UNIÃO DE FACTO
RECONHECIMENTO JUDICIAL
ESTADO CIVIL
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário

I – Para a determinação da competência material do Tribunal importa relevar a natureza da relação jurídica material apresentada em juízo, a ser aferida em função dos termos em que a acção se encontra proposta, ou seja, pela consideração dos elementos subjectivos (identidade das partes) e dos elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se reclama a tutela judiciária, o acto ou o facto de onde terá dimanado esse direito e a qualificação dos bens em disputa).
II – A expressão estado civil constante da alínea g) do n.º1 do artigo 122º da Lei da Organização do Sistema Judiciário deve ser considerada por referência ao seu significado na linguagem corrente, aludindo a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, nela se abrangendo toda e qualquer acção que se relacione com essas situações.
III – A união de facto assume actualmente uma aceitação social como entidade familiar, que não é colocada em crise e encontra justificação na protecção da família, enquanto realidade emergente de uma “efectividade de laços interpessoais”, conforme a interpretação e densificação do conceito efectuada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a propósito do artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Texto Integral

Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A  e B intentaram junto do Juízo de Família e Menores de Mafra, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, acção declarativa com processo comum contra o ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público, nos termos do artigo 24.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], pedindo o reconhecimento da união de facto alegadamente existente entre ambos por período superior a três anos, nos termos e para os efeitos do artigo 3.º, n.º 3 da Lei n.º 37/81, de 3 de Outubro (Lei da Nacionalidade)[2] e art. 14º, n.º 2 do DL n.º 237-A/2006, de 14 de Dezembro[3] (Regulamento da Nacionalidade Portuguesa).
Citado o réu Estado Português, em 2 de Setembro de 2020 (cf. Ref. Elect. 126447598) e decorrido o prazo legal, não foi deduzida contestação.
Em 14 de Outubro de 2020 foi proferida a seguinte decisão:
“A, portuguesa, solteira, Contribuinte Fiscal, n.º 000 000 000, Cartão Cidadão n.º ..., válido até 30/08/2024, com morada na Rua da ... n.º , Freguesia de Ericeira, Concelho de Mafra Distrito de Lisboa, Portugal, Código Postal 2655-000,
E
B, brasileiro, solteiro, Contribuinte Fiscal n.º 000 000 000, Título de Residência Temporário n.º ..., válido até 01/10/2024, com morada na Rua da ... n.º …, Freguesia de Ericeira, Concelho de Mafra, Distrito de Lisboa, Portugal, Código Postal 2655-000,
Intentam a presente ACÇÃO DECLARATIVA PARA DECLARAÇÃO JUDICIAL DE UNIÃO DE FACTO.
Esta ação coloca um conjunto de problemas, e um deles é desde logo a ausência de R.
Os AA. intentam uma ação contenciosa, declarativa comum para declaração de união de facto no presente juízo de família e menores, e nos termos do artigo 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013 de 26-8, os juízos de família menores, como juízos de competência especializada, têm apenas competência nas áreas tipificadas ma lei, e quanto às uniões de facto, apenas quando estamos perante “processos de jurisdição voluntária relativo a situações de união de facto ou de economia comum” (cfr. al b), e não em situações de ações declarativas comuns, como é a dos autos.
Logicamente limitando a intervenção nas uniões de fato aos processos de jurisdição voluntária, fica excluída a norma geral citada, al. g) do artigo 122.º da LOSJ, na petição inicial, de “Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”, pois norma especial afasta norma geral, isto é, a interpretação dada na petição inicial está afastada pela norma especial supra citada.
Sendo a natureza do presente processo contenciosa, de mera declaração, tem sim competência material os juízos cíveis, atento o valor da causa (30.000$01, cfr. artigo 44.º da LOSJ e artigo 303.º-1 do Código de Processo Civil), que no caso é a instância local cível - cfr. artigo 130.º e 117.º-1-a), a contrário, da LOSJ-, pelo que estamos perante uma questão de incompetência em razão da matéria, incompetência absoluta – cfr. artigos 65.º e 96.º do Código de Processo Civil.
A incompetência absoluta é de conhecimento oficioso e pode conhecer-se a qualquer altura – cfr. artigo 98.º do Código de Processo Civil.
