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CRIME DE PECULATO
AGENTE DA POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA
Sumário
Tendo a conduta do arguido e pela qual foi condenado, resultado da circunstância de ter feito sua, em proveito próprio, coisa móvel propriedade de terceiros, que se encontravam no interior de uma esquadra da PSP, facto esse que foi cometido enquanto agente da Polícia de Segurança Pública, em clara violação dos seus estritos deveres, cometeu o crime de peculato 375.º, n.º 1, do Código Penal, por referência ao artigo 386.º do mesmo Código.
Texto Parcial
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO:
No nuipc 387/19.1PFLRS.L1, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures - Juiz 1, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento, em processo abreviado, perante tribunal singular, o arguido:
- AA
(agente principal da Polícia de Segurança Pública, nascido a ……….., natural de São João da Pesqueira, residente em Odivelas).
Efectuado o julgamento, foi proferida sentença pela qual se decidiu:
“a) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal, por referência ao artigo 386.º do mesmo Código, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos; b) Determinar que a suspensão da pena de prisão seja subordinada ao cumprimento, pelo arguido da regra de conduta de tratamento de sua “perturbação de uso de álcool grave”, a ser apoiada e fiscalizada pelos serviços de reinserção social, nos termos dos artigos 52.º, n.º 1, alínea b), 3 e 4 e 51.º, n.º 4, ambos do Código Penal”.
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Inconformado com tal decisão, dela recorreu o arguido, formulando as seguintes conclusões:
“1.ª O Recorrente perfilha o entendimento, salvo melhor opinião, de que a douta Sentença objecto do presente recurso não decidiu de forma acertada, na parte atinente à matéria em que condenou o Recorrente nos termos supra expostos do p. recurso, atendendo à factualidade dos factos provados e não provados, bem assim à falta de fundamentação da decisão e às contradições insanáveis entre os depoimentos das testemunhas, nomeadamente da testemunha BB e as declarações do RECORRENTE. 2.ª O Recorrente, impugna a decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre a matéria de facto, em conformidade com o disposto no artigo 412 nº3 do CPP, relativamente aos factos que o Recorrente considera, efectivamente, como tendo sido incorrectamente julgados.
3.ª No que se refere à prova dos seguintes pontos abaixo (3, 6, 7, 8 e 10) os mesmos devem ser considerados NÃO PROVADOS: “FACTO PROVADO 3: No dia 11/03/2019, antes das 18:30 horas, CC deixou inadvertidamente, no interior do estabelecimento comercial denominado “Dominós Pizza”, em Odivelas, sito na Avenida Miguel Torga, em Odivelas, uma mala da marca Louis Vuitton TH2008, com padrão xadrez, no valor de cerca de 300 € (trezentos euros) e uma carteira, com o mesmo padrão e da mesma marca, no valor de 400 € (quatrocentos euros), contendo o seu título de residência, bilhete de identidade e carta de condução, bem como várias moedas emitidas pelo Banco da República de Angola, em valor não concretamente apurado” “FACTO PROVADO 6: “Quando se encontrava no exercício das suas funções, nomeadamente das supra especificadas, o arguido, em momento não concretamente apurado mas situado no período compreendido entre as 9:00 e as 17:00 horas do dia 12/03/2019, ao tomar conhecimento que os referidos objetos se encontravam no interior da caixa destinada aos objetos perdidos e achados, decidiu ficar na posse dos mesmos, sem para tal estar autorizado, levando consigo e fazendo seus a mala, a carteira e as moedas, atuando como seu dono legítimo”. FACTO PROVADO 7) “Em execução desse plano, retirou da referida caixa a mala, a carteira e as moedas descritos.” FACTO PROVADO 8) “Após o que, atuando como dono dos mesmos, saiu do interior da esquadra, dirigiu-se a seu veículo e colocou a mala e a carteira no interior da respetiva bagageira, fazendo-os seus” FACTO PROVADO 10) “Ao agir da forma descrita, o arguido agiu com o propósito concretizado de fazer seus e utilizar em seu benefício próprio aqueles objectos e dinheiro, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que tinha o dever de os guardar decorrente das funções profissionais na Policia de Segurança Publica, não tendo o direito de se apossar dos mesmos, como fez.” Os mesmos nunca poderiam ter sido dado como provados, (no ponto 3 no segmento da marca e valor da mala e carteira Louis Vuitton) porquanto os depoimentos das testemunhas DD, EE, FF, GG, HH, II e as declarações do Recorrente contrariam a matéria dada como assentes nessas alíneas, como se deixou expresso na p. exposição (IV: Fundamentação, I. Da Prova Gravada) para o qual se remete. 4ª Nenhuma destas testemunhas viu o Arguido retirar da caixa a mala, carteiras e moedas descritos e, muito menos, que tenha visto o arguido a sair do interior da esquadra, a dirigir-se ao seu veículo e a colocar a mala e a carteira no interior da respetiva bagageira, com a intenção e propósito de os fazer seus. 5ª Não constam dos autos qualquer documento, fatura/recibo ou outro que comprove o valor dos bens – mala e carteira e mala e carteira Louis Vuitton e sua autenticidade, devendo ser dado como NÃO PROVADO O FACTO 3 no que a esta matéria diz respeito. 6ª De igual modo e concomitantemente deve ser considerado como provado o seguinte: 1. O arguido AA, no dia 12-03-2019 saiu da esquadra a pé ou de boleia, tendo deixado parqueado o seu veículo em frente à esquadra de Odivelas, só tendo voltado a tomar contacto com o seu veículo no dia 13-03-2019 quando chegou, de manhã, à esquadra; Este facto, atentas as declarações do ARGUIDO, ver IV: Fundamentação, I. Da Prova Gravada, deve ser considerado como provado, pois resulta claro da prova produzida. 7ª O tribunal alicerçou a sua fundamentação em depoimentos imprecisos e contraditórios das testemunhas DD,EE,FF,GG,HH,II. 8ª O Tribunal presume, sem prova bastante, sólida e fundamentada, que o ARGUIDO/RECORRENTE tenha retirado os bens - mala e carteira - da caixa de achados onde se encontravam e os tenha levado para fora da esquadra para o seu veículo e os tivesse depositado na bagageira do seu carro. 9ª Existe uma presunção de inocência do RECORRENTE que não foi afastada com a prova acima descrita. IV- Decorre do princípio “in dubio pro reo”, que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que, face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador, não podem dar-se como provados, e a decisão recorrida só será de alterar quando as provas produzidas não conduzam àquela factualidade, em que previamente “assentou”, e neste caso, o Tribunal “a quo”, violando as regras da experiência comum, pelo que se verifica o inevitável vicio de conhecimento oficioso, previsto no artº 410 nº 2 al. c) do CPP, erro notório na apreciação da prova, e, não sendo caso de se proceder ao reenvio do processo para novo julgamento nos termos do disposto no artº 426º nº 1 do CPP, terá o Tribunal superior que proceder á modificação da matéria de facto de acordo com o disposto no artº 431 al. a) do CPP, suprindo tais vícios, e, tendo por consequência “in casu”, a absolvição do arguido. Acórdão do TRL de 28-09-2017 no proc. 433/15.8PBSNT.L1-9, relator Filipa Costa Lourenço,www.dgsi.pt. 10ª O objecto do crime de peculato é duplo: por um lado, a tutela de bens jurídicos patrimoniais; e, por outro, a tutela da probidade e fidelidade dos funcionários (Ac. do TRE de 17-03-2015, processo 29/08.0TAAVS disponível emwww.dgsi.pt). A conduta do RECORRENTE não se subsume ao tipo de crime que de que vem punido, pois em nenhum momento o ARGUIDO teve a posse e guarda dos bens - mala e carteira, pois as suas funções eram de apoio ao graduado e não especificamente as de zelar pelos bens achados que se encontravam na Esquadra de Odivelas. 11ª Como se diz e bem no Ac. TRC de 23-01-2013 processo 214/11.8PCCBR.C1, que aqui se reproduz com a devida vénia: “O segmento “acessível em razão das suas funções” referido no n.º 1, do art.º 375º, do C. Penal, que se reporta ao tipo legal de crime de “Peculato”, exige uma especial relação de poder ou de domínio ou de controlo/supervisão sobre a coisa que o agente detém em razão das suas específicas funções e que vem a postergar com abuso ou infidelidade das específicas funções, ao apropriar-se, para si ou para terceiro, dessa mesma coisa - não sendo suficiente apenas a simples acessibilidade física em relação à coisa de que se apropria.” A decisão ali recorrida, na sua fundamentação de direito, discorria que: Conforme decorre claramente da leitura do normativo transcrito, o crime de peculato é um crime específico impróprio, ou seja, na definição de Figueiredo Dias, um crime em que a qualidade do autor ou o dever que sobre ele impende não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar, uma vez que só o agente com essa característica subjectiva relacional o pode cometer (vide Parte Geral do Direito Penal, Almedina).
