dos factos provados.
Decorre do preceituado n.º 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
E a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é expressamente admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
O legislador impõe por isso ao recorrente que impugna a decisão relativa à matéria de facto tal ónus de especificar, sob pena de rejeição do recurso.
No caso concreto, os Recorrentes cumpriam satisfatoriamente o ónus de impugnação da matéria de facto quanto aos referidos pontos A, B, C, D, E e F dos factos provados, indicando os pontos da matéria de facto que consideram incorrectamente julgados, o sentido da decisão que em seu entender se impõe e os elementos de prova em que fundamentam o seu dissenso.
Os Recorrentes logo no início do corpo das alegações e na parte respeitante ao recurso da decisão da matéria de facto referem ainda o ponto G dos factos provados, para não mais se referirem ao mesmo, designadamente nas suas conclusões; não obstante estarmos convictos que decorre de lapso manifesto, sempre se dirá que, a não ser assim, seria de rejeitar o recurso relativamente ao ponto G dos factos provados por manifesto incumprimento dos ónus impostos pelo artigo 640º n.º 1 do Código de Processo Civil.
Analisemos então os motivos de discordância dos Recorrentes.

Os pontos A, B, C, D, E e F dos factos provados têm a seguinte redacção:

“A. Por documento datado de 29 de maio de 1995, e pela quantia de 500.000$00, o autor declarou prometer comprar a A. R., que usava também o nome de A. M., solteiro, maior, residente que foi no Lugar de ..., Freguesia de ..., Ponte de Lima, que por sua vez declarou prometer vender, os seguintes prédios rústicos situados em ..., Ponte de Lima:
a) Bouça ..., constituído por terreno de mato e pinheiros, sito no Lugar de ..., com a área de 3680 m2, a confrontar do Norte com Ribeiro, do Sul com Freguesia, do Nascente com M. C. e do Poente com caminho, então inscrito na matriz predial da Freguesia de ... sob o artigo n.º ... e agora com descrição na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../20000119, freguesia ....
b) Terreno de mato e pinheiros na Bouça ... com a área de 3200 m2, a confrontar do Norte com a Freguesia e A. F., do Sul com ribeiro e rego, do Nascente com Junta de Freguesia e do Poente com A. F., inscrito na matriz predial sob o artigo n.º ..., e agora com descrição na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../20000119, freguesia ....
B. Por documento datado de 25 de julho de 1996, e pela quantia de 500.000$00, o autor declarou prometer comprar a A. R., NIF ........., que usava também o nome de A. M., solteiro, maior, residente que foi no Lugar de ..., Freguesia de ..., Ponte de Lima, que por sua vez declarou prometer vender, o prédio denominado “Bouça do ...”, constituído por terreno de mato e pinheiros, com a área de 3000 m2, a confrontar do Norte com A. F. e Freguesia; do Sul com J. G. (herdeiros), do Nascente com J. M. (herdeiros) e do Poente com A. F., inscrito na matriz predial sob o artigo …, e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../20000119, freguesia ....
C. Na data do reconhecimento notarial das assinaturas dos outorgantes apostas no documento referido em A, em 12 de junho de 1995, o autor pagou ao promitente vendedor o preço de 500.000$00.
D. O autor pagou a A. R. o preço de 500.000$00 mencionado no documento de 25 de julho de 1996.
E. As assinaturas apostas nos documentos foram reconhecidas no Cartório Notarial de ….
F. Declararam ainda os outorgantes em ambos os documentos que:
a) “a escritura pública de compra e venda será realizada logo que o [o autor] o exija…”; e que “A Escritura Publica do contrato definitivo de compra e venda, será celebrado logo que o [o autor] o entenda…”.
b) Que o acordado ficava submetido ao regime da execução-específica previso no artigo 830.º do Código Civil.
c) A. R. autorizava o autor a entrar na posse dos prédios”.

Está em causa a matéria de facto atinente aos dois contratos promessa que o Autor veio invocar ter celebrado com o falecido A. R. e cuja execução especifica veio peticionar a título principal nos presentes autos.
Sustentam os Recorrentes, que as declarações de parte prestadas pelo Réu marido, o documento n.º 4 junto com a petição inicial, mera fotocópia, e o ofício remetido pelo Dr. J. B., actualmente notário, impunham decisão diversa quanto aos pontos A, C, E e F, isto é impediriam que se considerasse provada a matéria respeitante à celebração do contrato promessa datado de 29/05/1995; e que a prova pericial realizada e as declarações de parte prestadas pelo Réu marido impediriam que se considerasse provada a matéria respeitante à celebração do contrato promessa datado de 25/06/1996.
Sustentam ainda que estando em causa documentos particulares e tendo sido impugnada a letra e assinaturas constantes dos mesmos impendia sobre o Autor o ónus da prova da sua autenticidade e que a prova do Autor se limitou aos depoimentos do seu filho e da sua mulher e à junção do original do contrato datado de 25/06/1996 e a mera fotocopia do contrato datado de 29/05/1995, e que não tendo sido possível realizar a perícia quanto a este último, a perícia realizada relativamente àquele se revelou inconclusiva.
Vejamos então.
A primeira questão que se suscita relativamente ao contrato promessa datado de 29/05/1995 é o do valor probatório da cópia uma vez que o Autor não juntou aos autos o original do contrato-promessa.
A este propósito considerou-se na decisão recorrida que “(…) não se vê (e reportamo-nos agora especificamente ao documento datado de 1995) a mínima razão para se acreditar que a fotocópia junta aos autos não constitua reprodução exata do original (que nunca foi exibido). Aliás, a inexatidão da fotocópia não foi alegada. O que os réus alegaram foi a falsidade/inexistência do “original”.
De facto, importa referir que os Réus não questionaram propriamente a inexactidão da fotocópia junta pelo Autor relativamente ao original que reproduz mas impugnaram a própria autenticidade do contrato-promessa reproduzido, impugnando a letra e assinaturas, o que aliás também fizeram relativamente ao contrato-promessa celebrado em 1996 cujo original foi junto aos autos.
Tem aqui aplicação o preceituado no artigo 368º do Código Civil onde se dispõe que “As reproduções fotográficas ou cinematográficas, os registos fonográficos e, de um modo geral, quaisquer outras reproduções mecânicas de factos ou de coisas fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão”.
Esta regra consagra a prova plena dos factos ou das coisas que as “reproduções” representam (aqui se abrangendo as fotocópias simples ou particulares e ainda os microfilmes (e microfichas) de documentos, entendendo-se estes, para o efeito, como coisas, quando desacompanhadas da atestação da sua conformidade ao original por entidade a tanto autorizada (v. José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, 1984, página 88 e Gonçalves Sampaio, A Prova por Documentos Particulares, Almedina, 2004, página 142) se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão.
A aplicação da norma do artigo 368º do Código Civil aos casos de fotocópia simples ou particular - sem certificação de conformidade com o original – significa que a fotocópia ou o microfilme faz prova plena do teor do original quando a sua exactidão não for impugnada.
Não está, por isso, em causa a substituição por outro meio de prova, mas a prova do teor do original.

