CONTRATO DE ARRENDAMENTO
BENFEITORIAS
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
INDEMNIZAÇÃO DO ARRENDATÁRIO
COMPENSAÇÃO
RECONVENÇÃO
Sumário


I – Sendo o contrato de arrendamento dos autos composto por duas páginas com dizeres impressos e alguns espaços em branco onde, em escrita manual, foram apostos vários dizeres, a que se seguem algumas cláusulas pré-elaboradas, nomeadamente aquela em que se consignou não ser possível ao inquilino fazer obras ou benfeitorias, a não ser as de conservação, sem autorização do senhorio por escrito, ficando as que fizer a pertencer ao prédio, não podendo o inquilino pedir por elas qualquer indemnização, e tendo o recorrente marido aposto a sua assinatura no contrato algumas linhas abaixo dessa cláusula, é de presumir que o mesmo a leu e assim tomou conhecimento dessa cláusula.
II - As benfeitorias realizadas pelos réus porque eram necessárias para poderem habitar o locado, integram-se na categoria de benfeitorias necessárias.
III - Considerando o disposto no artigo 236º do Código Civil, deverá interpretar-se a cláusula referida em I como referindo-se apenas às benfeitorias úteis e voluptuárias que não às benfeitorias necessárias.
IV - O crédito (ativo) a compensar não tem de estar reconhecido previamente para se poder invocar a compensação (salvo se esta for invocada na ação executiva); o reconhecimento será, obviamente, necessário, mas apenas para que a compensação se torne eficaz, podendo ocorrer em simultâneo na fase declarativa do litígio.
V - O regime atualmente previsto no artigo 266º, nº 2, al. c), do CPC acolhe claramente este entendimento: não estando o crédito ativo reconhecido, a compensação é possível, mas teráde ser pedida em reconvenção, passando o autor (titular do crédito passivo) a dispor de meios processuais adequados a contestar aquele crédito, invocando as exceções de direito material pertinentes. (sumário do relator)

