COMPRA E VENDA MERCANTIL
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
DEFEITOS
Sumário


1- A interpretação dos articulados tem que ser efetuada de forma integrada, contextualizada e completa, atendendo aos princípios mencionados no artigo 236º do Código Civil, assim como, por afloramento de normas gerais de interpretação, o constante do artigo 9º do mesmo diploma.
2 – A garantia de bom funcionamento, enquanto um resultado, tem que resultar de norma especifica (como que decorre para as relações de consumo), dos usos ou de convenção.
3- Quando não vigore tal garantia, o comprador tem que provar que a coisa vendida sofria, no momento da entrega, de vícios ou de defeitos que impediam a sua utilização normal para exercer os direitos que destes decorrem (como a reparação, troca, indemnização, redução do preço ou anulação do contrato) contra o vendedor.

Texto Integral


Autora e Recorrente:
--- X Company, Limitada, NIPC ………, com sede na Rua …, da freguesia de …, do concelho de Vila Nova de Famalicão,

Réus e Apelados
--- Y, SA, NIPC ………, com sede na Rua …, da freguesia de …, do concelho de Fafe,
--- S. & C., Limitada, NIPC ………, com sede na Rua …, da freguesia de …, do concelho da Trofa
Autos de: ação declarativa de condenação com processo comum

Acórdão
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I - Relatório

A Autora efetuou os seguintes pedidos:
“a) Caso a avaria da máquina fornecida pela primeira Ré, Y, em 2/1/19 seja devida à atuação descrita da segunda Ré, S. & C., Lda., esta seja condenada a pagar à Autora o valor de € 5.380,02 referente ao valor solicitado pela segunda Ré para a sua reparação;

Subsidiariamente,
b) Caso a avaria da máquina fornecida pela primeira Ré, Y, em 2.01.19, não seja devida à atuação da segunda Ré, S. & C., aquela seja condenada a arcar com o pagamento da reparação do valor de € 5.380,02;
c) A primeira Ré, Y, condenada a reparar a máquina que forneceu ou caso tal reparação não se torne possível, na sequência da avaria de 12.04.2019, a substituir a máquina de sublimação por uma máquina igual à fornecida, tudo sem prejuízo dos danos que a Autora vem sofrendo com a paragem da máquina, cuja liquidação se relega para execução de sentença, por à presente data, não ser possível contabilizar, mas que se preveem de valor superior a € 10.000,00.”

Alegou, para tanto, em síntese:
No âmbito da sua atividade de atividade de comércio por grosso não especializado comprou à 1ª Ré, que se dedica à atividade de comércio, uma máquina de sublimação, pelo preço de € 12.900,00, que esta entregou, tendo efetuado a instalação provisória da parte elétrica. Não acordaram qualquer período de garantia, pelo que o mesmo era de seis meses. Após a 2ª Ré efetuar a parte elétrica do trabalho de instalação, a máquina ao funcionar deitou fumo e desligou o disjuntor do quadro elétrico, por ter sido na montagem trocada uma fase pelo neutro.
Ambas as Rés contestaram, em síntese, imputando à própria Autora o erro na ligação da máquina à corrente elétrica, que lhe causou avaria.
Após o saneamento e audiência final, veio a ser proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu as Rés do pedido.

É desta decisão que recorre a Autora, apresentando as seguintes
conclusões:

“1 - Resulta do teor da sentença que a autora não logrou demonstrar ter sido convencionada, expressa ou tacitamente, qualquer garantia do bom funcionamento da máquina vendida pela 1ª Ré.
1.1 - Mas, basta atentar no alegado pela 1ª Ré na sua contestação (pt. 66), que “Naturalmente, não estão cobertas pela garantia da máquina avarias decorrentes de mau uso ou manutenção negligente”. (sublinhado nosso!)
1.2 - A 1ª Ré confessa ter concedido garantia de bom funcionamento e referindo expressamente as duas exclusões, mau uso ou manutenção negligente.
1.3 - Assim sendo, a matéria dada por provada tem de ser aditada com um pt. 59, que refira que a garantia da máquina dada pela 1ª ré não cobria avarias decorrentes do mau uso ou manutenção negligente.
2 - De acordo com o art.º 874.º e 879.º do C. Civil, o contrato de compra e venda é aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço, e tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa, a obrigação de entregar a coisa e a obrigação de pagar o preço.
“A compra e venda é um contrato pelo qual se transmite uma coisa ou um direito contra o recebimento de uma quantia em dinheiro (preço). O resultado final do negócio consistirá na aquisição por parte do comprador do direito de propriedade sobre o bem vendido, à qual acrescerá como efeito subordinado a aquisição da posse, bem como a aquisição por parte do vendedor do direito de propriedade sobre determinadas espécies monetárias” – cfr., Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, Contratos em Especial, Almedina, 4.ª edição. Pag. 19.
2.1 - Impõe o art.º 882.º/1 do C. Civil que a coisa deve ser entregue no estado em que se encontrar ao tempo da venda, o que implica para o comprador a obrigação de a recepcionar ou levantar no lugar e no momento devidos.
2.2 - O contrato de compra e venda é um contrato primordialmente não formal, pois não está, em regra, sujeito a forma especial, salvo nos casos expressamente previstos na lei (art.º 219.º do C. C).
2.3 - Por sua vez, estatui o art. 913º do Código Civil:
1- Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria.
2.4 - A este propósito comentam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, pág. 205:
“...O artigo 913º cria um regime especial cuja real natureza constitui um dos temas mais debatidos na doutrina germânica [...] para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas:
a)Vício que desvalorize a coisa;
b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada;
e) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor;
f) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
2.5 - Equiparando, no seu tratamento, os vícios às faltas de qualidade da coisa e integrando todas as coisas por uns e outras afectadas na categoria genérica das coisas defeituosas, a lei evitou as dúvidas que, na doutrina italiana por exemplo, se têm suscitado sobre o critério de distinção entre um e outro grupo de casos.
2.6 - Como disposição interpretativa, manda o n.º2 atender, para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria [...]”.
2.7 - A venda da coisa pode considerar-se venda defeituosa quando, numa perspetiva de “funcionalidade”, contém:
“Vício que a desvaloriza ou impede a realização do fim a que se destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destina.”
2.8 - Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art. 913º, nº2)” – cfr. “Compra e Venda de Coisas Defeituosas - Conformidade e Segurança”, de Calvão da Silva, pág. 41.
2.9 - A coisa será defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado.
2.10 - O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado.
2.11 - Assim, flui da conjugação do disposto nos arts. 913º, n.º1, a 915º do C. Civil, que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor a reparação da coisa; de anulação do contrato, do direito de redução do preço e também do direito à indemnização do interesse contratual negativo.
2.12 - Mas, de acordo o disposto no art.º 916.º do C. Civil a responsabilidade do vendedor pela venda de coisa defeituosa depende da prévia denúncia do vício ou falta de qualidade da coisa pelo comprador, exceto se aquele tiver actuado com dolo, denúncia a efectuar até 30 dias depois de conhecido o vício e dentro de seis meses após a entrega da coisa.
2.13 - Como sublinha Pedro Romano Martinez, ob. cit. pág. 143,
“a denúncia tem de ser feita nos seis meses posteriores à entrega da coisa. Assim, o comprador tem seis meses a contar da entrega da coisa para descobrir o defeito; depois de ter descoberto o efeito, o adquirente tem trinta dias para o comunicar ao vendedor. Se o defeito for detetado ao fim de sete meses após a entrega já nada poderá fazer.
3 - Assim, e em primeiro lugar, os defeitos têm de se verificar durante o prazo de garantia de 6 meses após a sua entrega; em segundo lugar, têm de ser denunciados dentro do prazo de 30 dias após o seu conhecimento.
3.1 - Estão, por isso, estabelecidos prazos de caducidade para a denúncia dos defeitos.
3.2 - Como sublinha Pedro Romano Martins, ob. citada, a pág. 493,
“não foram estabelecidos prazos de prescrição, mas de caducidade, pelo que não estão sujeitos à interrupção, nem à suspensão (art.º 328.º) e só poderão ser impedidos (art.º 331.º CC)”.
3.4 - E bem se escreveu no Ac. S.T.J., de 1998/11/25, in B.M.J., 481º-430,
“o impedimento da caducidade, não tem como efeito o início de novo prazo, mas o seu afastamento definitivo.
Com efeito, decorre expressamente do art.º 328.º que o prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe senão nos casos em que a lei o determine.
4 - No caso concreto, está provado que a Autora e as Rés são sociedades comerciais que se dedicam aos objectos sociais identificados em factos provados 1, 2 e 3, pelo que à compra e venda da máquina dos autos é aplicável exclusivamente o regime previsto para a venda de bens defeituosos no Código Civil - artigos 916.º e 917.º - , que prevê prazos de caducidade do direito de acção mais curtos, designadamente que esse direito caduca seis meses após a entrega da coisa.
5 - Assim, está provado que o contrato de compra e venda da máquina foi celebrado em inícios de Dezembro de 2018, entregue nas instalações da Autora no dia 12/12/2018, e que a máquina deixou de funcionar em 12/04/2019, pelo que a Autora em 08/05/2019 pediu assistência para reparação da máquina em causa, negando-se a 1ª Ré a enviar técnico e a reparar a máquina em causa.
6 - Donde, pode concluir-se que a denúncia do vício ou falta de qualidade da máquina ocorreu e foi conhecido da vendedora, 1ª Ré, dentro do prazo de seis meses, subsequentes à sua entrega pela vendedora, 1ª Ré.
7 - Conclusão que não é afastada pelo acto da existência do prazo de garantia de bom funcionamento, como se tentará demonstrar.
8 - Com efeito, em sede de contestação as 1ª Ré alegou e por isso confessou a existência de garantia de bom funcionamento, cujo aditamento já se solicitou à matéria dada por assente.
9 - Mas não se provou qual o prazo de garantia.
10 - Reza o art.º 921.º do C. Civil:
“1. Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador”.
4. No silêncio do contrato, o prazo da garantia expira seis meses após a entrega da coisa, se os usos não estabelecerem prazo maior.
5. O defeito de funcionamento deve ser denunciado ao vendedor dentro do prazo da garantia e, salvo estipulação em contrário, até trinta dias depois de conhecido.
4. A ação caduca logo que finde o tempo para a denúncia sem o comprador a ter feito, ou passados seis meses sobre a data em que a denúncia foi efetuada”.
10.1 - A respeito do funcionamento da garantia cita-se o que se escreveu no Acórdão do STJ de 6 de Setembro de 2011, proferido no processo 4757/05.4TVLSB.L1.S1 (ALVES VELHO):
“Mediante a concessão da “garantia” o vendedor assegura, pelo período da sua duração, o bom funcionamento da coisa, assumindo a responsabilidade pela sanação das avarias, anomalias ou quaisquer deficiências de funcionamento verificadas em circunstâncias de normal utilização do bem.
Como, nestes casos, o vendedor assume a “garantia de um resultado” bastará ao comprador provar o mau funcionamento durante o período de duração da mesma, sem necessidade de identificar a respetiva causa ou demonstrar a respetiva existência no momento da entrega, cabendo ao vendedor que pretenda subtrair-se à responsabilidade (obrigação de reparação, troca, indemnização) opor-lhe e provar que a concreta causa de mau funcionamento é posterior à entrega da coisa (afastando a presunção de existência do defeito ao tempo da entrega que justifica e caracteriza a garantia de bom estado e funcionamento) e imputável a ato do comprador, de terceiro ou devida a caso fortuito (cf. CALVÃO DA SILVA, “Compra e Venda de Coisas Defeituosas”, 4ª ed., 65; Ac. STJ, de 03/4/2003 – proc. 03B809)”.
10.2 - A garantia de bom funcionamento refere-se apenas à reparação ou substituição da coisa,
10.3 - independentemente de culpa do vendedor ou do produtor, mas não à anulação do contrato ou redução do preço, nem indemnização.
11 - No caso concreto, a recorrente/compradora beneficia de garantia de funcionamento prestada pela 1ª Ré, exceto para os casos de mau uso ou má manutenção da máquina.
12 - Não se provou quais os motivos pelos quais a máquina deixou de funcionar a 12/04/2019.
13 - O não funcionamento da máquina ocorreu no prazo de seis meses a contar da sua entrega e caso se entenda que não foi estipulado nenhum prazo, a garantia tem a duração de seis meses, como decorre do art. 921º, n.º 2, do Código Civil.
14 - Daí a recorrente entender dever ser julgado procedente o pedido formulado a final na p.i., sob o pt. 3.

