PROCESSO LABORAL
RECONVENÇÃO
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
COMUNICAÇÕES PRIVADAS
PROVA ILÍCITA
Sumário


I – Em processo laboral a reconvenção não é admissível case se funde em circunstancialismo autónomo e não no facto jurídico essencial que serve de fundamento à acção, excluídas que estejam as demais hipóteses previstas no artigo 30º CPT.
II - Não ocorre a apontada ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade da causa de pedir e do pedido, porquanto não subsiste dúvida sobre a tutela que é requerida ao tribunal e qual o acervo fáctico essencial em que se baseia.
III - O dever de fundamentação aludido no artigo 607º/4, CPC, sofre adaptação quando se refira ao despacho senador que conhece parcialmente do objecto da causa, por não ser proferido na sequência de julgamento e de produção de prova. Relevante é que da decisão resulte claro a materialidade fáctica que serviu de base à aplicação do direito e o seu suporte probatório.
IV - São comunicações privadas as mensagens trocadas entre duas trabalhadoras através do Messenger do Facebook em contas que são criadas em nome daquelas e destinadas ao envio e recepção de mensagens pessoais e não de serviço.
V - Não relevando que o seu conteúdo se refira ao trabalho, tal como consensualmente não releva numa comunicação tradicional (ex. carta ou telefonema), onde os interlocutores podem abordar os mais diversos assuntos, desde íntimos a profissionais, sem que seja através do conteúdo que as mesmas são classificadas de pessoais ou profissionais.
VI - O Messenger do Facebook permite comunicações instantâneas de texto e imagem em que o usuário/remetente escolhe o “contacto”/destinatário e tem uma clara e legítima expectativa de privacidade, ao contrário do que pode ocorrer em “grupos” alargados ou “páginas” de redes sociais que podem redundar em falta de controle sobre a identidade e número de destinatários e subtrair a tutela da privacidade. Aquelas são, assim, mensagens pessoais que gozam do inerente direito de reserva e confidencialidade, ainda que remetidas a partir do local de trabalho.
VII - O uso de tais comunicações como meio de prova em processo disciplinar integra prova nula por violar o direito de reserva da vida privada e de confidencialidade das comunicações privadas, sendo indiferente o meio através do qual o empregador delas teve conhecimento, mormente se foi ou não por denúncia anónima, porquanto é vedado, quer o acesso, quer a sua divulgação - 26º, 34º, 32º, 8, CRP, 16º e 22º, CT.

Texto Integral


I. RELATÓRIO

AUTORA: M. S..
RÉ – X, Associação de Defesa, Desenvolvimento e Promoção do Centro Infantil da Escola ….

A autora intentou acção de processo comum pedindo que seja declarada a nulidade do procedimento disciplinar de que foi alvo e, bem assim, da sanção disciplinar aplicada ou, caso assim não se entenda, ser decretada a ilicitude da sanção disciplinar, sendo a ré condenada a pagar-lhe indemnização por danos não patrimoniais no valor de 5.000,00€ e juros de mora.
Alega, em síntese, que a nota de culpa e decisão final têm por base mensagens alegadamente trocadas entre si e outra pessoa, através da aplicação de software, designado Facebook Messenger. Acedendo a ré a conta privada em nome de M. S. e a mensagens alegadamente trocadas com outra trabalhadora da ré, C. C., o que só por si gera a nulidade do processo por utilização de prova nula. Sem conceder, não vê como possa constituir infracção disciplinar um pedido de colaboração, expresso nas mensagens processadas no Messenger do Facebook, dirigido a uma outra trabalhadora da ré, C. C., referente a manutenção, modificação ou criação de conteúdos da página do facebook da ré, tanto mais que foi esta trabalhadora quem a criou. Mais refere que a instauração do processo disciplinar e a sua publicidade lhe causou danos morais.
A ré contestou e, na parte que ora releva, excepcionou a ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade da causa de pedir e incompreensão do pedido. Deduziu reconvenção pedindo que a autora seja condenada a “(1) reconhecer a licitude de todos os atos procedimentais praticados pela reconvinte e as correspetivas legalidade, regularidade e validade do procedimento disciplinar – incluindo o respetivo inquérito prévio – designadamente da decisão que deliberou aplicar-lhe a sanção disciplinar de oito dias de suspensão do trabalho com perda de retribuição; (2) A reconhecer a licitude da deliberação de exoneração do cargo que ocupou, de Diretora Técnico-Pedagógica do Centro Infantil da reconvinte, e as correspetivas legalidade, regularidade e validade, designadamente do acto de execução dessa deliberação subscrito pelo Presidente da Direção da reconvinte;(3) A pagar uma indemnização à reconvinte por danos materiais decorrentes da sua conduta, designadamente financeiros, a serem apurados em liquidação de sentença após balanço e aprovação das contas relativas ao exercício de 2019 de montante nunca inferior ao quantitativo que peticionou, acrescido dos juros… “
Foi proferido despacho saneador, não se admitindo a reconvenção e conhecendo-se das excepções de ineptidão da petição inicial e de nulidade do procedimento disciplinar – prova ilícita, prosseguindo, no mais, os autos para julgamento.
Decidiu-se quanto à reconvenção: “Em face do exposto, ao abrigo do disposto no artigo 30º, nº 1 do CPT, não admito a reconvenção deduzida pela ré.”
Decidiu-se quanto à ineptidão da petição inicial: “Assim, julgo improcedente a excepção de ineptidão invocada pela ré.”
Decidiu-se quanto à nulidade do procedimento disciplinar – prova ilícita: “Pelo exposto, ao abrigo das disposições conjugadas dos artºs 16º e 22º, nº 1 do Código do Trabalho, julga-se procedente o primeiro pedido deduzido pela autora e, por consequência, declara-se a nulidade do procedimento disciplinar promovido pela ré e a nulidade da sanção disciplinar aplicada à autora.”
O recurso da ré respeita a estes segmentos do despacho saneador.