Efectivamente, o agente do crime terá de ser um funcionário, tal como ele é definido no art.º 386º do CP, funcionário esse que, por força das suas funções, tem a posse do bem objecto do crime. E é essa qualidade de funcionário que distingue o crime de peculato do crime de furto ou do crime de abuso de confiança e é ela que torna a ilicitude da conduta do agente mais grave. No que à conduta típica concerne, o crime de peculato consiste na apropriação, em proveito próprio ou de terceiro, de uma coisa móvel alheia que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou a que o funcionário aceda, em razão das suas funções. Como bem nota Conceição Ferreira, na anotação a este artigo, o conceito de posse deve ser “entendido em sentido lato, englobando quer a detenção material, quer a disponibilidade jurídica do bem, ou seja, as situações em que a detenção material pertence a outrem mas o agente pode dispor do bem ou conseguir a sua detenção material mediante um acto para o qual tem competência em razão das suas funções”. A acessibilidade ao bem deve contudo derivar das funções do agente, pelo que deverá existir uma efectiva detenção material ou disponibilidade jurídica do objecto, não bastando a mera proximidade material do bem ou a facilidade em conseguir a sua apropriação. Assim, o agente deve ter a posse ou detenção do objecto “em razão das suas funções”. Acompanhamos, pois, à análise de Cristina Cunha no sentido da interpretação restrita desta expressão constante do tipo: é necessário, para que uma determinada conduta seja subsumida ao tipo legal em análise, que a posse esteja na dependência funcional do exercício da função, pois a razão de ser desta punição agravada reside precisamente na violação, por parte do funcionário-agente, da confiança funcional que nele foi depositada ao lhe ser conferida a posse do bem, entendendo-se esta posse, como já supra se referiu, por detenção material, guarda do bem ou disponibilidade jurídica, ou seja, a possibilidade de dispor do bem, não como proprietário, mas como fiel depositário e zelador dos bens, não se desviando dos fins legais. O funcionário é punido desta forma agravada porque abusou das suas funções ou foi infiel às suas funções, traindo a confiança que lhe foi depositada ao lhe ser conferida a posse do bem. É esta relação causal entre a posse (que facilita a apropriação) e a função, de modo a que a apropriação viole a relação de fidelidade pré-existente que, no caso dos autos, inexiste (...) Para que a conduta em causa possa ser reconduzida à previsão típica da norma incriminadora é necessário, por último, que o agente tenha actuado com uma ilegítima intenção de apropriação. O agente sabe que a coisa pertence a outrem, tem consciência de que não detém qualquer direito ou título para a possuir e, não obstante, actua com intenção de a vir integrar no seu património, ainda que sem qualquer propósito lucrativo. Da construção do tipo legal e da conjugação com o art.º 13º do CP conclui-se, por outro lado, ser este um crime cuja realização passa pela existência de dolo da parte do agente. Assim, para que a conduta em causa seja subsumível à previsão típica da norma em análise é necessário que o agente tenha actuado com conhecimento e vontade de realização do tipo-de-ilícito objectivo (tipo-de-ilícito subjectivo), ou seja, de um lado com conhecimento e representação dos elementos que integram o crime (elemento intelectual do dolo) - incluindo nesses elementos, claro está, as circunstâncias modificativas agravantes- indispensáveis para que a sua consciência ética se colocasse e resolvesse correctamente o problema da ilicitude e, de outro, com o propósito directo ou indirecto de o realizar (elemento volitivo do dolo - cfr. art.º 14º do Cód. Penal). E o preenchimento do elemento subjectivo do tipo do supra referido normativo exige ainda uma particular direcção de vontade do agente, isto é, que à sua actuação tenha presidido um fim determinado: uma ilegítima intenção de apropriação (que se “manifesta, precisamente, no animus sibi habendi sobre a coisa efectivamente apropriada”- Faria Costa, op. cit., loc. cit.). Ora, no caso sub iudice deu-se como provado que o arguido por diversas vezes se acercou da correspondência em causa nos autos, que estava nos móveis de expedição e a retirou do local, levando-a consigo e fazendo-a sua, tendo actuado com essa intenção, bem sabendo que não lhe pertencia e de que agia sem o consentimento e contra a vontade do seu legítimo proprietário, conhecendo a proibição legal. No aresto citado, concluem os Venerandos Desembargadores: “Com efeito, não havendo dúvidas que o arguido era funcionário para efeitos da previsão deste crime (cfr. art. 386º nº 1 a) do Código Penal) e de se mostrarem verificadas as demais situações previstas nas atrás explanadas alíneas b), c) e e), somos de entendimento que não está verificada qualquer situação susceptível de integrar a previsão do mencionado na alínea d). Com efeito, não ficou provado que os objectos e valores contidos em correspondência de que o arguido se apropriou lhe tivessem sido entregues ou que, previamente a tal apropriação, estivessem na posse do mesmo. (…) É que tal como é referido em anotação ao art. 375º, para afastar a acessibilidade em sentido lato “tendo em conta que a acessibilidade deve derivar das funções do agente, parece que deverá haver uma efectiva detenção material ou disponibilidade jurídica do objecto, não sendo suficiente, segundo cremos, a mera proximidade material do bem ou a facilidade em conseguir a sua apropriação” (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo III, Coimbra Editora, pag. 695). (…) Na realidade, o arguido, em razão das suas funções, não tinha a guarda ou a posse dos objectos e/ou valores contidos naquela correspondência nem, propriamente, o acesso a tal correspondência - não obstante poder materialmente aceder à mesma correspondência em circunstâncias fortuitas. Tal como a dado passo é dito na sentença recorrida (a propósito da verificação do crime de peculato) “é necessário, para que uma determinada conduta seja subsumida ao tipo legal em análise, que a posse esteja na dependência funcional do exercício da função, pois a razão de ser desta punição agravada reside precisamente na violação, por parte do funcionário-agente, da confiança funcional que nele foi depositada ao lhe ser conferida a posse do bem, entendendo-se esta posse, como já supra se referiu, como detenção material, guarda do bem ou disponibilidade jurídica, ou seja, a possibilidade de dispor do bem, não como proprietário, mas como fiel depositário e zelador de bens, não se desviando dos fins legais. O funcionário é punido desta forma agravada porque abusou das suas funções ou foi infiel às suas funções, traindo a confiança que lhe foi depositada ao lhe ser conferida a posse dos bens. É esta a relação causal entre a posse (que facilita a apropriação) e a função, de modo a que a apropriação viole a relação de fidelidade pré-existente que, no caso dos autos inexiste” Tudo quanto se disse acima, neste Acórdão, vale para os p. autos. 12ª A acessibilidade ao bem deve contudo derivar das funções do agente, pelo que deverá existir uma efectiva detenção material ou disponibilidade jurídica do objecto, não bastando a mera proximidade material do bem ou a facilidade em conseguir a sua apropriação. Assim o agente deve ter a posse ou detenção do objecto em razão das suas funções. 13ª Como resultou da prova produzida nos autos, o RECORRENTE não detinha a posse do bem - mala e carteira, nem a sua guarda ou disponibilidade pois não era fiel depositário ou zelador dos bens em causa. Não existia relação causal entre a posse do bem (que o RECORRENTE não tinha) e a função, pois o Recorrente tinha inúmeras funções na esquadra de Odivelas. Ademais, ficou por provar que o Recorrente tivesse actuado com dolo, com ilegítima intenção de apropriação. Tanto assim é que a mala e carteira não terão saído da bagageira do seu veículo, parqueado em frente à esquadra de Odivelas. Não existiu, por parte do Recorrente, qualquer conduta com o propósito direto ou indireto de realizar o crime: nem vontade de, ilegitimamente, se apropriar da mala e da carteira. 14ª Pelo que um só caminho resta, em nossa modesta opinião: a da Absolvição do Recorrente do crime de peculato e da Pena de dois anos de Prisão suspensa na sua execução, incluindo Custas.
Termina, formulando a pretensão de dever “revogar-se a decisão proferida em primeira instância, e, consequentemente, alterada de igual modo, de Direito, dando-se provimento ao presente recurso nos estritos termos supra requeridos”.
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Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, concluindo:
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Neste Tribunal, a Ex.ª Procuradora-Geral Adjunta teve vista dos autos, emitindo em 2020.11.11. o seguinte parecer:
“Adere-se à Resposta apresentada pelo Digno Magistrado em que, de forma bem sustentada de facto e de direito, se expõem argumentos que, pela respectiva validade jurídica, convencem em absoluto sobre a bondade da tese que subscreve”.
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Dado cumprimento ao artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi proferido despacho preliminar, colhidos os necessários vistos, tendo, de seguida, lugar a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO:
1 - Conforme entendimento pacífico nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
Mediante o presente recurso, o recorrente submete à apreciação deste Tribunal Superior as seguintes questões:
- Que a sentença recorrida sofre dos vícios de erro notório na apreciação da prova, com incorrecta valoração/interpretação da prova efectuada em audiência, e violação do princípio do in dubio pro reo;
- Errada subsunção jurídica (alegadamente porque “a conduta do recorrente não se subsume ao tipo de crime que de que vem punido, pois em nenhum momento o arguido teve a posse e guarda dos bens - mala e carteira”, invocando-se que “as suas funções eram de apoio ao graduado e não especificamente as de zelar pelos bens achados que se encontravam na Esquadra de Odivelas”);
- Pretensão de dever ser alterada a decisão proferida em primeira instância, com absolvição, quanto “ao crime de peculato”, e referência, “de Direito”, à “Pena de dois anos de Prisão suspensa na sua execução”.
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2. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas.
“Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos, com relevância para a decisão de mérito”:
“1) O arguido é agente da Polícia de Segurança Pública a exercer funções na 71ª esquadra da Divisão Policial de Loures, sita na Rua Gil Eanes, 4, Odivelas. 2) No âmbito das suas funções competia-lhe, nomeadamente, proceder a diligências relacionadas com os bens achados, pelo menos durante o ano de 2019. 3) No dia 11/03/2019, antes das 18:30 horas, CC deixou inadvertidamente, no interior do estabelecimento comercial denominado “Domino’s Pizza”, em Odivelas, sito na Avenida Miguel Torga, em Odivelas, uma mala da marca Louis Vuitton TH2008, com padrão xadrez, no valor de cerca de 300 € (trezentos euros) e uma carteira, com o mesmo padrão e da mesma marca, no valor de 400 € (quatrocentos euros), contendo o seu título de residência, bilhete de identidade e carta de condução, bem como várias moedas emitidas pelo Banco da República de Angola, em valor não concretamente apurado. 4) Ao detetar aqueles objetos e dinheiro esquecidos no interior daquele estabelecimento, o funcionário do mesmo JJ, naquele dia, pelas 18:30 horas, dirigiu-se à 71ª esquadra da Divisão Policial de Loures, sita na Rua Gil Eanes, 4, Odivelas e entregou-os ao agente da Polícia de Segurança Pública, II, informando-o do sucedido. 5) No mesmo dia, o agente II colocou os referidos objetos na caixa destinada à guarda dos objetos perdidos e achados naquela esquadra. 6) Quando se encontrava no exercício das suas funções, nomeadamente das supra especificadas, o arguido, em momento não concretamente apurado mas situado no período compreendido entre as 9:00 e as 17:00 horas do dia 12/03/2019, ao tomar conhecimento que os referidos objetos se encontravam no interior da caixa destinada aos objetos perdidos e achados, decidiu ficar na posse dos mesmos, sem para tal estar autorizado, levando consigo e fazendo seus a mala, a carteira e as moedas, atuando como seu dono legítimo. 7) Em execução desse plano, retirou da referida caixa a mala, a carteira e as moedas descritos. 8) Após o que, atuando como dono dos mesmos, saiu do interior da esquadra, dirigiu-se a seu veículo e colocou a mala e a carteira no interior da respetiva bagageira, fazendo-os seus. 9) O arguido apenas tinha acesso aqueles objetos e dinheiro por causa das suas funções e no exclusivo exercício das mesmas. 10) Ao agir da forma descrita, o arguido agiu com o propósito concretizado de fazer seus e utilizar em benefício próprio aqueles objetos e dinheiro, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que tinha o dever de os guardar decorrente das funções profissionais na Polícia de Segurança Pública, não tendo direito de se apossar dos mesmos, como fez. 11) Mais sabia que atuava sem autorização e contra a vontade da sua legítima dona e da Polícia de Segurança Pública, atingindo assim os deveres e obrigações decorrentes das suas funções de natureza pública e estatuto profissional e, ainda assim, não se coibiu de o fazer, aproveitando-se do exercício daquelas funções para se apropriar dos objetos acima descritos. 12) O arguido atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida criminalmente. Mais se apurou que: 13) O arguido é natural de S. João da Pesqueira, Douro, tendo sido educado pelos progenitores num contexto relativamente normativo, no qual o progenitor era funcionário da Câmara Municipal da localidade onde residiam e a progenitora era doméstica, não existindo dificuldades económicas. 14) Surgiram, contudo, referências a consumo excessivo de álcool por parte do progenitor. 15) O seu percurso escolar pautou-se globalmente por adaptação, embora se saliente uma reprovação no 9º ano de escolaridade, alegadamente, na sequência de absentismo, tendo porém, vindo a concluir o 12º ano de escolaridade, aos 18 anos. 16) Após o cumprimento do Serviço Militar Obrigatório, por um período de 6 meses, que decorreu de forma adequada, passou a trabalhar com o progenitor, como eletricista, atividade na qual se manteve cerca de 2 anos. 17) Aos 22 anos, ingressou na Polícia de Segurança Pública, evidenciando algumas dificuldades iniciais de adaptação, sendo colocado na área de Queluz, local, no qual veio a registar o seu primeiro processo disciplinar interno, relacionado com consumo excessivo de álcool. 18) Posteriormente, foi colocado nas Esquadras de Mem Martins, Casal de Cambra e, finalmente, em Odivelas. 19) A sua evolução e ascensão na carreira na PSP (mantendo até ao momento, a sua categoria inicial) foi prejudicada por aparente instabilidade, relacionada com consumo excessivo de álcool e posteriormente alcoolismo, tendo referido a existência de cerca 10 processos disciplinares, relacionados, designadamente, com atrasos na chegada ao serviço, atrasos na entrega de documentação referente a baixas médicas. 20) Ao longo da sua carreira evidenciaram-se cerca de sete internamentos, para efeitos de tratamento ao alcoolismo, devidos a recaídas, o último dos quais em março de 2018. 21) O arguido descreveu os seus consumos, como pautados por períodos de abstinência, seguidos de períodos de bebida, descontrolada e excessiva. 22) Foi acompanhado pelos serviços de psicologia da PSP. 23) Desde há 4 anos é seguido em consulta de psiquiatria pelo Dr. Jaime Ribeiro, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, estando sujeito a medicação psicofarmacológica. 24) No plano afetivo, destaca-se um relacionamento, iniciado aos 26 anos, do qual resultou um filho, atualmente com 11 anos de idade. 25) Esta relação veio a culminar na separação do casal por incompatibilidades diversas. 26) À data dos factos, de que se encontra acusado, o arguido Agente da PSP, vivenciava um período conturbado, pautado por consumo excessivo de álcool e pela rutura conjugal que viria a culminar no divórcio do casal, em 21 de março do corrente ano. 27) Desempenhava funções na Esquadra da PSP de Odivelas. 28) Após o surgimento deste processo, o arguido foi suspenso das suas funções pelo período 6 meses. 29) Atualmente, reside nas instalações da Unidade Policial, convivendo com o filho, aos fins de semana. 30) No plano profissional retomou funções na Polícia de Segurança Pública, a partir de 15 setembro, na Divisão de Loures. 31) Desde o dia 8 do corrente mês, exerce funções na secretaria da Esquadra de Intervenção e Fiscalização Policial da Divisão de Loures, auferindo cerca de setecentos euros líquidos mensais, dado que não aufere o subsídio de turno e patrulha, de que beneficiaria se não tivesse sido “desarmado” e consequentemente impedido de efetuar o habitual “serviço de rua” da PSP. 32) De momento está abstinente e mantém-se em acompanhamento à sua problemática de alcoolismo, no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, estando sujeito a medicação psicofarmacológica. 33) Não foram identificadas pelos serviços de reinserção social condutas desadaptadas com caráter recente. 34) Segundo o Sr. Intendente KK Comandante da Divisão de Loures da PSP, o arguido tem mantido uma conduta estável e evoluído positivamente desde a instauração deste processo. 35) O arguido, apresentou uma postura desculpabilizante face ao presente processo, atribuindo em parte a responsabilidade do mesmo a terceiros, revelando noção do bem jurídico em causa. 36) Como consequência deste quadro, foi-lhe instaurado o competente processo disciplinar, que originou a sua suspensão de funções durante 6 meses, bem como o facto de ter sido “desarmado”, não recebendo o subsídio de turno e de patrulha, o que lhe diminuiu substancialmente o vencimento auferido. 37) O arguido é agente da Polícia de Segurança Pública desde 8/4/2002. 38) Desde essa altura e até à data, o arguido tem passado por momentos menos bons da sua via pessoal e profissional, de cuja Instituição Polícia de Segurança Pública tem conhecimento. 39) Nomeadamente, diversos problemas de foro psicológico, alcoolismo e outros, que levaram a tratamentos e internamentos designadamente: - 2005: Internamento (cerca de 25 dias) na Casa de Saúde do Telhal, havendo referencia a recaída nos consumos após 8 meses; - 2008: Internamento (cerca de 28 dias) na Casa de Saúde do Telhal (posterior a acidente de viação, no qual sofreu fratura da clavícula e, decorrente dos danos causados em terceiros, ficou sujeito ao pagamento de uma indemnização de 15.000 €, resultando ainda deste incidente, processo disciplinar que culminou numa pena de 4 dias de suspensão efetiva); - Junho de 2013: internamento sensivelmente de um mês na UTITA (Base Naval do Alfeite), com posterior recaída nos consumos após 3 meses; - Outubro de 2013: reportada situação de consumo agudo que forçou uma intervenção ao domicílio por parte dos colegas de serviço juntamento com a Dra. LL para avaliação da situação, que resultou em internamento de 10 dias no Hospital Militar Principal; - Janeiro de 2014: novo encaminhamento para internamento de aproximadamente um mês na UTITA; - 2015: foi encaminhado para o Hospital Sobral Cid para nova tentativa de desabituação e reabilitação da dependência do álcool, tendo ficado internado 12 dias; - 15 de julho de 2015 a setembro de 2015: foi internado para tratamento bio-psico-social e espiritual na Comunidade Vida e Paz – Centro de Recuperação para Pessoas Sem Abrigo, Toxicodependentes e/ou Alcoólicos com alta co-morbilidade, em Moimento, Fátima, não tendo cumprido o tratamento, saindo por iniciativa própria; - 2016: na sequencia do apoio psicoterapêutico continuado, com a Dra, Adriana Esteves, da Divisão de Psicologia da Polícia de Segurança Pública, foi encetado um plano de tratamento, no qual estava previsto um internamento de longa duração, por um período de aproximadamente 12 meses, na Comunidade Terapêutica Vida e Paz, estando previsto um Programa Terapêutico para reabilitação. O arguido ficou internado apenas 15 dias, tendo optado por recusar-se a continuar internado; - Abril de 2017: o arguido voltou a recorrer a apoio psicológico na Divisão de Psicologia da Polícia de Segurança Pública para síndrome de dependência de álcool e foi encaminhado para a Clínica de Alcoologia e Novas Dependências do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, onde esteve internado cerca de 12 dias. Após este tratamento foi reabilitado e voltou a ser rearmado, posteriormente à alta hospitalar. Na sequência de novo pedido de apoio passou a ser seguido em consultas de psicológica em Belas, pela Dra. MM, registando frequentes ausências ou suspensões na regularidade das consultas agendadas; - Março de 2018: recaída nos consumos de álcool, na sequência dos quais lhe foi imposta a medida cautela de desarmamento e encaminhado para consulta de psiquiatria e sujeito a novo internamento de 28 de março a 5 de abril de 2018 na Clínica de Alcoologia e Novas Dependências do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa e consequentemente solicitada avaliação psicológica pelo médico assistente da Polícia de Segurança Pública. 40) O arguido tem sido seguido pela Divisão de Psicologia da Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública. 41) Do exame pericial psiquiátrico realizado ao arguido em 02/05/2019, no Hospital Beatriz Ângelo resulta que o mesmo apresenta um diagnóstico de F10.21. “dependência alcoólica em remissão”, problema clínico suscetível de poder explicar a sua não justificação atempada das faltas ao trabalho em 2015. 42) Do exame pericial psiquiátrico realizado ao arguido em 20/12/2019, no Gabinete Médico-Legal e Forense de Dão-Lafões resulta que: - O arguido padece de uma “perturbação de uso de álcool grave (de acordo com a rúbrica 303.90 da DSM-5)”; - Na data dos factos “estaria com um quadro de intoxicação pelo álcool, que ao consumir colocou-se em situação de imputabilidade diminuída, de acordo com o seu entendimento e vontade livres, pelo que tal perturbação mental não releva do ponto de vista psiquiátrico-forense, nomeadamente como razão de invocação de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica”; - O arguido “não padece de patologia psiquiátrica que possa evocar a figura jurídica de imputabilidade diminuída ou de inimputabilidade por anomalia psíquica”. 43) O arguido não regista antecedentes criminais”.
