MAIOR ACOMPANHADO
AUTORIZAÇÃO JUDICIAL
Sumário

I - Tendo a Autora sido declarada interdita por sentença proferida em 2004, antes do início da vigência do regime jurídico do maior acompanhado, a representação daquela, pela sua Tutora, atual Acompanhante, tem, por força do n.º 4 do art. 26.º da Lei n.º 49/2018, de 14-08, âmbito geral, incluindo a representação legal - cf. art. 145.º, n.º 2, al. b), do CC.
II - Não obstante exercendo funções de representação legal da maior Acompanhada, a Acompanhante deverá, para intentar ações em nome daquela, obter a prévia autorização do tribunal, salvo se a ação se destinar à cobrança de prestações periódicas ou se a demora da ação puder causar prejuízo ao representado – cf. art. 1938.º, n.º 1, al. e), aplicável ex vi do art. 145.º, n.º 4, ambos do CC.
III - Quando seja necessário pedir tal autorização do tribunal, haverá que lançar mão do processo de jurisdição voluntária previsto no art. 1014.º do CPC, sendo o pedido dependência/apenso do processo de acompanhamento de maior (cf. n.º 4 deste artigo, na redação introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14-08; cf. também o art. 2.º, n.º 2, parte final, do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13-10).
IV - Não obtida, quando necessária, tal autorização, verifica-se uma exceção dilatória – cf. art. 577.º, al. d), do CPC - sanável, conforme resulta do disposto nos art. 1940.º, n.º 3, do CC e nos artigos 6.º e 29.º do CPC.
V - Tendo em conta os factos alegados na Petição Inicial atinentes às condições de vida da Autora e considerando ter sido peticionada, além do mais, a condenação do Réu a pagar-lhe 250 € mensais, a título de compensação, pela ocupação e uso que aquele vem fazendo do (único) imóvel da herança, conclui-se, por um lado, que a presente ação se destina à cobrança de prestações periódicas e, por outro lado, ser provável que possam advir prejuízos decorrentes da demora processual.
SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC)

Texto Integral

Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
AAA, representada pela sua Acompanhante, BBB, interpôs o presente recurso de apelação do despacho que declarou suspensa a instância na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, aquela intentou contra CCC.
Os autos tiveram início em 11-01-2019 com a apresentação de Petição Inicial, em que a Autora formulou o seguinte pedido:
a) Ser declarado que o prédio urbano correspondente à fração L, sito na Rua de X..., n.º 9 - 5.º Dt.º, Quinta Y..., 0000-000 Barreiro, correspondente ao artigo matricial n.º 000, descrito na Conservatória do Registo Predial do Barreiro sob o n.º 0000, integra a herança aberta por óbito de EEE e de FFF;
b) Ser o Réu condenado a reconhecer a propriedade da referida herança indivisa sobre aquele prédio urbano;
c) Ser o Réu condenado a abster-se de qualquer ato que prejudique os direitos de propriedade da herança indivisa sobre o referido prédio;
d) Ser o Réu ainda condenado a pagar indemnização à interdita AAA pela ocupação, durante 76 meses, e consequente privação do uso do referido imóvel, no valor de 19.000 €, correspondente a 50% de uma renda no valor de 500 €;
e) Ser o Réu condenado a pagar 250 € por mês à interdita AAA, a título de compensação, pela ocupação, fruição e uso do imóvel da herança, até à partilha do mesmo.
Caso assim não se entenda, deverá o Réu ser condenado a restituir à Autora o montante 19.000 €, a título de enriquecimento sem causa.