FUNDAMENTOS DO RECURSO DA RÉ

I - O pedido reconvencional da ora recorrente corresponde efetivamente à espécie de processo que corresponde ao pedido da recorrida, emerge inegavelmente do facto jurídico que serve de fundamento à ação e o valor da causa não excede a alçada do tribunal, sendo, portanto admissível ao abrigo do art.º 30.º do CPT, o que deve ser declarado para todos os efeitos legais.
II - Deve ser considerada procedente a alegada ineptidão e declarada a nulidade da petição inicial com as legais consequências como é de direito.
III - O Tribunal a quo tendo decidido no saneador/sentença da forma supra descrita, para aqui convocada e dada por integralmente reproduzida nos termos vertidos em A D da ALEGAÇÃO, omitiu pronuncia sobre matéria que tinha o dever de se apreciar, não atendeu à factualidade e aos documentos que a suportam, decidiu sobre matéria que desconhecia no momento da decisão, não se pronunciou sobre o modo de aquisição e o conteúdo nem sobre a natureza dos documentos, estando ausente qualquer apreciação substancial subsumível na interpretação e aplicação das normas invocadas, desaplicando por outro lado normas e princípios normativos que tinha o dever de aplicar.
IV - Assim, o despacho saneador/sentença impugnado é nulo com os fundamentos supra alegados, para os quais a recorrente remete, o que deve ser declarado com todas as consequências legais como requer. Sem prescindir,
V - A recorrente nunca afirmou que as aludidas mensagens revestiam índole pessoal da recorrida ou da sua interlocutora.
VI - O pedido acolhido no douto despacho saneador/sentença não tem, de todo, fundamentação de facto.
VII - O despacho saneador/sentença em crise, que milita objetivamente a favor da tese da ora recorrida, omite, de todo, a fundamentação de facto, não subsume qualquer factualidade com referência às normas invocadas e, apriorística e abstratamente, interpreta e aplica erradamente o direito (Art.º 21º”, no n.º 1 e Art.º 16º, n.º 2 do Código do Trabalho, Art.º 34º, n.º 1; Art.º 32º, n.º 8 e Art.º 18º, da Constituição da República Portuguesa, sufragando, abstratamente, tal posição na jurisprudência que cita.
VIII - Com efeito, dos autos retira-se indubitavelmente que a recorrente não vigiou a recorrida, não se intrometeu, muito menos abusivamente, na sua vida privada, na sua correspondência ou, por qualquer meio, nas suas comunicações.
IX - Demonstram os documentos que sustentam as suas alegações, cuja prova não foi tida nem achada, que as conversas da recorrida não têm natureza pessoal, são feitas na condição expressa de trabalhadora e visam, apenas e tão só, a destruição, de facto e jurídica, da recorrente, a desestabilização do funcionamento orgânico e funcional desta e do seu centro infantil, o fomento da discórdia permanente entre membros dos seus órgãos e entre pais e encarregados de educação das crianças do centro infantil e entre estes e associados, a instalação e prossecução do dissenso entre estes e o fomento de um permanente clima de conflito entre as suas trabalhadoras.
X - O tribunal não apreciou antes da decisão ora impugnada nem, nesta, o concreto conteúdo ou a natureza das mensagens transcritas nos referidos artigos da motivação, decidindo sem tomar conhecimento do respetivo conteúdo e sem conhecer os documentos que sustentam tal transcrição e, tão pouco, ajuizou das circunstâncias que estão na base da sua aquisição.
XI - O despacho saneador/sentença erra manifestamente na invocação e aplicação do n.º 1 do art.º 21.º do Código do Trabalho, na medida em que não foi alegado nem provado pela recorrida – e com o devido respeito, tão pouco pela M.tma Juiz, como lhe compete, que os documentos que subjazem aos referidos artigos da motivação, advêm da utilização, não autorizada, pela empregadora de meios de vigilância à distância.
XII - Há manifesta omissão quanto à utilização pela recorrida dos meios de comunicação da recorrente.
XIII - É evidente que as aludidas conversas nada têm a ver com os meios invocados, resultando, ao invés, do seu conteúdo, que não possuem natureza pessoal e que se consubstanciam, de facto, em mensagens de natureza profissional (única e exclusivamente baseadas na condição de trabalhadora da recorrida contra a sua empregadora, os seus dirigentes e a maioria das suas trabalhadoras).
XIV - Erra também o douto despacho saneador/sentença na interpretação e aplicação do invocado n.º 1 do art.º 34.º da CRP, na medida em que não foi alegada nem provada a ingerência da recorrente – que, aliás, não está fundamentada de facto nem, obviamente, aconteceu – no domicílio ou na correspondência ou nos meios de comunicação privada da recorrida.
XV - Como erra o douto despacho saneador/sentença na interpretação e aplicação do invocado n.º 8 do art.º 32.º da CRP, por não ter sido alegada nem provada e muito menos considerada, fundadamente, pelo tribunal qualquer abusiva intromissão da recorrente na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações da recorrida.
XVI - A invocação da força jurídica do art.º 18.º da CRP não se sustenta em qualquer fundamento de facto que demonstre a aludida afetação de direitos, liberdades e garantias da recorrida e especifique quais e em que medida o foram, sendo, no caso concreto, inoponível à recorrente, máxime por não os identificar, observar e ponderar.
XVII - É manifestamente errada a aplicação do n.º 2 do art.º 16.º do CT na medida que os conteúdos dos documentos em causa não se relacionam, obviamente, com a vida familiar, afetiva e sexual da recorrida nem com o seu estado de saúde ou com as convicções políticas e religiosas da mesma.
XVIII - É aberrante e choca a mais elementar das consciências jurídicas e viola a ordem jurídica na sua totalidade, o facto de uma trabalhadora poder premeditar, urdir planos, associar-se a outras pessoas na sua concretização e, intencionalmente prosseguir e cometer as condutas que concebeu com a finalidade de destruir a sua empregadora – o que constitui, pelo menos, uma tentativa de pôr fim à sua existência jurídica – passe a comparação e a distância substantiva, equivalente à morte de uma pessoa física – escudando-se a mesma na falta do seu consentimento para a produção da prova da sua conduta.
XIX - Não há ilicitude na aquisição e utilização da prova por parte da recorrente na defesa da sua existência – jurídica –, dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e dos direitos e interesses legalmente protegidos dos seus dirigentes, associados, crianças utentes do seu centro infantil e pais e encarregados de educação das mesmas bem como do conjunto das suas trabalhadoras.
XX - A recorrente e os seus órgãos e dirigentes utilizam – e utilizaram – os documentos que chegaram às suas mãos nas circunstâncias relatadas nos autos em legítima defesa, ou no limite em estado de necessidade, para poder repelir a agressão, então actual e ilícita, da recorrida contra a existência e os interesses juridicamente protegidos da recorrente, dos seus dirigentes, dos associados, das crianças utentes do centro infantil, dos pais e encarregados de educação destas e das suas trabalhadoras bem como para prevenir futuras lesões dos seus bens jurídicos.
XXI - A falta de consentimento da recorrida só pode operar no respeito pelo princípio da proporcionalidade, ou seja, mediante a devida ponderação de valores de modo a permitir a resolução do problema do acesso e da produção da prova em juízo, com a prévia apreciação e valoração da prova documental existente nos autos pelo tribunal e a avaliação, também por este, do sacrifício entre o direito à eventual reserva das mensagens da recorrida e o bem comum, visando o regresso da paz social, consubstanciada, designamente, no benefício da comunidade associativa, na segurança pessoal e educativa das crianças, na mobilização para as tarefas sociais e educativas dos pais e das trabalhadoras na sua totalidade e os afazeres institucionais, com a consequente erradicação da génese destrutiva, das sementes da discórdia e do conflito permanentemente estabelecido pela recorrida.
XXII - Os documentos subjacentes às alegações cuja prova foi rejeitada pelo despacho aqui em crise, não colidem, evidentemente, com a reserva da vida privada da recorrida – muito menos com o seu núcleo duro – nem contêm conversas de natureza pessoal que mereçam a proteção do direito como é pretensão da recorrida no caso concreto.
XXIII - Ainda que assim não fosse – no que de modo algum se concede – sempre estaria excluída a sua eventual ilicitude pela ordem jurídica considerada na sua totalidade, designadamente porque a sua utilização no procedimento disciplinar – e no inquérito que o precedeu – em como em juízo consubstanciam atos de cumprimento de deveres por parte da recorrente e dos seus órgãos e dirigentes, de exercício de direitos e de legítima defesa, o que deve ser declarado para todos os efeitos legais.
XXIV - O douto despacho saneador/sentença viola, substantiva e adjetivamente, os princípios constitucionais do acesso ao direito e a garantia de tutela jurisdicional efetiva dos direitos e interesses legalmente protegidos da recorrente bem como o seu direito, através dos seus dirigentes, de resistir e repelir as agressões imediatas perpetradas contra a sua existência.
XXIV - Termos em que, nos melhores de direito e sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, declarando-se a admissibilidade do pedido reconvencional, a ineptidão da petição inicial e a nulidade – ou revogando-se – do despacho saneador/sentença e substituindo-se o mesmo por outro que admita a produção da prova requerida e adquirida pela recorrente, atinente à facticidade supra indicada, com todas as consequências legais …
CONTRA-ALEGAÇÕES: propugna-se pela manutenção da decisão recorrida.
PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO: defende a total improcedência do recurso. A pretensa admissibilidade da reconvenção e a ineptidão da petição inicial nem sequer estão fundamentadas, nem tão pouco se observa o vício de nulidade do despacho saneador, não concretizando a recorrente nas conclusões em que consiste. Quanto à nulidade do procedimento disciplinar por utilização de prova ilícita concorda-se com o decidido, porquanto, estando em causa mensagens trocadas entre a autora e outras pessoas através de um canal privado de comunicação - a rede social Facebook Messenger - apenas reservado aos respetivos utilizadores, as mesmas constituem necessariamente mensagens de natureza pessoal dessas pessoas a que outros não podem aceder nem utilizar os seus conteúdos.
A recorrente respondeu ao parecer propugnando pela procedência do recurso.
O recurso foi apreciado em conferência – art. 659º, do CPC.