*
“Matéria de facto não provada”:
“Não resultou demonstrado, com relevo para a decisão de mérito que. a) No âmbito das suas funções competia ao arguido proceder à monitorização e salvaguarda dos bens achados, nomeadamente guardar os mesmos. b) O arguido retirou os objetos entre as 19:00 horas do dia 11/03/2019 e as 9:00 horas do dia 12/03/2019. c) O arguido retirou da caixa e fez seus os documentos que se encontravam no interior da carteira. d) No interior da carteira encontravam-se moedas no valor global de 300 kwanzas.”. *
“Justificação da convicção do Tribunal”:
“Em obediência ao disposto no artigo 389.º-A, n.º 1, alínea a) ex vi do artigo 391.º-F, ambos do Código de Processo Penal, cumpre expor os motivos que fundamentam a antecedente decisão fática, com indicação e exame crítico sucinto das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal. Assim, fundamentaram a antecedente decisão fáctica e contribuíram para formar a convicção do Tribunal, os seguintes elementos de prova: - O teor da prova documental de fls. 2/3 (auto de notícia); 4 (auto de apreensão), 5 (registos fotográficos); 12 (participação); 13 (aditamento à participação); 14 (termo de entrega); 15 (auto de exame e avaliação); 90 (declaração de internamento), 126/127 (ata de conferência constante de certidão da Conservatória do Registo Civil de Loures), documentação remetida pelo Núcleo de Deontologia e Disciplina da Polícia de Segurança Pública de fls. 155 a 182 (Relatório de Avaliação Psicológica elaborado em 08/05/2006 por psicólogo da Divisão de Psicologia da Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública; Informação Clínica elaborada em 20/04/2011 por psicólogo da Divisão de Psicologia da Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública; Relatório de Avaliação Psicológica elaborado em 03/12/2014, por psicóloga da Divisão de Psicologia da Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública; Informação elaborada em 11/05/2018 por psicóloga da Divisão de Psicologia da Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública; Relatório de Avaliação Psicológica elaborado em 19/06/2018, por psicólogo da Divisão de Psicologia da Direção Nacional da Polícia de Segurança Pública); 159 (Informação de 30/04/2018 remetida pelo Núcleo de Deontologia e Disciplina da Polícia de Segurança Pública, quanto a pedido de perícia psiquiátrica); - O teor da prova pericial de fls. 233 a 239 (relatório pericial psiquiátrico de 02/05/2019); - O teor da prova pericial de fls. 291 a 303 (relatório da perícia médico-legal, avaliação psiquiátrica de 20/12/2019); - Os depoimentos das testemunhas …………………………….., todos agentes da Polícia de Segurança Pública, em exercício de funções na 71ª esquadra de Odivelas, de CC e de NN, técnica de serviço social; - As declarações prestadas pelo arguido, no final da audiência de discussão e julgamento. * As testemunhas …………………………………………., agentes da Polícia de Segurança Pública, atestaram, na globalidade e de forma essencialmente convergente, atenta a sua intervenção temporal nos acontecimentos, os factos que positivamente se consideraram, em particular e em síntese: - O agente DD, referiu que em determinado dia de março recebeu um alerta de colegas que questionaram acerca do paradeiro de uma carteira que tinha sido entregue na esquadra e que era procurada pela proprietária, sendo que no dia seguinte, viu o arguido chegar a esquadra pelas 8:40 horas, foi uniformizar-se e foi questionado acerca do paradeiro da mesma, tendo o mesmo respondido negativamente e começado a procurá-la em diversos locais da esquadra (gabinetes, balneários). De seguida, ele, o agente ………… e o agente …………… vieram para o exterior da esquadra com o arguido para conversar e a determinada altura ele disse ao colega ……………. para “não se chibar”, mas que a carteira estava no carro dele, parqueada na esquadra, foi à mala do carro, agarrou na carteira, ocultou-a no interior do blusão policial e levou-a para a esquadra, tendo então elaborado o expediente e contactado a proprietária. Mais afirmou que, no dia anterior o arguido andou a distribuir moedas Kwanzas por vários elementos, não apresentando indícios de se encontrar em estado de embriaguez; - O agente EE, referiu que, em determinado dia viu o arguido chegar a esquadra, tendo estacionado o veículo em frente a mesma, sendo que a certa altura viu alguns colegas em volta do arguido a perguntar se sabia de uma mala, como o viu um pouco atrapalhado e comprometido, perguntou-lhe se podia falar à parte com ele e disse-lhe “Ó …………., de certeza que não és tu que tens a mala, por favor se fores tu, vamos resolver isto” e ele disse “Sou eu que tenho a mala, não digas a ninguém e a mala está ali no carro”, disse-lhe, atravessou a estrada, 2/3 metros, abriu a mala do carro, tirou a mala, escondeu-a no casaco, entrou na esquadra e pousou uma mala da marca Louis Vuitton no sitio onde teria desaparecido, a mesa dos achados. Mais declarou que um ou dois dias antes presenciou o arguido a oferecer moedas kwuanzas pelos colegas da esquadra; - O agente FF, referiu que no dia 12/03/2019, estava de serviço com o colega ………….. à porta da esquadra, o colega …………… estava a atender um telefonema, veio uma senhora procurar uma carteira que sabia que tinha sido lá entregue por um funcionário da Pizzaria, no dia anterior. O colega …………… disse “aguarde um bocadinho”, foi procurar o achado e depois veio ter consigo a dizer que não estava a encontrar a carteira. De seguida, colocaram a informação no grupo de whatsapp da esquadra e falaram com o colega …………… que disse que foi ele que tinha recebido e que tinha posto na caixa dos perdidos e achados, mas que ainda não tinha feito o expediente, veio com eles ver e a carteira não estava nesse local. Entretanto, ligaram ao agente …………… e ele disse que nunca tinha visto aquela carteira. Como encontraram documentos relativos à senhora que estavam dentro dos objetos perdidos, voltaram a ligar ao agente ………………que disse “não se preocupem, amanhã resolvo a situação, tirem os dados da senhora que eu depois resolvo isso”. No dia a seguir de manhã, o arguido entrou na esquadra, perguntaram o que ia fazer, disse que não tinha visto carteira nenhuma que não sabia do que se tratava e começou a procurar nas gavetas e armários, de algo que se assemelhasse a uma carteira não lhes perguntando as características da mesma. Depois, ele os agentes …………….. e …………… foram para a porta da esquadra e ele lá disse que tinha a carteira, à frente deles foi ao carro, foi a bolsa, abriu a mala do carro, tirou a bolsa, colocou a bolsa e a carteira na caixa dos perdidos e achados; - O agente GG, referiu que no dia 12/03/2019, estava de serviço na esquadra, entrou a CC, disse que tinha sido informada que a mala dela tinha sido entregue naquela esquadra. Foi procurar o objeto à caixa dos achados, não encontrou nenhuma mala, foi verificar se havia alguma coisa, questionou no grupo de whatsup, ninguém sabia. A certa altura, apercebe-se que o agente …………. tinha recebido a mala que disse que tinha colocado na caixa dos achados. Resolveu ligar ao agente …………., para saber se tinha visto a mala e ele disse que não, não fazia sequer ideia de qual era a mala. Ligou a toda a gente que esteve de serviço naquele período (entre o dia 11 até ao dia 12, cerca das 20:00 horas). Várias pessoas disseram que se lembravam de ter visto a mala do mesmo dia, até ao 12:00 horas. Voltou a ir ver a caixa com o agente .,,,,,,,,,, e encontraram documentos pertencentes a CC. Ligou novamente ao agente ………….., perguntando-lhe se tinha a certeza de não ter visto a mala e ele disse “não te preocupes que até as 10 horas isto resolve-se, tira o contacto da senhora”. No dia a seguir entraram de manhã, o agente .,,,,,,,,,,,,, chegou por volta das 9 horas e não disse nada, fardou-se, foram ter com ele perguntar o que ele ia fazer, ele andou a procura da mala durante algum tempo, em toda a esquadra. A certa altura, decidiram confrontar o arguido, ele estava a ficar nervoso e constrangido e a sua equipa entendeu levá-lo para o exterior e depois não assistiu a mais nada. - O agente HH, referiu que viu o arguido, num dia de manhã, a manusear uma mala dentro da sala onde a caixa estava, coisa que achou normal visto que estaria encarregue desse serviço e ouviu uma conversa telefónica em que o arguido perguntou a outra pessoa que estava ao telefone se queria uma Louis Vuitton, o que ele pensou que fosse uma brincadeira. Recorda-se ainda do arguido oferecer moedas kwanzas às pessoas, algumas meteu no seu bolso, que ele devolveu. - O agente II, referiu que, no dia 11/03/2019 entre as 18:30 e as 19:15 horas, chegou um senhor que trabalhava numa empresa de pizzas a entregar um achado, uma mala contendo uma carteira, com documentos, designadamente uma carta de condução titulo de residência e um passe e umas moedas. Fez algumas diligências no computador para saber se encontraria o número de contacto da proprietária, e como não conseguiu encontrar nenhuma situação de extravio, nem nenhum elemento da proprietária, como estava sozinho e tem dez dias para fazer a participação porque não é uma situação urgente, manteve a carteira consigo até a 1.00 hora, tirou os dados todos, ficou na sua secretaria e depois colocou-a numa caixa dos