Nestes termos e nos melhores de direito deve a decisão recorrida ser revogada e, consequentemente, ser substituída por uma outra que julgue procedente por provado o pedido 3 formulado pela recorrente contra a 1ª Ré de reparação da máquina, ou caso tal não seja possível, na sequência da avarias de 12/04/2019, substituir a máquina de sublimação por outra igual à fornecida, sem prejuízos dos danos sofridos que foram relegados, para execução de sentença, como é de direito e justiça!.”

A recorrida respondeu, apresentando contra-alegações, com as seguintes
conclusões:

“1ª – Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos autos e que julgou a acção totalmente improcedente, decisão com a qual a Recorrente não se conforma, por convenientemente entender que “a 1ª Ré confessa ter concedido garantia de bom funcionamento e referindo expressamente as duas exclusões, mau uso ou manutenção negligente”, quando, na verdade aquela apenas se limitou a afirmar que a máquina por si vendida à Autora avariou como resultado da acção da própria Autora, que “procedeu erradamente à ligação do neutro e da fase” e, portanto, estas avarias decorrentes do mau uso ou manutenção negligente nunca estariam cobertas por qualquer garantia.
2ª – Muito bem andou a 1ªInstância ao decidir que “a Autora não logrou demonstrar ter sido convencionada, expressa ou tacitamente, qualquer garantia do bom funcionamento da máquina vendida pela 1º Ré, não alegando, por outro lado, os factos que permitam sustentar que tal garantia resulta dos usos. Por outro lado, a Autora não logrou demonstrar que, aquando da entrega, a máquina vendida pela 1º Ré padecesse de qualquer vício ou desconformidade, sendo certo que, por estar em causa facto constitutivo do seu direito, sobre si recai o ónus da prova, nos termos do art. 342º, n.º 1 do Código Civil – aliás, dos factos provados até resulta a demonstração do contrário, pois que se provou que, depois de instalada, a máquina ficou a funcionar perfeitamente.”
3ª – Entende, erradamente, a Recorrente que “… beneficia de garantia de funcionamento prestada pela 1ª Ré, excepto para os casos de mau uso ou má manutenção da máquina. Não se provou quais os motivos pelos quais a máquina deixou de funcionar a 12/04/2019. O não funcionamento da máquina ocorreu no prazo de seis meses a contar da sua entrega e caso se entenda que não foi estipulado nenhum prazo, a garantia tem a duração de seis meses, como decorre do art. 921º, n.º 2, do Código Civil. Daí a recorrente entender dever ser julgado procedente o pedido formulado a final na p.i., sob o pt. 3.”
4ª – Decorre inequivocamente da matéria de facto dada como provada (pontos 4 a 12, 16 a 22 e 37 a 39 dos factos provados) que a 1º Ré instalou a máquina por si vendida à Recorrente, no local e nas condições por esta determinadas, tendo a mesma ficado a funcionar perfeitamente, ou seja, aquela máquina não padecia de qualquer defeito, e tampouco foi convencionada qualquer garantia. Aliás, ficou provado que a máquina avariou por via de “uma ligação invertida nos cabos eléctricos da ficha ligada à tomada, trocando uma fase pelo neutro. Factos que foram objecto de prova cristalina, quer por confissão da legal representante da Recorrente, quer por depoimento directo, imparcial e objectivo das testemunhas M. S. (funcionária da Autora), P. C., C. F. e S. F. (estes três funcionários da 1ª Ré).
5ª – Perante a prova produzida, bem andou o Tribunal a quo ao concluir que “Na verdade, importa ter em consideração que, tal como é alegado pela Autora e referido pela testemunha M. S., a máquina fornecida pela Autora funcionou perfeitamente até ao período de ferias de Natal, no qual foi efectuada a alteração da instalação eléctrica da unidade fabril; após corrigida a ligação dos fios na ficha do cabo amovível que, depois desse período, ligava a máquina à tomada da parede, a referida máquina voltou a funcionar durante meses, o que permite considerar muito pouco plausível que a primeira avaria se tivesse ficado a dever a qualquer vício ou defeito da máquina, sendo certo que, além disso, a testemunha esclarece que o cabo amovível não faz parte do equipamento vendido – motivo pelo qual resultou não provado o alegado no art.º 26.º da Contestação da 2.ª Ré.
Por outro lado, constatando-se que nenhum outro equipamento da Autora ficou danificado e que, após a correcção do cabo amovível as máquinas que utiliza continuaram a funcionar, também não se afigura plausível que a primeira avaria se tenha ficado a dever à instalação fixa – ou seja, a que vai do quadro eléctrico até à tomada na parede.
As referidas circunstâncias, conjugadas com a constatação de que os fios na ficha do cabo amovível que liga a máquina à tomada da parede, conferem por isso, solidez ao depoimento da testemunha C. F., permitindo concluir que a causa da avaria foi a referida troca de fios.”
6ª – É, pois, factual e juridicamente impossível concluir, como pretende a Recorrente convencer este Alto Tribunal, que a situação destes autos consubstanciaria uma venda de coisa defeituosa; bem como, com a prova produzida, não é plausível a inserção nos factos provados de um ponto onde conste que a garantia da máquina dada pela 1ª Ré não cobria avarias decorrentes do mau uso ou manutenção negligente, até pelo simples motivo de não ter sido alegada a convenção, expressa ou tácita, dessa garantia. E era à Recorrente que cabia alegar, demonstrar e provar quer a existência de convenção, expressa ou tácita, que fixasse qualquer garantia do bom funcionamento da máquina vendida, quer que a máquina entregue pela 1ª Ré padecia de qualquer vício ou desconformidade, o que não logrou.
7ª – A compra e venda da máquina em discussão nos autos constitui um contrato entre duas empresas, sendo que a sociedade Recorrente adquiriu a dita máquina para o uso na sua actividade comercial, pelo que, desde logo, tem que se afastar o regime próprio dos direitos do consumidor plasmado no Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08/04, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 84/2008 de 21/05.
8ª – O contrato de compra e venda dos autos foge do âmbito de aplicação dos artigos 913º e 914º do Código Civil, dado que, como explanado supra e devidamente fundamentado na sentença em crise, a máquina vendida à Recorrente não padecia de qualquer vício ou desconformidade. Da mesma forma, exclui-se a aplicação do art. 921º do CC, uma vez que a garantia de bom funcionamento consagrada nesse artigo consiste numa cláusula contratual prestada voluntariamente pelo vendedor final ao comprador, através da qual o primeiro assegura que durante um determinado período temporal se obriga a reparar ou a substituir o bem independentemente de culpa das partes. Ora, in casu, a Recorrente nem sequer alegou a estipulação desta cláusula contratual entre si e a 1ª Ré aquando da compra da máquina, não alegou que entre a compradora e a vendedora foi acordada a garantia, as condições da mesma e o respectivo prazo, e, consequentemente, nenhuma prova foi produzida acerca destes factos (inexistentes nos autos).
9ª – Pelo supra exposto, muito bem decidiu o Tribunal a quo quando disse: “Assim, ao contrário do que parece pressupor a Autora, a existência da garantia de bom funcionamento não se presume. O que decorre do art. 921º, n.º 2, do Código Civil, não corresponde a uma presunção da existência de garantia, mas, tão só, a uma regra supletiva quanto ao seu prazo, quando, provada a existência de garantia de bom funcionamento da coisa, não tenha sido estipulado prazo para a mesma ou o mesmo não decorra dos usos. Ora, no caso dos autos, a Autora não logrou demonstrar ter sido convencionada, expressa ou tacitamente, qualquer garantia do bom funcionamento da máquina vendida pela 1ª Ré, não alegando por outro lado, os factos que permitam sustentar que tal garantia resulta dos autos.”
10ª – A Recorrente cita o Acórdão do STJ de 06/09/2011, proferido no âmbito do Processo n.º 4757/05.4TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, omitindo convenientemente que tal decisão tem por base o facto de as partes terem convencionado a garantia sobre o bem vendido, o que não acontece in casu. Portanto, as conclusões obtidas no douto acórdão citado não se aplicam aos presentes autos, e nem poderão servir de fundamento à pretensão da Recorrente, porquanto, inexistindo, nos termos do n.º 1 do art. 921º do Código Civil, convenção quanto à fixação de garantia, nunca se poderia aplicar o prazo supletivo previsto no n.º 2 do mesmo normativo.
11ª – Em suma, não assiste razão à Recorrente quando peticiona que “deve a decisão recorrida ser revogada e, consequentemente, ser substituída por uma outra que julgue procedente por provado o pedido 3 formulado pela recorrente contra a 1ª Ré de reparação da máquina, ou caso tal não seja possível, na sequência d avaria de 12/04/2019, substituir a máquina de sublimação por outra igual à fornecida, sem prejuízos dos danos sofridos que foram relegados para execução de sentença”, pois, tampouco alegou a convenção, expressa ou tácita, de qualquer garantia, pelo que, obviamente, nenhuma prova foi feita quanto à existência da mesma. Sendo que, não existe presunção de garantia de bom funcionamento. E, mais, conforme ampla e incontestavelmente demonstrado nos autos, a máquina vendida pela 1º Ré à Recorrente foi devidamente instalada e ficou a funcionar perfeitamente.”

II - Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornarem relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso ou se versarem sobre matéria de conhecimento oficioso, desde que os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Face ao teor das conclusões do recurso, são as seguintes as questões que cumpre apreciar, por ordem lógica, começando pelas que precludem as demais questões:
-- se deve ser alterada a matéria de facto no sentido pugnado pelo Recorrente e, caso esta proceda, se deve ser alterada a solução dada ao pleito.