QUESTÃO A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso(1)):

i)admissão da reconvenção;
ii) ineptidão da petição inicial;
iii) nulidade do despacho saneador (por falta de fundamentação de factos provados e não provados e omissão de pronúncia sobre o conteúdo das mensagens transcritas nos autos);
iv) erro de direito ao considerar ilícita a prova obtida através de mensagens de Messenger do Facebook geradora de nulidade do processo disciplinar e da sanção aplicada.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS:
São os constantes do relatório e no ponto II-D (reprodução dos artigos 6º e ss da nota de culpa).

B) RECONVENÇÃO
A reconvenção é um pedido autónomo deduzido na contestação pelo réu contra o autor. É uma acção cruzada em que o réu aproveita para formular um pedido, não se limitando a contestar, pelo que, para ser admissível, é necessário que apresente pontos de contacto com a acção inicial.
Segundo o art. 30º do CPT e 126º, 1, al.s n), o), LOSJ (2) a reconvenção só admissível (3):

i) se emergir do facto jurídico que serve de fundamento à acção;
ii) caso se destine a obter compensação;
iii) caso o pedido do réu tenha conexão com a acção, por se relacionar com o pedido do autor por acessoriedade, complementaridade ou dependência.

Da comparação deste regime com o previsto na lei processual civil (266º CPC), retira-se que a dedução da reconvenção em processo de trabalho é admitida em moldes bem mais restritivos. Desde logo, não é admissível caso se baseie nos fundamentos de defesa invocados pelo réu. Aponta-se que tal se justifica por especificidades ligadas à protecção do trabalhador, visando evitar-se que a ré, por norma a entidade empregadora, se sirva da acção para, em defesa indirecta, contra aquele deduzir pedidos autónomos.

Diz-se na decisão recorrida:
“Volvendo ao caso dos autos, temos, resumidamente, que a autora invocando a nulidade do procedimento disciplinar e ilicitude da sanção disciplinar que contra si foi decretada pela ré, reclamando ainda uma indemnização pelos danos não patrimoniais que a ré lhe causou por ter sido objecto de um processo disciplinar e de uma sanção disciplinar, alegando que em consequência disso foi destituída do cargo de directora pedagógica.
A ré por sua vez, no pedido reconvencional formulado peticiona a condenação da autora: a reconhecer a licitude de todos os actos procedimentais e as correspectivas legalidades, regularidade e validade do procedimento disciplinar; a reconhecer a licitude da deliberação de exoneração do cargo que ocupou de Directora Técnico-Pedagógica do Centro Infantil da reconvinte; e no pagamento de uma indemnização por danos materiais, designadamente financeiros, que não concretiza, decorrentes da conduta da autora, como trabalhadora, Directora do Centro Infantil da ré, membro integrante da Direcção, por inerência do referido cargo, por integrar, desde o dia 24/04/2016 até ao pressente, o plano secreto gizado por C. C., para a tomada dos órgãos da sua empregadora e, no caso de se frustrarem tais objectivos, o plano alternativo de confundir e exaurir os seus dirigentes, fomentar a desorganização interna, instalar conflitos permanentes entre trabalhadores, associados, pais e encarregados de educação e, por fim aniquilar juridicamente a ré, levando à falência desta e do seu Centro Infantil, demonstrando com isso infidelidade para com a ré, enquanto prevaleceu o vínculo contratual e pervertendo agora a finalidade legal da presente acção com aproveitamento secreto e abusivo das características do direito e do processo laborais em proveito próprio com vista a um enriquecimento sem causa à custa da ré, que no caso concreto dos autos, atentos os meios e a actividade secreta e sub-reptícia utilizada pela autora e certamente desproporcional aos seus direitos processuais em sede de julgamento, de aplicação das redes sociais a tais objectivos, é a ré a parte mais fraca deste litígio. Para tanto, para além dos factos que a ré lhe imputa na nota de culpa, alega o conhecimento de factos alegadamente adquiridos no dia 07/01/2019, em sede de audiência de discussão e julgamento do Procº 768/19.0T8BCL e outros, ulteriormente indagados pela ré, como seja, uma página secreta de Facebook, orientada por C. C. e Z. F., factos estes que não constituíram sequer objecto do procedimento disciplinar instaurado pela ré.
Ou seja, confrontando cada um dos pedidos, que claramente não provém da mesma causa de pedir, não existe qualquer nexo de acessoriedade, dependência ou complementaridade a que alude a alínea p) da Lei nº 3/99, tal como este foi supra clarificado.”

A ré refere, contudo, que os pedidos emergem do mesmo facto jurídico que serve de base à acção.
O facto jurídico que alicerça a acção é o facto concreto e específico invocado pelo autor para fundamentar o pedido (causa de pedir). Exige-se identidade entre a causa de pedir da acção e da reconvenção, tendo esta última de se sustentar nos factos em que assenta o pedido do autor. A identidade, se não tem de ser completamente absoluta, terá de o ser, pelo menos, no essencial. Note-se que os factos podem ser os mesmos, mas alegados numa perspectiva oposta, isto é, o réu pode pedir o efeito jurídico contrário ao do réu (ex. anulação de contrato versus validade do contrato).
No caso, a causa de pedir é constituída pelas acusações constantes do processo disciplinar movido pela ré à autora que culminou em sanção disciplinar, pela utilização de um meio de prova alegadamente proibido de acesso a mensagens de conta privada de facebook, e pelo teor das mensagens que, no entender da autora, nunca integrariam sequer qualquer infracção disciplinar, por se traduzirem em meros pedidos de ajuda a outra colega de trabalho quanto à manutenção do portal de internet da ré.
Constata-se, pois, que apenas a declaração de licitude do processo disciplinar formulado pela ré se funda no mesmo núcleo/facto jurídico que serve de base à acção, pedindo-se o efeito jurídico contrário ao pretendido pela autora, o que é válido nos termos supra referidos.
Os demais pedidos fundam-se noutros circunstancialismos como referido no despacho recorrido, constituindo um alargamento anormal do objecto da acção, não permitido nos termos supra descritos. Sendo antes um exemplo daquilo que a lei processual do trabalho quis evitar, que é de a ré entidade empregadora aproveitar para deduzir pedidos autónomos e desligados da essência da causa de pedir da autora.
A ré nem sequer o invoca, mas é também de excluir que entre o pedido reconvencional e a acção existam relações de acessoriedade, complementaridade ou dependência.
Acesssoriedade significa que a causa subordinada é objectivamente conexa e dependente do pedido da causa principal. Complementaridade significa que ambas as relações são autónomas pelo seu objecto, mas o pedido reconvencional completa o pedido formulado na acção, ou toca a relação jurídica subjacente à acção, não havendo subordinação, mas interligação. A dependência significa que, embora ambas as relações sejam objectivamente autónomas, a ligação é de tal ordem que o pedido reconvencional (relação dependente) não sobrevive desligado da relação principal- Abílio Neto, CPT anotado, 4ª ed, em anotação ao art. 30º CPT.
Ora, como é sintetizado no despacho recorrido, o contexto dos pedidos reconvencionais (excepto o respeitante à licitude do processo disciplinar) é de tal ordem alargado e independente que não apresenta as supra referidas conexões. A acção limita-se à ilicitude do processo disciplinar em decorrência do uso de prova ilícita e, subsidiariamente, ilicitude substantiva. As acusações consistem em transcrições de mensagens trocadas numa conta pessoal do Messenger do facebook entre a autora e outra trabalhadora, sendo a autora acusada de não ter capacidade técnica e pessoal por pedir a ajuda desta na realização e manutenção do portal da ré. Note-se que outras considerações negativas foram, de resto, excluídas no relatório final pela própria ré, sendo que a matéria que sobrou como considerada provada pela própria ré cinge-se ao conteúdo da troca de mensagens no facebook e ilações daí extrapoladas.
Assim, será apenas de admitir a reconvenção na parte em que se pede a declaração de licitude do processo disciplinar, sem prejuízo deste pedido reconvencional ser afectado pela decisão já proferida em sentido contrário relativamente ao pedido formulado pela autora. Mas tal respeita ao mérito do pedido reconvencional (de licitude do despedimento), tendo a senhora juiz a quo de sobre ele se pronunciar na sequência do recurso.

C) INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL

A ré na contestação excepcionou a ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade da causa de pedir e incompreensão do pedido. Diz inclusive ser “ininteligível a causa de pedir, alegando que a autora inventa sanções que, objectivamente, não existem, desde logo por a autora omitir o fim do vínculo laboral, unilateral e por sua iniciativa.”

Na decisão recorrida considerou-se que:
….Na petição inicial, o autor deve expor a causa de pedir – acto jurídico (simples ou complexo, mas sempre concreto) donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer – e deve indicar o direito para que solicita ou requer tutela judicial e o efeito jurídico pretendido.
Compulsada a petição inicial, claramente resulta que a autora pretende ver primordialmente declarada a ilicitude da sanção disciplinar decretada pela ré, independentemente de esta ter sido ou não executada, por essa sanção ter sido fundamentada num processo disciplinar com recurso a prova ilícita e por isso ferido de nulidade.”
Nesta fórmula concisa está contido tudo o que importa referir.
A petição inicial é a peça fundamental através da qual a acção é proposta em juízo e que, por isso, está sujeita a exigências legais. Entre elas, destaca-se a formulação do pedido e narracção da causa de pedir – 552º/1/d/e, CPC.
O pedido é a pretensão que a parte formula, a providência adequada que se pretende obter e ver declarada pelo tribunal como modo de resolução de um conflito de interesses. A formulação do pedido é um corolário do princípio do dispositivo e do ónus de impulso processual inicial - 3º, 1, CPC.
A causa de pedir é constituída pelo acervo essencial dos factos que integram a previsão da norma que concede à parte o efeito pretendido.
Ambos delimitam o objecto do processo - que sem eles não existe- e a decisão de mérito a ser proferida. O tribunal só poderá ocupar-se das questões que lhe sejam submetidas para apreciação, salvo as de natureza oficiosa, não podendo ir buscar outra causa de pedir, sendo-lhe também vedado condenar em quantidade superior ou objecto diverso do que se pedir, sob pena de nulidade – 608º/2, 609º/1, 615/1/d/e/ CPC.
Há ineptidão do pedido e da causa de pedir (186º, 2, a), CPC), quando algum deles seja omitido ou quando, embora existindo, sejam obscuros não permitindo entender quais sejam, ou mesmo quando a causa de pedir é tão genérica ou abstracta que, em bom rigor, não constitui alegação de factos concretos - José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, Vol. I, 4º ed, p. 374.
Decisivo é que o tribunal não tenha dúvida sobre a tutela que é requerida e qual o seu fundamento e que a parte contrária possa exercer o contraditório (186º, 3, CPC).
No caso percebe-se claramente o que a autora pretende e com que base fáctica (nulidade de processo disciplinar e da sanção aplicada por utilização de prova ilícita, ou ilicitude substantiva, e indemnização por danos morais). A ré entendeu a matéria que é trazida ao tribunal e o pedido, juntou aliás o processo disciplinar, contestou, excepcionou e reconveio. Não há dissenso sobre aquilo que é o objecto do processo.
Improcede a alegação.

D) NULIDADE DO DESPACHO SANEADOR NA PARTE EM QUE JULGA PROCEDENTE A NULIDADE DO PROCESSO DISCIPLINAR E DA SANÇÃO APLICADA:

A ré alega que há falta de fundamentação de factos provados e não provados e omissão de pronúncia sobre o conteúdo das mensagens de facebook transcritas nos autos.

Segundo o artigo 615º, 1, do CPC, é nula a sentença quando:

…b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

A exigência legal de o juiz discriminar os factos que julga provados e declarar os não provados contida no artigo 607º, nº 4 CPC, tem o seu campo de aplicação, por excelência, em sentença subsequente à audiência de julgamento, discussão da matéria de facto e encerramento da produção de prova.
No caso, estando em causa o despacho senador que conhece parcialmente do objecto da causa (595º, 1, b, CPC), o referido preceito em causa sofre adaptação, dado que a decisão não é produzida na sequência de produção de prova. Designadamente, ao contrário do que refere a ré, não há lugar à livre apreciação das provas segundo a prudente convicção do julgador e, portanto, à necessidade de a exteriorizar.
Naturalmente, o saneador sentença que decide, ainda que parcialmente sobre mérito da causa, está sujeito a um dever de fundamentação de facto e de direito sobre aquilo em que se alicerça, sob pena de nulidade – art. s 154º, 595º, 1, b), 615º, 1, b), do CPC.
Fundamentação de facto que não se confunde com declaração de factos julgados provados e não provados. Sendo possíveis várias técnicas processuais de fundamentação, optando uns juízes por separar claramente facto e direito e outros por fazerem uma apreciação interligada, dependendo se o objecto central da controvérsia é, ou não, uma questão de direito. Estando em causa excepções peremptórias é, aliás, comum a prática de prolação de decisões, em que a fundamentação não contém uma separação formal entre os factos e o direito.
Fundamental é que seja perceptível o acervo factual em que se baseia a decisão e o direito que a suporta, quer para as partes, quer para o tribunal superior em caso de recurso.
No caso dos autos, sendo invocada a nulidade do processo disciplinar, o que estava em causa era fundamentalmente uma questão de direito. Era saber se ocorria nulidade do processo disciplinar e da sanção, por uso de prova ilícita. A essência do conflito não estava em saber se tinham ou não sido trocadas mensagem através da rede social de facebook entre contas privadas e com determinado teor. Essa prova está feita, pela junção aos autos pela própria ré, que reproduz literalmente o teor das comunicações na nota de culpa e no relatório final, cujas impressões escritas diz que lhe fizeram chegar em envelope fechado.
É assim este o substracto fáctico e prova documental (processo disciplinar) a que se refere a decisão recorrida:

NOTA DE CULPA (fls 195 e ss do procedimento disciplinar)
Artigo sexto
-----“No decorrer do presente ano lectivo- 2018-219-a trabalhadora arguida, M. S., Directora Técnico-Pedagógica do centro infantil “Y”, nomeada pela Direcção da X, e 1º vogal do referido órgão, através da sua conta pessoal de FaceBook aberta com o nome de M. S., utilizou o serviço de mensagens instantâneas e aplicação de software que fornece texto e comunicação por vídeo, designado Facebook Messenger- para comunicar com a Educadora de Infância C. C., também trabalhadora da X, que igualmente utiliza a sua conta pessoa de Facebook aberta com o nome de C. C.- tendo acordado com esta em relação à X, sua empregadora, ao centro infantil desta, seu local de trabalho e que tem a incumbência regulamentar de dirigir, e ao Presidente da direcção da X a quem deve reportar a sua acção, o que resulta dos diálogos que a seguir se reproduzem:--“ – negrito da nossa autoria.
Artigo sétimo
----“No Dia 2 de outubro de 2018, com início às 16horas e 43minutos (cf. Fls 18 frente e verso, 28 verso e 29, e 37 verso e 38 destes autos): ---------------------------------------------------------
C. C.…
M. S. “Claro” …” …

Seguidamente até ao artigo décimo nono da nota de culpa são transcritas comunicações de texto processadas pelo Messenger do Facebook entre estas duas contas privadas, todas datadas de outubro/18, em dias e horas diversas, incluindo ao fim-de-semana, feriado (5 de outubro), algumas delas em horário aparentemente pós-laboral (20h47m, 18h18m, 21h4m,0h5m, 20h2m, 20h45m, 23h, outras em possível horário de trabalho.