Texto Integral


Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
V… intentou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra A… e mulher M…, pedindo que:
- seja declarado resolvido o contrato de arrendamento entre autor e réus;
- os réus sejam condenados a entregar, de imediato, o arrendado, totalmente, livre de pessoas e bens e no estado de conservação e limpeza com que o receberam;
- os réus sejam condenados a pagar ao autor a quantia de € 2.310,00 (dois mil trezentos e dez euros) referente ao preço das rendas vencidas e não pagas à data da entrada em juízo da presente ação, bem como as rendas que se vencerem na pendência da mesma e até trânsito em julgado da decisão que declare resolvido o contrato de arrendamento;
- os réus sejam condenados a pagar ao autor uma indemnização correspondente a um mês de renda por cada mês, ou fração de mês, desde o trânsito em julgado da decisão que declare resolvido o contrato de arrendamento até efetiva entrega do locado.
Alegou o autor, em síntese, que por contrato escrito de 1 de maio de 1998, Américo Pires Rafael deu de arrendamento ao réu marido o prédio sito em Campina de Faro, freguesia da Conceição, concelho de Faro, inscrito na matriz sob o artigo …, o qual foi destinado à habitação do réu e do seu agregado familiar, pelo prazo de um ano renovável, pela renda mensal de € 125,00, que é atualmente de € 165,00, sendo que os réus não pagam a renda desde Janeiro de 2017, pelo que em Março de 2018 encontrava-se em dívida a a quantia de € 2.310,00, o que constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento.
Os réus contestaram, impugnando parte da factualidade alegada, contrapondo que foram residir para o que é agora o locado em 1992, altura em que a edificação era um palheiro, que lhes foi cedido a título de comodato gratuito, tendo os réus, a expensas suas, melhorado e transformado tal palheiro numa habitação. Esse palheiro faz parte do prédio urbano identificado pelo autor, sendo que o contrato de arrendamento abrangeu o palheiro e todo o prédio urbano.
Os réus pagaram a renda até Janeiro de 2017 apesar de apenas lhe ser facultada a utilização do palheiro, pelo que haverá que ser feita uma redução equitativa da renda que deverá ser abatida à quantia em dívida, e deixaram de pagar a renda naquela data por o autor lhes ter comunicado a sua intenção de celebrar novo contrato e da renda passar a ser de € 265,00€, o que não foi aceite pelos réus, pelo que perante a recusa destes o autor deixou de receber a renda de € 165,00, não tendo os réus procedido à consignação em depósito do valor das rendas por serem pessoas pouco instruídas.
Os réus procederam à realização de obras de melhoramento do locado, nomeadamente uma nova cozinha, que o autor acompanhou e chegou a fazer sugestões, pelo que a instauração da presente ação configura um abuso de direito.
Em reconvenção peticionam os réus a condenação do autor no pagamento da quantia de € 38.000 pelas benfeitorias que ao longo dos últimos 20 anos fizeram no locado.
Houve réplica, concluindo o autor pela improcedência do pedido reconvencional.
Realizada a audiência prévia, foi fixado o valor da causa e proferido despacho saneador tabelar, com subsequente identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento, sendo a final proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, e ao abrigo dos citados preceitos legais, julgo:
I - A presente acção procedente, por provada, e, em consequência:
- declaro resolvido o contrato de arrendamento existente entre A e RR;
- Condeno os Réus a entregar ao Autor, completamente livre e devoluto de pessoas e bens, o arrendado;
- Condeno os Réus a pagar ao Autor:
a) O montante de 2310,00 € (dois mil trezentos e dez euros), correspondente às rendas vencidas e não pagas desde Janeiro de 2017 a Fevereiro de 2018, acrescido de juros de mora à taxa legal desde a data de vencimento dessas rendas;
b) As rendas vincendas, à razão de 165,00€ mensais, devidas desde a data de entrada da acção até ao trânsito em julgado da presente sentença;
c) O valor indemnizatório equivalente ao das rendas correlativas ao período em que os Réus mantiverem a disponibilidade do arrendado, à razão de 165,00€/mês, após o trânsito da presente sentença e até à efectiva entrega do anexo.
II - Julgo totalmente improcedente, por não provado, o pedido reconvencional e dele absolvo o A./reconvindo.»
Inconformados, os réus apelaram desta decisão, restringindo o recurso à parte da sentença que julgou improcedente o pedido reconvencional, pugnando pela respetiva revogação e substituição por outra decisão que julgue procedente aquele pedido, tendo finalizado as alegações com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«1. Vem o presente recurso interposto, em virtude da Meritíssima Juiz “a quo” ter julgado totalmente improcedente, por não provado, o pedido reconvencional e dele absolvo o A/ Reconvindo.
2. Ora, o Recorrente não se conforma com esta absolvição, em primeiro lugar, porque da conjugação dos factos supra descritos dados como provados, em virtude do princípio da imediação, pelas regras da experiência, da prova pericial e como resultado directo dos depoimentos das testemunhas que: o locado não tinha divisões interiores, nem isolamento do telhado, nem canalização (existia um depósito de água no exterior do anexo) nem esgotos ou energia elétrica (sendo a eletricidade fornecida a partir de uma derivação feita desde os armazéns dos pais do autor), a casa de banho situava-se noutro anexo independente deste e que ficava no exterior e a cozinha era composta por uma “chaminé” e um lava-loiça situados no exterior do anexo e que as obras em si feitas foram realizadas pelos Recorrentes bem como por si custeadas, sendo conhecidas e autorizadas pelo pai do Recorrido e por si;
3. Resultando claro que os melhoramentos introduzidos pelos Recorrentes ao longo dos anos, com as sucessivas intervenções levadas a cabo por estes e a suas expensas,
4. E, com o seu trabalho, pois tendo sido dado como provado que os materiais por serem mais baratos, provinham de obras em que o Recorrente trabalhava (recorrendo a regras da experiência) e sendo este pedreiro de profissão, era ele que fazia as melhorias nos seus tempos livres na companhia da testemunha J… e mais recentemente na companhia de JE…, o que, havendo jornadas normais de trabalho, só poderia ser tomado de empreitada aos fins de semana e feriados,
5. Pelo que a douta Sentença em crise, deveria ter dado como provado, o facto não dado como provado, identificado pela alínea e) designadamente, que os Recorrentes “tenham destruído a sua saúde, os seus tempos de lazer, a sua vida familiar aos fins de semana, durante anos, para transformar o palheiro numa casa”, elevando-o ao estatuto de habitação pelas condições de dignidade que lhe atribuíram, fazendo em muito aumentar o seu valor comercial.
6. Os Recorrentes sempre pagaram pontualmente a sua renda, tão-somente, quando o Recorrido lhe comunicou verbalmente um aumento de € 100 mensais ao arrepio das disposições previstas no NRAU, é que estes as deixaram de pagar, mas não se contesta a resolução do contrato de arrendamento nesta sede.
7. E, com a devida vénia, refira-se que sentido de oportunidade não faltou ao Recorrido, uma vez, que foi simplesmente após os Recorrentes terem concluído a única obra que faltava, designadamente, a cozinha (que inclusivamente acabou por ser escolhida e opinada pela esposa do Recorrido) que a tentativa de proceder a este aumento ilegal, que se deu como provado, ocorreu.
8. Não podem os Recorrentes concordar ainda com a fundamentação invocada pela Meritissima Juiz “a quo” quanto à não redução do contrato Contrato de Arrendamento celebrado a 01 de Maio de 1998, que postula na cláusula 6º que “Ao inquilino não é permitido fazer obras ou benfeitorias, a não ser as de conservação, sem autorização do senhorio, por escrito e devidamente reconhecida, ficando estipulado que as que fizer ficam pertencendo ao prédio não podendo o inquilino alegar retenção ou pedir por elas qualquer indemnização”
9. Com a devida vénia, este é um formulário pré-preenchido da “Porto Editora”, havendo que se aplicar o regime das Cláusulas Contratuais Gerais, sendo que ao abrigo do artigo 8º devem ser excluídas dos contratos “as cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5º”
10. Ora, o Recorrente nunca comunicou por escrito as benfeitorias que queria fazer, pois na boa fé, desconhecia o teor dessa mesma cláusula, tendo feito, as referidas melhorias no bem imóvel, ocorreram nos últimos 30 anos há vista de todos, de forma pública e notória com conhecimento e autorização do primitivo proprietário e do Recorrido.
11. Sem que qualquer reparo, lhe fosse nesse sentido apontado, antes pelo contrário... as referidas obras até eram incentivadas, ora, s.m.o. parece-nos que a impossibilidade de recorrer a compensação pelas benfeitorias úteis e necessárias realizadas, por violação do artigo 6º, não cabe “in casu” nos corolários da boa fé, e poderá outrossim, ser qualificado como abuso enriquecimento sem causa para o Recorrido,
12. Com efeito, estipula o artigo 216º do CC, subordinado à epígrafe “Benfeitorias”, que: “1. Consideram-se benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa.2. As benfeitorias são necessárias, úteis ou voluptuárias. 3. São benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia, o valor; voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante.”
13. Do teor do preceito se induz o conceito de benfeitorias como sendo as obras e despesas realizadas em propriedade alheia com vista a conservá-la, melhorá-la ou simplesmente embelezá-la, assim revestindo o carácter de necessárias, úteis ou voluptuárias.
14. As obras realizadas pelos Recorrentes como resultou manifestamente provado em sede de audiência de discussão e julgamento, incrementaram o valor do bem, tendo atribuído ao imóvel condições de habitabilidade condignas, pelo que devem ser qualificadas sempre como úteis e necessárias.
15. Sendo certo que o legislador no tocante às benfeitorias necessárias e úteis estabelece o art. 1273º do CC o seguinte: “1. Tanto o possuidor de boa-fé como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela. 2. Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.”
16. Pelo que, tendo havido resolução judicial do contrato de arrendamento por falta de pagamento, sempre em obediência à legislação civil vigente, deverá haver compensação pelas benfeitorias paga aos Recorrentes.
17. Ora, seguindo-se o aresto, com as devidas adaptações, do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no âmbito do processo 5767/2003-6 em que foi Relator o Venerando Senhor Juiz Desembargador Pereira Rodrigues, a outra conclusão não se poderá chegar, pois “Ora, no caso em apreço dúvida se não suscita de que estamos em face de benfeitorias necessárias, uma vez que ficou provado, entre o mais, que as obras de reparação do imóvel eram indispensáveis face ao estado de deterioração do mesmo e destinavam-se a evitar as infiltrações de água e humidade.
Porém, entendeu-se na sentença que a A. não tinha direito à indemnização pedida, uma vez que o direito do possuidor à indemnização das benfeitorias necessárias e úteis só pode ser exercido quando o proprietário reivindica triunfantemente a coisa, sendo como que um contra-direito relativamente à pretensão reivindicatória, como referem Pires de Lima e Antunes Varela[2], aliás citando o acórdão da Relação de Évora, de 10.05.77[3]. Ora, não parece que no tocante às benfeitorias necessárias se possa defender que o direito à indemnização só pode ser exigido se a coisa for reivindicada pelo seu proprietário, não só por tal não decorrer da lei, como por não ser razoável, por poder conduzir a um enriquecimento ilegítimo do titular da coisa à custa do seu possuidor ou, pelo menos, abrir caminho a que aquele não tenha de efectuar qualquer reparação necessária, pois que o possuidor a faria e só teria de ser reembolsado com a entrega da coisa. De resto, o Acórdão da Relação de Évora citado não diz o que a citação refere. O que diz é que “a indemnização por benfeitorias que não podem levantar-se sem detrimento da coisa, como resulta claro do disposto no art. 1273º-2 do Cód. civil, destina-se a evitar um enriquecimento sem causa, à custa do possuidor que é obrigado a entregar a coisa benfeitorizada. Sem obrigação de entrega, não haverá, pois, direito a indemnização, como implicitamente se pressupõe na economia do disposto nos arts. 1.273º a 1275º do Cód. Civil, é geralmente reconhecido e se declara mesmo expressamente no Código Civil alemão (§ 1 001)”.
18. Pelo que, para se obstar a um enriquecimento sem causa pelo Recorrido, se sindica, que sejam os Recorrentes compensados pelas benfeitorias realizadas, devendo ser julgado procedente por provado o Recurso apresentado.
19. No entanto, a Meritíssima Juiz “a quo” qualificou o pedido reconvencional dos ora Recorrentes como abuso de direito, em virtude do decurso do tempo, para agora, em sede judicial virem sindicar a compensação pelas benfeitorias realizadas.
20. Os Recorrentes, fizeram outrossim as benfeitorias dadas como provadas, na expectativa de que fosse legítimo as poderem fazer, uma vez que eram públicas, notórias e pelos sucessivos “dominus” autorizadas.
21. A questão da invocação tardia, só se prende, com o comportamento preconizado (e dado como provado) pelo Recorrido que decidiu de forma unilateral e ilegal, proceder a um aumento da renda, e pior recusando-se a receber a antiga, incorrendo em mora.
22. Apenas, nesta fase, decorrente da conduta do Recorrido e findando o seu contrato podem os Recorrentes sindicar justa compensação pelo investimento feito no bem imóvel, pois de outra forma, mantendo-se a relação contratual, nunca haveria essa necessidade, uma vez que os Recorrentes se encontravam de boa fé quanto às obras realizadas, na expectativa, de viverem no locado até ao seu falecimento, se assim não fosse, nunca teriam investido tanto num bem que sabiam não ser seu.
23. Ora, o seu investimento incrementou sem motivo lógico ou causa, o bem do Recorrido, pelo que resolvido o contrato, vir peticionar essa compensação, não se pode qualificar como “venire contra factum proprium”, como decidido.»