Alegou, para tanto e em síntese, juntando também documentos que complementam a sua alegação, os seguintes factos:
- A Autora foi declarada interdita (por sentença de 09-11-2004), tendo a sua mãe, FFF, sido então nomeada sua Tutora;
- Após a morte desta última (no dia 15-09-2012), foi nomeada Tutora (por sentença de 20-12-2012) a tia da Autora, BBB;
- A falecida FFF e a interdita eram herdeiras de EEE (marido e pai destas, respetivamente);
- A mãe da interdita faleceu no estado de casada, em segundas núpcias, com o Réu, casamento celebrado em 22-08-2012, no regime de comunhão de adquiridos;
- Do acervo patrimonial da herança de EEE e da falecida mãe da Autora faz parte a fração acima referida;
- Está pendente em Cartório Notarial o processo de inventário para partilha herança da aberta por óbito da mãe da Autora, o qual foi iniciado a requerimento da Autora e em que o Réu é cabeça-de-casal;
- Devido ao óbito da sua mãe e às necessidades especiais da Autora, esta encontra-se, desde 03-10-2012, institucionalizada, em regime de internato integral, na Associação de Nossa Sr.ª ...;
- A delonga do processo de inventário acarreta sérios prejuízos económicos para a Autora e sua Tutora, vendo-se esta com grandes dificuldades para fazer face às despesas daquela (designadamente médicas, medicamentosas e com o seu internamento), já que a Autora apenas aufere uma pensão no valor de 133,93 €;
- O Réu ocupa e usufrui do imóvel identificado, desde a data do óbito da mãe da interdita, no seu interesse pessoal, em exclusivo e na totalidade, apesar de não ter sido a sua casa de morada de família, sendo que, antes de se casar com a mãe da Autora, tinha habitação própria;
- O que impede a interdita de usufruir do imóvel, onde cresceu e sempre viveu até ser internada, aos fins-de-semana e nas férias que passa com a sua tia;
- O Réu nunca teve qualquer intenção em estabelecer uma relação com a sua enteada; nunca se ofereceu para passar com ela os fins-de-semana ou as férias; nunca a visitou; nunca cuidou desta, mesmo em vida da sua cônjuge; nunca perguntou se a sua enteada, está bem, se precisa de alguma coisa; nunca pagou qualquer despesa da interdita;
- A inexistência de qualquer relação entre o Réu e a interdita, que tem necessidades especiais e está dependente de terceiros, torna impossível a utilização simultânea da fração;
- O Réu nunca pagou qualquer contrapartida por usufruir em exclusivo e na totalidade do único imóvel da herança, o qual podia ser arrendado por 500 € mensais, o que só não acontece porque o Réu se apossou do mesmo para lá residir, impedindo a sua valorização e rentabilidade.
Em 20-05-2019, o Réu apresentou Contestação, na qual se defendeu por exceção e por impugnação, alegando, além do mais, o seguinte:
“E ainda que não se entenda pela ilegitimidade da Autora, o que apenas se concebe por mera cautela e dever de patrocínio, ainda assim, como tutora, careceria de autorização judicial para intentar a presente ação, nos termos do disposto na alínea e) do nº 1 do artigo 1938º do C.C, o que não ocorreu - tal circunstância, caso não proceda a ilegitimidade da Autora deverá conduzir à suspensão da instância, depois da citação, até que seja concedida a autorização necessária, conforme resulta do nº 3 do artigo 1940º do C.C.”
Em 14-07-2020, foi proferido o despacho recorrido, cujo teor, na parte que ora importa, é o seguinte (sublinhado nosso):
“Veio a Autora instaurar a presente acção na qualidade de na qualidade de tutora de AAA.
Conforme resulta do disposto no artigo 1938.º, al. e), do Código Civil, a instauração de acções judiciais por parte do tutor carece de autorização do Tribunal, excepto se se destinarem à cobrança de prestações periódicas ou se a demora possa causar prejuízo, não sendo nenhum desses o caso dos presentes autos.
Assim, constatada a falta de autorização judicial, ao abrigo do disposto no artigo 29.º do Código de Processo Civil, declaram-se suspensos os presentes autos, concedendo-se à Autora o prazo de três meses para vir aos autos juntar a respectiva autorização, sob pena de, não o fazendo, ser o Réu absolvido da instância.”
A Autora apresentou então requerimento, em que concluiu nos seguintes termos:
“(…) requer a V. Exa. Se digne substituir o despacho de 14/07/2020, com a referência 397619927, por outro que ordene o prosseguimento dos presentes autos, pelos fundamentos acima indicados e já elencados na PI.
Caso assim não se entenda requer a V. Exa. se digne fundamentar o mesmo, nos termos do disposto no artigo 154.º do C.P.C., no sentido de aferir da eventual interposição de recurso”.
Em 09-09-2020, foi proferido o seguinte despacho:
“Em face do teor da segunda parte do despacho que antecede – isto é, a referência ao concreto caso dos presentes autos, às normas legais aplicáveis e respetivas consequências jurídicas – nada mais cumpre determinar.
Aguardem os autos o prazo de suspensão”.
