PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
IMPOSSIBILIDADE DA PRESTAÇÃO
Sumário

I - Toda a defesa deve ser deduzida na contestação (princípio da concentração da defesa na contestação), exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado; depois da contestação, só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente;
II - No que respeita à matéria de exceção, o réu vencido, condenado no pedido, não pode vir a fazer valer em ação futura a matéria de exceção que estava em condições de ter oposto ao autor na contestação da primeira ação;
III – O referido princípio da concentração da defesa na contestação (cfr. artigo 573.º do CPC), incluindo na defesa superveniente (como se deduz da conjugação dos artigos 588.º, n.º 1, e 729.º, al. g)), determina a preclusão de toda a defesa que o demandado não haja oportunamente feito valer contra a concreta causa de pedir invocada pelo autor.
IV - A impossibilidade da prestação, para ter a virtualidade de fazer extinguir a obrigação, tem de ser absoluta, «no sentido de que a prestação se torne efectivamente irrealizável, não bastando uma impossibilidade relativa, correspondente à maior dificuldade de realização da prestação», o mesmo é dizer que a impossibilidade da prestação enquanto causa extintiva da obrigação exige bem mais que a difficultas praestandi.

Texto Integral

Processo n.º 16046/18.0T8PRT-A.P1 - Embargos de executado
Comarca do Porto
Juízo de Execução do Porto (J6)

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
Centro Hospitalar B…, E.P.E., veio, por apenso aos autos de execução comum para entrega de coisa certa e para prestação de facto que, sob o n.º 16046/18.0T8PRT, correm termos pelo Juízo de Execução (J6) da Comarca do Porto, em que figura como executado, e em que é exequente “C…, L.da”, deduzir oposição, por embargos, à execução, com os seguintes fundamentos:
A exequente, baseando-se na sentença proferida em 10.07.2012 no processo n.º 796/08.1TVPRT, que constitui o título executivo, pretende que o tribunal fixe o prazo de 90 dias para que o executado reponha o estabelecimento no exacto estado em que se encontrava antes de 01.03.2008 e bem assim que entregue esse estabelecimento livre de pessoas e coisas, que não aquelas que está obrigado a lá recolocar, mas as decisões condenatórias são insusceptíveis de serem executadas porque estão, há muito, integralmente cumpridas e apenas não estarão totalmente cumpridas por motivos que lhe são (à exequente) exclusivamente imputáveis porque, reiterada e infundadamente, sempre se recusou a retomar a posse e a exploração da cantina/bar em causa.
No seguimento da ordem de restituição proferida em 02.07.2008 no âmbito do procedimento cautelar de restituição provisória de posse instaurado pela aqui exequente, em cumprimento do ordenado, reconstruiu o espaço físico da cantina/bar explorada pela exequente, tendo respeitado as áreas e o pé-direito anteriormente existentes, instalando todos os bens e equipamentos (inteiramente novos) necessários ao seu normal funcionamento, obra essa que foi concluída em 09 de Dezembro de 2008.
Concluídas essas obras, foi a exequente imediatamente informada de tal facto – em 09.12.2008 -, bem como de que poderia retomar posse do seu estabelecimento às 08 horas do dia seguinte, mas, sem motivo, optou por não retomar a posse do estabelecimento comercial.
A cantina/bar encontra-se, de facto, em condições absolutamente similares às anteriormente existentes, tendo sido respeitadas as áreas do estabelecimento.
Sucede que a remodelação/ampliação do Hospital teve como consequência a implantação de novos elementos na área onde anteriormente se localizava o estabelecimento, designadamente a zona da antiga cozinha foi ocupada por um núcleo de elevadores e dois novos pilares, localizados no topo da Ala, junto ao torreão Nascente do Hospital.
Quer isto dizer que a zona onde se localizava anteriormente o estabelecimento, fruto das profundas obras de remodelação e expansão do edifício hospitalar, já não existe tal qual era, encontrando-se, agora, parcialmente ocupada por elementos estruturais do edifício Hospitalar, sem os quais a estrutura existente não pode manter-se, circunstância que, no entanto, em nada afecta os direitos da exequente em relação ao seu estabelecimento, pois, quando comparada a configuração anterior com a resultante da intervenção realizada em 2008 e a actual, concluímos que as áreas são praticamente equivalentes, apenas diferindo a posição da cozinha e arrumos.