O autor apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões essenciais a decidir consubstancia-se em saber:
- se ocorreu erro de julgamento no que respeita à matéria de facto;
- se os réus/recorrentes têm direito às benfeitorias realizadas no locado.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1 - Por documento escrito, constante de formulário-tipo da Porto Editora, de 1 de Maio de 1998, intitulado de Contrato de Arrendamento, AR…, na qualidade de senhorio, e A…, na qualidade de inquilino, declararam fazer o “presente contrato de arrendamento relativo a uma moradia sita em Campinas de Faro, inscrita na matriz da freguesia da Conceição, concelho de Faro, sob o nº …, (…), pelo prazo de 1 ano, a começar no dia 1 de Maio de 1998 e a terminar em 30 de Abril de 1999, considerando-se prorrogado por sucessivos períodos iguais (…) a renda inicial anual acordada é de 300,000$00 (…) em duodécimos de 25.000$00 cada, será paga em casa do senhorio no primeiro dia útil do mês anterior a que respeitar (…)”
2 - Ficou ainda consignado naquele escrito que “O prédio, ou a parte do prédio, arrendado por este contrato, destina-se a habitação do arrendatário (…) Ao inquilino não é permitido fazer obras ou benfeitorias, a não ser as de conservação, sem autorização do senhorio, por escrito e devidamente reconhecida, ficando estipulado que as que fizer ficam pertencendo ao prédio, não podendo o inquilino alegar retenção ou pedir por elas qualquer indemnização (…).
3 - A renda em Janeiro de 2017 ascendia a 165,00€.
4 - Por escritura de Justificação e Doação outorgada em 13 de Junho de 2000, no Cartório Notarial de São Brás de Alportel, AR… e mulher G… doaram ao autor a propriedade plena do prédio em causa.
5 - Os réus residem no arrendado pelo menos desde 1998.
6 - Os réus procederam ao pagamento da renda até Dezembro de 2016.
7- No início da década de 1990 do século passado, quando os réus chegaram ao Algarve passaram a residir num palheiro, que fazia parte do prédio referido em 1, por cedência gratuita de AR….
8 - O prédio referido em 1 era composto, para além do palheiro, por um edifício térreo com divisões para ramada.
9 - O palheiro não possuía divisões, o teto era em chapa, não tinha isolamento, não tinha cozinha completa, nem canalização, tubagens ou cabos elétricos, e distava a alguns metros de um anexo com uma sanita e um lavatório.
10- Ao longo dos anos e à medida das suas disponibilidades, os réus criaram divisões no palheiro e separaram as áreas da cozinha e dos quartos.
11 - As obras referidas em 10 foram sendo feitas com o conhecimento e autorização verbal de AR… e a partir de 2000 com o conhecimento do autor.
12 - Atualmente o “palheiro” dispõe de sala, cozinha, quartos, casa de banho, canalizações, cabos elétricos, telhado, arruamento exterior.
13 - As obras levadas a cabo pelos réus para transformarem o palheiro no referido em 12 incrementaram o valor do prédio referido em 1.
14 - Os réus procederam à renovação da cozinha.
15 - Em Janeiro de 2017, em nome do autor foi proposto verbalmente aos réus a celebração de um novo contrato de arrendamento, em que figurasse o nome do autor como senhorio e a renda passasse a ser de € 265,00.
16 - Os réus não aceitaram aquele aumento de renda.
17 - Naquele mês de Janeiro e perante a recusa dos réus, quem recebia a renda em nome do autor, recusou o recebimento da quantia mensal de € 165,00.
18 - Durante as obras de remodelação da cozinha referidas em 14, a mulher do autor deslocou-se mais do que uma vez ao arrendado e fez sugestões quanto às obras.
19 - Durante as obras iniciais a que os réus procederam no anexo referido em 9 e antes da celebração do escrito referido em 1, os réus residiram, de forma gratuita, numa outra edificação existente no mesmo prédio onde se situa o arrendado.