III - Fundamentação de Facto

A sentença vem com a seguintes matéria de facto fixada:

2.1. Factos provados

1- A Autora dedica-se à atividade de comércio por grosso não especializado.
2- A primeira Ré tem por objeto social o comércio, importação e reparação de máquinas e equipamentos, designadamente para a indústria têxtil, nomeadamente máquinas a vapor e corte, e ainda ferramentas.
3- A segunda Ré dedica-se à atividade de montagem de instalações elétricas.
4- Em inícios de dezembro de 2018, a Autora declarou comprar á 1.ª Ré, que declarou vender à primeira, pelo preço de € 12.900,00, uma “Calandra Transmatic 7416 n.º 126”.
5- Em 12.12.18 a primeira Ré, Y, entregou a máquina à Autora.
6- A máquina foi colocada no local indicado pela Autora.
7- Naquele local não existia tomada de corrente elétrica.
8- Para que o técnico da 1.ª Ré desse a formação sobre o funcionamento daquela máquina, foi decidido pela gerente da Autora que a máquina seria ligada através de uma extensão até ao ponto de eletricidade mais próximo.
9- Dizendo que iria chamar um eletricista para colocar uma tomada na parede mais próxima, de forma a fazer a ligação da máquina a essa tomada.
10- O técnico da 1.ª Ré instalou a máquina, ligou-a, usando a referida extensão referida em 8 e deu formação durante cerca de duas horas.
11- A máquina encontrava-se a funcionar perfeitamente e assim estava quando o referido técnico saiu das instalações da Autora.
12- A máquina funcionou desde 12.12.18 até 21.12.18, data em que a Autora encerrou para gozo de férias.
13- A 2.ª Ré, S. e C., foi contratada para efetuar a instalação elétrica fixa na empresa da Autora.
14- A instalação elétrica fixa consistiu em trazer um cabo do quadro elétrico até uma tomada fixada na parede.
15- A segunda Ré, S. & C., fez os trabalhos referidos em 13 e 14 no período de férias da Autora.
16- Em 2.01.19, quando a Autora reabriu e a máquina em causa foi colocada em funcionamento, começou a sair fumo da mesma e o disjuntor do quadro elétrico desligou-se.
17- A 1.ª Ré foi telefonicamente contactada pela gerente da Autora, que lhe disse que a máquina estava a deitar fumo e solicitou que um técnico se deslocasse às suas instalações para proceder às necessárias reparações.
18- Chegado lá, o técnico percebeu que a máquina tinha entrado em curto-circuito e algumas peças estavam queimadas.
19- Tendo-lhe sido dito que a máquina esteve desligada durante alguns dias, dado que a empresa esteve encerrada para férias, e que, assim que a acionaram, começou imediatamente a deitar fumo e desligou-se.
20- O técnico da 1.ª Ré procedeu à gravação em vídeo da avaliação dos danos, explicando em alta voz o que foi visualizando.
21- O técnico da 1.ª Ré verificou que a ligação da máquina ao ponto de eletricidade, na parede, já estava feita, mas que havia sido feita uma ligação invertida nos cabos elétricos da ficha ligada á tomada, trocando uma fase pelo neutro.
22- Motivo pelo qual a máquina entrou em curto-circuito, o que originou que os inverteres e o transformador, peças da máquina, se tivessem queimado.
23- A autora tentou que um eletricista da segunda Ré, S. & C., Lda., se deslocasse ao local, o que não conseguiu.
24- A gerente da Autora pediu que lhe fosse apresentado orçamento para reparação da máquina.
25- Apresentado o orçamento, foi a 1ª Ré contactada por um sócio da Autora, um cidadão francês de seu nome P. B., o qual pediu para ser efetuado um desconto no custo da reparação, alegando que a Autora tinha suportado o custo de aquisição da máquina há menos de um mês.
26- A 1.ª Ré foi sensível a este argumento e acedeu em fazer um desconto no custo tabelado das peças a substituir e respetiva mão-de-obra, tendo fixado o custo da reparação em € 5.380,02 (cinco mil trezentos e oitenta euros e dois cêntimos).
27- Em 9.01.19 a primeira Ré, Y, enviou o orçamento referido em 26, que foi aceite pela Autora, dado que tinha encomendas para entregar e necessitava da máquina a trabalhar.
28- Perante isto, aquele sócio da Autora deu instruções para que a máquina fosse reparada, o que foi feito pela 1.ª Ré.
29- Feita a reparação, foi emitida a fatura n.º FAS 2019/52, datada de 16 de janeiro de 2019, a pronto pagamento, e que titula o montante de € 5.380,02 (cinco mil trezentos e oitenta euros e dois cêntimos).
30- A qual foi remetida para a sede da Autora e, por esta, foi devolvida à 1ª Ré.
31- A 1.ª Ré reclamou da Autora o pagamento do valor titulado naquela fatura.
32- Entretanto, a Autora contactou a 1.º Ré, no sentido de se deslocar às suas instalações a fim de falar sobre o pagamento da fatura.