No caso concreto, como já referimos, os Recorrentes não impugnaram a exactidão da fotocópia com o documento que a mesma reproduz mas a autenticidade do próprio contrato promessa reproduzido na fotocópia; ou seja a autenticidade colocada em causa não é ao nível da cópia mas ao nível do próprio contrato-promessa, pelo que deverá considerar-se que a mesma é reprodução fiel do contrato-promessa, sem prejuízo da impugnação da autenticidade deste, o que adiante apreciaremos.
Assim, não entendemos que pelo facto de não ter sido junto o original não pudesse considerar-se provada a celebração do contrato-promessa nos termos em que se mostra reproduzido.
Questão distinta, que se poderia discutir é se nos casos em que a lei exige documento escrito para a celebração de um acto jurídico se deve considerar provada a observância da forma legal (cfr. artigo 220º do Código Civil) com a junção da fotocópia ou se, não sendo junto o original, o acto jurídico deve considerar-se nulo por se não mostrar observada a forma legal (v. a este propósito José Lebre de Freitas, ob. cit. página 89). Tal questão, contudo, não se coloca a este nível, mas da validade do acto.
Questão distinta é também a da autenticidade do contrato promessa datado de 1995, e a do contrato datado de 1996, cujo original foi junto aos autos.
Em face do disposto no artigo 374º n.º 2 do Código Civil é sobre a parte que apresenta o documento, in casu, sobre o Autor, que impende o ónus da prova da sua autenticidade, bem como das assinaturas apostas no mesmo.
A este propósito se pronunciam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Volume I, 4ª Edição, página 331) considerando que “Ao contrário do que sucede com os documentos autênticos, os documentos particulares não provam, por si sós, a genuinidade da sua (aparente) proveniência. A letra e assinatura, oi a assinatura, só se consideram, neste caso, como verdadeiras, se forem expressa ou tacitamente reconhecidas pela parte contra quem o documento é exibido ou se legal ou judicialmente forem havidas como tais. Havendo impugnação, é ao apresentante do documento que incumbe provar a autoria contestada; e terá de fazê-lo, mesmo que o impugnante tenha arguido a falsidade do texto e assinatura, ou só da assinatura”.
E, mesmo no caso das assinaturas apostas no documento particular se mostrarem reconhecidas notarialmente por semelhança é também sobre o apresentante que recai o ónus da prova da veracidade da autoria da assinatura aposta no documento no caso da mesma ser impugnada (v. neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/11/2003, Relator Conselheiro Sousa Leite, disponível em www.dgsi.pt).
Conforme decorre do disposto no artigo 375º do Código Civil “1. Se estiverem reconhecidas presencialmente, nos termos das leis notariais, a letra e a assinatura do documento, ou só a assinatura, têm-se por verdadeiras. 2. Se a parte contra quem o documento é apresentado arguir a falsidade do reconhecimento presencial da letra e da assinatura, ou só da assinatura, a ela incumbe a prova dessa falsidade. 3. Salvo disposição legal em contrário, o reconhecimento por semelhança vale como mero juízo pericial”.
E, valendo o reconhecimento por semelhança como mero juízo pericial, a sua força probatória é fixada livremente pelo tribunal (cfr. artigo 389º do Código Civil).
É, por isso, inquestionável que, tal como afirmam os Recorrentes, o ónus da prova da autenticidade impendia sobre o Autor e que essa prova pode ser feita através dos vários meios de prova permitidos por lei, designadamente de prova testemunhal, documental e pericial.
Não é, contudo, verdade que o tribunal a quo para fundamentar a resposta dada à matéria de facto em causa tenha apenas realçado “a suposta insubsistência dos argumentos apresentados pelos Réus” pois que, para além de se ter pronunciado sobre estes, apreciou e analisou de forma criteriosa e fundamentada a prova produzida, esclarecendo através de raciocínio lógico a forma como formou a sua convicção.
A inexactidão da afirmação dos Recorrentes decorre de forma linear da simples leitura da motivação constante da decisão recorrida que, para que se não suscitem quaisquer dúvidas, aqui iremos transcrever:
“Não aceitam os réus que os documentos intitulados de “contrato-promessa de compra e venda” juntos a fls. 12 a 14 (com cópia mais legível a fls. 59 a 61) e a fls. 19 e 20 (este com o original junto a fls. 110/110-v.º) tenham sido outorgados por A. R.. Sustentam essa sua posição, no essencial, em 4 pontos:
- na invulgaridade da forma como a assinatura que nesse documento se imputa a A. R. foi reconhecida;
- no desaparecimento, no preciso intervalo de tempo que as datas apostas nos documentos exibem, do documento de identificação de A. R. que teria sido usado para o reconhecimento notarial por semelhança;
- na circunstância de nunca A. R. ter contado aos réus a celebração de qualquer contrato com o autor;
- de não haver memória de alguma vez ter A. R. vendido qualquer prédio a quem quer que seja.
Deixam os réus no ar, portanto, a ideia de que o autor se aproximou do falecido e se apoderou da sua carteira e documentação, e que, na posse dessa documentação – posse que decidiu manter por mais de um ano (um dos reconhecimentos é de 12.6.1995 e o outro é de 5.8.1996) – dela se serviu para obter reconhecimento notarial por semelhança da assinatura, que forjou ou mandou forjar, de A. R..
Trata-se de uma estória que, logo à partida, sem a produção de qualquer prova, facilmente se qualificaria como manca. O intervalo de tempo entre os dois reconhecimentos notarias por semelhança das assinaturas apostas nos documentos em apreço é superior a um ano. E ambos os reconhecimentos se fizeram em cartório notarial por confronto com o bilhete de identidade do falecido. Seria, no mínimo, pouco avisado que o autor se mantivesse tanto tempo na posse dos documentos de A. R. e que, nesse hiato de tempo, mas em dois momentos tão espaçados, forjasse ou mandasse forjar a assinatura de A. R.. É que, ao assim atuar, correria um risco tão óbvio como escusado: o de que o falecido, afinal uma pessoa de posses e que todos referiram ser desconfiado, entretanto tirasse outro documento de identificação invocando extravio do perdido. Consequentemente, correria o autor o sério risco de, mais tarde (como por exemplo em processo como o presente), vir a ser confrontado com a emissão desse novo bilhete de identidade em data incompatível com o usado para o reconhecimento.
Mas esse documento não apareceu.
E, na realidade, produzida a prova, a estória do desaparecimento manca se manteve. As testemunhas arroladas pelo réu (e o próprio réu) limitaram-se, quanto a tal, a invocar rumores “ouvidos por lá”. Não só aparentemente despropositados (afinal por que motivo se lembrariam as testemunhas de tal?) como pouco condizentes com o perfil psicológico que todos traçaram do falecido: uma pessoa austera e desconfiada. A perda de um documento de identificação tão representativo como o bilhete de identidade, e a sua descoberta após cerca de mais de um ano, é circunstância que não casa com a descrição do falecido. Faz antes transparecer uma ingenuidade infinita. E ingenuidade a mais é traço de burrice, incompatível com austeridade e desconfiança.
Mas ainda que se tivesse dado a mais pequena credibilidade ao tal episódio por todos falado de desaparecimento e reaparecimento do bilhete de identidade do falecido – que, acentue-se, não se deu – rigorosamente nenhuma prova, por mais indiciária que fosse, se fez quanto à intervenção do autor messe desaparecimento.