No artigo vigésimo da nota de culpa consta:
“Estas conversas aconteceram efectivamente nas referidas datas, pelos mencionados meios e através da referida tecnologia, tendo as interlocutoras consciência plena do significado das expressões utilizadas por cada uma delas e do significado dos emojis com que, também cada uma delas, entendeu preceder, intercalar ou sublinhar cada expressão, sua ou da interlocutora, decorrendo a prova da sua existência, a certeza dos meios utilizados, a autoria e veracidade do seu conteúdo, em primeiro lugar, da confissão da própria trabalhadora arguida M. S., feita no âmbito do procedimento prévio de inquérito, esclarecida e livremente assumida, com manifesta consciência do seu conteúdo e, por isso, confissão merecedora de toda credibilidade, tal como consta da cópia de fls….

No artigo vigésimo primeiro consta:
Tais conversas revelam, em primeiro lugar, um efectivo controlo emocional e mesmo de vontade, conseguido pela trabalhadora C. C. sobre a trabalhadora arguida, M. S., como educadora de infância da sua empregadora, Diretora Técnico-Pedagógica do centro infantil “Y” e primeira vogal da direcção da X

No artigo vigésimo segundo da nota de culpa consta:
E, em segundo lugar, tais conversas poem a nu a insegurança e a falta de autonomia da trabalhadora arguida, M. S. enquanto Educadora de Infância da sua empregadora e enquanto Directora Técnico-Pedagógica do Centro Infantil “Y” e primeira vogal da Direcção da X, pela manifesta alienação da sua capacidade de autodeterminação decorrente da subordinação indevida nos domínios técnico, orgânico funcional à vontade e estratégias gizadas pela trabalhadora C. C. contra a sua empregadora…..”

A decisão proferida teve subjacente este acervo fáctico de comunicações processadas no Messenger do Facebook entre duas contas privadas em nome de M. S. e de C. C.. Não há duvida sobre a materialidade, sobre os factos de que o tribunal se socorreu. Nem sobre o meio de prova, que é a própria documentação junta pela ré, o processo disciplinar, onde estão impressas as comunicações trocadas pelo Messenger. Que no entender da ré integram, elas próprias, em si e face ao seu conteúdo, ilícito disciplinar, e que são reproduzidas na nota de culpa e no relatório final da própria ré. Assim, é perfeitamente inteligível a factualidade que subjaz ao direito. Coincidindo com o substracto que a ré considerou como relevante na nota de culpa para aplicar a sanção disciplinar.
Improcede a alegação.

Omissão de pronúncia:

A ré alega, ainda, que a senhora juiz a quo não se pronunciou sobre o conteúdo das mensagens, dizendo que se o fizesse veria que aquelas não são particulares, mas profissionais. No seu entender esta atitude integra uma omissão de pronúncia.
A omissão de pronúncia sobre “questões” mencionada no artigo 615º, 1, al. d), do CPC, refere-se, não ao argumento que a parte entende que é importante, mas sim aos pedidos deduzidos, causas de pedir e excepções, conforme tem sido decidido uniformemente pela jurisprudência (4) e acolhido pela doutrina. Não há assim que confundir o significado de “questões” com as razões, a retórica, argumentos ou os motivos invocados pelas partes para alicerçarem a sua pretensão (5).
No caso a senhora juiz analisou a “questão” que lhe foi posta, a saber a nulidade do processo disciplinar (causa de pedir), em moldes que infra se irão melhor pormenorizar.
A questão do conteúdo das mensagens processadas por Messenger do Facebook integrarem ou não ilícito disciplinar ficou prejudicada. Na verdade, se o tribunal a quo entendeu que a ré não pode recorrer às comunicações processadas através do Messenger na conta privada “M. N.” enquanto meio probatório, tal implica que esteja vedado a análise e valoração do seu conteúdo.
Assim, improcede no seu todo a arguição de nulidade.

E) ERRO DE DIREITO - A NULIDADE DE PROCESSO DISCIPLINAR E DA DECISÃO APLICADA POR PROVA ILICITA

Em suma, a ré instaurou procedimento disciplinar e aplicou à autora uma sanção disciplinar baseada no conteúdo de mensagens enviadas pelo sistema de Messenger entre a conta privada da autora denominada “M. S.” e a conta privada de outra trabalhadora da ré denominada “C. C.”. Do conteúdo das duas comunicações, segundo a ré, retirar-se-ia, muito em suma, que a autora recorria à ajuda e colaboração da outra trabalhadora (e aparentemente amiga) C. C. para elaborar o portal/página eletrónica da ré, demonstrando, no seu entender, falta de autonomia, impreparação e subordinação emocional, técnica e “orgânica” da autora perante a outra trabalhadora e seus “desígnios” (esta outra trabalhadora foi aliás alvo de outro processo disciplinar que levou ao seu despedimento).
No processo disciplinar consta que um denunciante anónimo deixou na caixa de correio da ré um envelope com as impressões de comunicações processadas no sistema Messenger do faceBook entre a autora e outra trabalhadora, C. C.. Diz a ré que foi assim que teve conhecimento do teor dessas comunicações.

Para defender a licitude da prova a ré alega quer na contestação, quer no recurso, basicamente três ordens de razões:
(i) que ela própria não violou as comunicações.
52º da contestação: “Como é evidente dos autos – e bem sabe a autora – a ré apenas recebeu, através do Presidente da sua Direção, correspondência que lhe foi dirigida sob a denúncia de um plano da trabalhadora C. C. para “destruir a instituição onde trabalha”;
(ii) que o conteúdo das comunicações não tem natureza pessoal.
55º da contestação: “ A ré sustentou e continua a sustentar que, do seu conteúdo se retira que as mesmas não têm natureza pessoal…”
59º “… os conteúdos dos documentos em causa não se relacionam, obviamente, com a vida familiar, afetiva e sexual da autora nem como seu estado de saúde ou convicções políticas e religiosas.”
(iii) Que agiu em legítima defesa, ou no limite em estado de necessidade, ou no cumprimento de um dever.