Por tudo o exposto, declara-se este juízo especializado de família e menores incompetente em razão da matéria, indeferindo-se assim liminarmente a petição inicial – cfr. artigo 99.º do Código de Processo Civil.
Custas pelos AA.”
Inconformados com o assim decidido, os autores interpuseram o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
A) – O presente recurso visa obter revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo de indeferimento da petição inicial, com o fundamento de se tratar de uma ação de incompetência absoluta em razão da matéria.
B) A ação declarativa de Reconhecimento de União de Facto, apresentada pelos RR. Foi indeferida com base, ainda, na interpretação da LOSJ, entendendo que as uniões de facto, devem ser julgadas nos Tribunais de Família e Menores somente quando se trata de processos de jurisdição voluntária, e não em situações de ações declarativas comuns, como é o caso em questão.
C) No entanto, e salvo devido respeito – que é muito – o Ilmo. Juiz não fez um correto julgamento ao declarar em sentença, o indeferimento da petição inicial.
D) Em primeiro lugar, a ação declarativa de Reconhecimento de União de Facto, objeto de recurso, teve como Réu o Estado português, o qual foi devidamente citado, não tendo apresentado contestação.
E) Em segundo lugar, de acordo com a abundante jurisprudência supra citada, entendemos que a ação intentada com vista à obtenção do reconhecimento judicial da situação de união de facto, nos termos e para efeitos da Lei e do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, integra a previsão do artigo 122º, nº1, alínea g), da LOSJ.
F) Deve ser revogada a sentença do Ilmo. Juízo a quo que julgou improcedente a petição inicial pondo a termo o processo, com base na incompetência absoluta em razão da matéria.
Concluem pela procedência do recurso, com a consequente revogação da decisão de indeferimento liminar.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não podendo o tribunal ad quem pronunciar-se sobre questões novas - cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 97.
Assim, perante as conclusões da alegação dos apelantes, o objecto do presente recurso consiste na apreciação da questão atinente à competência absoluta do tribunal, em razão da matéria, para conhecimento do objecto da causa.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Com relevo para a apreciação do recurso relevam as ocorrências processuais acima descritas.
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3.2 APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Questão Prévia
Na motivação do presente recurso os apelantes suscitam a falta de cumprimento do princípio do contraditório, o que fazem referindo que não lhes foi dada a oportunidade de se pronunciarem sobre a questão da competência, pois o Ministério Público foi citado e não deduziu contestação.
Todavia, esta questão foi deixada cair pelos apelantes em sede de conclusões do recurso.
De todo o modo, sempre se dirá que na petição inicial os próprios autores introduziram nos autos a questão da competência material dos juízos de família e menores para a apreciação da matéria em discussão, o que fizeram nos seguintes termos:
“I - Da Competência do Tribunal
1 - De acordo com entendimento jurisprudencial pacífico dos Tribunais da Relação e da doutrina maioritária, a competência jurisdicional para a instauração da ação declarativa de Reconhecimento de União de Facto é dos juízos de família e menores da comarca da residência dos autores.
2 - Esclarece António José Fialho, “com excepção das questões relativas à casa de morada de família dos unidos de facto ou daqueles que vivem em economia comum (art. 3.º, al. a), e 4.º, da Lei n.º 6/2001 e art. 4.º, al. d), e 5.º da Lei n.º 7/2001 ), o exercício de outros direitos previstos nos diplomas que regulam as medidas de protecção da união de facto e da economia em comum não se integram em nenhum dos procedimentos de jurisdição voluntária previstos no Código de Processo Civil ou noutros diplomas estabelecendo procedimentos a que sejam aplicáveis as regras do processo civil previstas para os processos de jurisdição voluntária”.
3 - Deste modo, podemos dizer que a ação de reconhecimento de União de Facto é de natureza voluntária, conforme determina os art.º 60 e 65 do CPC, combinado com as alíneas (b) e (g) do nº 1.º do artº. 122º (Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ), sob a epígrafe de “Competência relativa ao estado civil das pessoas e família“, que:
1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:
a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;
c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;
d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;
e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966;
f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;
g) Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família”.
4 - Ademais, cabe o Tribunal de família que tem competência especializada nos termos dos art°s 81°, n° l, al. d), da Lei de Organização do Sistema Judiciário, Lei n° 62/2013, de 26 de agosto, que trata das referidas matérias elencadas no art.º 122 n.º1º da LOSJ.