Para afastar uma arbitrariedade na não aceitação da vinculação que, à partida, resultaria dos documentos apresentados pelo autor, procurou o réu transmitir ao tribunal a importância que atribui à palavra verbal, nomeadamente à do falecido. E como do falecido não ouviu qualquer palavra sobre os negócios com o autor, entendeu desconsiderá-los. Ao invés, precisamente por (e para) respeitar a palavra do falecido, contou o réu que decidiu celebrar com terceiro uma escritura de doação de um prédio, como meio da formalização em falta de um outro negócio de transmissão onerosa de terras, falta essa que deixara o falecido, quando já no hospital e dias antes do seu falecimento, preocupado (não deixa de ser estranho, no entanto, que questionado sobre o preço desse negócio, nada tenha o réu sabido dizer, limitando-se a referir que fora o notário a sugerir uma doação…). Disse então o réu, porventura preocupado em não cair em contradição com o que havia alegado (que não havia memória do falecido ter vendido terras), julgar tratar-se de prédio do pai do falecido, que aquele (pai) teria vendido. Sucede que esta pressuposição embate numa realidade que os documentos juntos aos autos (pelo menos os que estão junto aos autos) tornam intransponível: de acordo com o assento de nascimento junto aos autos a fls. 150, A. R. não tinha a paternidade estabelecida. Foi registado como filho ilegítimo – nascido a -.4.1920 – de C. M.. Não se encontra no seu assento de nascimento o estabelecimento da paternidade (nem qualquer outro averbamento quanto à filiação). Não se discute que A. R. pudesse saber quem era o seu pai, ou mesmo que todos na aldeia o soubessem. Mas a verdade é que no testamento em que instituiu os réus como herdeiros, A. R. referiu ser filho de pai incógnito (cfr. fls. 26), o que é realidade bem mais abrangente do que a de filho “ilegítimo”... Sem outra documentação, até porque não foi apresentada, não se percebe como poderiam os réus ver ingressar no seu património, por herança deixada por óbito de A. R., prédios de terceiros...
O mais provável é, por isso, que a alegada doação efetuada pelos réus tenha tido como causa qualquer uma mais próxima daquela que terá originado as hipotecas e as penhoras que os documentos dos autos denotam (cfr., para além das certidões prediais dos 3 prédios em questão, o teor de fls. 270 a 301).
Quanto à estranheza pelo modo de reconhecimento das assinaturas apostas nos documentos intitulados de “contrato-promessa” – por semelhança e realizada por adjunto: a estranheza de hoje não era a dos anos 80 e 90. Vivia-se, nesse período, intenso bloqueamento dos serviços notariais. Para lhe fazer face, o legislador, em diplomas avulsos que visavam em especial os serviços do notariado (concretamente os decretos-lei n.º 232/82 de 17.6 e n.º 21/87 de 12.1) equiparou, para efeito de reconhecimento das assinaturas por semelhança (então previstas no artigo 165.º, 2 do Código do Notariado aprovado pelo Decreto-Lei 47619 publicado no Diário do Governo de 31.3.1967), a exibição do bilhete de identidade às assinaturas constantes dos livros de abertura de sinais, ou dos correspondentes verbetes arquivados na repartição (se estivessem rubricados pelo notário ou pelo ajudante); alargou as competências dos ajudantes de notários; e, até, criou o lugar de notário-adjunto. O objetivo de desburocratização e simplificação era, à data, especialmente premente. E com a entrada em vigor do Código de Notariado de 1995 (DL 207/95 de 14.8), que revogou o de 1967, introduziu-se diretamente no Código do Notariado (no artigo 153.º) o reconhecimento da assinatura por semelhança com o constante do bilhete de identidade, desde que tal documento fosse exibido para o efeito e o reconhecimento respeitasse apenas a assinatura do seu titular. Apenas a 24.12.1996, com o DL 250/96, se instituiu o reconhecimento simples como necessariamente presencial. Até então, a exigência legal de reconhecimento, sem determinação da sua espécie, entendia-se referida ao reconhecimento por semelhança.
Pretendeu-se com esta incursão no direito (o direito positivo, por ser também um reflexo da sociedade, ajuda à sua compreensão) explicar que o reconhecimento por semelhança de uma assinatura por simples exibição do bilhete de identidade era, nos anos 80 e 90, não só comum como incentivada, e efetuava-se mesmo quando todos outorgantes se apresentavam em Cartório Notarial e até quando as assinaturas dos outorgantes eram apostas na presença quer de notário, quer de notário-adjunto, quer de ajudante.
E, de certa forma, as declarações do autor foram prestadas neste mesmo sentido, no sentido de que lhe pareceu costumeira e rotineira a atuação notarial de reconhecimento das assinaturas que os documentos retratam; e no sentido de que tais reconhecimentos, nos exatos termos em que o foram, seriam bastantes para garantir a existência inequívoca, pelo menos do ponto de vista formal, de um contrato-promessa de compra e venda dos prédios em causa. Um procedimento que, aliás, não lhe era estranho, pois foi com naturalidade que o descreveu, por decalque de muitos outros que disse ter, também como outorgante de contratos análogos, presenciado.
Foi, pois, com naturalidade – ainda que tendo especialmente presente na memória as vicissitudes do primeiro negócio, o de 1995, das quais deu, aliás, inequívocos exemplos – que o autor explicou o interesse pela aquisição de cada um dos prédios do falecido; contou os locais onde os reconhecimentos tiveram lugar; esclareceu o preço de cada prédio; e, até (o que fez de forma manifestamente espontânea, entre encolher de ombros e em comentário lateral) a razão porque acredita que ambos os reconhecimentos ocorreram numa segunda-feira (como efetivamente ocorreram): por ser dia de feira em Ponte de Lima, dia de preferência do “velhotinho” (modo como por várias vezes chamou o falecido), para uma ida à vila.
Nenhuma – rigorosamente nenhuma – da demais prova produzida foi apta a afastar a autenticidade dos reconhecimentos notariais das assinaturas do falecido (e do autor) por semelhança com a do seu bilhete de identidade. Até porque, mais do que um mero reconhecimento por comparação por exibição do bilhete de identidade, ficou o tribunal, depois de ouvido o autor, totalmente convencido de que os outorgantes cuja assinatura foi notarialmente reconhecida estavam presentes no cartório notarial aquando da elaboração dos respetivos termos de reconhecimento – o termos que os documentos em causa denotam.
De igual modo, e pelas mesmas razões, não se vê (e reportamo-nos agora especificamente ao documento datado de 1995) a mínima razão para se acreditar que a fotocópia junta aos autos não constitua reprodução exata do original (que nunca foi exibido). Aliás, a inexatidão da fotocópia não foi alegada. O que os réus alegaram foi a falsidade/inexistência do “original”.
O reconhecimento da assinatura do falecido foi, como se disse e como resulta dos documentos em apreço, realizado por comparação com a constante do bilhete de identidade. Daí que a existência ou inexistência do livro de sinais do falecido seja facto relativamente inócuo (certo é, no entanto, que a assinatura do livro de sinais de fls 239 em nada se compatibiliza com a do seu testamento público. Essa assinatura não era, seguramente, do falecido).