perdidos, numa sala/gabinete onde só agentes podem entrar e onde se faz o expediente, no intuito de no dia seguinte continuar a fazer essas diligências. No dia seguinte, entrou de serviço e viu os colegas de um lado para o outro, tendo-lhe perguntado se tinha visto a carteira porque se encontrava a proprietária a pedir a mala e ele disse que sim, dirigiu-se ao local onde a tinha deixado e onde estavam os documentos espalhados, mas não a mala e a carteira. Foi à escala de serviço e contactou com os colegas que tinham estado de serviço anteriormente os quais tinham visto aquela mala até as 12:00 horas. No dia seguinte, já depois da mala ter sido encontrada, fez a participação, sabia o nome da pessoa que tinha entregue, data, hora, sabia era funcionário da Dominos Piza e colocou na participação, não sabendo ao certo o número e valor das moedas que se encontravam na carteira. Decorreu, assim, da conjugação das declarações prestadas pelos sobreditos agentes que foi entregue, no dia 11/03/2019, cerca das 18:30 horas, por parte de um funcionário de uma Pizzaria (identificado na participação de fls. 6), uma mala, uma carteira, contendo documentos e umas moedas de kwanza, a qual foi colocada pelo agente …………. numa caixa destinada aos achados, colocada numa sala acessível apenas pelos elementos daquela esquadra, sendo que, no dia seguinte, dia 12/03/2019 cerca das 18:30 horas, a proprietária desses objetos s e dirigiu à esquadra, no intuito de os recuperar e esses objetos não se encontravam no local onde haviam sido deixados pelo agente …………... Ainda nesse mesmo dia 12/03/2019, o arguido foi contactado pelos colegas FF e GG que lhes disse não saber do paradeiro da mala mas para tirar os dados da proprietária que no dia seguinte “resolvia” a situação. Nessa sequência, o agente FF elaborou o aditamento constante de fls. 7. O agente HH acrescentou ter visto, nesse dia 12/03/2019, o arguido manusear uma mala e questionar alguém ao telefone se queria uma “Lou is Vuitton”. No dia seguinte, 13/03/2019, o agente …………… viu o arguido chegar à esquadra, no seu automóvel, que estacionou em frente da esquadra e este e os agentes DD,FF,GG, depois de verem o arguido entrar na esquadra e se ter uniformizado, observando que o mesmo procurava a mala no interior da esquadra, resolveram interpelá-lo, perguntando-lhe acerca do paradeiro da mesma, negando o arguido conhecê-lo. Entretanto, os agentes ……………………………… vieram para o exterior da esquadra com o arguido, acabando este por admitir que tinha a mala com ele, dirigindo-se à mala do carro, de onde a retirou, colocando-a em seguida na caixa dos achados. Posteriormente, o agente II foi chamado à esquadra e elaborou a participação que consta de fls. 6. Por seu turno, a testemunha CC declarou em síntese que, em data que não se recorda, mas depois das 18:00 horas dirigiu-se a esquadra de Odivelas por ter sido informada por um funcionário da pizzaria “Domino’s” que tinham entregue na mesma uma carteira e uma mala de tiracolo da Louis Vuitton, no valor de cerca de 400 e 300 euros respetivamente, que tinha deixado nesse local. Chegada a esquadra foi atendida por um agente que lhe disse que os seus documentos se encontravam na esquadra mas o demais não se encontrava lá, pelo que lhe disseram para ir no dia seguinte, o que fez tendo levantado os seus pertences no dia seguinte. O agente ………………., referiu exercer as funções de Comandante da Esquadra de Odivelas, à data dos acontecimentos e explicou, em síntese, ter elaborado o auto de notícia constante dos autos tendo em consideração os relatos dos acontecimentos feitos pelos agentes da esquadra de Odivelas. Quanto às funções exercidas pelo arguido esclareceu que o mesmo quando ingressou nos quadros tinha uma situação especifica e não tinha autorização de porte de arma, o que o obrigava a fazer apenas trabalho administrativo, no horário das 9 às 17:00 horas. Assim sendo, a sua incumbência e principal função, eram as diligências tendo em vista localizar os proprietários dos achados (após as diligências iniciais feitas pelo colega que recebia os achados) e processos pendentes com viaturas na esquadra, podendo, pontualmente, ajudar no funcionamento da esquadra (designadamente receber queixas), o que não eram as suas funções iminentes. Explicou ainda que os achados estavam num departamento reservado da esquadra, numa caixa, em cima de uma mesa e num armário a que todos os policias da esquadra tinham acesso. O arguido declarou não se encontrar muito bem no dia dos factos, tendo o divórcio marcado para o dia 21/3/2019, o que não estava a digerir muito bem, tendo muito poucas ou quase nenhumas memórias do que aconteceu. Referiu que, no dia anterior, tinha ido a pé para casa, não levando o seu automóvel, dado que mora a cerca de 1,5 km da esquadra, só reparando nisso de manhã e sendo ele o único que tinha a chave do seu carro. Como deixa sempre o casaco na mala do carro, abriu a mesma e assim que a abriu verificou que estavam duas carteiras na mala do carro. Ficou um bocado envergonhado e a pensar que iam achar que tinha sido ele a tirar as carteiras e logo que entrou na esquadra os colegas perguntaram pelas malas, não souberam falar consigo, tendo respondido que ia procurar, nunca tendo sido sua intenção retirá-las. Referiu que, à medida que se ia aproximando o dia do divórcio ia bebendo, que chegava a esquadra já alcoolizado e no dia a seguir não se lembrava do que tinha acontecido. Afirmou que as suas funções era apoio ao graduado: ajudava a receber denuncias/queixas, a procurar expediente para passar a declaração, perda de documentos para fazer uns novos e cada vez que chegava alguém com armas, chamavam-no sempre. Quando estivesse desocupado, a maior parte das coisas que fazia era responder a ofícios respeitantes a viaturas que se encontram parqueadas para dar destino e era “limpar o lixo da esquadra”, explicando que dizia isto porque pegava em tarefas que mais ninguém queria fazer. Mais afirmou que deixou de beber desde a data do divórcio. * Perante a prova testemunha produzida, não teve o Tribunal qualquer dúvida em imputar ao arguido os factos que objetivamente lhe vinham imputados, uma vez, depois do agente II ter recebido os achados e colocado os mesmos na caixa destinada aos achados, no dia 11/03/2019, o arguido esteve presente na esquadra de Odivelas no dia 12/03/2019 e foi visto pelo agente HH a manusear uma mala da marca Louis Vuitton (referindo-se à mesma numa conversa telefónica), distribuiu, aliás, pelos colegas, várias moedas (kwanzas), tendo sido contactado no mesmo dia, após ter saído da esquadra, pelos agentes ……… e ……………, questionando-o acerca do paradeiro dessa mala, tendo-lhes dito que no dia seguinte resolvia o assunto. No dia 13/03/2019, o arguido foi visto a chegar à esquadra cerca das 9 horas, conduzindo o seu automóvel que estacionou em frente à mesma, tendo entrado na esquadra e após uniformizado começou a procurar a mala no seu interior, após o que, interpelado pelos colegas, foi à mala do seu automóvel e retirou do seu interior a mala e carteira desaparecidas no dia anterior. Não subsistem, assim, quaisquer dúvidas acerca da retirada da mala e carteira de CC, por parte do arguido, do interior da esquadra policial para o interior do seu automóvel. Acresce que o próprio arguido, nas declarações que veio a prestar, não negou essa possibilidade, nem ofereceu qualquer explicação para ter no interior do seu veículo os objetos aquela pertencentes, referindo aliás, ser a única pessoa com acesso ao seu automóvel. No que concerne ao valor de tais objetos, o Tribunal considerou o testemunho prestado pela proprietária, consentâneo com a natureza e características dos objetos em causa, os quais, sendo de uma marca valiosa, conforme resulta do auto de exame e avaliação de fls. 15 e atestou o agente …….., no auto de apreensão constante de fls. 4, decorre dos registos fotográficas de fls. 5 e resulta igualmente do termo de entrega de fls. 14, se considera que poderiam ascender a tal valor. Quanto à natureza das funções concretamente desempenhadas pelo arguido, importa salientar o testemunho prestado pelo então Comandante da Esquadra de Odivelas, …………., que atestou que competia ao arguido realizar as diligências relacionadas com os bens achados, ainda que entregues a outros colegas da esquadra e colocados por estes numa caixa e armário localizados numa sala acessível apenas por agentes. Todos os demais agentes policiais, referiram, aliás, ter conhecimento dessa incumbência dada ao arguido, o que, de resto, explica o facto dos agentes ………….. e …………….. o terem contactado quando procuravam pelos objetos que CC pretendia recuperar no dia 12/03/2019. As declarações do arguido, a esta matéria não foram inteiramente claras, pois embora tenha negado genericamente que tais funções lhe tenham sido atribuídas, remeteu o conteúdo para tarefas de “apoio ao graduado”, dizendo que era “polivalente”, concretizando algumas dessas tarefas mas desvalorizando as demais (apelidando-as de “lixo”, porque, explicou, se tratava de tarefas que mais nenhum colega queria desempenhar). Por conseguinte, também não se suscitaram dúvidas de que o arguido estava incumbido de tarefas tendentes a localizar os proprietários de objetos achados. Quanto ao