5 – Aliás posição esta assumida nos Acórdãos:
- Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/12/2018, processo n.º 590/18.1T8CSC.L1-6, relatado por
António Santos. Disponível em:
>http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/567636b7cc93051980258363005bdff6?OpenDocument >
- Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra, de 08/outubro/2019, processo n.º2998/19.6T8.CBR.C1, relatado por Luís Cravo. Disponível em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/549b31162be97a35802584a900509d7a?
OpenDocument&Highlight=0,a%C3%A7%C3%A3o,declarativa,de,uniao,de,facto%20.”
Dispõe o n.º 3 do art. 3.º do CPC que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Como tal, tendo os próprios autores suscitado a questão da competência, para a reconhecer atribuída aos juízos de família, não obstante o réu Estado Português não tenha deduzido contestação, tal não afasta a posição que já haviam manifestado nos autos quanto à competência material do Juízo de Família e Menores de Mafra para o conhecimento do objecto da causa, pelo que quando foi proferida decisão que a apreciou já as partes tinham tido a oportunidade de sobre ela se pronunciar.
Questão distinta, contudo, é a natureza da decisão ora colocada em crise.
Com efeito, apresentada a petição inicial, teve lugar a citação do réu, o que sucedeu após despacho proferido em 2 de Setembro de 2020, que a ordenou nos seguintes termos: “Sendo uma ação declarativa comum, não está sujeita a liminar. Cite nos termos legais.” (cf. Ref. Elect. 126223742).
Não obstante isso, entendendo-se incompetente, em razão da matéria, para a apreciação da causa, o senhor juiz a quo proferiu uma decisão de indeferimento liminar da petição inicial, quando não o poderia fazer, porquanto decorre do estatuído no art. 590º, n.º 1 do CPC que a prolação de despacho de indeferimento liminar apenas é possível nas situações em que, por determinação legal ou do próprio juiz, a petição inicial ou o requerimento inicial é apresentado a despacho liminar, ou seja, antes da citação do demandado.
Assim, a pretender indeferir liminarmente a petição inicial com fundamento na incompetência material do tribunal deveria tê-lo feito quando os autos se lhe foram apresentados conclusos em 2 de Setembro de 2020.
Decorrido o prazo legal para a dedução da contestação sem que esta tivesse sido apresentada, competia ao senhor juiz a quo conhecer dessa excepção dilatória em sede de despacho saneador, sendo que, ou convocava uma audiência prévia, de acordo com o previsto nos art.ºs 591.º, n.º 1, b) e d) e 595.º, n.º 1, a) do CPC, ou dispensava aquela diligência, nos termos do art. 592.º, n.º 1, a) e b) do mesmo diploma legal, proferindo então despacho saneador. Aquilo que não podia ter feito era proferir decisão de indeferimento liminar da petição inicial após a citação do réu.
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Da competência material do Juízo de Família para o conhecimento da acção de reconhecimento de união de facto
Os tribunais judiciais no exercício da sua função jurisdicional de administração da justiça têm a sua competência regulada primacialmente pela Constituição da República Portuguesa, de acordo com a sua categoria e as suas instâncias, podendo estas ser especializadas por matérias – cf. art.ºs 202º, n.º 1, 209º, 210º e 211º da Constituição da República Portuguesa e ainda pela lei ordinária, sobremaneira a Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26-08[4] e pelo Código de Processo Civil, de onde decorre a repartição atenta a matéria, o valor, a hierarquia e o território (cf. art.ºs 64º, 66º, 67º a 69º e 70º a 95º do CPC), com primazia da LOSJ no caso de infracção das regras de competência material (cf. art. 65º do CPC).
Nos termos do artigo 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.
Nos termos do art. 64º do CPC são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Sobre a extensão e limites da competência estatui o art. 37.º da LOSJ nos seguintes termos:
“1 - Na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território.
2 - A lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais.”
Em consonância, art. 60.º do CPC dispõe:
“1. A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código.
2. Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território.”
Quanto à competência em razão da matéria, o regime regra está consagrado no art. 40.º da LOSJ:
“1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada.”
Este regime encontra correspondência na previsão dos art.ºs 64º e 65º do CPC.