O regresso do edifício hospitalar ao estado anterior a 2008 é, face às condições estruturais existentes e à funcionalidade do mesmo, impossível de obter e ao não aceitar receber o estabelecimento comercial, apesar de este estar em perfeitas condições para laborar, com equipamentos novos adquiridos em 2008 e com áreas absolutamente similares às que tinha na sua anterior configuração, a ora exequente incorre numa «situação paradigmática de mora do credor», uma vez que, «sem motivo justificado, não aceitou, nem aceita, a prestação que lhe foi oferecida pelo CH B… nos termos legais, nem praticou os actos necessários ao cumprimento da obrigação – cfr. artigo 813.º do Código Civil».
No fundo, o objectivo da exequente é protelar no tempo os seus alegados prejuízos patrimoniais por não estar a explorar o estabelecimento e vir a ser indemnizada por alegados danos sofridos com a não realização da prestação, pretensão que, além de infundada, é manifestamente abusiva, «constituindo um claro e inequívoco abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, motivo pelo qual, também por aqui, deve a execução improceder».
Concluiu pedindo que, na procedência dos embargos, seja julgada extinta a execução.
Com a petição de embargos juntou documentos, arrolou testemunhas e requereu a realização de perícia colegial.
Por despacho de 23-01-2019, foram, liminarmente, recebidos os embargos e, notificada nos termos e para o efeito previstos no artigo 732.º, n.º 2, do CPC, a exequente apresentou contestação, alegando, em síntese:
Fundamentos da oposição à execução a que se poderiam subsumir as alegações do Executado/Embargante seriam os previstos no art. 729º, al. g), (aplicável por remissão do art. 860º, nº 1, do CPC) e 868.º, n.º 2, do CPC.
No caso, base essencial dos embargos é que o Executado cumpriu o judicialmente determinado no ano de 2008, concretamente, em 9 de Dezembro de 2008, mas isso é “um impossível legal e lógico”, pois a sentença exequenda é de 11 de Julho de 2012.
Por outro lado, depois de dizer que cumpriu a sentença exequenda, o executado contradiz-se, alegando que é impossível o seu cumprimento.
Aceita a impossibilidade, mas esta é inteiramente imputável ao Executado/Embargante e a impossibilidade imputável a uma parte num contrato equivale a incumprimento desse contrato, nos termos do art. 801º, nº 1, do CC.
Concluiu pela manifesta improcedência dos embargos.
Em 22.10.2019, realizou-se audiência prévia e, tendo-se frustrado uma tentativa de conciliação, considerando que estavam reunidas as condições necessárias e suficientes para conhecer de mérito, a Sra. Juiz proferiu saneador-sentença, julgando totalmente improcedentes os embargos deduzidos e determinando o prosseguimento da execução.
Inconformado, o embargante veio interpor recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões:
………………………………
………………………………
………………………………
A embargada/recorrida contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos (de oposição por embargos) e com efeito devolutivo.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Em face do teor das conclusões formuladas pelo recorrente, a questão a apreciar e decidir consiste em saber se os factos alegados pela embargante/recorrente são subsumíveis a algum dos fundamentos legais de oposição à execução baseada em sentença, concretamente, se configuram:
- o cumprimento da obrigação exequenda;
- a impossibilidade (parcial) de cumprimento.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Foram considerados relevantes para a decisão os seguintes factos:
1. No processo que correu termos pela extinta 1ª Vara Cível do Porto sob o n.º 796/08.1TVPRT, em que foi autora a ora exequente/embargada e réu o ora executado/embargante, foi proferida a seguinte decisão: «Pelo exposto julga-se parcialmente procedente a presente acção em consequência do que se condena o réu:
a) a reconhecer que se mantém em vigor o contrato de cessão de exploração do ajuizado estabelecimento comercial, sendo o réu cedente e a autora cessionária;
b) a restituir em definitivo à Autora o mesmo estabelecimento, para a legítima exploração da cantina/bar, o seu local e todos os bens que o compõem, e que do mesmo espaço retirou;
c) a repor no estado em que se encontrava em 29 de Fevereiro de 2008 toda a estrutura física deste estabelecimento, com as suas ligações e estruturas eléctricas, de água e de gás, aberturas, divisões de espaço, pavimentos, revestimentos, pinturas, materiais componentes e cobertura (…)».
2. A referida sentença transitou em julgado em 09/07/2015[1].
3. As alegações sobre a matéria de facto, no processo declarativo, foram proferidas em 08/02/2012 e a sentença foi proferida, na primeira instância, em 11/07/2012.