propósito do arguido no cometimento dos factos, o comportamento do mesmo, relatado pelos elementos policiais foi por si só, evidenciador de que o mesmo se apoderou de bens que não lhe pertenciam e também, que estava ciente de que tinha praticado atos proibidos e punidos por lei. Por um lado, porquanto, conforme decorre do testemunho do agente EE, o arguido manuseou a mala encontrada, referindo-se à mesma numa conversa telefónica, mala esta que veio a transportar para o interior do seu veículo. Por outro lado, quando foi contactado pelos agentes ………. e …………., através de telefone, evidenciou, pela resposta que deu aos colegas (dizendo que resolvia o assunto no dia seguinte), que tinha conhecimento e que assumia a responsabilidade de dar resposta à situação. De igual modo, o comportamento adotado pelo arguido, ao chegar à esquadra, fingindo procurar objetos que já sabia ter na sua posse (no interior do seu veículo), o que pelo próprio foi reconhecido, é revelador de que tinha inteira consciência da gravidade e ilicitude dos atos que praticara. Com efeito, caso o arguido tivesse ficado surpreendido com a presença daqueles objetos na mala do seu veículo, como pretendeu fazer crer, o comportamento compatível com a sua alegada isenção de culpa, seria entrega imediata dos referidos bens, eventualmente explicando aos colegas desconhecer por que motivo e de que forma os mesmos estavam naquele local e não o procedimento que adotou, omitindo essa situação e simulando que procurava os objetos no interior da esquadra. Quanto à alegada falta de conhecimento dos factos ocorridos no dia 12/03/2019, de que o arguido afirma ter “poucas ou quase nenhumas memórias”, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento leva a concluir pela falta de veracidade dessas declarações, ao menos no que se refere à posse dos bens em causa. Em primeiro lugar, porquanto o comportamento que adotou nessa data e foi observado pelos colegas evidencia que o arguido tomou contacto com os bens (mala e moedas), manuseando-os e reconhecendo o seu valor (ao qual fez menção em contacto telefónico) e, ao final do dia, quando contactado por colegas com vista a saber do seu paradeiro, disponibilizando-se para resolver o assunto. Por outro lado, porque, ao contrário do que afirmou o arguido, um colega referiu espontaneamente (não se vislumbrando motivos para que o mesmo faltasse à verdade nas suas declarações), que o mesmo estacionou o veículo em frente à esquadra no dia seguinte. Finalmente, o próprio arguido entra em contradição, quando refere que não tinha as chaves do veículo, mas que, ao chegar à esquadra, foi à mala do carro para retirar o seu casaco, o que permite concluir que afinal estava na posse das mesmas (note-se que, por parte dos colegas do arguido foi dito que o mesmo se dirigiu ao interior da esquadra e se uniformizou, começando a procurar a mala e não que o arguido tenha regressado ao seu veículo). Não obstante, conforme decorre das conclusões do relatório pericial psiquiátrico elaborado em 10/02/2020 e referente a exame realizado em 20/12/2020, o arguido padece de uma “perturbação de uso de álcool grave”, sendo que de acordo com o referido relatório, na data dos factos, estaria com um quadro de intoxicação pelo álcool, sendo que, ao consumir, “colocou-se em situação de imputabilidade diminuída, de acordo com o seu entendimento e vontade livres, pelo que tal perturbação mental não releva do ponto de vista psiquiátrico-forense, nomeadamente como razão de invocação de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica”. Assim, conclui-se no referido relatório, que o arguido “não padece de patologia psiquiátrica que possa evocar a figura jurídica de imputabilidade diminuída ou de inimputabilidade por anomalia psíquica”. Na verdade, ainda que no âmbito do referido relatório se refira que “a intoxicação pelo álcool está por vezes associada a uma amnésia para acontecimentos que ocorreram no decurso da intoxicação (blackouts)”, que se admite possa ter ocorrido na data dos factos, certo é que, por um lado, conforme se lê naquele relatório, o arguido, “conhecia e conhece o risco para a sociedade devido aos seus comportamentos e consumos desde há longa data ( ...) consome intencionalmente e de forma regular, sendo responsável pelos atos cometidos sob o efeito de tal substância”. Tal é abundantemente documentado nos relatórios remetidos aos autos pelo Núcleo de Deontologia e Disciplina da Polícia de Segurança Pública (cfr. fls. 155 a 210), em particular no relatório de perícia médico legal de psiquiatria elaborado em 02/05/2019 (relativo à falta de justificação de faltas ao trabalho em 2015), no qual se conclui que o arguido apresentava um diagnóstico de dependência alcoólica, em remissão, tendo crítica aparente para o problema do álcool, sem que tal problemática afetasse a sua capacidade de avaliar a ilicitude dos factos que praticou e de se determinar de acordo com essa avaliação. Por outro lado, como se salienta no relatório pericial realizado já em 10/02/2020, a patologia de que o arguido sofre, não é tal que o impeça de dominar os seus efeitos, excluindo a inimputabilidade, dado no momento dos factos se encontrar capaz de avaliar a respetiva ilicitude e de se determinar de acordo com essa avaliação, pois ainda que estivesse etilizado, colocou-se voluntariamente nessa situação. Finalmente, ainda que os aludidos “blackouts” tenham, porventura, ocorrido ao longo daquele dia 12/03/2019, não é verosímil que o arguido desconhecesse que entrou na posse dos objetos entregues na esquadra, sendo certo que, com provadamente, tomou conhecimento desse facto no dia 13/03/2019 de manhã e não os entregou logo voluntariamente, o que denuncia a sua vontade em permanecer na posse dos mesmos. Com efeito, embora a sua capacidade pudesse encontrar-se moderadamente diminuída face ao seu quadro de intoxicação, certo é que o arguido não revela indícios de inimputabilidade, falta de reconhecimento, representação da ilicitude da sua conduta ou ausência de vontade de praticar os factos que praticou ou ainda falta de capacidade de se determinar de acordo com a representação que faz desses factos. Do exposto conclui-se que o arguido não poderia desconhecer que praticava factos proibidos e punidos por lei, tendo capacidade para avaliar a ilicitude da sua conduta e de adequar o seu comportamento, atenta essa avaliação. Os antecedentes criminais do arguido mostram-se averbados no seu Certificado de Registo Criminal. O universo fáctico respeitante às condições pessoais do arguido estribou-se no teor do relatório elaborado pela D.G.R.S.P., bem como na documentação remetida pela Divisão de Psicologia da Polícia de Segurança Pública, constante de fls. 134 e seguintes, os quais foram submetidos a contraditório em audiência de discussão e julgamento e conjugados com as declarações complementarmente prestadas pelo arguido nessa sede. No que respeita aos períodos de internamento e tratamento a que o arguido esteve sujeito, assumiu especial relevo o relatório de avaliação psicológica de 19/06/2018 (cfr. fls. 177 a 182) bem como a declaração constante de fls. 90 e junta aos autos pelo arguido e as declarações prestadas pela testemunha AR …, quanto ao período em que permaneceu na Comunidade Vida e Paz. * Quanto aos factos não provados, cumpre referir que não se produziu em audiência de julgamento prova que permitisse dar como provados outros factos para além dos descritos nessa qualidade, designadamente quanto ao facto do arguido ter à sua guarda os bens achados”.
*
3. Apreciação dos fundamentos do recurso:
3.1. Da observação do recurso in judice, com nota para a fórmula das designadas “conclusões” - cf. v.g. a 11.ª -, resulta a pretensão jurisdicional de o arguido/recorrente dever ser absolvido do crime por que foi condenado.
Ora, e em apreciação sempre oficiosa da existência, ou não, dos vícios enunciados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e designadamente do referenciado no teor da conclusão 9.ª (“erro notório na apreciação da prova”), sublinhe-se que da norma em causa decorre que o vício tem de resultar “do texto da decisão recorrida”, só podendo ser verificado no texto, e contexto, da decisão recorrida.
Desde logo, não se observa na sentença recorrida qualquer insuficiência, v.g. na apreciação da prova, nem incorrecta valoração/interpretação da prova efectuada em audiência, nem contradição em qualquer das previstas modalidades - estando os fundamentos em sintonia com a decisão proferida-, nem omissão de pronúncia, pelo tribunal, relativamente a factos alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, relevantes para a decisão, sendo sustentada a suficiência da matéria de facto para a decisão (sendo questão diversa, infra analisada, o que se motiva no sentido de a conduta do recorrente não se subsumir“ao tipo de crime que de que vem punido”, alegadamente por “em nenhum momento o arguido”, agente da Polícia de Segurança Pública a exercer funções na 71.ª esquadra da Divisão Policial de Loures, sita na Rua Gil Eanes, 4, Odivelas, ter tido “a posse e guarda dos bens - mala e carteira, pois as suas funções eram de apoio ao graduado e não especificamente as de zelar pelos bens achados que se encontravam na Esquadra de Odivelas”).