A competência do tribunal em razão da matéria determina-se por referência à data da instauração da acção e afere-se em razão do pedido e da causa de pedir tal como se mostram estruturados na petição inicial – cf. art. 38º, n.º 1 da LOSJ.
“O requisito da competência resulta do facto de o poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais. Cada um dos órgãos judiciários, por virtude da divisão operada a diferentes níveis, fica apenas com o poder de julgar num círculo limitado de acções, e não em todas as acções que os interessados pretendem submeter à sua apreciação jurisdicional. A competência abstracta de um tribunal designa a fracção do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal. A competência concreta do tribunal, ou seja, o poder de o tribunal julgar determinada acção, significa que a acção cabe dentro da esfera de jurisdição genérica ou abstracta do tribunal.” – cf. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Actualizada, 1985, pág. 195.
A competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia entre si (de subordinação ou dependência).
A infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, como decorre do estatuído no art. 96º, a) do CPC.
Para que o tribunal possa decidir sobre o mérito ou fundo da questão, é necessário que seja competente. Daí que a competência, sobremaneira a competência em razão da matéria, constitua um pressuposto processual cuja apreciação deve necessariamente preceder a questão do mérito da causa.
Constitui também entendimento estabilizado que tal pressuposto se afere pela forma como o autor configura a acção, sendo esta definida pelo pedido, pela causa de pedir e pela natureza das partes, sem prejuízo de não estar o tribunal adstrito, neste domínio, às qualificações que autor e/ou réu tenham atribuído à definição do objecto da acção.
É assim que, na fixação da competência do Tribunal, em razão da matéria, se deve atender à natureza da relação jurídica material em debate na perspectiva apresentada em juízo, para o que haverá que considerar os termos em que a acção se encontra proposta – seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes), seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se reclama a tutela judiciária, o acto ou o facto de onde terá dimanado esse direito e, enfim, a qualificação dos bens em disputa) – cf. Manuel de Andrade in “Noções Elementares de Processo Civil”, 1956, páginas 88 e 89 apud acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-04-2015, relator Fernandes da Silva, processo n.º 197/14.2TTALM.L1.S1 acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt[5].
O tribunal recorrido julgou-se incompetente para conhecer do mérito da presente acção por entender que, nos termos do art. 122º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto[6], os juízos de família e menores, sendo juízos de competência especializada, apenas têm competência nas áreas tipificadas na lei e, quanto às uniões de facto, quando se esteja perante processos de jurisdição voluntária (conforme previsão da alínea b) do n.º 1 desse normativo legal) e não, como é o caso, quando se trate de uma acção declarativa comum; mais considerou inaplicável in casu a previsão da alínea g) desse mesmo normativo legal, que alude a “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”.
Concluiu, com esses fundamentos, que estando em causa um processo declarativo de natureza contenciosa, a competência para o respectivo conhecimento cabe ao juízo local cível, atento o valor da acção, nos termos dos art.ºs 130º e 117º, n.º 1, a) da LOSJ.
O art. 130.º, n.º 1, da LOSJ estipula que “os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.”
Assim, tal como sucede na delimitação entre a competência dos tribunais judiciais perante outra ordem jurisdicional, também a competência dos juízos locais cíveis e de competência genérica é definida por via residual, isto é, cabendo-lhes a competência material caso a acção não seja da competência dos juízos especializados.
Com efeito, a competência material é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual, e, segundo este último critério, serão da competência dos juízos cíveis e de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado.
Assim, a questão de saber se o Juízo de Família e Menores de Mafra detém ou não competência para preparar e julgar a presente ação, reconduz-se à questão de saber se este tipo de ação está legalmente atribuído a qualquer juízo ou tribunal de competência territorial alargada e, mais concretamente, aos juízos de família e menores.
Os juízos de família e menores são de juízos de competência especializada (os tribunais de comarca), conforme o disposto nos art.ºs 40º, n.º 2 e 81º, n.ºs 1 e 3, alínea g) da LOSJ, dispondo o art.º 122º deste diploma legal (na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 40-A/2016, de 22 de Dezembro), sob a epígrafe de “Competência relativa ao estado civil das pessoas e família”, o seguinte:
“1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:
a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;
c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;
d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;
e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;
f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;
g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família.