Mas dir-se-á ainda assim que: a enorme similitude entre o traçado das assinaturas do falecido levadas aos documentos que acompanham a petição inicial e o traçado da assinatura constante do seu testamento (comparem-se os autógrafos de fls. 59, 61, 71 e 110-v.º), permitem, com elevadíssimo grau de indiciação (ainda que não com elevadíssimo grau de certeza – cfr. relatório pericial inconclusivo de fls. 184 e 185), concluir pela efetiva aposição das assinaturas nos documentos aqui em apreço pelo falecido e, já agora, atirar de vez a estória do desaparecimento do bilhete de identidade para o departamento da ficção.
A declarações do autor (afinal a única pessoa das ouvidas que, quanto ao negócio, poderia dizer algo de concreto, ainda que o seu cônjuge tenha também falado também de modo convincente quanto ao levantamento do montante necessário para o pagamento do preço), prestadas no sentido do que, no que respeita aos contornos e celebração do negócio, foi dado como provado, conjugadas com o teor dos documentos com as assinaturas reconhecidas notarialmente (já acima apontados); com as certidões prediais relativas aos mesmos prédios e aos demais (também acima referidos); com o teor do testamento e assento de óbito de A. R. (juntos, respetivamente, a fls. 148 e 69 a 71) e ainda o teor do documento de fls. 23 (carta de interpelação do réu para celebração do negócio) permitem, então, a fixação dos factos provados de A a K nos exatos termos em que foram redigidos”.
Ora, ouvidas as declarações prestadas pelas testemunhas, e as declarações prestadas pelo Autor e pelo Réu, as quais naturalmente não podem ser analisadas isoladamente, mas na conjugação entre si e no confronto com a restante prova, não podemos deixar de concordar com a apreciação e análise critica efectuada pelo tribunal a quo.
Saliente-se, de qualquer forma, que a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância.
O que não é manifestamente o caso.
Como salienta Ana Luísa Geraldes (Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, página 609) “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.
Não podemos aqui esquecer a aplicação dos princípios gerais da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, sendo certo que o juiz da 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação, e, designadamente, surpreender no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação.
Conforme decorre do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 607º n.º 5 do Código de Processo Civil o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”; segundo este princípio “o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas” (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, página 384).
A prova idónea a alcançar um tal resultado, é assim a prova suficiente, que é aquela que conduz a um juízo de certeza; a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta, (…) A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Actualizada, página 435 a 436).
Está por isso em causa uma certeza jurídica e não uma certeza material, absoluta.
É certo que a “livre apreciação da prova” não se traduz obviamente numa “arbitrária apreciação da prova”, pelo que se impõe ao juiz que identifique os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção, bem como a “menção das razões justificativas da opção pelo Julgador entre os meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto” (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Obra Cit. página 655).
Tal como referimos a decisão recorrida analisa de forma crítica e exaustiva os meios de prova e especifica os fundamentos decisivos para a formação da mesma e justificando os motivos da sua decisão.
Se é certo que o tribunal a quo valorou e atribuiu credibilidade às declarações prestadas pelo Autor, e, diga-se, nada o impedia de o fazer, a verdade é que as mesmas se não apresentam desacompanhadas de qualquer outro meio de prova.
Se estando em causa declarações das próprias partes, in casu, do próprio Autor, e dado o óbvio interesse deste no desfecho da ação, as mesmas devem sempre ser apreciadas com cautela, devendo ser efetivamente acompanhadas por outros elementos probatórios, a verdade é que tal ocorre no caso concreto.
Desde logo resulta do original do contrato promessa datado de 1996 e da cópia do contrato promessa datado de 1995 o reconhecimento por semelhança das assinaturas do Autor e do falecido A. R..
E desse reconhecimento há registo efetivo no Cartório Notarial: a fls. 138 dos autos consta o ofício do Cartório Notarial em …, do Notário T. R., remetendo cópias (fls. 139 e 140) dos registos internos existentes no Cartório dos referidos atos de reconhecimento realizados em 12/06/1995 e 05/08/1996.
Da prova produzida nos autos não resulta qualquer mínimo indicio que permita questionar esse reconhecimento por semelhança ou, como refere o tribunal a quoNenhuma – rigorosamente nenhuma – da demais prova produzida foi apta a afastar a autenticidade dos reconhecimentos notariais das assinaturas do falecido (e do autor) por semelhança com a do seu bilhete de identidade”, não sendo do mero facto do reconhecimento ser por semelhança que se pode aventar a possibilidade do funcionário do Cartório Notarial não ter sido cuidadoso nesse reconhecimento, sendo certo que, à data dos factos, tal forma de reconhecimento era não só perfeitamente admissível, como até usual.
Aliás, os reconhecimentos foram efectuados com mais de um ano de diferença e por dois funcionários distintos, conforme resulta dos referidos reconhecimentos: o de 1995 pelo escriturário superior F. J., e o de 1996 por uma funcionária, a Ajudante M. P. (cfr. os referidos documentos juntos aos autos).
Tal lapso temporal torna ainda por si só inverosímil a tese dos Réus ao insinuarem que o Autor se teria apoderado do bilhete de identidade do falecido, aliás da carteira e documentação, para obter o reconhecimento notarial por semelhança da assinatura, que teria forjado ou mandado forjar, do falecido A. R., ao aventarem que tal carteira e documentação teria andado desaparecida em março ou abril de 1995 e só voltado a aparecer cerca de ano e meio mais tarde.
Tal tese não encontrou qualquer apoio na prova produzida pois que as testemunhas arroladas pelo Réu se limitaram afinal a invocar rumores de “ouvir dizer” e “ouvir falar”, tendo o Réu afirmado que o falecido teria comentado tal facto com várias pessoas, o que, para além do mais, e tal como se salienta na sentença recorrida, seria pouco condizente com o perfil psicológico que todos traçaram do falecido: uma pessoa austera e desconfiada.
De todo o modo, ainda que se pudesse ter como certo o episódio relatado de desaparecimento da carteira e documentação, tal episódio não foi sequer situado temporalmente e ninguém estabeleceu qualquer relação com o Autor.
Por outro lado, o facto da prova pericial realizada quanto à assinatura aposta no documento datado de 1996 se ter revelado inconclusiva em nada obsta a que o Autor possa cumprir o seu ónus pois, como é óbvio, a prova da autenticidade não tem de ser feita exclusivamente por prova pericial, em particular quando esta se mostra, como ocorre no caso concreto, inconclusiva e tal inconclusividade decorre das próprias características da assinatura pois, como consta do relatório da perícia, este tipo de escrita “constituída por traços incaracterísticos e despersonalizados, não permite fazer um estudo dos hábitos gráficos, de modo a observar particularidades identificativas do seu autor” e dadas tais limitações “sejam quais forem os elementos de comparação que possam vir a ser remetidos dificilmente permitirão obter resultados conclusivos”.
Daqui decorre ainda que, caso tivesse sido junto aos autos o original do documento datado de 1995, também o resultado pericial se apresentaria inconclusivo uma vez que os peritos se confrontariam com as mesmas limitações decorrentes das características da assinatura, o que se conclui da comparação das assinaturas apostas nos dois documentos.