Aliás, como a norma frisa, por aqui só poderia estar em causa eventual insuficiência da matéria de facto para a decisão, e não hipotética insuficiência da prova para a matéria de facto provada, assunto que se situa já no âmbito da livre apreciação da prova.
Por outro lado, se não tivesse sido feita prova bastante daqueles factos e, sem mais, eles fossem dados como provados, haveria, quando muito, um erro na apreciação da prova, o qual, porém, só seria juridicamente relevante, como vício da decisão, se fosse de tal modo evidente que não pudesse passar despercebido ao comum dos observadores, o que o recorrente não demonstra, nem observa no caso presente.
Assim, tem de se concluir pela não verificação da existência de qualquer vício de entre os previstos no n.º 2, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal.
3.2. Por sua vez, e na observação do princípio in dubio pro reo,a operada decisão de direito tem suporte nos fundamentados e suficientes factos dados como provados, do texto da decisão revidenda se não evidenciando qualquer dúvida quanto à matéria de facto tida por provada, nem se substanciando no recurso que o tribunal a quo a devesse ter tido.
Diversamente, o que ressalta é que a decisão recorrida estrutura a convicção a partir da prova produzida em julgamento, demonstrando, sem quaisquer reservas, no âmbito do dispositivo do artigo 127.º, do Código de Processo Penal, o modo como se chegou à conclusão de que se mostram provados e não provados aqueles factos, sem ofensa a qualquer regra ou princípio de direito probatório e sem apreciação ofensiva das regras da experiência comum e/ou arbitrária da prova produzida.
Observa-se, deste modo, boa valoração dos correspondentes testemunhos e da sua articulação com o mais produzido em audiência, sem observada lesão dos direitos de defesa do arguido, nem evidência de factos incorrectamente julgados, o que se estrutura objectivado pela fundamentação da matéria de facto “com uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal” - cf. Código Processo Penal, artigo 374.º, n.º 2.
Ou seja: a prova produzida fundamenta, no seu conjunto, o decidido, em valoração que o tribunal acabou por considerar de forma articulada, individual e globalmente, com elementos que não contrariam, nem colocam em crise a versão dos factos provada.
Para lá de pelo recurso se não prefigurarem sustentados argumentos em ordem à pretensão formulada pelo recorrente no sentido da sua absolvição, também dos autos não resulta que a produzida prova a impusesse.
Como se responde, “da apreciação dos elementos constantes dos autos, designadamente, da sentença recorrida, resulta que a Mma. Juiz do Tribunal a quo fez criteriosa análise da prova, apreendendo a essencialidade e o objeto da matéria em litígio pelo que não podia deixar de condenar o arguido, ora recorrente, e em tudo mais, decidir como decidiu. Examinada a douta sentença recorrida mostram-se inequivocamente provados todos os elementos constitutivos, objetivos e subjetivos, do crime de que o recorrente foi declarado autor material. Por outro lado, a Mma. Juiz, fundamenta de forma bastante, dando cumprimento ao dever de fundamentar, contido no n.º 2 do art.º 374.º, do C.P.P., a formação da sua convicção, justifica e avalia a sua razão de ciência, indica os factos donde ela derivou e enumera os elementos de prova de que se socorreu. Sucede que em nosso entender, e desde já aderindo na integra à fundamentação e decisão devidamente descrita na sentença condenatória, a Mma Juiz fez uma correta apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, bem como uma muito adequada análise da mesma, com a aplicação objetiva e isenta da lei que se lhe impunha. A Mma Juiz de Direito decidiu em conformidade com a prova produzida e no estrito cumprimento da lei, e não seria expectável outra decisão, senão a que foi decidida, e bem! (…) Sustenta o recorrente que ninguém viu o mesmo a retirar os objectos do local, mais precisamente do interior da esquadra da Polícia de Segurança Pública; mas é o mesmo que admite, tal como consta inclusive das suas alegações de recurso, que quando se dirigiu ao seu veículo automóvel para ir buscar o casaco verificou que ali se encontravam duas carteiras. O ora recorrente tentou durante a audiência de julgamento fazer valer a sua posição de que em virtude de padecer de problemas de álcool se esquecia do que fazia, chegando mesmo ao ponto de afirmar que “não quer dizer que não fui eu que lá as pusesse.” Ora, conforme se afere dos factos dados como provados nos presentes autos, a conduta atribuída ao arguido e pela qual foi condenado resulta da circunstância de ter feito sua, em proveito próprio, coisa móvel propriedade de terceiros, facto esse que foi cometido enquanto agente da Polícia de Segurança Pública, em violação dos seus estritos deveres”.
De resto, este Tribunal superior não poderia conhecer apenas a visão dos factos do recorrente, designadamente quando este, de acordo com a sua tese, ignora o global dos factos provados e o conjunto de provas que estiveram na base da sentença recorrida, não especificando provas que, no provado contexto, pudessem, com validade processual, impor decisão diversa da recorrida, nesta medida não demonstrando a razão de facto pela qual se impunha, no seu entender, uma outra decisão.
Não se observam razões para censurar o juízo que o Tribunal a quo formulou sobre a credibilidade, ou não, dos depoimentos, declarações e documentação em causa, na conjugação dos elementos expressos, compreendidos e interpretados na lógica interna da decisão, se estruturando os fundamentos do decidido, em perspectiva própria de uma razoável compreensão das regras da vida e da experiência comum das coisas.
É essa a resultante do reporte aos limites decorrentes dos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e das concretas razões de discordância, da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, de a reponderação de facto por este Tribunal da Relação não constituir um segundo/novo julgamento e, ainda, do pressuposto, que sempre teria de assentar na especificação e quadro argumentativo constante do recurso, de que as provas na medida do indicado pelo recorrente não impõem decisão diversa da recorrida em sede da dada como provada matéria de facto, sem qualquer violação da Constituição da República e/ou da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - cf.: Código de Processo Penal, artigo 412.º, n.º 3, alínea b); acórdão do Tribunal Constitucional, in BMJ 489, página 5; Professor Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, 2004, páginas 202 a 203; e Professor Costa Andrade, in Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, páginas 164 a 166 e 198.
Evidenciando-se que, com substância, se não se apontam no provado enquadramento explicação, valoração e/ou diferentes considerações de valor técnico-legal que permitam decisão em sentido diverso daquele que resultou expresso na sentença in judice, o que se observa, repete-se, é que o tribunal a quo ponderou e fundamentou a sua convicção, desenvolvendo as necessárias diligências, aí sim com recurso à oralidade e imediação, em percepção própria do material probatório (desde logo contacto vivo e imediato com o arguido e cada uma das testemunhas) e em ordem a indagar o processualmente em apreço, até pela eventual circunstância de poder conferir validamente, como se não tornou possível, um sinal diferente à decisão que teria de tomar - cf. Código de Processo Penal, artigos 163.º, e 410.º, n.º 2, alínea a).
O que significa que a opção tomada, possibilitada pela actividade cognitiva do tribunal a quo, semostra devidamente sedimentada, com fundamento no esgotar da prova produzida em audiência, sem erro na apreciação da mesma e em convicção objectivamente formada, com apoio nas apropriadas regras técnicas no relativo aos critérios de valoração daquela.
Trata-se de contexto substantivo que permite a compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação da decisão, a qual utiliza argumentos fundados em regras da experiência comum e com asserções por ela não contrariadas.
O decidido revela-se, nessa medida, apreensível no que importava estruturar, com substância/conteúdo, na articulação do produzido em audiência, em termos de razões lógicas e dos critérios mentais que foram seguidos, se afirmando-se, inequivocamente, por que se proferiu aquela, e não outra, decisão.