2. Fundamentos de direito
O executado pode pôr em causa a execução em bloco, evitando ou impedindo o prosseguimento de actos executivos.
Com a instauração da presente execução, pretende a exequente obter o cumprimento coercivo de obrigação de entrega de coisa certa (o estabelecimento de cantina/bar do Hospital B…, de cuja exploração é concessionária) e de uma obrigação de facere (a reposição do mesmo estabelecimento no estado em que se encontrava à data de 29.02.2008).
Relativamente à execução para entrega de coisa certa, dispõe o artigo 860.º, n.º 1, do CPC que a oposição pode ter por fundamento algum ou alguns dos “motivos especificados nos artigos 729.º a 731.º, na parte aplicável, e com fundamento em benfeitorias a que tenha direito».
Sendo o título executivo uma sentença, aplica-se o artigo 729.º que enuncia taxativamente os fundamentos da oposição à execução, entre eles, o previsto na alínea g): «Qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento;(…)».
Quanto à execução para prestação de facto, dispõe o artigo 868.º, n.º 2, do CPC que «O devedor é citado para, no prazo de 20 dias, deduzir oposição à execução, mediante embargos, podendo o fundamento da oposição consistir, ainda que a execução se funde em sentença, no cumprimento posterior da obrigação, provado por qualquer meio».
Também nesta forma de execução comum, sendo o título executivo uma sentença, tem aplicação o disposto no artigo 729.º, mas com esta especificidade: o cumprimento (não qualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, mas apenas o cumprimento) pode provar-se por qualquer meio (e não, apenas, por documentos).
Requisito comum é que o facto extintivo ou modificativo da obrigação exequenda seja posterior ao encerramento da discussão em 1.ª instância.
O Professor Miguel Teixeira de Sousa (“post” inserido em 15.01.2016 no blogue do IPPC) explica assim a razão desse requisito:
«A exigência da superveniência do facto em relação ao encerramento da discussão em 1.ª instância não é problemática. Esse é o momento que marca a referência temporal do caso julgado: por um lado, as partes têm o ónus de invocar até esse momento os factos supervenientes que sejam relevantes para a apreciação da causa (cf. art. 588.º, n.º 3, al. c), e 611.º, n.º 1, CPC) e, por outro, no sistema processual civil português, as partes não podem alegar (em recurso) nenhuns factos supervenientes que ocorram depois desse momento».
É consabido que a lei impõe às partes o ónus de alegação: ao autor, o de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir (seja, a alegação dos factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas que definem o direito cuja tutela jurisdicional se pretende); ao réu, o de alegar os factos essenciais em que se baseiam as excepções invocadas.
Assim era no revogado Código de Processo Civil[2] (cfr. artigos 264.º e 664.º) e assim continua a ser no novo CPC (artigo 5.º, n.º 1).
Na ação declarativa, sobre o réu impende o ónus de, na contestação, impugnar os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor, sob cominação de tais factos serem considerados admitidos por acordo[3] (artigo 490.º, n.ºs 1 e 2, do anterior CPC, artigo 574.º, n.ºs 1 e 2, do novo CPC) e de deduzir todas as exceções que não sejam de conhecimento oficioso, à data conhecidas (artigo 489.º do anterior CPC, artigo 573.º do novo CPC).
Toda a defesa deve ser deduzida na contestação (princípio da concentração da defesa na contestação), exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado; depois da contestação, só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.
No que respeita à matéria de exceção, o réu vencido, condenado no pedido, não pode vir a fazer valer em ação futura a matéria de exceção que estava em condições de ter oposto ao autor na contestação da primeira ação, porque isso implicaria necessariamente reviver a primitiva ação, entre as mesmas partes, com os mesmos factos e o mesmo pedido, ainda que, agora, invertido.
Esse efeito preclusivo é assim explicado por Rui Pinto («Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias», in Julgar Online, Novembro de 2018, p. 42):
«Para o réu vencido, a condenação no pedido determina a preclusão de alegabilidade futura tanto dos fundamentos de defesa deduzidos, como dos fundamentos de defesa que poderia ter deduzido. E, também quanto ao réu, essa “preclusão” resulta de dois mecanismos processuais distintos.