De todo o modo, comparadas tais assinaturas com a que se mostra aposta pelo falecido A. R. no testamento (fls. 69 e seguintes) não podemos deixar de concluir como o Tribunal a quo que “a enorme similitude entre o traçado das assinaturas do falecido levadas aos documentos que acompanham a petição inicial e o traçado da assinatura constante do seu testamento (comparem-se os autógrafos de fls. 59, 61, 71 e 110-v.º), permitem, com elevadíssimo grau de indiciação (ainda que não com elevadíssimo grau de certeza – cfr. relatório pericial inconclusivo de fls. 184 e 185), concluir pela efetiva aposição das assinaturas nos documentos aqui em apreço pelo falecido”.
Acresce ainda que não pode afirmar-se que o Autor se recusou em juntar aos autos o original do documento e nem se vislumbra sequer que tivesse algum interesse em fazê-lo, ou ainda porque juntaria o original do documento datado de 1996 e não o de 1995, caso o tivesse em seu poder ou conhecesse o seu paradeiro.
Queremos com isto dizer que não vemos qualquer justificação para aplicar aqui o regime jurídico previsto no n.º 2 do artigo 417º do Código de Processo Civil conforme pretendem os Recorrentes.
Nos termos previstos no artigo 430º do Código de Processo Civil “Se o notificado não apresentar o documento, é-lhe aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 417º”.
O artigo 417º do Código de Processo Civil prevê o dever de colaboração de todas as pessoas, designadamente das partes na causa, para a descoberta da verdade e ainda, no seu n.º 2 que se quem recusar a colaboração for parte o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344º do Código Civil.
No n.º 2 do artigo 344º do Código Civil está prevista a inversão do ónus da prova quando a parte contrária tiver tornado culposamente impossível a prova ao onerado.
Importa referir que para que possa ocorrer a inversão do ónus da prova por força da não junção de documentos não basta que a parte recuse ou não justifique a falta de colaboração; é necessária a verificação cumulativa dos requisitos previstos no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil: que a não junção da documentação determinada tenha tornado impossível a prova ao onerado e que essa impossibilidade decorra de um comportamento culposo da parte.
Conforme refere Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2001, página 409) “O comportamento do recusante pode, mais drasticamente, determinar, quando verificado o condicionalismo do artigo 344.º, n.º 2 CC, a inversão do ónus da prova. Tal acontece quando a recusa impossibilita a prova do facto a provar, a cargo da contraparte, por não ser possível consegui-la com outros meios de prova, já por a lei o impedir (…) já por concretamente não bastarem para tanto os outros meios produzidos”.
Assim, para que a inversão do ónus da prova possa ocorrer é necessário concluir que da não junção dos documentos em causa resulta a impossibilidade da prova da parte onerada com tal ónus e que a não junção resulte de comportamento culposo da outra parte; e ainda que a parte ao ser notificada para a junção dos documentos o seja com a cominação de que a não junção, a falta de colaboração, a fará sujeitar-se à inversão do ónus da prova.

No caso concreto, contudo, não só não se pode falar em recusa por parte do Autor, como nunca estaria em causa uma situação de inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344º do Código Civil pois como já referimos, e assim o sustentam também os Recorrentes, é já sobre o próprio Autor que incide tal ónus de prova.
Relativamente ao ponto C) dos factos provados referem ainda os Recorrentes a existência de contradição entre o teor dos contratos promessa e o seu teor uma vez que no contrato se refere que o preço foi pago na data da sua celebração.
No ponto C) consta que na data do reconhecimento notarial das assinaturas dos outorgantes apostas no documento referido em A, em 12 de junho de 1995, o autor pagou ao promitente vendedor o preço de 500.000$00; do contrato-promessa consta que o primeiro outorgante, o falecido A. R., declarou “ter recebido nesta data” do Autor a totalidade do preço acordado, estando o contrato datado de 29 de maio de 1995. No entanto, conjugando com as declarações prestadas pelo Autor resulta que o preço foi pago ao falecido no Cartório Notarial na data em que aí foram reconhecer as assinaturas. Não vemos, por isso, que deva alterar-se a redacção do ponto C), sendo certo que para a decisão a proferir não assume em concreto qualquer relevo se o preço foi pago em 29 de maio ou em 12 de junho.
De todo o exposto decorre não resultar fundamento para alterar a decisão recorrida quanto à matéria dada como provada e não provada, sendo certo que, conforme já referimos, é o tribunal de 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, que está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação.
Assim, por nenhuma censura merecer a decisão a esse respeito proferida mantêm-se inalterada a matéria de facto fixada pela 1ª instância.
***
3.3. Reapreciação da decisão de mérito da acção

Mantendo-se inalterado o quadro factual julgado provado pelo Tribunal a quo, importa agora apreciar se deve manter-se a decisão jurídica da causa, analisando os demais argumentos invocados no recurso.
Conforme afirmam os Recorrentes a procedência do recurso da matéria de facto determinaria a improcedência do pedido uma vez que não resultaria demonstrada a celebração dos contratos-promessa.
Sustentam contudo os Recorrentes que mesmo improcedendo a sua pretensão de ver alterada a matéria de facto julgada provada, mantendo-se inalterada a matéria de facto fixada pela 1ª Instância, ainda assim deve ser revogada a sentença recorrida por se não mostrar preenchido o pressuposto do incumprimento exigido pelo artigo 830º n.º 1 do Código Civil para aplicação da execução específica e inexistir mora da Ré mulher e ainda por não ter também aplicação o regime do sinal previsto no artigo 442º do Código Civil.
Pelo tribunal a quo foi afirmado que havendo incumprimento do contrato promessa o promitente fiel pode obter a execução específica do contrato através da emissão de sentença substitutiva da declaração negocial do promitente faltoso nos termos do artigo 830º n.º 1 do Código Civil, a qual tem como pressupostos o incumprimento, a falta de convenção em contrário e a compatibilidade com a natureza da obrigação assumida; entendeu que a prestação a cargo dos Réus é ainda possível e compatível com a natureza da obrigação contratualmente assumida e julgou verificados todos os pressupostos de que depende a execução específica.
Os Recorrentes questionam a própria existência de incumprimento por não resultar demonstrado que o Autor procedeu à marcação da escritura e notificou os Réus da data da mesma e nem que estes se tenham recusado em outorgar a escritura ou não tenham comparecido na data marcada para a sua realização.

Vejamos então se lhes assiste razão.

No artigo 410º n.º 1 do Código Civil, respeitante ao contrato-promessa, prevê-se que “1 - À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa. 2 - Porém, a promessa respeitante à celebração de contrato para o qual a lei exija documento, quer autêntico, quer particular, só vale se constar de documento assinado pela parte que se vincula ou por ambas, consoante o contrato-promessa seja unilateral ou bilateral. 3 - No caso de promessa respeitante à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele, já construído, em construção ou a construir, o documento referido no número anterior deve conter o reconhecimento presencial das assinaturas do promitente ou promitentes e a certificação, pela entidade que realiza aquele reconhecimento, da existência da respectiva licença de utilização ou de construção; contudo, o contraente que promete transmitir ou constituir o direito só pode invocar a omissão destes requisitos quando a mesma tenha sido culposamente causada pela outra parte.”