Consta na decisão recorrida (transcrição apenas de excertos que permitem alcançar a essência de decisão remetendo-se no mais para a mesma):
“…. “É sabido que a introdução e disseminação da utilização das novas tecnologias no mundo laboral veio suscitar delicados problemas no âmbito da compatibilização entre, por um lado, os direito de personalidade do trabalhador, mormente quanto aos direitos de privacidade e ao sigilo das comunicações, nesta se incluindo as comunicações electrónicas e, por outro lado, o poder directivo do empregador e os direitos à empresa e iniciativa privada…” – Ac. TRP de 15/12/2016, in www.dgsi.pt.
Em consonância com o leque de direitos liberdades e garantias consagrado na Constituição da República Portuguesa – artigo 18º: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”; artigo 32º, nº 8: “São nulas todas as provas obtidas mediante […] abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”; artigo 34º, nº 1: “O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis”, o artº 16º do Código do Trabalho protege a reserva da vida privada, quer do trabalhador, quer do empregador, abrangendo “quer o acesso, quer a divulgação de aspectos atinentes à esfera íntima e pessoal das partes, nomeadamente relacionadas com a vida familiar, afectiva e sexual, com o estado de saúde e com as convicções políticas e religiosas. ” – nº 2 do artº 16º.
E, no artº 22º, nº 1 do Cód. Trabalho, institui-se o princípio geral de confidencialidade de mensagens e acesso a informação, prescrevendo que “O trabalhador goza do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal e acesso à informação de caracter não profissional que envie, receba, ou consulte, nomeadamente através de correio electrónico”, com a ressalva, também prevista no nº 2 da referida norma, do poder de o empregador estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação na empresa, nomeadamente do correio electrónico.
Nesta matéria as linhas orientadoras da jurisprudência vão todas no sentido de não ser possível ao empregador aceder a mensagens de natureza privada dos trabalhadores, concluindo pela não admissão de mensagens electrónicas privadas como meio de prova, por se tratar de prova nula.
….. …
No caso em apreço então em causa mensagens alegadamente trocadas pela autora e outras pessoas, através da rede social e da funcionalidade associada Facebook Messenger, tratando-se, pois, de canal de conversação privado e reservado aos respectivos utilizadores, sendo igualmente de natureza privada, todas as conversações e mensagens que possam ter sido veiculadas através daquele canal de comunicação.
Não podia pois a ré utilizar mensagens desta natureza, pois que para tal não estava autorizada pelos legítimos titulares, para fundamentar a nota de culpa, o processo disciplinar instaurado contra a aqui autora e a decisão de aplicação de sanção disciplinar, por se tratar de prova proibida e por isso nula, importando a nulidade de todo o procedimento.
Aliás, as inquirições levadas a cabo, baseadas elas próprias, no conhecimento dessa prova ilicitamente obtida, encontram-se igualmente feridas de nulidade. A nulidade da prova (as mensagens/conversações) inquina e determina a nulidade da prova extraída a partir dela.”
…..
Decidiu-se acertadamente.
A decisão recorrida socorreu-se de normas que visam a tutela dos direitos de personalidade que “são aqueles sem os quais as pessoas não são tratadas como tais, sendo direitos que são exigidos pela sua iminente ligação à dignidade humana, constituindo fundamento ontológico da personalidade e dignidade humana”. Sem eles o ordenamento jurídico perde a “característica de juridicidade” – Teresa Coelho Moreira, “Os direitos de personalidade nas relações de trabalho”, in Direito do Trabalho, Relação Individual, João Leal Amado e outros, Almedina, p. 106.

O topo da hierarquia legal é ocupado pelas normas de índole constitucional:

Artigo 26º CRP que reconhece a reserva da intimidade da vida privada, disposição que goza da força jurídica conferida aos direitos, liberdades e garantias (18º CRP) que são directamente aplicáveis e vinculam entidades púbicas e particulares.
(“Artigo 26º, CRP- 1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação.”).
Artigo 34º, CRP, que reconhece a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, vedando, entre o mais, a violação de correspondência, telecomunicações e demais meios de comunicação privada.
(“Artigo 34ºCRP - 1.O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis. … 4. É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”).
Artigo 32º, CRP, que estabelece as garantias do processo penal cominado de nulas as provas, que, entre o mais, sejam obtidas por violação de correspondência ou telecomunicações
(“Artigo 32ºº…8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.”)
Tendo em conta a similitude do procedimento disciplinar com o criminal, considera-se que a norma, conjugada com a protecçao da lei ordinária laboral (16º e 22º CT), impede que, no procedimento disciplinar e na correspondente acção de impugnação, se recorra a provas obtidas mediante intromissão abusiva na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações – acórdão da RP de 8-09-2014, www.dgsi.pt.
A violação de correspondência ou de telecomunicações e a devassa informática tem também protecção de índole penal, regulada nos artigos 193º a 197º do CP e na LPDP ( lei de protecção de dados pessoais (6)).
(Artigo 194 CP “Violação de correspondência ou de telecomunicações” 1 - Quem, sem consentimento, abrir encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se encontre fechado e lhe não seja dirigido, ou tomar conhecimento, por processos técnicos, do seu conteúdo, ou impedir, por qualquer modo, que seja recebido pelo destinatário, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias. 2 - Na mesma pena incorre quem, sem consentimento, se intrometer no conteúdo de telecomunicação ou dele tomar conhecimento. 3 - Quem, sem consentimento, divulgar o conteúdo de cartas, encomendas, escritos fechados, ou telecomunicações a que se referem os números anteriores, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias.”- negrito da nossa autoria.
Há que atentar, ainda, na legislação ordinária do código do trabalho, a qual, independentemente da aplicação do regime constitucional e civil, especifica alguns direitos de personalidade com maior relevância no contexto laboral, a saber:
Artigo 16º CT, que consagra no campo laboral e com contornos próprios, o direito de reserva da intimidade vida privada.
(1 - O empregador e o trabalhador devem respeitar os direitos de personalidade da contraparte, cabendo-lhes, designadamente, guardar reserva quanto à intimidade da vida privada. 2 - O direito à reserva da intimidade da vida privada abrange quer o acesso, quer a divulgação de aspectos atinentes à esfera íntima e pessoal das partes, nomeadamente relacionados com a vida familiar, afectiva e sexual, com o estado de saúde e com as convicções políticas e religiosas.”- negrito da nossa autoria.
Aliás, a reserva da intimidade da vida privada, fazendo parte dos direitos pessoais de cidadania, estava já consagrada no direito civil sendo obviamente extensível ao trabalhador enquanto cidadão.
(artigo 80º CC “Direito à reserva sobre a intimidade da vida privada” 1. Todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem.”).
A privacidade que aqui se abrange tem um sentido lato. Não se resume a aspectos mais íntimos referentes à sexualidade, intimidade, vida familiar, preferências, ideologias, convicções religiosas, gostos, férias, ou outros dados sensíveis.
A privacidade engloba “o direito a um âmbito de reserva inacessível no local de Trabalho“ e, obviamente, fora dele, que não se resume aos “cacifos” onde se guardam objectos pessoais, estendendo-se ao “… e-mail e a Internet, o WhatsApp ou o serviço de mensagens instantâneas” - Teresa Coelho Moreira, ob. cit., p. 122.
Por outro lado, a reserva da vida privada não se esgota na empresa e no local de trabalho, estendendo-se aos períodos em que o trabalhador não se encontra em execução do contrato de trabalho - Guilherme Dray, “Comunicações Electrónicas e Privacidade no Contexto Laboral”, Prontuário do Direito do Trabalho, 2016-II, p. 116.
Artigo 22º do CT, que consagra o direito de reserva e confidencialidade quanto ao conteúdo de mensagens de natureza pessoal e acesso a informação de caráter não profissional que seja enviado, recebido, ou consultado nomeadamente através de correio electrónico, sem prejuízo de o empregador poder regular o uso de meios eletrónicos na empresa.
(22º CT “º1 - O trabalhador goza do direito de reserva e confidencialidade relativamente ao conteúdo das mensagens de natureza pessoal e acesso a informação de carácter não profissional que envie, receba ou consulte, nomeadamente através do correio electrónico. 2 - O disposto no número anterior não prejudica o poder de o empregador estabelecer regras de utilização dos meios de comunicação na empresa, nomeadamente do correio electrónico.”)
O direito deriva e está ligado à reserva da intimidade da vida privada (16º CT), sendo uma sua subespécie. O legislador utiliza o termo “mensagem de natureza pessoal”, que tem significado mais amplo do que “intimo”. Pessoal é o que é próprio de cada pessoa e a ela lhe pertence. É algo particular. Contrapõe-se ao que é público ou colectivo, que pertence a todos (ver Priberam dicionário online).