E foi considerado não provado que:
a) O acordo referido em 1 e 2 estivesse incluído, para além do palheiro, o edifício térreo referido em 8.
b) Os réus sejam iletrados.
c) As obras de renovação da cozinha referidas em 14 e 18 tenham sido efetuadas depois de Dezembro de 2016.
d) Os réus tenham despendido € 7.000,00 na renovação da cozinha do locado.
e) Os réus tenham destruído a sua saúde, os seus tempos de lazer, a sua vida familiar aos fins-de-semana, durante anos, para transformar o palheiro no prédio referido em 12.
f) Ao longo dos últimos 20 anos, os réus tenham investido no palheiro a quantia de € 38.000,00.
g) O anexo referido em 9 fosse constituído por 3 divisões.
h) Esse anexo tivesse teto em madeira e telha.
i) Esse anexo tivesse cozinha e energia elétrica.
j) O preço da renda estabelecido no escrito referido em 1 fosse inferior ao preço de mercado nessa altura.
k) Os réus tenham edificado uma casa de banho, arrecadações, barbecue, canil e galinheiros em terreno do autor e sem o consentimento deste;
l) Esse terreno não seja parte integrante do arrendado e que nunca tenha sido arrendado aos réus.

Da impugnação da matéria de facto
Dizem os recorrentes na conclusão 5ª, após o que alegam nas conclusões 2ª, 3ª e 4ª, «que a douta Sentença em crise, deveria ter dado como provado, o facto não dado como provado, identificado pela alínea e) designadamente, que os Recorrentes “tenham destruído a sua saúde, os seus tempos de lazer, a sua vida familiar aos fins de semana, durante anos, para transformar o palheiro numa casa”, elevando-o ao estatuto de habitação pelas condições de dignidade que lhe atribuíram, fazendo em muito aumentar o seu valor comercial».
Ao impugnar a matéria de facto, deve o recorrente observar minimamente os ónus que lhe são impostos pelo artigo 640º do CPC.
Tais ónus consistem em[1]:
- especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (aos quais deve aludir na motivação do recurso e sintetizar nas conclusões), mencionando o diverso sentido em que se impõe decidir quanto a cada um dos factos impugnados, por referência ao que foi julgado provado na decisão recorrida (ou seja, na indicação do sentido ou sentidos das respostas a dar, em substituição das consideradas);
- fundamentar as razões da discordância, especificando os concretos meios probatórios em que se funda a impugnação;
- quando se baseie em depoimentos testemunhais que tenham sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo da possibilidade de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
No caso concreto, embora os recorrentes tenham dado cumprimento ao primeiro dos referidos ónus, já o mesmo não se pode dizer quanto aos demais, pois embora aludam à prova pericial, não só não especificam quais os demais concretos meios probatórios em que fundam a impugnação, uma vez que aludem genericamente a regras da experiência e depoimentos das testemunhas, não tendo também – por isso - indicado as passagens da gravação em que se funda o recurso.
Ora, a inobservância, por parte dos recorrentes, dos aludidos ónus determina a imediata rejeição do recurso no tocante à impugnação da matéria de facto, pelo que nenhuma alteração será feita à decisão sobre tal matéria proferida pela 1ª instância, e mais concretamente à alínea e) dos factos não provados.