Efetivamente, o princípio da concentração da defesa na contestação (cf. artigo 573.º), incluindo na defesa superveniente (como se deduz da conjugação dos artigos 588.º, n.º 1, e 729.º, al. g)), determina a preclusão de toda a defesa que não haja oportunamente feito valer contra a concreta causa de pedir invocada pelo autor. Assim, o réu que perdeu não pode, depois, na oposição à execução (cf. artigos 729.º, al. g), a contrario, e 860.º, n.º 3) invocar as exceções que não usara, como, por ex., a nulidade do contrato invocado pelo autor, para se negar ao pagamento.
Mas, por outro lado, tampouco o pode fazer em (i) ação autónoma ou em (ii) reconvenção, porque lhe vai ser oposta a autoridade de caso julgado, decorrente da vinculação positiva externa ao caso julgado assente no artigo 619.º, em sede de objetos em relação de prejudicialidade».
Como se aludiu no relatório que antecede, a recorrente sustenta que já cumpriu a obrigação de repor o estabelecimento em causa no estado em que se encontrava em 29 de Fevereiro de 2008, porquanto, no seguimento da ordem de restituição proferida em 02.07.2008, no âmbito do procedimento cautelar de restituição provisória de posse instaurado pela aqui exequente, em cumprimento do ordenado, reconstruiu o espaço físico da cantina/bar, tendo respeitado as áreas e o pé-direito anteriormente existentes, instalando todos os bens e equipamentos (inteiramente novos) necessários ao seu normal funcionamento, obra essa que foi concluída em 09 de Dezembro de 2008.
Acrescenta que, concluída a obra, foi a exequente imediatamente informada de que poderia retomar a posse do seu estabelecimento no dia seguinte e só não o fez porque não quis.
Como está de bem ver, estes factos eram susceptíveis de consubstanciar defesa por excepção, pois o cumprimento teria o efeito de fazer extinguir o direito, invocado pela autora/embargada/recorrida, à restituição da posse do estabelecimento de cantina/bar no estado em que se encontrava quando dela (posse) foi esbulhada. E tendo o encerramento da discussão na acção declarativa em que foi proferida a sentença condenatória ocorrido em 08.02.2012 (data em que foram proferidas as alegações sobre a matéria de facto), é evidente que a excepção podia ter sido deduzida nessa acção, se não na contestação, pelo menos, em articulado superveniente. O que não podia deixar de ser feito, era a alegação dos respectivos factos, por serem essenciais para a procedência da excepção.
Essa questão foi abordada na sentença recorrida, nos seguintes termos:
«É facto que se mostra suscitada nos autos a questão de o réu ter no ínterim, na sequência da decisão prolatada a fls. 565/577 do apenso A, procedido à reparação dos danos ocasionados no ajuizado estabelecimento.
Trata-se, portanto, de um facto novo ocorrido já num momento posterior ao da apresentação da contestação, o qual, na perspectiva do réu, assumiu natureza modificativa ou extintiva do direito do autor.
Ora, nessas circunstâncias, para que essa facticidade pudesse ser validamente trazida ao presente processo para nele ser atendida, impunha-se que o demandado tivesse lançado mão do mecanismo que a lei adjectiva lhe facultava para o efeito, concretamente a dedução de articulado superveniente (cfr. art. 506º do Cód. Processo Civil).
Com efeito, por força do disposto no art. 489º do Cód. Processo Civil, todos os meios de defesa que o réu tenha contra a pretensão formulada pelo autor devem ser deduzidos na contestação. Este princípio da concentração da defesa só é excepcionado nas situações de defesa deferida, entre as quais se conta, no que ao caso interessa, os meios de defesa superveniente, abrangendo quer os casos em que o facto em que eles se baseiam se verifica supervenientemente (superveniência objectiva), quer aqueles em que esse facto é anterior à contestação, mas só posteriormente é conhecido pelo réu (superveniência subjectiva), devendo em ambos os casos ser alegado em articulado superveniente (art. 506º, n.º 2 do Cód. Processo Civil). Portanto, a parte que deles pretenda beneficiar deverá cumprir tal ónus, sob pena de, em caso de inobservância do mesmo, ver precludida a possibilidade de o fazer.
Ora, como deriva dos autos, o demandado não deu satisfação ao aludido ónus (mormente dentro do condicionalismo estabelecido no citado art. 506º), razão pela qual a referida materialidade não foi levada à peça processual que baliza o objecto da instrução.