3.3. Observe-se, por outro lado, “fixada a matéria de facto”, o “enquadramento jurídico penal da causa” a que, bem, procedeu o tribunal a quo, “atendendo a que foi imputada ao arguido a prática de um crime de peculato, previsto e punido no artigo 375.º, n.º 1 do Código Penal, o qual estabelece: “O funcionário que ilegitimamente se apropriar, em proveito próprio ou de outra pessoa, de dinheiro ou qualquer coisa móvel ou imóvel ou animal, públicos ou particulares, que lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou lhe seja acessível em razão das suas funções, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.” Inserido sistematicamente no capítulo dos crimes contra a propriedade, os bens jurídicos protegidos no âmbito de proteção desta norma típica são a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e, acessoriamente, o património alheio. O tipo do ilícito jurídico-penal sob apreço consubstancia-se nos seguintes elementos, do tipo objetivo: a) que o agente seja um funcionário; b) que o mesmo se aproprie (subtraia), em proveito próprio ou de outra pessoa; c) de dinheiro ou qualquer outra coisa móvel, pública ou particular; d) que lhe tenha sido entregue, estiver na sua posse ou lhe for acessível em razão das suas funções; e e) que essa apropriação seja ilegítima. A nível subjetivo exige-se que o agente atue com intenção de apropriação desses bens, sabendo que tal atuação é proibida e punida por lei. O peculato, na sua configuração central, não é mais que a apropriação indébita praticada por funcionário público ratione officá. É a apropriação indébita qualificada pelo facto de ser o agente funcionário público, procedendo com abuso do cargo ou infidelidade a este. O peculato pressupõe assim no agente a preexistência da legítima posse precária, ou em confiança, da res mobilis de que se apropria, ou desvia do fim a que era destinada - cfr. Simas Santos, in “Código Penal Anotado” vol.4, pág. 566. Trata-se de um crime específico impróprio: por um lado o agente terá que ser um funcionário (cujo conceito está mencionado no artigo 386.º), funcionário esse que, em razão das suas funções, tenha a posse do bem objeto do crime; é esta qualidade do agente (e esta relação do agente com o objeto) que torna a ilicitude do crime de peculato mais grave do que a do furto (...) ; por um lado, também é a qualidade de funcionário no exercício das suas funções - crime praticado no exercício de funções públicas - que distingue o crime previsto no artigo 205.º n.º 5 (abuso de confiança qualificado) - cfr. “Comentário Conimbricense do Código Penal”, parte especial, tomo III, Coimbra Editora, pag. 692). No caso vertente, resultou demonstrado que o arguido se apropriou de objetos que foram entregues na esquadra policial de Odivelas e colocados numa caixa destinada à guarda dos objetos perdidos e achados dessa esquadra, levando-os consigo e fazendo-os seus. O arguido encontrava-se o exercício de funções de agente da Polícia de Segurança Pública na esquadra de Odivelas e apenas tinha acesso aos referidos objetos por causa das suas funções e no exercício exclusivo das mesmas. Ora, conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque - cfr. Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3.ª Ed. Unoversidade Católica Editora, p. 1199 -, “a coisa deve estar na posse ou detenção do funcionário ou estar acessível ao funcionário” (...) “A coisa está acessível ao funcionário quando está na sua esfera de domínio funcional (por ordem, requisição ou mandado), embora não se encontre na sua posse ou detenção. A condição legal fica satisfeita quando a coisa é possuída, detida ou acessível por ocasião do exercício das suas funções públicas, mesmo que se trate de uma circunstância momentânea ou episódica, uma vez que a lesão do bem jurídico é tão grande neste caso como quando a coisa esta permanentemente submetida ao domínio do funcionário”. No caso vertente, entende-se que, pese embora os objetos retirados pelo arguido não se encontrassem à sua guarda ou posse exclusiva, certo é que se encontravam à guarda de todos os agentes daquela esquadra policial e apenas acessíveis a estes, isto é, o arguido apenas teve acesso aos objetos que retirou por via da sua condição de agente policial em funções na 71ª esquadra de Odivelas. Acresce que, para além dos objetos apenas serem acessíveis ao arguido em razão das suas funções e enquanto exercesse funções naquela esquadra policial, o arguido tinha uma especial proximidade física com os mesmos, na medida em que era o agente responsável pelas diligências relacionadas com aqueles bens, entregues na esquadra por terem sido achados. Assim sendo, o arguido, ao retirar os objetos em causa do local que lhes era destinado, retirando-os da esquadra e apropriando-se dos mesmos, colocando-os no interior do seu automóvel, traiu a confiança que lhe foi depositada enquanto agente policial a exercer funções numa esquadra policial, a quem incumbia encontrar o proprietário de tais bens. O arguido sabia que atuava sem autorização e contra a vontade da legítima dona daqueles objetos, bem como da Polícia de Segurança Pública, atingindo os deveres e obrigações decorrentes das suas funções e estatuto profissional, tendo atuado de forma livre, voluntária e consciente de que aquela conduta era proibida e punida por lei. Deve, pois, ser penalmente responsabilizado pelo cometimento do crime de que vem acusado”.
Como se vem de expor, e diversamente do que invoca o recorrente, os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime in judice mostram-se preenchidos, a tanto bem respondendo o Ministério Público:
“O recorrente alega que não tinha como funções a guarda dos bens achados e que, consequentemente, não pode ser condenado pelo crime que lhe foi imputado. Ora, salvo o devido respeito por opinião contrária, no ilícito em apreço um dos elementos essenciais do mesmo consubstancia-se no facto da coisa ou objecto ser alheia ao funcionário, ser de terceira pessoa, como se deu como provado. Efectivamente, não se revela como elemento objectivo do crime que as coisas tenham que ter sido entregues ao agente da conduta criminosa, como quer fazer valer o recorrente. Na verdade, basta que a acção de inversão do título da posse tenha ocorrido em virtude da coisa/objecto ser acessível em razão das funções do agente, como sucedeu no caso dos presentes autos. Nessa mesma esteira de pensamento, não devemos olvidar que na prova dos factos em processo penal é legitimo o recurso à prova indirecta, muitas vezes designada por prova indiciária ou circunstancial. Como defende o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, II, 1993, pág. 79, “a percepção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, sendo que na prova indirecta “a percepção é a racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição chama-se presunção.” Ora, como resulta da sentença ora recorrida, a julgadora, de forma a avaliar-se a racionalidade sobre os factos, fundamentou a decisão quanto à matéria de facto, expondo nos fundamentos da convicção a natureza das provas produzidas e os meios, modo e processo intelectual utilizado, e inferido das regras da experiência comum, para a obtenção da conclusão subjacente à condenação do arguido”.
Ou seja, os bens em apreço, entregues naquela esquadra policial por terem sido achados, apenas eram acessíveis ao recorrente em razão e na medida em que ali exercia funções, no exercício exclusivo das mesmas, e para lá de lhe caber, à data, enquanto agente em funções na 71.ª esquadra de Odivelas,a responsabilidade por eventuais diligências relacionadas com os objectos achados, no caso “uma mala da marca Louis Vuitton TH2008, com padrão xadrez, no valor de cerca de 300 € (trezentos euros) e uma carteira, com o mesmo padrão e da mesma marca, no valor de 400 € (quatrocentos euros), contendo o seu título de residência, bilhete de identidade e carta de condução, bem como várias moedas emitidas pelo Banco da República de Angola, em valor não concretamente apurado”.
A sentença recorrida, na envolvente da interpretação dos conceitos em causa, está, assim, conforme à lei e à Constituição da República Portuguesa, com adequado sustento fáctico-legal, inexistindo razões para divergir em sede de decisão de facto e de direito do juízo formulado pelo tribunal a quo, não se tratando de situação que permita a absolvição do arguido/recorrente, AA, e diversamente da única tutela jurisdicional formulada.
3.4. Na referência, “de Direito”, que se faz em sede de recurso à “Pena de dois anos de Prisão
”, sendo que o motivado/concluído se dirige primacialmente ao “mais” da pretensão formulada (a absolvição), cumpre notar que, em função da satisfação de exigências de prevenção, deverão ser valoradas na determinação da medida da pena todas as circunstâncias ocorrentes, incluindo as alheias ao facto, estranhas ao ilícito típico e à culpa e/ou tipo de culpa, bem como os atinentes à personalidade do arguido/recorrente, desempenhando os primeiros um papel preponderante na avaliação da medida da pena necessária para satisfazer as exigências de prevenção geral, e os segundos (prevalente) satisfação das exigências de prevenção especial, no respeito pelos critérios orientadores insertos no artigo 71.º, do Código Penal, sem esquecer que a sua finalidade tem o propósito de proteger bens jurídicos e reintegrar AA na sociedade.
Observadas as exigências de prevenção geral, a provada conduta reflecte distanciamento em termos de ultrapassagem das contra-motivações éticas entre uma determinação normal pelos valores e a do recorrente, agente da Polícia de Segurança Pública, mas ainda não estrutura censurabilidade especial da motivação pela violação da norma.
É, pois, a significação do delito para a ordem jurídica e a gravidade de reprovação que importa aferir ao arguido que devem fundamentar a pena que importa determinar, no reporte aos factores concretos “concernentes à execução do facto” tidos em conta pela sentença recorrida: “- Em desfavor do arguido será de valorar: • O grau de ilicitude dos factos, o qual deverá situar-se na mediania, atendendo ao curto lapso de tempo porque perdurou a sua conduta e à natureza dos objetos retirados, bem como o facto de terem sido recuperados e devolvidos à sua proprietária; • falta de exame crítico pelo arguido quanto ao seu comportamento. - Em favor do arguido será de ponderar: • O seu grau de culpa, que deverá ter-se por atenuado considerando a sua situação pessoal à data dos factos, bem como o seu quadro “perturbação de uso de álcool grave” e as fragilidades da sua personalidade decorrentes do abuso de bebidas alcoólicas; •A circunstância de o arguido se encontrar, aparentemente, abstinente do consumo de álcool, manifestando vontade de não voltar a consumir álcool, tendo-se mostrado recetivo ao tratamento da sua perturbação”.
O crime em apreço tem grau de ressonância ética negativa no tecido social, com a pena a dever assentar no conjunto os factos e na personalidade do recorrente, devidamente aferida ao inerente desvalor de acção mas, também, de resultado e à medida concreta das penas que nas identificadas circunstâncias vêm sendo aplicadas pelos Tribunais Superiores.
Assim, na ponderação das observadas circunstâncias e dos critérios dos artigos, conjugados, 70.º e 71.º, do Código Penal, julga-se ser de usar maior grau de compressão, situando a pena concreta pouco acima do limite mínimo da moldura, por se concluir que, sem ultrapassar a medida da culpa, tal se mostra mais justo e adequado às exigências de prevenção geral e especial, fixando-a em um ano e dois meses de prisão, com manutenção da decretada suspensão na sua execução.
*
III. DECISÃO:
Em conformidade com o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em, nesta medida, conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido, AA, condenando-o “pela prática de um crime de peculato, previsto e punido pelo artigo 375.º, n.º 1, do Código Penal, por referência ao artigo 386.º, do mesmo Código,” na pena de um ano e dois meses de prisão, a qual se mantém “suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos”, com subordinação “ao cumprimento, pelo arguido da regra de conduta de tratamento de sua “perturbação de uso de álcool grave”, a ser apoiada e fiscalizada pelos serviços de reinserção social, nos termos dos artigos 52.º, n.º 1, alínea b), 3 e 4 e 51.º, n.º 4, ambos do Código Penal”, no mais se confirmando a sentença recorrida.
Notifique.
Lisboa, 2020.12.10.
Guilherme Castanheira
Calheiros da Gama
(Acórdão processado e integralmente revisto pelo relator e pelo Ex.º Juiz Desembargador Adjunto)