Das benfeitorias
O contato de arrendamento dos autos consta de um formulário pré-elaborado, mais concretamente de um formulário-tipo da Porto Editora e, nessa medida, entendem os recorrentes que há que aplicar ao caso o regime das Cláusulas Contratuais Gerais, pois não tendo sido comunicada ao recorrente marido a cláusula 5ª do contrato, deve a mesma ser excluída, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 5º e 8º do DL nº 446/85, de 25 de outubro.
É sabido que a massificação do comércio jurídico operada no século XX se consubstanciou na criação de modelos negociais impostos por grandes empresas aos respetivos clientes, aos quais nada mais resta do que a eles aderir ou não. A supremacia de que gozam os autores/utilizadores de tais modelos traduz-se, com frequência, na introdução nesses contratos de cláusulas abusivas, através das quais se inflacionam os direitos e prerrogativas dos predisponentes e se reduzem ou eliminam as respetivas obrigações e encargos, assim como se acentuam as obrigações e se atenuam os direitos dos respetivos aderentes.
Tal situação, subversora de um dos princípios básicos da vida jurídica privada, o da liberdade contratual, impunha que o legislador interviesse, para impor as necessárias correções. Em Portugal foi publicado o DL nº 446/85, de 25 de outubro, apontado, conforme enunciado no seu artigo 1º, às “cláusulas contratuais gerais elaboradas de antemão, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respetivamente, a subscrever ou aceitar”.
Subsequentemente, nomeadamente para conformar o sistema jurídico português com as diretrizes contidas na Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, o aludido diploma foi alterado pelo Decreto-Lei nº 220/95, de 31 de agosto e pelo Decreto-Lei nº 249/99, de 7 de julho, que acrescentou um novo número ao artigo 1º do DL nº 446/85.
Com essas alterações passou a ficar claro que o regime previsto para as cláusulas contratuais gerais se aplica igualmente “às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar” (nº 2 do artigo 1º, com a redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 249/99).
Escreve a este propósito Joaquim de Sousa Ribeiro[2]:
«À luz deste critério, o que conta é “a possibilidade real de uma influência modificadora no conteúdo da cláusula”, numa fórmula repetidamente utilizada pelo Supremo Tribunal Alemão. A preformulação só é factor de aplicação do regime especial de tutela quando afaste a possibilidade de participação da contraparte na modelação do conteúdo. Mas os dois dados têm que vir ligados por um nexo causal, só relevando a impossibilidade de influência que resulte da prefixação rígida do conteúdo. Outras causas exógenas, estranha ao processo de contratação, podem levar à impugnação da validade do consentimento (no quadro do regime dos negócios usurários, por exemplo), mas são inconsiderados para efeito de aplicação do regime dos contratos de adesão.
Mas é claro que esse regime só se aplicará às cláusulas que satisfaçam este requisito. E, não obstante a designação, é frequente acontecer que nem todo o contrato seja de adesão, encontrando-se alguns pontos da sua disciplina prefixados, mas outros abertos à negociação. Nessa hipótese, só as cláusulas do primeiro tipo se regem pelas normas especiais referentes aos contratos de adesão, aplicando-se às restantes o regime geral dos contratos.»
Como é salientado no acórdão do Tribunal de Justiça, de 30.5.2013, processo C‑488/11[3], emitido no âmbito de pedido de decisão prejudicial que tinha por objeto a interpretação da Diretiva 93/13/CEE do Conselho, em particular, do seu artigo 6.°, n. 1, o sistema de proteção instituído pela diretiva assenta na ideia «de que o consumidor se encontra numa situação de inferioridade relativamente ao profissional, no que respeita tanto ao poder de negociação como ao nível de informação, situação esta que o leva a aderir às condições redigidas previamente pelo profissional, sem poder influenciar o seu conteúdo».
E prossegue o aludido acórdão do TJ:
«Essa proteção é particularmente importante no caso de um contrato de arrendamento para habitação celebrado entre, por um lado, um particular que atua com fins privados e, por outro, um profissional de questões imobiliárias. As consequências da desigualdade existente entre as partes são, com efeito, agravadas pelo facto de que, de um ponto de vista económico, tal contrato diz respeito a uma necessidade essencial do consumidor, a saber, a de se proporcionar um alojamento, e tem por objeto somas que representam o mais das vezes, para o arrendatário, uma das rubricas mais importantes do seu orçamento, ao passo que, de um ponto de vista jurídico, se trata de um contrato que se insere, regra geral, numa regulamentação nacional complexa, muitas vezes mal conhecida pelos particulares.»
Por sua vez, a respeito do ónus da prova, escreve Joaquim Sousa Ribeiro[4]:
«Quanto ao âmbito de aplicação, já se sustentou que a presunção de falta de negociação tem um alcance geral, vigorando, quer nos casos de adesão a cláusulas contratuais gerais, que nos de adesão a cláusulas individualizadas. Mas entendemos que ela só abrange a primeira hipótese. Depõe nesse sentido, em primeiro lugar, o facto de a regra visar transpor a 3.ª frase do n.º 2 do art. 3.º da directiva, que reza assim: “Se o profissional sustar que uma cláusula normalizada foi objeto de negociação individual, caber-lhe-á o ónus da prova”. Não obstante a infelicíssima tradução, é absolutamente certo que a previsão se refere às cláusulas contratuais gerias, como, além do mais, resulta directamente das versões noutras línguas. Ora, é critério hermenêutico bem assente que, na dúvida quanto ao sentido de uma norma de transposição, deve prevalecer a interpretação conforme à directiva.
Por outro lado, a diferenciação de regime, quanto a este ponto, tem uma justificação material evidente. Se faz parte de um determinado contrato uma cláusula preformulada, com um conteúdo igual ao das que um dos contraentes inclui, por rotina, na multiplicidade de contratos do mesmo tipo que celebra, prima facie tudo aponta para que se trate de uma cláusula introduzida unilateralmente, sem possibilidade de negociação pela contraparte. Digamos, até, que neste caso, o requisito não tem grande autonomia, sendo como que absorvido pelas restantes características das cláusulas contatuais gerais – a preformulação e o uso generalizado -, as únicas que o aderente terá de provar. Ao interessado restará apenas contrariar aqueles indícios, provando que, no caso concreto, ao seu parceiro contratual foi dada uma suficiente oportunidade de participar na formação do conteúdo. A ter êxito a prova desse facto, tal obstará a que a cláusula possa ser qualificada de adesão, o que constituirá uma circunstância impeditiva da aplicação do regime que lhes é próprio, no quadro da relação em causa.
Já o mesmo não se passa com cláusulas ajustadas a uma relação singular. Neste caso, não se vislumbra, à partida, qualquer elemento objectivo que nos diga, com uma boa dose de verosimilhança, se o contrato é de adesão ou não. Não há, assim, qualquer base factual legitimadora de uma presunção no primeiro sentido. E a falta de negociação é, nesta hipótese, o requisito autonomamente constitutivo do direito, que um dos contraentes se arroga, a beneficiar do particular regime de tutela que a tem por pressuposto. De acordo com os critérios gerais, cabe-lhe a ele a respectiva prova.»
Revertendo ao caso concreto, tendo o autor/recorrido contestado o pedido reconvencional de compensação de benfeitorias, cabia-lhe provar, enquanto facto impeditivo do direito dos réus/recorrentes, que a cláusula 5ª do contrato de arrendamento era do conhecimento do réu marido aquando da celebração do contrato.
E será que tal prova foi feita?
Na sentença recorrida respondeu-se afirmativamente a esta questão, dizendo-se o seguinte:
«(…), AR… e o Réu negociaram os termos do contrato, tanto que estipularam primeiro fazerem as obras e depois celebrarem o contrato escrito (facto 19).
Por outro lado, o contrato não é extenso, é redigido de forma clara e compreensível.»
Ora, não parece poder extrair-se da matéria de facto constante do ponto 19 dos factos provados que tenha havido qualquer negociação dos termos do contrato, já que aquilo que foi dado como provado nesse ponto, foi apenas que durante as obras iniciais a que os réus procederam no anexo referido no ponto 9 dos factos provados – anexo que tinha uma sanita e um lavatório e que distava alguns metros do palheiro que foi objeto do arrendamento -, os réus residiram, de forma gratuita, numa outra edificação existente no mesmo prédio onde se situa o arrendado.
Relativamente ao segundo argumento invocado na sentença, isto é, a pouca “extensão” do contrato e a sua redação clara e compreensível, já se nos afigura ser possível presumir que o réu marido teve efetivo conhecimento da cláusula 5ª do contrato, na qual se consignou: «[a]o inquilino não é permitido fazer obras ou benfeitorias, a não ser as de conservação, sem autorização do senhorio, por escrito e devidamente reconhecida, ficando estipulado que as que fizer ficam pertencendo ao prédio, não podendo o inquilino alegar retenção ou pedir por elas qualquer indemnização».
Na verdade, o contrato de arrendamento é composto por duas páginas com dizeres impressos e alguns espaços em branco onde, em escrita manual foram apostos vários dizeres, nomeadamente a identificação do senhorio e do inquilino, o objeto do arrendamento - uma “moradia” e a sua localização -, o início do contrato, o montante da renda, o local do pagamento e o tipo de renda (livre) [cláusulas 1ª, 2ª e 3ª].
Seguem-se, sete cláusulas pré-elaboradas, entre as quais a cláusula 5ª acima transcrita, inserida na página onde os contraentes apuseram as respetivas assinaturas no contrato.
Ora, se o recorrente marido assinou o contrato, podendo facilmente tomar conhecimento da referida cláusula, a qual consta algumas linhas acima do local onde apôs a assinatura, é de presumir que o mesmo leu tal cláusula, até porque, contrariamente aos que os réus alegaram, não se provou que os mesmos sejam iletrados – cfr. alínea b) dos factos não provados.
Não pode, pois, dizer-se que não foi dado conhecimento de tal cláusula ao recorrente marido e, nessa medida, não pode considerar-se excluída do contrato a cláusula em referência [cfr. art. 8º, alínea a) do DL 446/85].
Daqui não se segue, porém, como veremos de seguida, que os recorrentes não devam ser compensados pelas benfeitorias realizadas no locado.