Daí que estivesse proscrita a este tribunal a possibilidade de a ela atender, porquanto, tal como emerge da conjugação do art. 664º com o art. 264º, ambos do Cód. Processo Civil, o julgador só pode decidir a questão de direito utilizando factos (essenciais) validamente alegados pelas partes, não podendo as falhas ou omissões de articulação ser supridas por via de ampliação da decisão acerca dos pontos de facto controvertidos, como parece ser próprio do demandado (cfr., a este respeito, as alegações por si apresentadas ao abrigo do disposto no art. 657º do Cód. Processo Civil), já que a preterição das enunciadas regras faria com que qualquer resposta amplificadora da matéria de facto alegada fosse considerada não escrita.
(…)
Nestes termos, de forma a que a mencionada materialidade fosse passível de ser considerada na acção principal, impunha-se que fosse introduzida nesta através da oportuna dedução pelo réu em articulado superveniente. Não o tendo feito, sibi imputet, sendo de ressaltar, de qualquer modo, que essa omissão não possibilitou, em termos efectivos, a discussão e exercício da respectiva contraditoriedade de molde a apurar se a reparação realizada (nos termos em que o foi, mormente através das modificações operadas no espaço onde anteriormente funcionava o ajuizado estabelecimento) permitirá que nele possa ser, em condições de normalidade, exercida a mesma actividade que até então foi aí desenvolvida (veja-se, a este propósito, as interrogações que a própria demandada coloca sobre a possibilidade desse regular exercício no espaço em causa – cfr. fls. 2278 e seguinte)».
Apesar da clarividência do raciocínio assim expresso e do acerto da solução encontrada, a recorrente, no recurso interposto da decisão condenatória, insistiu na sua tese de que cumpriu, escrupulosamente, o determinado no procedimento cautelar e que isso deveria ter sido tomado em consideração pelo tribunal, nos termos previstos nos artigos 264.º, n.º 2, 514.º, n.º 2, 50.º, n.º 1, 650.º, n.º 2, al. f), e 663.º, n.ºs 1 e 2, do CPC (cfr. conclusões CIV e segs.).
Apreciando a argumentação recursiva, esta Relação, no já mencionado acórdão, pronunciou-se assim:
«Relativamente a tal pretensão, é explícito o n.º 1 do art.º 506.º do CPC, dispondo que os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado pela parte a quem aproveitam, até ao encerramento da discussão. E muito embora o n.º 1 do art.º 663.º mande tomar em consideração na sentença os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da acção, de modo a que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão, não o é menos que, por força do n.º 2 do art.º 3 do mesmo diploma, ao juiz não é lícito decidir questões de facto sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Assim sendo, a consideração ou aditamento da invocada matéria teria, necessariamente, que passar pelo contraditório, através da sua alegação em articulado superveniente, pelo que bem andou o M.mo Juiz em rejeitá-lo».
Ficou, assim, claramente definido que, por força do referido efeito de preclusão, o recorrente já não poderia futuramente alegar e servir-se desses factos como meio de defesa contra pretensão formulada pela autora/exequente.
Ainda assim, o recorrente veio deduzir embargos e os factos que constituem o fundamento da oposição à execução são os abrangidos pelo referido efeito preclusivo, atitude que só pode ser interpretada como uma forma de prolongar artificialmente o litígio que o opõe à autora/exequente.
Subscrevemos, sem reserva, a afirmação da decisão recorrida de que «…para que o tribunal não se veja na iminência de repetir, ou mesmo contrariar uma decisão anterior, dotada daquela eficácia, a lei não lhe permite conhecer um litígio que já tenha sido objecto de apreciação e decisão. Aliás, até por via da aplicação princípios gerais do processo civil, tais como o da preclusão e da segurança e confiança jurídica (este último com reflexo na própria definição legal da excepção do caso julgado), a conclusão não poderá deixar de ser a do funcionamento do caso julgado e do respeito devido pela força do mesmo (cfr. o Acórdão do STJ de 11-03-1999, in www.dgsi.pt)», pelo que «são totalmente inócuos os fundamentos dos embargos».
Tal como não podemos deixar de concordar com a embargada/recorrida quando faz notar que não é concebível o abuso de direito que a recorrente lhe imputa quando se limitou a pedir o cumprimento coercivo de uma decisão judicial que lhe reconheceu o direito.
Apesar da inalegabilidade dos fundamentos da oposição à execução deduzidos, justifica-se uma breve apreciação da invocada impossibilidade de cumprimento.