33- Já nas instalações da Autora, a 1.º Ré constatou que a reunião seria entre as três empresas – Autora, 1.º e 2.ª Rés –, pretendendo aquela que uma destas assumisse o erro da instalação eléctrica que conduziu a avaria da máquina e que assumisse o custo da reparação.
34- Esta reunião não ocorreu na primeira data agendada, porque a 2.ª Ré tinha sido convocada e não compareceu nenhum seu representante.
35- Mais uma vez, a Autora marcou uma reunião com a aqui 1.ª Ré, em 13.03.2019, e, desta feita, estava presente a 2.ª Ré.
36- Confrontado o representante da 1.ª Ré, este disse que nenhuma responsabilidade lhe cabia dado que a avaria se deveu à inversão da ligação dos cabos elétricos, conforme verificado pelo seu técnico. 37- Por sua vez, o representante da 2.ª Ré referiu que essa ligação não tinha sido realizada por si, que haviam feito a ligação até à tomada, mas não a ligação que se encontrava feita da tomada até à máquina.
38- O cabo elétrico de ligação da tomada até à máquina foi adquirido pela Autora numa loja de material elétrico.
39- A ligação invertida dos fios elétricos, trocando uma fase pelo neutro, ocorreu na ficha na extremidade do cabo referido em 36.
40- Na sequência desta reunião, a gerente da Autora solicitou à 1.ª Ré a elaboração de um relatório técnico sobre a avaria ocorrida na máquina, alegando que necessitava desse documento para acionar o seguro.
41- Tendo sido emitido, em 18 de Março de 2019, um documento com o seguinte teor:
No seguimento do pedido de Assistência Técnica recebido a 14/01/2019 solicitado pela empresa X COMPANY, LDA., disponibilizamos os nossos serviços e deslocou-se um técnico às instalações da dita empresa.
Após análise, verificou-se que o equipamento supra identificado se encontrava parado tendo este sofrido uma entrada de corrente de 380V em vez de 230V, logo aí queimou os inverteres e o transformador.
Esta avaria deve-se a uma má ligação da ficha do equipamento, que ligaram o neutro à fase.
Não havendo forma de reparar as peças danificadas, esta avaria deu origem à nossa factura FAS2019/52”;
42- A 1.ª Ré continuou a exigir da Autora o pagamento do custo da reparação.
43- A 1.ª Ré, em 26 de abril do corrente ano, deu entrada de Requerimento de Injunção contra a Autora.
44- No qual peticiona o pagamento do montante global de € 5.599,94 (cinco mil quinhentos e noventa e nove euros e noventa e quatro cêntimos), correspondente ao capital de € 5.380,02 (valor titulado na fatura), acrescido de juros no valor de € 117,92 e do valor pago a título de taxa de justiça (€ 102,00).
45- Processo este que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de Fafe, sob o n.º 42054/19.5YIPRT, e que mereceu oposição da aqui Autora.
46- Em 12.04.2019, a máquina fornecida pela primeira Ré, Y, deixou de funcionar.
47- A gerente da Autora contactou diretamente o telemóvel do técnico da Ré, Sr. S. F., solicitando-lhe que o mesmo se deslocasse às suas instalações para reparar a máquina.
48- Aquele transmitiu-lhe que o pedido de assistência deveria ser efetuado perante os serviços administrativos da Y, os quais procederiam ao seu agendamento.
49- Dias depois, em 8 de maio passado, a Autora enviou um email à 1.ª Ré, pedindo assistência para reparação da máquina, e alegando que já o teria feito por diversas vezes, sem resposta.
50- Em resposta, a 1.ª Ré solicitou a regularização dos valores em dívida de forma a retomarem uma normal relação comercial.
51- A Ré Y nega-se a enviar técnico para verificar o que se passa e reparar a máquina em causa.
52- Contactado o fabricante italiano pela Autora este referiu que quem pode resolver a avaria é a primeira Ré, Y.
53- Tal situação fez com que a Autora tivesse de atrasar encomendas a clientes seus e a recusar outras encomendas, por não as puder cumprir dada a máquina de sublimação estar parada.
54- O disparo do disjuntor é uma forma de proteção dos aparelhos elétricos, para que um aparelho não cause danos à totalidade da rede elétrica.
55- Para além da máquina referida em 4, nenhum aparelho da Autora ficou danificado, e todos os aparelhos estavam ligados ao quadro que a 2.ª Ré instalou.
56- Na reunião referida em 35, o técnico da 1.ª Ré referiu que a instalação fixa efetuada pela 2.ª Ré obedecia a todas as normas de segurança.
57- A ligação da máquina à tomada fixa foi efetuada através de cabos amovíveis que pertenciam à Autora.
58- A 2.ª Ré emitiu a fatura 118/177 no montante de € 1.564,01 (IVA no valor de € 292,46), que Autora nunca pagou.