Inconformada com a referida decisão de suspensão da instância, veio a Autora interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
a) A Recorrente interpõe o presente recurso de apelação do despacho de 14/07/2020, com a referência 397619927, que determinou a suspensão dos presentes autos, por entender a Meritíssima Juiz a quo que não se encontram preenchidas nenhumas das excepções do artigo 1938º, alínea e) do Código Civil, considerando, assim, haver falta de autorização judicial.
b) Porém, não se conforma a Recorrente com tal despacho, na medida em que entende estarmos perante as excepções elencadas na alínea e) do n° 1 do artigo 1938.º do Código Civil.
c) A Recorrente intentou, em 11 de Janeiro de 2019, acção declarativa de condenação em processo comum, contra CCC, seu padrasto, com fundamento no facto deste, no seu exclusivo interesse pessoal, ocupar e usufruir do imóvel que constitui o acervo patrimonial da herança aberta por óbito dos pais da Recorrente, desde pelo menos a 22.08.2012, data em que casou com a falecida mãe da Recorrente, e tendo em vista obter uma prestação duradoura periódica, correspondente a metade do valor da renda mensal que ambos poderiam auferir com a locação do imóvel, desde a data da instauração do processo de inventário – em 2015 - até à partilha.
d) A Recorrente padece de anomalia psíquica desde o seu nascimento, o que motivou o decretamento da sua interdição definitiva, estando assim institucionalizada em regime de internato integral, após o óbito da sua mãe, tendo a sua tia BBB passado a exercer o cargo de tutora.
e) A Recorrente tem apenas como rendimento uma pensão no valor de 133,93€ (cento e trinta e três euros e noventa e três cêntimos).
f) Em 2015, foi instaurado no Cartório Notarial do Dr. DDD, pela Recorrente, processo de inventário para partilha do património deixado por óbito dos seus pais.
g) O Réu é o cabeça-de-casal da herança aberta por óbito da sua mãe e reside no único bem imóvel que compõe o acervo hereditário, usufruindo ainda de todo o seu recheio, que é também pertencente à herança.
h) A Recorrente tem já 46 anos de idade e tem visto a sua condição física e intelectual a debilitarem-se de ano para ano, sendo a esperança média de vida das pessoas com síndrome de Down, entre os 50 e os 60 anos.
i) A delonga na partilha dos bens que compõem o acervo hereditário da herança aberta por óbito da sua mãe, causa um prejuízo grave à Recorrente.
 j) Desde o óbito da mãe da Recorrente já decorreram 8 (oito) anos e desde que foi instaurado o processo de inventário, já decorreram 5 (cinco) anos.
k) A Recorrente está impedida de usufruir, pela sua condição, dos bens que compõem o acervo hereditário por óbito dos seus pais, como também não os pode rentabilizar ou vender, por forma a obter proventos dos mesmos para fazer face às suas despesas e necessidades especiais que se vão agudizando com o passar dos anos, pelo facto de o Réu, seu padrasto fazer uso dos mesmos.
l) A Recorrente está dependente da partilha dos bens que os seus pais adquiriram em vida e deixaram após o seu óbito, para obter rendimentos, já que não pode obtê-los de outra forma devido à sua anomalia psíquica.
m) Instaurou a presente acção com o intuito de amenizar esses prejuízos, mas ainda assim, a delonga dos presentes autos só os têm agudizado.
n) Estão, assim, preenchidas as duas excepções elencadas na alínea e) do nº 1 do artigo 1938.º do Código Civil.
o) Estamos perante uma situação que comporta urgência, atentos os circunstancialismos acima indicados – condição da Recorrente, suas necessidades especiais e despesas, falecimento da progenitora ocorrido há oito anos, processo de inventário pendente há cinco anos e dificuldades económicas - e que justifica a instauração da acção que deu origem a estes autos sem a autorização do Tribunal.
A Autora termina a sua alegação recursória pedindo que seja “concedido provimento ao presente recurso e revogado o despacho recorrido de 14/07/2020, com a referência 397619927, substituindo-se por outro que declare a excepcionalidade dos presentes autos ao abrigo da segunda parte da alínea e) do nº 1 do artigo 1938.º do C.P.C. e ordene o prosseguimento dos autos”.
Não foi apresentada alegação de resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC).
Face ao teor das conclusões da alegação de recurso, a única questão a decidir consiste em saber se não devia ter sido declarada a suspensão da instância, a fim de que a Tutora obtivesse autorização judicial para intentar a presente ação, sob pena de, não o fazendo, o Réu ser absolvido da instância.