O contrato-promessa “é a convenção pela qual, ambas as partes ou apenas uma delas, se obrigam, dentro de certo prazo, ou verificados certos pressupostos, a celebrar determinado contrato” (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 6.ª edição, página 301); segundo Galvão Telles (Direito das Obrigações, 6.ª Edição, página 83) trata-se de um pactum de contrahendo, sendo bilateral se ambas as partes se obrigam a celebrar o contrato definitivo e unilateral se apenas uma das partes se vincula.
Para se poder falar em incumprimento importa, por isso, que o obrigado não cumpra a prestação a que se obrigou.
Ora, o devedor cumpre a obrigação quando realiza pontualmente a prestação a que está vinculado (artigos 406º n.º 1 e 762º n.º 1, ambos do Código Civil), sendo certo que nesse cumprimento, assim como no exercício do direito correspondente, deve o mesmo proceder de boa-fé (artigo 762º n.º 2 do mesmo diploma); não cumprindo a prestação incorre o devedor em incumprimento.
Em caso de incumprimento importa ainda distinguir consoante a prestação se atrasa ou se torna definitivamente impossível; isto é, os casos em que se verifica apenas mora do incumprimento definitivo.
Na primeira hipótese, chegado o vencimento o devedor não cumpre mas a prestação poderá ainda ser realizada com interesse para o credor, podendo vir a executá-la mais tarde (a prestação continua a ser materialmente possível e o credor continua a ter interesse nela); na segunda hipótese, a prestação inviabiliza-se de vez, tornando-se, em definitivo, irrealizável. Ocorre esta última hipótese quando a prestação, sendo inicialmente realizável, se impossibilita subsequentemente, em termos definitivos, ficando o devedor impedido de cumprir a prestação, bem como nos casos em que a prestação, em consequência do retardamento, deixa de ter utilidade para o credor (neste sentido, Galvão Telles, Direito das Obrigações, ob. cit, páginas 293 e 294 e 319).
De acordo com o disposto no artigo 801º n.ºs 1 e 2 do Código Civil tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor e tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor pode resolver o contrato.
Pode assim afirmar-se que o incumprimento definitivo abrange os casos de impossibilidade da prestação, quer quando esta se torna absolutamente inviável, quando a probabilidade da sua realização se torna extremamente improvável (por não depender exclusivamente da vontade do devedor) ou mesmo quando o devedor manifesta perante o credor o propósito de não cumprir.
São três as situações que podemos mencionar para o carácter definitivo do incumprimento: i) se, em consequência da mora, o credor perder interesse na prestação; ii) se, estando o devedor em mora, o credor lhe fixar um prazo razoável para cumprir (interpelação admonitória) e apesar disso aquele não realizar a prestação em falta; iii) se o devedor declarar ao credor que não irá cumprir o contrato.
O retardamento na realização de uma prestação não equivale ao incumprimento definitivo do contrato, originando antes a mora. “O devedor incorre em mora, quando por causa que lhe seja imputável, não realiza a prestação no tempo devido, continuando a prestação a ser ainda possível” (Antunes Varela, Ob. Cit. página 114), estabelecendo a este propósito o artigo 805º nº 2 do Código Civil que “o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação ainda possível, não foi efectuada no tempo devido”.
Ora, o credor, em face da mora do devedor não pode resolver o contrato; a lei faculta-lhe a possibilidade de exigir o cumprimento da obrigação, designadamente através da execução específica, podendo ainda transformar a mora em incumprimento definitivo.
Devemos pois concluir que o não cumprimento de qualquer obrigação é susceptível de desencadear as situações de incumprimento definitivo ou de mora, e em face do incumprimento do contrato-promessa, a lei abre dois caminhos ao contraente não faltoso: a execução específica (artigo 830º do Código Civil), no caso de mora e a resolução do contrato (artigo 432º do Código Civil), havendo incumprimento definitivo (Cfr. entre outros o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/1997, CJSTJ, Ano V, T. III-1997, página 164 e os Acórdãos da Relação de Guimarães de 11/07/2013, Relatora Desembargadora Purificação Carvalho, e de 15/10/2020, Relator Desembargador Alcides Rodrigues, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
A execução específica acha-se prevista no artigo 830º do Código Civil que dispõe no seu n.º 1 que “Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida”.
Através da execução específica o Tribunal vai emitir uma sentença que supra a declaração negocial do faltoso, assim vendo o credor, que não viu cumprida a prestação a que tinha direito por incumprimento do devedor, satisfeito o seu interesse.
“A execução específica significa tão somente que é possível obter-se uma sentença que valha pelo contrato prometido; uma sentença (constitutiva) que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso: uma sentença especialíssima que faz as vezes da declaração negocial do promitente que falta, sentença, que possuía eficácia que teria, por exemplo a escritura pública que se não fez” (Pereira Delgado, Do Contrato Promessa, 3ª Edição página 310).
Para se obter uma sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, é necessária a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: que não seja incompatível com a substituição da declaração negocial a natureza da obrigação assumida pela promessa, que inexista convenção em contrário e o incumprimento do contrato.
A execução específica, que constitui na presente acção o pedido principal formulado pelo Autor, tem pois de ter como fundamento o incumprimento, bastando-se com a mora do devedor.
Na verdade, não pode haver lugar à execução específica se inexistir incumprimento do devedor; daí que, desde logo, tenha que existir incumprimento do devedor, ainda que exprima mora.
No caso dos autos decorre apenas dos factos provados que o Autor, por carta datada de 30 de novembro de 2004, e por intermédio do solicitador M. S., interpelou o réu no sentido de procederem à escritura do contrato prometido.
Da referida carta (a fls. 66 dos autos) consta apenas que o Autor pretende realizar a escritura de compra e venda e pretendia que o Réu informasse se podia tratar dos documentos e proceder à marcação da escritura, e em caso afirmativo que fornecesse fotocópia do bilhete de identidade e números de contribuinte dele e da esposa.
Não resulta efectivamente demonstrado nos autos que o Autor procedeu à marcação da escritura e notificou o Réu da data e local da outorga da mesma e nem que este se recusou a outorgar a escritura ou não compareceu na data marcada; e relativamente à Ré mulher inexiste sequer qualquer facto provado do qual resulte que o Autor procedeu à sua interpelação. De facto, a referida carta encontra-se dirigida apenas ao Réu marido, e da mesma consta até que este foi instituído pelo falecido como seu único e universal herdeiro.
No entanto, conforme consta do testamento junto aos autos (fls. 68 e seguintes) o falecido instituiu seus únicos e universais herdeiros o Réu J. R. e mulher M. R., conforme consta do ponto I) dos factos provados.
Por outro lado, consta do ponto F) dos factos provados que “Declararam ainda os outorgantes em ambos os documentos que: a) “a escritura pública de compra e venda será realizada logo que o [o autor] o exija…”; e que “A Escritura Publica do contrato definitivo de compra e venda, será celebrado logo que o [o autor] o entenda…”.
No caso dos autos as escrituras de compra e venda seriam realizadas assim que o Autor o exigisse e o entendesse; temos pois de concluir que competia ao Autor marcar a data da escritura pública, não tendo sido estipulado qualquer prazo para esse efeito.