b) Factos não provados.

Artigo 4.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 4 dos Factos Provados.
Artigo 5.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 4 dos Factos Provados.
Artigo 6.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 4 dos Factos Provados.
Artigos 9 a 11.º da Petição Inicial.
Artigo 13.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 15 dos Factos Provados.
Artigos 14.º e 15.º da Petição Inicial.
Artigo 18.º da Petição Inicial, na parte em que se diz “imediatamente”.
Artigo 22.º da Petição Inicial.
Artigo 26.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 29 dos Factos Provados.
Artigo 27.º da Petição Inicial.
Artigo 28.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta dos pontos 32 a 34 dos Factos Provados.
Artigo 29.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 35 dos Factos Provados.
Artigo 33.º da Petição Inicial, na parte em que se diz “dado a empresa responsável pela instalação eléctrica ter ligado o neutro à fase”.
Artigo 34.º da Petição Inicial, salvo na parte que resulta do ponto 30 dos Factos Provados
Artigo 35.º da Petição Inicial.
Artigo 38.º da Petição Inicial.
Artigo 10.º da Contestação da 1.ª Ré, salvo na parte que resulta do ponto 10 dos Factos Provados.
Artigo 16.º da Contestação da 1.ª Ré, salvo na parte que resulta do ponto 20 dos Factos Provados.
Artigo 17.º da Contestação da 1.ª Ré.
Artigo 21.º da Contestação da 1.ª Ré, salvo na parte que resulta do ponto 24 dos Factos Provados.
Artigo 29.º da Contestação da 1.ª Ré, na parte em que se diz “imediatamente”.
Artigo 30.º da Contestação da 1.ª Ré, na parte em que se diz “também imediatamente”.
Artigo 35.º da Contestação da 1.ª Ré, salvo na parte que resulta do ponto 32 dos Factos Provados.
Artigo 36.º da Contestação da 1.ª Ré.
Artigo 43.º da Contestação da 1.ª Ré, salvo na parte que resulta do ponto 38 dos Factos Provados.
Artigo 44.º da Contestação da 1.ª Ré, salvo na parte que resulta do ponto 39 dos Factos Provados.
Artigos 48.º e 49.º da Contestação da 1.ª Ré.
Artigo 55.º da Contestação da 1.ª Ré, salvo na parte que resulta do ponto 48 dos Factos Provados.
Artigo 64.º da Contestação da 1.ª Ré.
Artigos 4.º e 5.º da Contestação da 2.ª Ré.
Artigo 9.º da Contestação da 2.ª Ré.
Artigo 12.º da Contestação da 2.ª Ré.
Artigo 17.º da Contestação da 2.ª Ré.
Artigo 18.º da Contestação da 2.ª Ré, salvo na parte que resulta do ponto 57 dos Factos Provados.
Artigo 22.º da Contestação da 2.ª Ré, salvo na parte que resulta do ponto 57 dos Factos Provados.
Artigo 23.º da Contestação da 2.ª Ré, salvo na parte que resulta do ponto 58 dos Factos Provados.
Artigo 26.º da Contestação da 2.ª Ré, salvo na parte que resulta do ponto 46 dos Factos Provados.