2 - Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos.”
Impõe-se, assim, determinar se a presente acção pode ser integrada em alguma das alíneas do n.º 1 do art. 122º da LOSJ (não se cogitando que possa estar abrangida na competência atribuída aos juízos de família e de menores enunciada nos art.ºs 123º e 124º dessa lei).
Os autores/apelantes afirmam expressamente na sua petição inicial que pretendem obter o reconhecimento judicial da situação de união de facto para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa pelo autor B, brasileiro.
O art. 14º do RNP sob a epígrafe “Aquisição em caso de casamento ou união de facto mediante declaração de vontade” estatui nos seus números 2 e 4:
“[…] 2 - O estrangeiro que coabite com nacional português em condições análogas às dos cônjuges há mais de três anos, se quiser adquirir a nacionalidade deve igualmente declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto. […]
4 - No caso previsto no n.º 2, a declaração é instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do nacional português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto.”
A LN prescreve no seu art. 3º:
“1 - O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio. […]
3 - O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”
Assim, apenas em caso de união de facto e para efeitos de aquisição da nacionalidade é exigido o reconhecimento de tal situação por via judicial, pois que, quanto ao casamento, o próprio assento actua como prova documental bastante.
O art. 1º, n.º 2 da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, que adoptou medidas de protecção da união de facto, define-a como sendo “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.
Deste modo, o propósito da presente acção intentada pelos apelantes é o de cumprirem com a exigência do art. 14º, n.º 2, parte final do RNP, relacionada com o reconhecimento judicial da situação de união de facto, o que está em consonância com o disposto no art. 2º-A da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio (“Na falta de disposição legal ou regulamentar que exija prova documental específica, a união de facto prova-se por qualquer meio legalmente admissível.”), sendo necessário o recurso à acção judicial de simples apreciação positiva.
A questão resume-se, então, agora, a saber se esta acção é susceptível de integrar a alínea b) ou g) do n.º 1 do art. 122º da LOSJ (pois que com nenhuma outra dessas alíneas a causa de pedir apresenta qualquer conexão).
Na alínea b) alude-se aos processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum, relativamente à qual vem sendo entendido que a sua previsão pressupõe a tramitação de acção com a natureza de processo de jurisdição voluntária[7].
Os processos de jurisdição voluntária estão regulados no Título XV do Livro V (Dos processos especiais) do CPC (art.º 986º e seguintes), não se descortinando em nenhum dos ali previstos ou em qualquer outra legislação avulsa, um procedimento de jurisdição voluntária que vise a apreciação e o reconhecimento judicial, por si só, de uma situação de união de facto, para além do que sempre careceria de razoabilidade a sujeição da acção a critérios de oportunidade, que não de legalidade (cf. art. 987º do CPC) ou que a respectiva decisão fosse passível de alteração (cf. art.º 988º do CPC).
Assim, cumpre indagar se esta acção pode ser entendida como uma acção relativa ao estado civil das pessoas e família.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-12-2018, relator António Santos, processo n.º 590718.1T8CSC.L1, a jurisprudência tem-se revelado de alguma forma consensual, quanto ao conceito de estado civil mencionado naquela norma ter sido empregue no seu sentido restrito, isto é “atendendo ao seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, introduzindo a citada alínea, de carácter mais genérico e abrangente, no sentido de abranger toda e qualquer acção que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida”.
Mais se refere nesse mesmo aresto, que o Supremo Tribunal de Justiça já deu nota no sentido de que os tribunais de família foram criados como sendo vocacionados para o conhecimento de acções que abordem o ramo do Direito da Família (dentro do Direito Civil), ou seja, tais tribunais terão competência especializada relativamente às acções em que há lugar à aplicação de normas de Direito da Família, como sucede no âmbito das acções relativas às situações de união de facto, em que se aplicam normas como a do art. 1793º do Código Civil (atribuição da casa demorada de família) ex vi art. 4º da Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio e do art. 2020º daquele Código, pelo que esta acção estaria abrangida pela aludida alínea g) do n.º 1 do art. 122º da LOSJ.