Da conjugação deste regime legal, resulta que a tutela dos direitos de cidadania e de personalidade, mormente a reserva da privacidade e a confidencialidade nas comunicações privadas, limita ao empregador a possibilidade de fiscalizar a actividade laboral do trabalhador, bem como veda o uso de certos meios probatórios destinados a comprovar a prática de infracções disciplinares, designadamente, o uso de câmaras de videovigilância ou o acesso ilimitado ao computador de trabalho, ao correio electrónico e a visualização da navegação e das pesquisas efectuadas pelo trabalhador.
Alcançando-se facilmente que o uso de novas tecnologias de informação como a internet, e-mail, redes sociais como o Facebook ou Twitter entre outros, permite, com a maior facilidade e rapidez, aceder intrusivamente a informações que podem afectar a privacidade do trabalhador, bem como, em sentido contrário, permite a rápida disseminação, em grande escala, em fóruns virtuais, páginas ou “grupos” temáticos, de (des)informação referente às empresas que podem prejudicar a sua reputação e bom funcionamento. Existindo, por conseguinte, uma preocupação acrescida do legislador laboral em regulamentar tais aspectos numa ponderação equilibrada de interesses.
No caso, está em causa a classificação da natureza das comunicações. A ré alega que as mensagens não são do foro pessoal, porque o contrário resulta do respectivo teor (e acusa o tribunal a quo de nem sequer as analisar). Ora, não é assim. A mensagem não deixa de ser particular pelo facto de os usuários falarem de trabalho. Caso contrário, seria igualmente válida a devassa de correspondência tradicional, como a leitura de cartas, ou a escuta de conversas telefónicas por parte de empregadores, desde que o conteúdo versasse sobre aspectos laborais, como por exemplo comentários sobre desentendimentos com colegas ou superiores hierárquicos, críticas a ordens, opiniões sobre tratamentos discriminatórios, promoções, atribuição de tarefas a uns e não a outros, etc…
As comunicações em causa foram processadas através do Messenger do Facebook.
O Messenger começou por ser um programa (aplicação-app) de mensagens instantâneas criado pela Microsoft Corporation (MSN Messenger), posteriormente desactivado e que, ao longo do tempo, foi tendo versões mais complexas, e sendo assegurado como uma funcionalidade por diversas redes sociais como, por exemplo, o Skype, Yahoo ou o Facebook.
De acordo com a definição retirada online de wikipédia, o “Facebook Messenger é um mensageiro instantâneo e aplicativo (app) que fornece texto e comunicação por vídeo”.
No Centro de Ajuda do Facebook disponível online, no item “Utilizar o Messenger” e em “Como posso enviar uma mensagem no Messenger”, consta: “escreve ou seleciona o nome de um contacto”, seguidamente “escreve a tua mensagem na caixa de texto na parte inferior” e “clica em …”.
Ou seja, o usuário remetente escolhe o contacto/destinatário, tal como acontece com a correspondência tradicional (7) e tem uma expectativa de privacidade quanto ao teor da mensagem e de que ela não será corrompida, o que integra a noção de mensagem pessoal com o inerente direito de reserva e confidencialidade, ainda que sejam remetidas a partir do local de trabalho e como recurso a equipamento do empregador (computador, rede informática…) - acórdão da RL de 7-03-2012, www.dgsi.pt e Guilherme Dray, “Comunicações Electrónicas e Privacidade no Contexto Laboral”, Prontuário do Direito do Trabalho, 2016-II, p. 123, 128.
Se não forem remetidas a partir do local de trabalho e com recurso a equipamento do empregador têm na mesma protecção, a diferença é que nem sequer é preciso invocar especificamente à lei laboral, nem se colocam tantas questões complexa de destrinça. Estas normas foram criadas (no CT 2003) como protecção adicional.
As comunicações electrónicas por e-email ou com recurso às mensagens instantâneas (Messenger), ou chats privados têm sido consideradas pela jurisprudência como comunicações privadas – vd acórdão do STJ de 5-07-2007 (referente ao uso de e-mail), acórdão RP de 8-02-2010 (referente a correio electrónico), acórdão de 7-03-2012 (conversas através de Messenger), e acórdão de RP de 8-09-2014 (que distingue as situações de email/Messenger/chats privados com tutela de privacidade de outros casos de uso de redes sociais, como a que o aresto se ocupou referente a publicações num “grupo” alargado de rede social facebook), todos disponíveis www.dgsi.pt.
Emerge da doutrina e jurisprudência a distinção entre as referidas situações classificadas de comunicações privadas, relativamente a outros casos de publicações nas redes sociais, em “páginas” ou “grupos” extremamente alargados, designadamente no facebook, muitas vezes sem recurso a definição de privacidade, com espaços semi-públicos e facilmente acedidos por terceiros e onde as noções de privacidade se esbatem. Nestes últimos casos a jurisprudência tem atendido em particular aos danos causados no bom nome ou reputação das empresas ou superiores hierárquicos- mormente em caso em que são alvo de difamações - e na pouca expectativa de privacidade com que os usuários podem contar e que não são dignas de tutela da privacidade – vd acórdão de RL de 24-09-2014 ( expressões consideradas ofensivas da entidade empregadora publicadas pelo trabalhador em post no facebook com a menção em letras maiúsculas ”partilhem amigos”) e da RP 8-09-2014, www.dgsi.pt.
São considerados casos em que o trabalhador está ciente de que aquilo que publica pode extravasar a comunidade e aceita esse risco, dadas as características mais livres da rede que permite o alargamento potencial dos “amigos”, pelo que não poderá o trabalhador invocar o direito à privacidade com vista a impedir que os seus comentários sejam objecto de procedimento disciplinar.
Este tipo de comunicações nas redes sociais têm sido campo fértil do desenvolvimento da noção de pessoalidade da mensagem. Considerando-se que a noção de mensagens pessoais ou profissionais tem de ser aferida com recurso à vontade dos intervenientes da mensagem (remetente e destinatário), quer expressa, quer tácita por recurso a outros elementos, entre eles o seu conteúdo com a ressalva já expressa de que a referência aos assuntos da empresa ou aos seus dirigentes não afasta a natureza pessoal da mensagem – p- 122, 123 e 128 Guilherme Dray.
Em caso de dúvida sobre a pertinência da tutela da privacidade são também apontados como outros factores relevantes designadamente: “…. O tipo de serviço utilizado, a matéria sobre que incidem as publicações, a parametrização da conta, os membros da rede social e suas características, o número de membros e outros factores que se perfilem como pertinentes “ – ou “ a existência de um laço estreito entre os membros da rede social que não era expectável que fosse quebrado, contando aqueles membros com a discrição dos seus interlocutores para a confidencialidade dos posts publicados e estando convictos de que mais ninguém terá acesso e conhecimento, em tempo real ou diferido, ao seu teor” - vd o já assinalado acórdão da RP de 8-09-14, referente a publicações de posts no “grupo trabalhadores na C” de Faceboook alargado de 140 membros com a particularidade de serem ou terem trabalhadores da empresa.
Ora, no caso dos autos foi utilizado o Messenger que em substância é uma funcionalidade equivalente a uma comunicação privada, ainda que possa ser enviada a vários destinatários. O tipo de serviço ou funcionalidade escolhida é, assim, nos termos supra ditos, considerada um meio de comunicação privada.
Ademais, foi utilizada uma conta privada (8), isto é, a autora criou uma conta que se destina precisamente a enviar/recepcionar “correio” pessoal e não uma conta profissional de onde e para onde são efectuadas as comunicações relacionadas com o trabalho. O que só por si, é expressão de que estamos perante uma comunicação pessoal.
Note-se que nem sequer se colocam os problemas habituais de mistura entre mensagens profissionais e pessoais derivadas do uso de uma conta única para recepecionar ambos os tipos de correio, que dá azo, por vezes, a dificuldades de destrinça. O facto de a conta criada ser privada permite que as mensagens por esse meio envidas sejam logo classificadas, de antemão e “de fora”, de pessoais, sem sequer invadir o seu conteúdo.
As comunicações gozavam, assim, do sigilo de comunicações conferidas pelas normas acima referidas, mormente artigos 16º e 22º do CT.
Em especial quanto às mensagens instantâneas (Messenger) refere Teresa Coelho Moreira, ob. cit., p. 206, “esta protecção aplica-se independente da parametrização da conta na medida em que se trata de instrumentos de comunicação privada. O empregador não pode aceder ao conteúdo destas mensagens privadas do trabalhador transmitidas através da rede social se não fizer parte dos destinatários.- negrito da nossa autoria.
Mais, no caso concreto resulta das impressões das mensagens que integram a nota de culpa que os seus intervenientes foram sempre a autora e a outra trabalhadora, não se colocando sequer as questões habitualmente debatidas acerca das comunicações nas redes sociais de que o trabalhador não pode legitimamente aspirar à tutela da privacidade quando não configurou as definições, nem controlou as pessoas que potencialmente poderiam aceder às suas comunicações.
Também como acima referido, algumas das mensagens são trocadas em fins-de-semana e feriado (5 de outubro), outras em dias úteis, mas provavelmente fora de horário de trabalho (a autora é educadora de infância, algumas mensagens são processadas à noite), outras em provável horário de trabalho. Nem sequer há indícios que tivesse sido utilizado equipamento do empregador para enviar as mensagens.
Em suma, tudo aponta para evidente acesso e divulgação de comunicações de natureza privada.
Assim sendo, o meio de prova constituído pelas comunicações entre a autora e a colega processadas através do Messenger é ilícito por violar a reserva da vida privada e confidencialidade das comunicações privadas (26º, 34º, 32º, 8, CRP, 16º e 22º, CT).
Ademais, sendo as próprias comunicações o cerne da nota de culpa e da infração disciplinar, as mesmas não podem ser objecto de outro meio de prova, que aliás, como se refere na decisão recorrida, se baseia na visualização e interpretação das mensagens por parte de testemunhas.
Refira-se ainda que a proibição de violação de confidencialidade das comunicações abrange quer o acesso pelo próprio empregador, quer a sua difusão ou divulgação, sendo, assim, irrelevante que tenha sido outrem a fazer chegar ao empregador o conhecimento das comunicações. Certo é que as não pode utilizar.
Finalmente nenhuns factos concretos são alegados pela empregadora que integrem a propalada legítima defesa, estado de necessidade ou de cumprimento de dever que possam justificar a violação das comunicações privadas trocadas, limitando-se a ré a usar expressões genéricas, completamente conclusivas e indeterminadas.
Assim, se é certo que o tema dos direitos de personalidade do trabalhador tem de ser proporcional e equilibrado com a necessidade de tutelar a liberdade de gestão empresarial e os prejuízos que possam resultar na sua organização interna, no caso não foram sequer elencados factos concretos sobre lesões ou eventuais danos na empregadora que apontem e justifiquem o uso e divulgação de correspondência electrónica (mensagens instantâneas) trocada entre a autora e outra colega. Acresce ainda a menor gravidade objectiva da infracção apontada que consistiu, essencialmente, em a autora pedir e aceitar a colaboração de outra colega na elaboração do portal da internet da ré, o que a própria reconhece como não sendo de gravidade extrema ao não aplicar a sanção máxima de despedimento, mas sim de oito dias de suspensão do trabalho com perda de retribuição.