Assim, uma vez que o Autor apenas alega ter “para o efeito avisado o promitente vendedor da vontade de fazer a Escritura Pública de Compra e Venda” (cfr. artigo 20 da petição inicial) conforme carta enviada ao Réu e datada de 30 de novembro de 2004, não poderá este vir a considerar-se estar em mora.
Mas, ainda que se pudesse entender que a referida carta enviada ao Réu seria interpelação suficiente para se poder considerar ter o mesmo incorrido em mora, o que não entendemos, sempre seria absolutamente inequívoco em face da alegação do Autor e da matéria de facto provada (cfr. ponto G dos factos provados) que o Autor não interpelou de qualquer modo a Ré pelo que nunca esta estaria em mora, inexistindo o necessário incumprimento para proceder a execução especifica.
Assiste, por isso, razão aos Réus quando sustentam que não se encontrando os Réus em mora não poderia aplicar-se o regime da execução específica, procedendo nesta parte o recurso o que determina a revogação da sentença recorrida e a consequente absolvição dos Réus do pedido principal formulado pelo Autor.
A título subsidiário pediu ainda o Autor a condenação dos Réus a reconhecerem o direito de propriedade do Autor por usucapião e a entregarem ao Autor os Prédios livres e desocupados de pessoas e bens e sem quaisquer ónus ou encargos; e ainda, se assim não se entender a condenação dos Réus a pagar ao Autor a quantia igual ao dobro do sinal, ou seja a quantia de €10.000.00.
Na sentença recorrida foi considerada dispensada a apreciação dos pedidos deduzidos a título subsidiário em face da procedência do pedido principal.
Em face da procedência da apelação e da revogação da sentença recorrida importa agora apreciar os pedidos deduzidos pelo Autor a título subsidiário uma vez que nada obsta ao seu conhecimento e constam dos autos os elementos necessários a tal conhecimento.
Vejamos.
Quanto à questão da aquisição do direito de propriedade por usucapião.
No primeiro pedido subsidiário deduzido pelo Autor pretende seja reconhecido o seu direito de propriedade sobre os imóveis com base na usucapião.
O Autor sustenta na petição inicial ter adquirido os prédios por usucapião uma vez que alega ter entrado na posse imediata dos prédios e estar na sua posse, por si e antecessores, há mais de 5, 10, 15 e 20 anos, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, de modo continuo, público e pacífico.
Como é consabido, a regra geral é no sentido de que a posição do promitente-comprador tradiciário se configura, quanto à coisa tradiciada, em termos de posse em nome alheio até à celebração do contrato prometido.
Conforme refere Antunes Varela (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 124º, página 347; v. e ainda Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado Volume III, 2.ª Edição, página 6) a tradição da coisa, móvel ou imóvel, realizada a favor do promitente-comprador, no caso da promessa de compra e venda sinalizada, não investe o accipiens na qualidade de possuidor da coisa... E os poderes que o promitente-comprador exerce de facto sobre a coisa, sabendo que ela ainda não foi comprada, não são os correspondentes ao direito do proprietário adquirente, mas os correspondentes ao direito de crédito do promitente-adquirente perante o promitente-alienante ou transmitente.
Assim, e em regra, o promitente-comprador que obteve a traditio apenas frui um direito de gozo que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste, sendo, nesta perspectiva, um detentor precário (cfr. artigo 1253.º do Código Civil) já que não age com animus possidendi, mas apenas com corpus possessório (cfr. artigo 1251º do Código Civil).
Assim, segundo aquela regra geral e em tese, não poderia desde logo o Autor, por mero efeito da outorga dos contratos-promessa, intitular-se verdadeiro possuidor pois a simples outorga daqueles apenas o legitimaria como mero detentor.
Na prática, porém, poderemos dizer, acompanhando Pires de Lima e Antunes Varela (ob. cit. página 6 a 7) que “são concebíveis situações em que a situação jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse (caso, por exemplo, de promessa de compra e venda com traditio, pagamento integral do preço e da sisa, não tendo as partes o propósito de celebrar a escritura definitiva)”.
Desta forma, e excepcionalmente, atenta a especificidade das circunstâncias concretas que rodeiam a tradição da coisa, pode a posição do promitente-comprador, dela derivada, ser juridicamente qualificável de posse em nome próprio.
A lei regula especialmente os efeitos da tradição da coisa a que se reporta o contrato prometido, em conexão com o regime do sinal: se o incumprimento for devido ao promitente que não constitui o sinal e houver tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, pode o promitente que o constituiu exigir do primeiro o valor dela (artigo 442º, nº 2, do Código Civil); por outro lado, tem o promitente-comprador que obteve a tradição da coisa objecto do contrato prometido direito de retenção sobre ela para garantia do direito de crédito decorrente do incumprimento pelo promitente-vendedor (artigo 755º, nº 1, alínea f), do Código Civil).
Não obstante a tutela do promitente-comprador, a regra é, conforme já referido, a da que a simples utilização da coisa entregue pelo promitente-vendedor ao promitente-comprador é insusceptível de originar uma situação possessória propriamente dita, mas sim de estarmos perante uma posse deste em nome daquele.
Todavia nos casos em que o promitente-comprador toma conta da coisa, como se fosse sua, praticando em relação a ela actos materiais ou jurídicos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, sem oposição do promitente-vendedor, com a sua colaboração, à margem da sua mera tolerância, será justificada a dúvida sobre se tal situação é ou não de posse verdadeira e própria.
Deverá então atender-se, para poder responder à questão de saber se, por virtude da traditio da coisa, a posição jurídica do promitente-comprador tradiciário é a de mero possuidor em nome do tradens ou de possuidor em nome próprio, às circunstâncias que envolveram o acto de tradição e a sua execução por ambas as partes.
Assim, deverão averiguar-se as circunstâncias que envolveram o acto de tradição, quando ele ocorreu, mas também o comportamento das partes na execução ao longo do tempo do tempo do acordo que esteve na origem da situação, seja o do promitente-vendedor, seja o do promitente-comprador. É que, para determinação da intenção e vontade das partes, face ao disposto na alínea b) do artigo 1263º do Código Civil, não relevam apenas as circunstâncias que acompanham a tradição da coisa, mas também os actos materiais que posteriormente a ela venham a ser praticados por uma e outra.
Nestes casos, o promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse (Antunes Varela e Pires de Lima, ob. cit. página 7). Também a este propósito se pronunciou Vaz Serra, fazendo notar que “o promitente-comprador, que toma conta do prédio e nele pratica actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, sem que o faça por mera tolerância do promitente-vendedor, não procede com intenção de agir em nome do promitente-vendedor, mas com a de agir em seu próprio nome, … passando a conduzir-se como se a coisa fosse sua, …julga-se já proprietário da coisa, embora não a tenha comprado, pois considera segura a futura conclusão do contrato de compra e venda prometido, donde resulta que, ao praticar na coisa, actos possessórios, o faz com animus de exercer em seu nome o direito de propriedade” (Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 109º, páginas 347 e 348).
Seguindo esta posição, e admitindo que a posse emergente da traditio pode ser qualificada como posse em nome próprio, importaria determinar se a posse do Autor assumiu essa natureza.