Como referem os apelantes, essa vem sendo a jurisprudência seguida pelos Tribunais da Relação, de que é exemplo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-06-2020, desta mesma secção, em que foi relator José Capacete, processo n.º 23445/19.8T8LSB.L1-7, onde se explanaram de modo amplamente fundamentado as razões da integração do conhecimento desta acção na competência do juízo especializado de família e menores, do seguinte modo:
“O conceito de «estado civil» costuma ser utilizado, tanto em sentido restrito, como em sentido lato.
Para Ana Prata «estado civil» é «uma situação integrada pelo conjunto das qualidades definidoras do estado pessoal que constam obrigatoriamente de registo civil, sendo o estado pessoal a situação jurídica da pessoa, no que toca, entre outras, à idade (menoridade, maioridade, emancipação), relações familiares (casado, solteiro, divorciado, viúvo), relações com o Estado (nacional, estrangeiro, naturalizado, etc.), à situação jurídica (interdito, inabilitado).»
Para Pedro Pais de Vasconcelos, define esse mesmo conceito como a expressão da condição jurídica da pessoa, enquanto maior ou menor, capaz ou incapaz.
Para Neves Ribeiro, as ações sobre o estado das pessoas pressupõem um facto registado, que tem subjacente uma declaração de vontade capaz de ter eficácia modificativa, extintiva ou constitutiva de estado civil.
O Assento nº 1/92 entende as ações sobre o estado das pessoas como aquelas cuja procedência se projeta sobre o estado civil de alguém – divórcio, separação de pessoas e bens, investigação de paternidade, impugnação de legitimidade, interdição, impugnação de impedimentos para o casamento, autorização para o casamento (…).
Por sua vez, João de Castro Mendes, refere-se ao conceito de estado pessoal ou civil, num sentido global que abrange o conjunto de qualidades das pessoas que revistam as características que se inscrevem no registo civil ou que a doutrina repute de relevância jurídica igual à dessas.
O referido conceito pode ainda ser usado numa aceção mais particularizada em que se chama estado a cada uma dessas qualidades (estado de filho legítimo, estado de maior, etc.), ou seja, abrangendo apenas as qualidades que resultam da posição face ao matrimónio.
Este Autor refere como exemplo de um estado civil, o de interdito, porque consta obrigatoriamente do registo civil.
Temos, assim, que na sua aceção mais restrita o conceito de estado civil abrange a posição da pessoa face ao matrimónio (solteiro, casado, divorciado, separado, viúvo) e está usado nomeadamente nos arts. 7º, nºs 1 e 2; 69º, al. n), 220º-A, 126º, nº 1 als. a) e b), 132º, nº 2, e 136º, nº 2 al. a), todos do Código de Registo Civil.
Já o seu conceito mais amplo abrange os factos sujeitos a registo, e está usado no art. 211.º do mesmo Cód. de Registo Civil.
Sem embargo do que acaba de expor-se, constata-se que nos diplomas que têm regulado a competência especializada dos Tribunais de Família, nomeadamente a Lei n.º 52/2008, de 28/02, e a atual LOSJ, sempre se previu como requisito da competência dos mesmos, o conhecimento de ações que versassem sobre o Direito da Família enquanto ramo do Direito Civil.
Tal como afirmado no Ac. da R.C. de 24.04.2016, […] ao aludir, na al. g) do nº 1 do art. 122º da LOSJ, a propósito das ações relativas ao estado civil das pessoas, o legislador utilizou tal conceito na sua aceção mais restrita, considerando o seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, introduzindo a citada alínea, de carácter mais genérico e abrangente, no sentido de abranger toda e qualquer ação que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida.
Mais significativo ainda é o entendimento do S.T.J., no citado Ac. de 13.11.2012, ao constatar que os Tribunais de Família, desde o momento inicial da sua criação, pela Lei n.º 4/70, de 29.04, sempre se mostraram pensados ou vocacionados para o conhecimento de ações que versem o ramo do Direito Civil do Direito da Família.
Ou seja, a longa tradição, que de há muito se mostra sedimentada, é a de atribuir àqueles tribunais, de competência especializada, a competência para a preparação de julgamento em que há lugar à aplicação de normas de direito da família.
Ora, a realidade jurídica portuguesa revela que, presentemente, a união de facto integra o Direito da Família.