O contrato dos autos foi celebrado em 1 de maio de 1998, portanto na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de outubro.
Ora, a Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), dispõe no artigo 57º, nº 1, sob a epígrafe “Aplicação no tempo), que «[o] NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo das normas transitórias», o que significa que o NRAU é aplicável ao contrato de arrendamento dos autos.
Assim, relativamente à indemnização de despesas e levantamento de benfeitorias, estatui o nº 1 do artigo 1046º do Código Civil, que «[f]ora dos casos previstos no artigo 1036º, e salvo estipulação em contrário, o locatário é equiparado ao possuidor de má fé quanto a benfeitorias que haja feito na coisa locada».
Da equiparação do locatário ao possuidor de má fé resulta a perda do direito às benfeitorias voluptuárias [art. 1275º, nº 2, do CC] e do direito de retenção [art. 756º, al. b), do CC].
In casu, como se viu, foi estipulado no contrato de arrendamento não ser permitido ao inquilino, o aqui recorrente marido, fazer obras ou benfeitorias, a não ser as de conservação, sem autorização do senhorio, por escrito e devidamente reconhecida, ficando estipulado que as que fizer ficam pertencendo ao prédio, não podendo o inquilino alegar retenção ou pedir por elas qualquer indemnização.
As obras realizadas pelos réus na coisa locada revestem a nosso ver a natureza de benfeitorias necessárias. Conforme distingue o artigo 216º, nº 3, do Código Civil «[s]ão benfeitorias necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; úteis as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe aumentam, todavia o valor; voluptuárias as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante.”
Ora, destinando-se o contrato de arrendamento a habitação dos réus, e constando nele tratar-se de uma moradia, o certo é que, como aliás se reconhece na sentença recorrida, e decorre dos pontos 7 e 10 dos factos provados e da alínea a) dos factos não provados, o objeto do contrato sempre se restringiu a um palheiro, pelo que apesar do prédio onde se situa o “palheiro” ser composto por outro edifício, a utilização deste não foi cedida ao réu.
Neste contexto, as benfeitorias que foram realizadas pelos réus eram necessárias para que estes pudessem habitar de uma forma minimamente condigna o imóvel. Trata-se de benfeitorias necessárias, senão mesmo de uma condição para a execução do contrato, dado que se impunha a sua realização a fim de tornar o locado habitável. Não parece razoável que o locatário após ter feito obras que transformaram o locado numa casa habitável, quisesse prescindir do valor despendido, caso fosse obrigado a entregar o locado ao senhorio. Tal constituiria um grave desequilíbrio no sinalagma contratual[5].
Entendemos, pois, que de acordo com a interpretação que temos por mais correta da dita cláusula, considerando o disposto no artigo 236º do Código Civil deverá concluir-se que a mesma se reporta às benfeitorias úteis e voluptuárias, e não às benfeitorias necessárias.
Só assim, aliás, encontra explicação plausível, que as obras referidas tenham sido feitas com o conhecimento e autorização verbal do primitivo senhorio e a partir do ano de 2000 com o conhecimento do autor, e que durante as obras de remodelação da cozinha a mulher do autor se tenha deslocado mais do que uma vez ao locado e feito sugestões quanto às obras [cfr. pontos 11 e 18 dos factos provados].
Não pode assim acompanhar-se a argumentação expendida na sentença recorrida, nomeadamente quando se invoca um abuso de direito dos réus, que se afigura de todo inexistente.
O autor/recorrido deve, portanto, reembolsar os réus do valor despendido por estes a título de benfeitorias necessárias.
E que valor é esse?
Na sentença recorrida deu-se como provado que as obras levadas a cabo no palheiro para o transformar na casa de habitação a que o arrendamento se destinou, “incrementaram o valor do prédio”, sem se ter indicado um valor e sem que se tenha também mencionado o valor das obras realizadas pelos réus/recorrente [cfr. ponto 13 dos factos provados].
Fundamentou-se a decisão de facto quanto a esta matéria nos seguintes termos:
«O facto 13 resulta igualmente desse relatório pericial e esclarecimentos posteriormente prestados pelo Sr. Perito em complemento do mesmo (fls. 90), sendo que independentemente do valor acrescido que se possa atribuir ao prédio por força dos melhoramentos introduzidos pelos RR ao longo dos anos, é irrefutável que as sucessivas intervenções levadas a cabo por estes no anexo em causa conferiram-lhe condições dignas de habitabilidade e isso forçosamente faz aumentar o seu valor
Consta do aludido relatório pericial, elaborado pelo Eng.ª JP… (ref.ª citius 6503997), que «[o] valor estimado das obras em causa é de 9.441.80 € e o valor acrescido para o imóvel será de 4.248,81».
Ora, não consta da fundamentação da decisão de facto que este valor tenha sido validamente posto em causa por qualquer outro elemento de prova, pelo que se tem como correto o mesmo.
Assim, ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 1, do CPC, esta Relação decide alterar o ponto 13 dos factos provados, o qual passará a ter a seguinte redação:
«13 - As obras levadas a cabo pelos réus para transformarem o palheiro no referido em 12 tiveram um valor de € 9.441.80 e incrementaram o valor do locado em € 4.248,81.»
Será, pois, o primeiro dos referidos valores aquele a ter em consideração para efeitos de indemnização a atribuir aos réus a título de benfeitorias necessárias, em conformidade com o disposto no artigo 1273º, nº 1, do Código Civil.