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, de acordo com o disposto nos artigos 87º, CPT e 663º, CPC, acorda-se em revogar parcialmente a decisão recorrida apenas na parte em que não admitiu o pedido reconvencional relativo à declaração de licitude do procedimento disciplinar, confirmando-se, no mais, a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente e recorrida, na proporção, respectivamente, de 98% e 2%.
Notifique.

3-12-2020

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins


Sumário – artigo 663º/7, CPC

I – Em processo laboral a reconvenção não é admissível case se funde em circunstancialismo autónomo e não no facto jurídico essencial que serve de fundamento à acção, excluídas que estejam as demais hipóteses previstas no artigo 30º CPT.
II - Não ocorre a apontada ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade da causa de pedir e do pedido, porquanto não subsiste dúvida sobre a tutela que é requerida ao tribunal e qual o acervo fáctico essencial em que se baseia.
III - O dever de fundamentação aludido no artigo 607º/4, CPC, sofre adaptação quando se refira ao despacho senador que conhece parcialmente do objecto da causa, por não ser proferido na sequência de julgamento e de produção de prova. Relevante é que da decisão resulte claro a materialidade fáctica que serviu de base à aplicação do direito e o seu suporte probatório.
IV - São comunicações privadas as mensagens trocadas entre duas trabalhadoras através do Messenger do Facebook em contas que são criadas em nome daquelas e destinadas ao envio e recepção de mensagens pessoais e não de serviço.
V - Não relevando que o seu conteúdo se refira ao trabalho, tal como consensualmente não releva numa comunicação tradicional (ex. carta ou telefonema), onde os interlocutores podem abordar os mais diversos assuntos, desde íntimos a profissionais, sem que seja através do conteúdo que as mesmas são classificadas de pessoais ou profissionais.
VI - O Messenger do Facebook permite comunicações instantâneas de texto e imagem em que o usuário/remetente escolhe o “contacto”/destinatário e tem uma clara e legítima expectativa de privacidade, ao contrário do que pode ocorrer em “grupos” alargados ou “páginas” de redes sociais que podem redundar em falta de controle sobre a identidade e número de destinatários e subtrair a tutela da privacidade. Aquelas são, assim, mensagens pessoais que gozam do inerente direito de reserva e confidencialidade, ainda que remetidas a partir do local de trabalho.
VII - O uso de tais comunicações como meio de prova em processo disciplinar integra prova nula por violar o direito de reserva da vida privada e de confidencialidade das comunicações privadas, sendo indiferente o meio através do qual o empregador delas teve conhecimento, mormente se foi ou não por denúncia anónima, porquanto é vedado, quer o acesso, quer a sua divulgação - 26º, 34º, 32º, 8, CRP, 16º e 22º, CT.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso


1. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.
2. Lei de organização do sistema judiciário, Lei 62-2013, de 26-08 e sucessivas alterações.
3. Ressalvado o caso específico da acção de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento que aos autos não interessa.
4. Por exemplo, vd STJ de 13-01-2005, 12-05-2005 e 6-11-2019, www.dgsi.pt.
5. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito de Processo Civil, vol. II, 2ª ed., p 437.
6. Actualmente Lei 58/19, de 8-08 (assegura a execução, na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados), a qual revogou a Lei n.º 67/98, de 26-10.
7. Pese embora possa haver maior possibilidade técnica de vulnerabilidade, o que não interfere nesta análise.
8. De resto consta no processo disciplinar a identificação de email de trabalho da autora. A ré também não afirma que a conta de Messenger era para uso profissional, aceitando aliás que era uma conta privada como é afirmado na nota de culpa.