IV - Fundamentação de Facto e de Direito

A- Da impugnação de Facto

A Recorrente pretende que, com base no que entende ser uma confissão, se dê como provado que “a garantia da máquina dada pela 1ª ré não cobria avarias decorrentes do mau uso ou manutenção negligente”.
Funda-se para tanto no facto da 1ª Ré ter alegado na sua contestação que “66º Naturalmente, não estão cobertas pela garantia da máquina avarias decorrentes do mau uso ou de manutenção negligente.”
No entanto, esta afirmação não pode ser descontextualizada, havendo que interpretá-la.
A leitura dos articulados e a interpretação dos mesmos tem que ser efetuada de forma integrada, contextualizada e completa.
Há que atender que lhe são aplicáveis os princípios mencionados no artigo 236º do Código Civil, assim como, por afloramento de normas gerais de interpretação, o constante no artigo 9º do mesmo diploma.
Em resumo, ambos remetem para a vontade real do emissor da declaração, caso esta esteja consentida pela letra da declaração e seja percetível para o seu destinatário e também ao contexto em que foi expressada.
Logo na petição inicial, a Autora (não obstante o engano na sua numeração, referiu a Ré pelo seu nome) afirmou que não foi acordada qualquer garantia: “artigo 10º: A segunda ré, Y, não acordou com a autora qualquer período de garantia/bom funcionamento da máquina”.
Não é, pois, possível encontrar-se aqui qualquer confissão tácita ou ficta, de que no âmbito do contrato de compra e venda celebrado entre aquela Ré e a Autora foi acordado aquela garantia da máquina, visto que foi a própria Autora que o negou.
Por outro lado, a expressão escrita pela Ré, na contestação, insere-se já na parte conclusiva (“Em conclusão” escreve a Ré entre o artigo 60º e 61º), dedicada à aplicação do Direito, pelo que tal afirmação nem sequer inculca que a Ré tenha declarado prestar à Autora alguma garantia de bom funcionamento, mas tão só que, considerando o direito, aquela pretende que, se se considerar que da aplicação das nomas jurídicas resulta o seu dever de garantia da máquina (o que também não afirma), esta nunca cobriria avarias decorrentes de mau uso ou de manutenção negligente.
Assim, o artigo em causa não contém qualquer declaração no sentido da Ré assumir que declarou garantir o bom funcionamento da máquina, pelo que não há que considerar tal facto admitido por esta.
Da mesma forma, mesmo que se entendesse, o que como vimos se não entende, por não o ter sido escrito, que o que a Ré pretendia afirmar era que a máquina gozava da garantia concedida pelo regime legal aplicável ao caso, já a questão não se situaria no âmbito da alteração da matéria de facto provada, mas da aplicação de Direito.
É, assim, manifesto que a impugnação da matéria de facto provada tem que improceder.