Procedendo parcialmente a reconvenção, há que abordar um último aspeto, que tem a ver com a compensação que os réus pretendem efetuar no âmbito da presente ação.
Na verdade, peticionaram os réus em reconvenção, que o autor fosse condenado a pagar-lhes benfeitorias no montante de pelo menos € 38.000,00, “sendo deste montante efectuada a compensação pelas rendas vencidas e vincendas que se vierem a liquidar na pendência da acção”.
E, de facto, nada há a opor a tal pretensão.
A compensação é um meio de o devedor se livrar da obrigação, por extinção simultânea do crédito equivalente de que disponha sobre o seu credor[6].
Depende dos seguintes requisitos[7]:
- Existência de créditos recíprocos;
- Fungibilidade das coisas objecto das prestações e identidade do seu género;
- Exigibilidade do crédito que se pretende compensar.
Está aqui em causa este último requisito, ou seja, a exigibilidade do invocado crédito dos réus, reconhecido por este Tribunal da Relação, que estes pretendem compensar no crédito reconhecido ao autor, resultante da condenação dos réus em 1.ª instância no pagamento das rendas vencidas e vincendas
Nos termos do artigo 817º do Código Civil, não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, tem o credor o direito de exigir judicialmente o seu cumprimento e de executar o património do devedor (…)
É assim judicialmente exigível a obrigação que, não sendo voluntariamente cumprida, dá direito à ação de cumprimento ou à execução do património do devedor (neste caso, se estiver munido de título executivo).
Tal exigibilidade é excluída no caso das obrigações naturais [o cumprimento não é judicialmente exigível - art. 402º do CC] e, bem assim, nas obrigações sob condição ou a termo, se a condição não se verificou ou o prazo não se tiver vencido.
Como refere Antunes Varela[8], esta é a razão legal «por que o declarante não pode livrar-se duma obrigação civil, invocando como compensação um crédito natural sobre o credor ou um crédito ainda não vencido. Tão pouco procederá para o efeito um crédito contra o qual o notificado possa e queira fundadamente invocar qualquer facto que, com base no direito substantivo, conduza à improcedência definitiva da pretensão do compensante (prescrição, nulidade ou anulabilidade, por ex.) ou impeça o tribunal de julgar desde logo a pretensão procedente (v. gr., excepção de não cumprimento do contrato …).
Destas últimas considerações decorre, manifestamente, que o crédito (ativo) a compensar não tem de estar reconhecido previamente para se poder invocar a compensação; o reconhecimento será, obviamente, necessário mas apenas para que a compensação se torne eficaz, podendo ocorrer em simultâneo na fase declarativa do litígio[9].
Assim, é exigível judicialmente o crédito suscetível de ser reconhecido em ação de cumprimento; «a exigibilidade do crédito para efeito de compensação não significa que o crédito (activo) do compensante, no momento de ser invocado, tenha de estar já definido judicialmente: do que se trata é de saber se tal crédito existe na esfera jurídica do compensante e preenche os requisitos legais (…).
Realidade distinta da exigibilidade judicial do crédito, imposta pelo art. 847.º, n.º 1, al. a), do CC, é o respectivo reconhecimento judicial, não obstante só possa operar a compensação caso ambos os créditos venham a ser reconhecidos na acção judicial em que se discutem»[10].
Como se afirmou no acórdão da Relação do Porto de 09.05.2007[11], «constituiria verdadeiro paradoxo aceitar-se o exercício, pelo credor passivo, do seu direito de crédito, através da competente acção de cumprimento e exigir-se ao declarante da compensação na mesma acção (réu) que a invocação em juízo do seu crédito carecesse de reconhecimento judicial prévio».
Veja-se que o regime previsto no artigo 266º, nº 2, alínea c), do CPC acolhe claramente este entendimento, aí se prevendo que a reconvenção é admissível quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação, seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor.
Assim, não estando o crédito ativo reconhecido, a compensação é possível, mas terá de ser pedida em reconvenção, passando o autor (titular do crédito passivo) a dispor de meios processuais adequados a contestar aquele crédito, invocando as exceções de direito material pertinentes[12].
É esta, precisamente, a situação espelhada nesta ação, pelo que nada obsta a que seja declarada a compensação de créditos requerida pelos réus/reconvintes.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, decidem:
a) julgar a reconvenção parcialmente procedente, condenando-se o autor a pagar aos réus a quantia de € 9.441.80, a título de indemnização pelas benfeitorias necessárias realizadas no locado;
b) declarar compensado este crédito dos réus no crédito do autor resultante da condenação dos réus na 1ª instância.
c) manter no mais a sentença recorrida.