Dos factos
Os factos provados com relevância para conhecer do mérito do recurso são os que constam do relatório supra, acrescentando-se, face ao teor dos documentos juntos com a Petição Inicial, que:
1. A Autora, AAA, nasceu em 09-10-1974, sendo filha de FFF e EEE.
2. Por sentença proferida em 09-11-2004, a Autora foi declarada interdita, por anomalia psíquica, e a sua mãe foi nomeada Tutora.
3. FFF faleceu com 58 anos de idade, no estado de casada com CCC.
4. Foi então, por sentença de 20-12-2012, nomeada Tutora da Autora a sua tia, BBB.
5. Encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial do Barreiro mediante ap. n.º 00, de 00-00-2002, a aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor de AAA e de FFF - por morte de EEE - da fração autónoma designada pela letra “L”, correspondente ao quinto andar direito, destinado a habitação, do prédio urbano sito na Rua de X..., n.º 9, descrito na Conservatória do Registo Predial do Barreiro sob o n.º 0000 da freguesia de […].
6. Encontra-se averbada na referida Conservatória, mediante ap. n.º 000, de 00-00-2012, a transmissão em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor de CCC e de AAA, da posição relativa àquela apresentação, em virtude de dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária, por morte de FFF.
Enquadramento jurídico
A Lei n.º 49/2018, de 14-08, criou o regime jurídico do maior acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47.344, de 25 de novembro de 1966.
A referida lei contém, no seu art. 26.º, diversas disposições transitórias, prevendo-se, designadamente, nos n.ºs 4 e 7, que:
“4 - Às interdições decretadas antes da entrada em vigor da presente lei aplica-se o regime do maior acompanhado, sendo atribuídos ao acompanhante poderes gerais de representação.
(…) 7 - Os tutores e curadores nomeados antes da entrada em vigor da presente lei passam a acompanhantes, aplicando-se-lhes o regime adotado por esta lei.”
O regime do maior acompanhado consta dos artigos 138.º a 156.º do CC, complementados, por via das pontuais remissões, pelo regime da tutela (cf. artigos 1921.º a 1972.º do CC). Merecendo aqui especial destaque as regras consagradas nos artigos 145.º (com a epígrafe “Âmbito e conteúdo do acompanhamento”) e 1938.º (com a epígrafe “Actos dependentes de autorização do tribunal”), ambos do CC.
O art. 145.º tem o seguinte teor:
“1 - O acompanhamento limita-se ao necessário.
2 - Em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes:
a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;
b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;
c) Administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.
3 - Os atos de disposição de bens imóveis carecem de autorização judicial prévia e específica.
4 - A representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias, podendo o tribunal dispensar a constituição do conselho de família.
5 - À administração total ou parcial de bens aplica-se, com as adaptações necessárias, o disposto nos artigos 1967.º e seguintes”.
A temática da representação geral do maior acompanhado foi apreciada por Geraldo Rocha Ribeiro, no artigo “O conteúdo da relação de cuidado: os poderes-deveres do acompanhante, sua eficácia”, publicado na Revista Julgar, n.º 40 - 2020, Almedina, págs. 73 e ss., explicando que “A sentença deve especificar o âmbito dos poderes de representação legal. A previsão na lei de poderes de representação geral deve ser entendida comum uma norma habilitante para interferir nos direitos do beneficiário (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição), não omitindo a justificação da proporcionalidade da medida em função das necessidades inventariadas” (cf. pág.84). Mais adiante, refere ainda este autor que o exercício de poderes de representação legal convoca a aplicação do regime da tutela, o que «significa que aos atos realizados pelo acompanhante se aplicam os artigos do Código Civil. Em termos de instituto da tutela, há uma equiparação dos poderes do tutor aos revistos para as responsabilidades parentais. Contudo, atento o princípio da especificação que exige um “fato à medida” das necessidades do beneficiário, como garantia dos direitos do beneficiário, não há – não deverá haver – a atribuição geral de poderes de representação legal, mas antes, a âmbitos de matéria, que poderão ter uma maior ou menor extensão. (…) Assim, a primeira limitação do acompanhante decorre da existência de título atributivo de legitimidade para agir em nome do beneficiário (artigo 258.º do CC). Existindo, o acompanhante não pode realizar os atos prescritos no artigo 1937.º do CC e fica dependente de autorização ou confirmação quanto aos actos prescritos no artigo 1938.º do CC, conforme resulta do artigo 1941.º do CC.» (cf. págs. 90-91)
No tocante ao regime da tutela, importa ainda referir a alínea e) do n.º 1 do art. 1938.º do CC, nos termos da qual o tutor, como representante do pupilo, “necessita de autorização do tribunal” para “intentar acções, salvas as destinadas à cobrança de prestações periódicas e aquelas cuja demora possa causar prejuízo”.