A recorrente defende que existe «uma clamorosa desproporção» entre o benefício que a recorrida pode alcançar com o cumprimento da obrigação de facere (recorde-se, a reposição da cantina/bar no estado em que se encontrava à data de 29.02.2008) e o sacrifício que isso representaria para o Centro Hospitalar, pois obrigaria à total reconfiguração dos 7 (sete) pisos construídos por cima do estabelecimento. Isto porque a recolocação da cozinha e dos arrumos da cantina/bar no exacto lugar em que se encontravam a 29.02.2008 implica alterar a localização dos elevadores e dos pilares estruturantes do edifício na sua configuração actual (ou seja, como resultaram das obras de expansão em altura realizadas nessa ala do edifício hospitalar).
Essa manifesta desproporcionalidade entre a prestação exigida e o fim que se visa obter, equiparar-se-ia, na perspectiva do recorrente, à impossibilidade objectiva da prestação de facto.
Na doutrina, é corrente a afirmação de que a impossibilidade da prestação, para ter a virtualidade de fazer extinguir a obrigação, tem de ser absoluta, «no sentido de que a prestação se torne efectivamente irrealizável, não bastando uma impossibilidade relativa, correspondente à maior dificuldade de realização da prestação»[4].
Segundo o Professor Menezes Cordeiro (“Estudos de Direito Civil”, vol. I, Almedina, pág. 103), a impossibilidade liberatória tem de ser efectiva, absoluta e definitiva, exprimindo a impossibilidade absoluta «o facto de a prestação não poder ser efectuada nem pelo devedor, nem por terceiros», por contraposição ao mero agravamento da prestação, também conhecido por “impossibilidade económica”.
Quer isto dizer que a impossibilidade da prestação enquanto causa extintiva da obrigação exige mais que a difficultas praestandi, «não basta que a prestação se tenha tornado extraordinariamente onerosa ou excessivamente difícil para o devedor»[5].
Para a recorrente, a prestação que lhe é exigida «é notória e manifestamente impossível» de realizar pelo «enorme sacrifício imposto ao CH B… e, indirectamente, à população portuguesa», além de que a pretendida obra de reposionamento da cozinha e dos arrumos da cantina/bar implica alterar a localização dos elevadores do CH B… e dos pilares estruturantes do edifício na sua configuração actual.
Nesta posição da recorrente está implícita a defesa da doutrina do limite do sacrifício, segundo a qual o dever de prestar tem como limite o sacrifício razoavelmente exigível do devedor, à luz dos princípios da boa fé, para satisfazer o interesse do credor e equipara à impossibilidade da prestação tudo o que exceda esse limite.
No entanto, é pacífico que o nosso ordenamento jurídico civil rejeitou essa doutrina, pois no artigo 790.º do Código Civil, apenas, alude à impossibilidade da prestação como causa extintiva da obrigação e não, também, à sua excessividade.
Por outro lado, só a impossibilidade não imputável ao devedor é liberatória e, para que assim seja, exige-se a verificação cumulativa de vários requisitos, designadamente que «ela não tenha advindo de uma actuação culposa, isto é, de uma conduta destinada a inviabilizar a prestação ou da inobservância dos deveres de cuidado que ao caso coubessem»[6].
Ora, quer na destruição das instalações da cantina/bar, quer depois na sua reconstrução, a recorrente agiu sempre à revelia da autora/exequente, sem respeito pelos seus interesses e pelos direitos que lhe assistiam enquanto concessionária da exploração do estabelecimento.
Nesse contexto, eram bem previsíveis a reacção da autora/exequente e as consequências que daí adviriam, mas o recorrente preferiu ignorá-las.
Vem agora invocar a impossibilidade da prestação, mas o resultado a que se chegou foi por ela querido e funciona aqui a presunção do artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil.
Em suma, a ocorrer impossibilidade da prestação, ela é imputável à devedora (recorrente), pelo que não será liberatória.

III - Dispositivo
Termos em que acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo embargante e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da recorrente, por ter decaído totalmente (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Processo Civil).

(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 23 de novembro de 2020
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
_______________
[1] Cabendo realçar que foi, sucessivamente, confirmada pelo acórdão desta Relação de 26.11.2013 e pelo acórdão do STJ de 09.07.2015.
[2] Aplicável quando a acção declarativa de condenação foi julgada em primeira instância.
[3] Salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito.
[4] L.M. Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, Almedina, 12.ª edição, pág. 121.
[5] Professor Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, Almedina, 4.ª edição, pág. 66.
[6] Professor Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, Tomo IV, Almedina, 2010, pág. 182.