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Custas da apelação e da reconvenção a cargo de autor e réus na proporção do respetivo decaimento, sem prejuízo, quanto aos réus, do apoio judiciário de que beneficiam.
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Évora, 3 de dezembro de 2020
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Tomé Ramião (2º adjunto)
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[1] Cfr., na jurisprudência, inter alia, o Ac. do STJ de 15.09.2011, proc. 1079/07.0TVPRT.P1.S1, in www.dgsi, como os demais adiante citados; na doutrina, Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª ed., pág. 181 e Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014 - 2ª edição, pp. 132-133.

[2] In Direito dos Contratos Estudos, Coimbra Editora, 2007, pp. 189-190.

[3] Citado no acórdão da Relação de Lisboa de 19.06.2014, proc. 3093/12.4TJLSB.L1-2.

[4] Ob. cit., pp. 197-199.

[5] Cfr., neste sentido, o acórdão da Relação de Lisboa de 28.06.2013, proc. 26051/11.1T2SNT.L1-6.

[6] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., p. 197.

[7] Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, 9ª ed., 192.

[8] Ob. cit., p. 204.

[9] Acórdão do STJ de 14.03.2013, proc. 4867/08.6TBOER-A.L1.S1.

[10] Acórdão do STJ de 02.07.2015, proc. 91832/12.3YIPRT-A.C1.S1; no mesmo sentido, o acórdão do STJ de 10.04.2018, proc. 23656/15.5T8SNT.L1.S1, que aqui seguimos de perto. Distinta é a situação de se pretender operar a compensação na fase executiva, caso em que se tem entendido, sem discrepância, que será de exigir que o crédito ativo tenha (também) força executiva – cfr. acórdão do STJ de 02.06.2015, proc. 4852/08.8YYLSB-A.L1.S2 e a vasta jurisprudência nele citada.

[11] Proc. 0721357.

[12] Cfr. Paulo Ramos Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Vol. I, p. 236; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 4ª ed., pp. 535-536.