No caso concreto, no entanto, e face à matéria de facto não releva tal indagação porquanto o Autor não logrou demonstrar, como era de seu ónus (cfr. artigo 342º do Código Civil) que está na posse dos prédios há mais de 5, 10, 15, 20 anos, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja, de modo contínuo, público e pacífico, sem a esconder de quem pudesse ter interesse em contrariá-la e pagando os respetivos impostos e colhendo dos mesmos os respetivos frutos (pontos 1 a 5 dos factos não provados).
E, não estando demonstrado estar o Autor na posse dos prédios não se chega sequer a colocar a questão de a posse do Autor ser ou não em nome próprio.
É, por isso, também manifesta a improcedência do primeiro dos pedidos deduzidos a título subsidiário pelo Autor.
Quanto à questão da restituição do sinal em dobro
O Autor pediu ainda a título subsidiário a condenação dos Réus a pagar a quantia igual ao dobro do sinal.
O regime geral previsto para a falta de cumprimento e mora imputáveis ao devedor, designadamente dos artigos 798º, 801º, 804º e 808º do Código Civil, é também aplicável ao contrato-promessa de compra e venda, tal como decorre de forma genérica do preceituado no n.º 1 do artigo 410º do Código Civil; mas, relativamente ao não cumprimento do contrato promessa há ainda a considerar a aplicação do regime específico decorrente do disposto no artigo 830º já referido, quanto à execução específica, e do artigo 442º, quando tenha havido lugar à constituição de sinal (convencionado ou presumido – artigo 440º e 441º do Código Civil).
No caso de não cumprimento imputável a qualquer dos contraentes os efeitos do sinal são os regulados no artigo 442º n.º 2 onde se dispõe que “Se quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou, ou, se houve tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, o seu valor, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, determinado objectivamente, à data do não cumprimento da promessa, com dedução do preço convencionado, devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago”.
Assim, no caso de não cumprimento imputável a quem constituiu o sinal (tradens), o outro promitente (accipiens) tem direito a fazer seu o sinal; se, ao invés, o não cumprimento for devido a quem não constituiu o sinal, o promitente não faltoso tem o direito a exigir o dobro do que prestou ou, no caso de ter havido tradição da coisa objeto do contrato prometido, o valor que a coisa tiver, à data do não cumprimento da promessa, ou o do direito a transmitir ou a constituir sobre ela, com dedução do preço convencionado, mas devendo ainda ser-lhe restituído o sinal e a parte do preço que tenha pago.
Tanto quanto nos é dado conhecer cremos ser entendimento generalizado, na doutrina e na jurisprudência (Cfr. entre outros, Calvão da Silva, Sinal e Contrato-Promessa, 14ª Edição, 2017, página 98 a 103 e Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, página 297; Antunes Varela, Sobre o Contrato-Promessa, página 70 e RLJ, ano 119, página 216; Almeida Costa, Contrato-Promessa, Uma síntese do Regime Actual, separata da ROA, ano 50, I, página 54; Januário Gomes, Tema de Contrato-Promessa, 1990, AAFDL, páginas 55 a 60; Brandão Proença, Do incumprimento do contrato-promessa bilateral, 1996, páginas 119 a 126, Ana Prata, O contrato-promessa e o seu regime civil, páginas 780 a 782 e Código Civil Anotado (Ana Prata Coord.), volume I, 2017, página 567; e os acórdãos, entre outros, do Supremo Tribunal de Justiça de 22/06/2010, Relator Conselheiro Fonseca Ramos, de 11/02/2015, Relator Conselheiro Gabriel Catarino, de 19/05/2016, Relator Conselheiro Lopes do Rego, de 16/06/2016, Relator Conselheiro Pires da Rosa, de 13/10/2016 e de 02/02/2017, Relatora Conselheira Maria da Graça Trigo e de 30/11/2017, Relatora Conselheira Fernanda Isabel Pereira, todos disponíveis in www.dgsi.pt) que, a não ser que da interpretação da vontade negocial resulte diversamente, o regime legal do sinal é inaplicável em caso de simples atraso no cumprimento.
Ou seja, só o incumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa poderá dar lugar à aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 442° do Código Civil (e à resolução do contrato), e já não a simples mora; e não haverá incumprimento, lato sensu, enquanto a mora não for convertida em incumprimento definitivo, podendo o credor converter a mora através da interpelação admonitória.
No caso dos autos, e como já vimos a propósito da apreciação do pedido formulado a título principal, o Autor não procedeu à marcação da escritura e relativamente à Ré não procedeu sequer a qualquer interpelação; os Réus nem sequer estão em mora, não se verificando uma situação de incumprimento, não sendo sequer de colocar a questão da conversão da mora em incumprimento definitivo.
Por outro lado, não obstante ser comummente aceite que no caso de recusa inequívoca do devedor em cumprir a sua prestação se mostra configurada uma situação de incumprimento, sem necessidade de interpelação admonitória do credor, não entendemos que a posição dos Réus na presente acção signifique recusa de cumprimento para esse efeito.
Não tem, por isso, aplicação o regime previsto no artigo 442º n.º 2 do Código Civil, improcedendo também este pedido subsidiário.
Em face de todo o exposto, procede pois a apelação, sendo de revogar a decisão recorrida, absolvendo-se os Réus de todos os pedidos formulados pelo Autor, quer a título principal quer a título subsidiário.
As custas são da responsabilidade do Autor (artigo 527º do Código Civil).
***
SUMÁRIO (artigo 663º n.º 7 do Código do Processo Civil):

I – Impende sobre a parte que apresenta o contrato-promessa o ónus de provar a autenticidade do contrato e da autoria das assinaturas nele apostas se a parte contrária tiver impugnado a sua autenticidade (cfr. artigo 374º n.º 2 do Código Civil), podendo essa prova ser feita através de qualquer meio de prova e não apenas através de prova pericial.
II – O reconhecimento por semelhança de assinaturas, salvo disposição legal em contrário, vale como mero juízo pericial (cfr. artigo 375º n.º 3 do Código Civil) e, por isso, a sua força probatória é fixada livremente pelo tribunal (cfr. artigo 389º do Código Civil).
III – Salvo se da interpretação da vontade negocial resultar diversamente, o regime legal do sinal é inaplicável em caso de simples atraso no cumprimento.
IV – Só o incumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa, e já não a simples mora, poderá dar lugar à aplicação do regime previsto no n.º 2 do artigo 442° do Código Civil (e à resolução do contrato), não havendo incumprimento, lato sensu, enquanto a mora não for convertida em incumprimento definitivo.
V – A mora do devedor é pressuposto da execução específica do contrato-promessa.
VI – Não se mostrando efectuada qualquer interpelação de cumprimento a um dos herdeiros do falecido promitente vendedor inexiste mora, não se verificando o incumprimento por parte dos herdeiros suscetível de fundamentar a execução específica.
***
IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e absolvendo os Réus de todos os pedidos formulados pelo Autor na presente ação, quer a título principal quer a título subsidiário.
Custas do recurso e da ação pelo Autor.
Guimarães, 17 de dezembro de 2020
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Margarida Almeida Fernandes (1ª Adjunta)
Margarida Sousa (2ª Adjunta)