B- Aplicação do Direito aos factos apurados

Da existência ou não de garantia

Visto que decorre das alegações da Recorrente que a mesma só pugna pela revogação da sentença no caso de alteração da matéria de facto provada, mas a mesma não o afirma expressamente, entende-se, pela jurisprudência das cautelas, proceder-se a uma análise jurídica do caso, se bem que sintética.
Dúvidas não há que entre a Autora e a 1ª Ré foi celebrado um contrato de compra e venda mercantil. A “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”, como o define o artigo 874º do Código Civil. Pela sua importância no mundo comercial, tem também regulamentação no Código Comercial, nos seus artigos 463º a 476º.
Sendo a Autora e 1ª Ré sociedades comerciais, tendo a primeira adquirido à segunda uma máquina para utilização na sua atividade comercial, que a vendeu no âmbito do seu objeto social, a compra e venda realizada tem natureza comercial, face ao disposto no artigo 2.º in fine do Código Comercial.
Como se viu, não se provou que a Ré vendedora declarou conceder uma garantia de bom funcionamento da máquina, nem assegurou, por determinado período, o seu bom funcionamento, assumindo a responsabilidade pela sanação de avarias, anomalias ou quaisquer deficiências de funcionamento verificadas em circunstâncias de normal utilização do bem.
Da mesma forma, também não se demonstrou que os usos e costumes apontassem para a obrigatoriedade na prestação de tal garantia.
Quando o vendedor assume ou lhe é imposto por lei ou usos que assuma a “garantia de um resultado”, basta ao comprador provar o mau funcionamento durante o período de duração da garantia, sem necessidade de identificar a respetiva causa ou demonstrar a respetiva existência no momento da entrega, cabendo ao vendedor que pretenda subtrair-se à responsabilidade (obrigação de reparação, troca, indemnização) opor-lhe e provar que a concreta causa de mau funcionamento é posterior à entrega da coisa - afastando a presunção de existência do defeito ao tempo da entrega que justifica e caracteriza a garantia de bom estado e funcionamento - e imputável a ato do comprador, de terceiro ou devida a caso fortuito. (1)
Face à qualidade dos seus intervenientes e as finalidades atribuídas ao contrato, resulta patente que a Autora não age na qualidade de consumidora, pelo que fica afastada a aplicação ao caso da garantia concedida ao consumidor, regulada de modo autónomo (no Decreto-lei 67/2003, de 8 de abril).
Determina o artigo 921º do Código Civil que se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador.
No presente caso não se demonstrou, nem convenção das partes, nem usos, que criassem a obrigação de garantia de bom funcionamento, nem se encontra lei especifica que o determine, face à natureza do contrato, bilateralmente mercantil.
Tal não implica, no entanto, que o comprador esteja desprovido de proteção quando se demonstre a venda de bem defeituoso. Se se apurar que na coisa ocorreu defeito após a celebração do contrato e esta é entregue nessas condições, “estaremos perante uma situação de cumprimento defeituoso, se o defeito é imputável ao vendedor (artigo 918º), ou de risco, em princípio a cargo do comprador, na hipótese contrária (artigo 796º, n.º 1)C:\Documents and Settings\mcordas\Ambiente de trabalho\Processo 3097-06.0TBVCT.G1.S1.doc - _ftn1 (2)”.
Como bem destaca a Recorrente, explicando em que consiste a coisa defeituosa, o artigo 913º do Código Civil, distingue para este efeito quatro categorias de vícios: “a)Vício que desvalorize a coisa; b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada; c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor; d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.” atendendo-se, para a determinação do fim da coisa vendida, à função normal das coisas da mesma categoria.
Da mesma forma, tem a mesma razão quando afirma que “flui da conjugação do disposto nos arts. 913º, n.º1, a 915º do C. Civil, que o comprador de coisa defeituosa goza do direito de exigir do vendedor a reparação da coisa; de anulação do contrato, do direito de redução do preço e também do direito à indemnização do interesse contratual negativo.” Quanto ao problema da caducidade do direito à reparação, que também aborda, nomeadamente quanto ao início do prazo para a reclamação dos defeitos previsto no artigo 471º do Código Civil), visto que a mesma não foi invocada e discutida na sentença, não há aqui que a tratar.
A sentença recorrida explana, sim, que “Assim, ao contrário do que parece pressupor a Autora, a existência da garantia de bom funcionamento não se presume. O que decorre do art.º 921.º, n.º 2, do Código Civil, não corresponde a uma presunção da existência de garantia, mas, tão só, a uma regra supletiva quanto ao seu prazo, quando, provada a existência de garantia de bom funcionamento da coisa, não tenha sido estipulado prazo para a mesma ou o mesmo não decorra dos usos.
Ora, no caso dos autos, a Autora não logrou demonstrar ter sido convencionada, expressa ou tacitamente, qualquer garantia do bom funcionamento da máquina vendida pela 1.ª Ré, não alegando, por outro lado, os factos que permitam sustentar que tal garantia resulta dos usos.
Por outro lado, a Autora não logrou demonstrar que, aquando da entrega, a máquina vendida pela 1.ª Ré padecesse de qualquer vício ou desconformidade, sendo certo que, por estar em causa facto constitutivo do seu direito, sobre si recai o ónus da prova, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil – aliás, dos factos provados até resulta a demonstração do contrário, pois que se provou que, depois de instalada, a máquina ficou a funcionar perfeitamente.”
Com efeito, o direito à reparação ou substituição da coisa vendida pressupõe necessariamente que haja defeitos que devam ser reparados pelo vendedor ou que, pela sua gravidade, imponham a substituição.
Por outro lado, na falta de garantia, “sobre o lesado recai o ónus de provar a falta de qualidade, legitimamente esperada, dos bens adquiridos (artigo 342º, n.º 1). Sobre ele recai também a prova do dano e do nexo causal entre o defeito e o dano. As rés, se provados aqueles requisitos, ver-se-iam na contingência de provar que o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua (artigo 799º, n.º 1 CC)” (3)
Ora, da matéria de facto provada decorre que após a compra, a máquina foi colocada no local indicado pela Autora e foi instalada pela 1ª Ré, que deu formação sobre a mesma durante duas horas, verificando-se que a máquina se encontrava a funcionar perfeitamente nessa altura (ponto 11 da matéria de facto provada).
Após foi efetuada instalação elétrica fixa na parede da Autora e após, já com recurso ao resultado dessa instalação, a máquina foi colocada em funcionamento, mas desta feita produziu fumo e o disjuntor do quadro elétrico desligou-se, porquanto tinha entrado em curto-circuito; apesar da a ligação da máquina ao ponto de eletricidade, na parede, já estar feita, a Autora adquiriu o cabo elétrico de ligação da tomada até à máquina e foi efetuada uma ligação invertida nos cabos elétricos da ficha ligada á tomada, trocando uma fase pelo neutro.
Ora, improcedendo a argumentação da Recorrente no sentido de incluir na matéria de facto provada a existência de garantia, como se viu e decidiu supra, verificando-se que a máquina estava em condições de funcionamento quando entregue e que foi a ligação à tomada efetuada através de um cabo adquirido pela autora, com troca da fase e do neutro, conclui-se que se não provou o defeito da máquina imputável à 1ª Ré, pelo que se mantém, de direito, tudo que se escreveu na sentença, face à falta de prova de qualquer defeito da coisa no momento da entrega.

V - Decisão

Por todo o exposto, julga-se a apelação totalmente improcedente e em consequência mantém-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.

Guimarães,

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Elisabete Coelho de Moura Alves



1. cf ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 06/09/2011, no processo 4757/05.4TVLSB.L1.S1, disponível no portal dgsi.pt.
2. cf acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/10/2013, no processo 3097/06.6TBVCT.G1.S1, disponível no portal dgsi.pt.
3. cf o já citado ac. do processo 3097/06.6TBVCT.G1.S1.