É precisamente este o normativo cuja aplicação está em causa nos presente autos, defendendo a Autora-Apelante que se verificam as duas situações excecionais previstas na sua 2.ª parte, estando, pois, a sua acompanhante/legal representante dispensada de intentar uma tal ação.
Da conjugação dos citados preceitos legais, em especial do art. 1938.º, n.º 1, al. e), aplicável ex vi do art. 145.º, n.º 4, ambos do CC, resulta, pois, que o acompanhante que exerce funções de representação legal do maior acompanhado deverá, para intentar ações em nome deste último, de obter a prévia autorização do tribunal, salvo se a ação se destinar à cobrança de prestações periódicas ou se a demora da ação puder causar prejuízo ao representado.
De referir, quanto às situações excecionais contempladas na referida alínea e), que a previsão normativa em apreço não se circunscreve à cobrança coerciva de prestações, ou seja, não se reporta apenas a ações executivas; tão pouco se referindo, ao contrário do que sucede em outros preceitos legais do Código Civil, apenas aos procedimentos cautelares (cf. artigos 90.º e 94.º, n.º 2, do CC), muito menos exigindo que o prejuízo em causa seja irreparável ou “dificilmente reparável” (cf. art. 362.º, n.º 1, do CPC).
Quando seja necessário pedir a aludida autorização do tribunal, haverá que lançar mão do processo de jurisdição voluntária previsto no art. 1014.º do CPC, sendo o pedido dependência/apenso do processo de acompanhamento de maior (cf. n.º 4 deste artigo, na redação introduzida pela Lei n.º 49/2018, de 14-08; cf. também o art. 2.º, n.º 2, parte final, do Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13-10).
Não obtida, quando necessária, tal autorização, verifica-se uma exceção dilatória – cf. art. 577.º, al. d), do CPC - sanável, conforme resulta do disposto nos art. 1940.º, n.º 3, do CC e nos artigos 6.º e 29.º do CPC.
No caso em apreço, a interdição da Autora foi decretada antes do início da vigência do regime jurídico do maior acompanhado, pelo que, por força do n.º 4 do art. 26.º da Lei n.º 49/2018, a representação da Autora pela sua Tutora, agora Acompanhante, tem âmbito geral, incluindo a representação legal.
Para determinar se a Acompanhante carecia de obter autorização judicial para a propositura da presente ação e se terá agora de providenciar nesse sentido, sob pena de absolvição do Réu da instância, importa atentar no pedido e na matéria de facto alegada na Petição Inicial, ainda que se possa mostrar controvertida, não apenas porque logicamente assim se impõe, uma vez que se está perante um pressuposto processual, mas também por aplicação analógica do art. 30.º, n.º 3, do CPC.
No caso, a pretensão da Autora visa obter uma compensação pela forma como o Réu vem usando a (única) fração autónoma que integra a herança indivisa, invocando, entre outros o disposto no art. 1406.º do CC.
É sabido que, por força do disposto no art. 1404.º do CC, as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão ou contitularidade de direitos dos consortes numa herança. Logo, conforme resulta dos artigos 1405.º, n.º 1, e 1406.º, aplicáveis por via do referido art. 1404.º, todos do CC, a Autora e o Réu, ao adquirirem o direito às respetivas quotas hereditárias na herança aberta por óbito de sua mãe e mulher, respetivamente (este último também o direito à meação conjugal) têm direito a utilizar a fração autónoma que faz parte da herança, com as restrições previstas naqueles preceitos legais.
À semelhança do que acontece com os comproprietários, na falta de acordo entre os herdeiros, qualquer um deles pode utilizar a coisa (na sua totalidade), dentro dos fins a que se destina e sem privar os demais dessa utilização. A privação da utilização pelos demais herdeiros tem de ser apreciada em concreto (cf. art. 1406.º do CC).
Existindo razões de índole familiar ou outras das quais resulte, efetivamente, arredada a possibilidade de utilização simultânea da fração e na falta de acordo das partes (não sendo de descartar que possa ser obtido nos presentes autos), a solução poderá ser a proposta por Pires de Lima e Antunes Varela:
“Há casos em que os comproprietários harmonizam os seus interesses conflituantes no uso da coisa comum, mediante uma divisão material do gozo dela. Sem chegarem a uma divisão da coisa, que ponha termo à compropriedade, os condóminos podem acordar em usar, separadamente, as dependências em que dividem a casa comum (…).