A este propósito refere Jorge Duarte Pinheiro que «falar de turbulência para exprimir o estado actual do Direito da Família é capaz de ser, afinal, um eufemismo. Já não é correcta a ideia de que se está perante um ramo que regula a instituição “família”, entendida como o grupo de pessoas unidas por relações jurídicas familiares. O objecto do Direito da Família alargou-se de forma a englobar as relações familiares nominadas, ditas parafamiliares, v.g., a união de facto.».
Mais categórica é ainda Rossana Martingo Cruz, ao afirmar que o conceito de família «não é estanque daí que esteja sempre recetivo a fenómenos que pela sua evidência social mereçam o seu abrigo. (...)
A união de facto atingiu uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não parece posta em causa. Já a aceitação jurídica ainda não logrou, na nossa ótica, o ponto ótimo de equilíbrio que poderia atingir. Contudo, não deixa de se salientar alguma inclinação do legislador ordinário para considerar a união de facto como família quando, no disposto no n.º 2 do art. 46.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, exara que para efeitos de acolhimento familiar, “(...) considera-se que constituem uma família duas pessoas casadas entre si ou que vivam uma com a outra há mais de dois anos em união de facto (...)”. Ou seja, para a integração de uma criança numa família, a união de facto cumpre o modelo exigido. Pois, para o seu saudável e harmonioso desenvolvimento uma família é indiferente se esta é unida pelo casamento ou se é uma vivência em condições análogas a este. A sua essência é a mesma e, como tal, está igualmente apta a favorecer a realização pessoal de quem a integra.
Na maioria das vezes, a realização do cidadão ocorre (também) no seio da família, por isso a vida familiar deve ser enaltecida e protegida. Nesta senda o art. 16.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem estabelece que “A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado.”. Cabe ao Estado fomentar diferentes formas de vivência em família, sem a fazer depender unicamente de conceitos jurídicos espartilhados que a realidade vai ultrapassando.».
Ainda segundo a mesma Autora, «(...) em Portugal a qualificação da união de facto como relação familiar era questão controvertida. Não se ignora que a taxividade do art. 1.576.º [do Código Civil] cria alguns embaraços, uma vez que esta convivência não consta do elenco das relações jurídico-familiares.
(...) Entendemos que a união de facto é uma relação familiar mesmo não constando do elenco das fontes jurídico-familiares do art. 1.576..
(...) A partir do momento em que a Constituição passa a proteger a união de facto, no n.º 1 do art. 36.º, dever-se-á considerar igualmente familiar.».
À luz do que antecede, não parece que subsistam grandes dúvidas no sentido de que o tribunal a quo, o Juízo de Família e Menores […] é o materialmente competente para preparar e julgar a presente ação.
É o Juízo de Família e Menores de […], enquanto tribunal de competência especializada, o materialmente competente para preparar e julgar ações em que há lugar à aplicação de normas de Direito da Família.
Conforme vertido no Ac. da R.P. de 05.02.2015, Proc. n.º 13857/14.9T8PRT.P1 (Joaquim Correia Gomes), […], por certo o legislador pretendeu abranger o «carácter fluído e flexível que hoje caracteriza a vida familiar, uma vez que esta não se restringe ao laços decorrentes do casamento, como sucede quando os progenitores não estão casados entre si, podendo essa relação ser ou não estável (…)», sabendo-se que se está «perante uma diversidade constitutiva da família e de distintos níveis de relacionamento da vida em família, que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a reconhecer a partir do artigo 8.º da CEDH», razão porque «a leitura mais consistente do segmento normativo em causa ao referir-se a “outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família” se reporta às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto (…) de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal familiar, tendo em atenção a natureza complexa e multinível que actualmente tem a família.»
Reiterando, não subsistem, pois, quaisquer dúvidas no sentido de que a situação sub judice se enquadra na previsão da al. g) do n.º 1 do art. 122.º da LOSJ […]”
Perante a construção jurídica delineada e fazendo apelo à natureza das questões familiares cujo conhecimento vem sendo integrado no âmbito da competência dos juízos de família e menores, não se descortinam razões para divergir do entendimento que a jurisprudência vem adoptando no que à questão aqui em apreço diz respeito, pois que ao se reportar ao “estado civil das pessoas e família”, o legislador terá pretendido abranger, em toda a sua amplitude e nuances, o contexto da vida familiar, não se restringido aos laços decorrentes do casamento, mas sim a todos os tipos de relacionamentos que podem caber no conceito de família, em conformidade, aliás, com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por referência ao artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem[8] [9].