Outra forma de conciliação de interesses a que frequentes vezes se recorre, quando não é possível ou se mostra inconveniente a repartição material, é a da divisão temporal ou por turnos. (…)
Nos casos em que não é possível ou conveniente o uso por partes ou fracções da coisa, ou o uso por turnos, os interessados acordam por vezes no uso directo promíscuo ou simultâneo (…) Podem todavia, levantar-se dificuldades práticas e teóricas, quanto ao uso directo promíscuo de prédios urbanos, que não se prestem a divisão.
Desde que a nenhum dos comproprietários pode ser imposto o dever de co-habitar com os outros, não sendo o prédio divisível em frações autonomizáveis (…), a qualquer deles será lícito opor-se a uma deliberação da maioria nesse sentido, alegando que o uso pretendido ou exercido pelos outros o priva do direito que ele tem a usar também da coisa (…). Nestes casos, o único recurso a adoptar, na falta de acordo, será o do gozo indirecto, que consistirá em regra na locação da coisa, com a consequente repartição dos proventos dela entre os consortes. Quando assim seja, já nada obstará a que o locatário possa ser um dos comproprietários, se a maioria, no exercício dos poderes de administração que a lei lhe confere, assim o entender.” - in “Código Civil Anotado”, Volume III, 2.ª ed., Coimbra Editora, pág. 357.
Não nos cumpre, no presente recurso, apreciar se à Autora assistem os direitos a que se arroga, designadamente às prestações cujo pagamento peticiona, mas tão só decidir se, em face do pedido e da causa de pedir da presente ação, carecia de prévia autorização judicial para a sua propositura.
Ora, tendo em conta os factos alegados na Petição Inicial atinentes às condições de vida da Autora e considerando ter sido peticionada, além do mais, a condenação do Réu a pagar-lhe 250 € mensais, a título de compensação, pela ocupação e uso do (único) imóvel da herança, até à partilha [cf. alínea e) do pedido], temos de concluir, por um lado, que a presente ação se destina à cobrança de prestações periódicas e, por outro lado, ser provável que possam advir (para aquela) prejuízos decorrentes da demora processual.
Na verdade, como a Autora apenas aufere uma pensão no valor de 133,93 € e não tem forma de obter outros rendimentos, pretendendo obter uma compensação patrimonial pelo uso exclusivo que o Réu, co-herdeiro, vem fazendo do único imóvel da herança, é de antever que poderá ficar prejudicada se tardar a obter essa compensação (sendo de salientar que desde o início dos autos já decorreram quase dois anos).
Apesar de se encontrar institucionalizada, o que certamente lhe permitirá ver satisfeitas as suas necessidades mais básicas, a Autora merece também ter uma vida fora da instituição, por exemplo, passando, desde que acompanhada, fins de semana e férias na casa que sempre conheceu e onde residiu com os seus pais. Ou, não sendo isso possível, como admite ser o caso, frequentando outros espaços e vivenciando momentos de lazer, que promovam o seu bem-estar físico e psíquico, atividades que, como é normal, têm quase sempre um custo associado.
Assim, tudo ponderado, consideramos estarem verificadas as situações excecionais previstas na 2.ª parte da alínea e) do n.º 1 do art. 1938.º do CC, procedendo as conclusões da alegação de recurso, o qual merece provimento, com a revogação da decisão recorrida, o que implica, por aplicação analógica do art. 195.º, n.º 2, do CPC que o despacho subsequente, que a reiterou, também não possa subsistir.
Vencido o Réu-Apelado, que suscitou a questão na sua Contestação, é o responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). Porém, como beneficia do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (cf. ofício apresentado com a sua Contestação), não vai condenado a efetuar o respetivo pagamento (cf. artigos 1.º e 16.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e artigos 20.º, 26.º e 29.º do RCP).
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III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida e, em substituição, determinar que a presente ação prossiga os seus ulteriores trâmites, sem necessidade de ser obtida autorização judicial por parte da Acompanhante para a propositura da mesma.
Não se condena o Réu-Apelado no pagamento das custas do recurso atento o apoio judiciário de que beneficia.
D.N.

Lisboa, 03-12-2020
Laurinda Gemas
Gabriela Cunha Rodrigues
Arlindo Crua