Deste modo, a alínea g) do n.º 1 do art. 122º da LOSJ abrangerá todas as acções que se reportam às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto, de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal familiar – cf. neste sentido, acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 23-06-2020, relator Fonte Ramos, processo n.º 610/20.0T8CBR-B.C1; de 8-10-2019, relator Luís Cravo, processo n.º 2998/19.6T8CBR.C1; de 31-03-2020, do mesmo relator, processo n.º 136/20.1T8CBR.C1.
Em consonância, importa conceder provimento ao presente recurso, reconhecendo que a presente acção está abrangida pela competência especializada atribuída ao juízo de família e menores de Mafra, nos termos do art. 122º, n.º 1, g) da LOSJ, com a consequente revogação da decisão recorrida, devendo o processo prosseguir os seus trâmites normais.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
O recurso interposto pelos autores procede totalmente.
Uma vez que os recorrentes pagaram previamente a taxa de justiça relativa ao recurso e este não envolveu encargos, e o réu/recorrido nele não interveio, não sendo, assim, credor de custas de parte, aqueles não são responsáveis por qualquer pagamento a título de custas.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, julgando materialmente competente para preparar e julgar a presente acção o Juízo de Família e Menores de Mafra, onde o processo deverá prosseguir seus ulteriores termos.
Sem custas.
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Lisboa, 15 de Dezembro de 2020[10]
Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Amélia Alves Ribeiro
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[1] Adiante designado pela sigla CPC.
[2] Adiante designada pela sigla LN.
[3] Adiante designado pela sigla RNP.
[4] Com a redacção que lhe foi dada pelas Leis n.º 40-A/2016, de 22 de Dezembro, n.º 94/2017, de 23 de Agosto, Lei Orgânica n.º 4/2017, de 25 de Agosto, n.º 23/2018, de 5 de Junho, Decreto-Lei n.º 110/2018, de 10 de Dezembro, Leis n.º 19/2019, de 19 de Fevereiro, n.º 27/2019, de 28 de Março e n.º 55/2019, de 5 de Agosto e Lei n.º 107/2019, de 9 de Setembro.
[5] Todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem encontram-se acessíveis na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt.
[6] Adiante designada pela sigla LOSJ.
[7] Neste sentido, cf. António José Fialho, in “Competências das secções de família e menores nas uniões de facto e na economia comum”, acessível em https://blogippc.blogspot: “com excepção das questões relativas à casa de morada de família dos unidos de facto ou daqueles que vivem em economia comum (art.ºs 3º, al. a), e 4º, da Lei n.º 6/2001 e art.º 4º, al. d), e 5º da Lei n.º 7/2001), o exercício de outros direitos previstos nos diplomas que regulam as medidas de protecção da união de facto e da economia em comum não se integram em nenhum dos procedimentos de jurisdição voluntária previstos no Código de Processo Civil ou noutros diplomas estabelecendo procedimentos a que sejam aplicáveis as regras do processo civil previstas para os processos de jurisdição voluntária”.
[8] Cf. Art. º, n.º 1 – “Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência.”
[9] Neste sentido, Rita Lobo Xavier, in O “Estatuto Privado” dos Membros da União de Facto - RJL B, Ano 2 (2016 ), nº 1, pp. 1506-1507, acessível em https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2016/1/2016_01_1497_1540.pdf consultado em 7-12-2020- “A Declaração Universal dos Direitos do Homem não refere expressamente a união de facto, dedicando dois preceitos às relações familiares: o art. 12.º, que tutela o respeito pela vida familiar, e o art. 16.º, que estabelece o direito a casar e a constituir família e à proteção desta pela sociedade e pelo Estado. Por seu turno, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem também contempla dois preceitos dedicados à família: o art. 8.º (respeito pela vida privada e familiar) e o art. 12.º (direito de casar e constituir família). O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a interpretar o art. 8.º da Convenção no sentido de nele se incluir, não só as famílias constituídas com base no casamento – como sucede no art. 12.º – mas também, as situações familiares de facto, assumindo, como critério relevante, a “efetividade de laços interpessoais”.
[10] Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.