ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
Sumário


I  - Na delimitação da revista é de considerar o efeito processual que
emana do acórdão recorrido, independentemente daquele que tenderia a produzir a decisão de 1 .ª instância.
II   - Assim, estão excluídos de recurso de revista os acórdãos da
Relação que, revogando a sentença que absolveu o réu da instância, determinem o prosseguimento dos autos.

Texto Integral


Supremo Tribunal de Justiça 1." Secção Cível

Proc. n.° 17289/18.1 T8PRT.P1.S1

Acordam, em Conferência, no Supremo Tribunal da Justiça

I – Relatório

1.   FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., Recorrente nos autos de ação sob a forma de processo comum, em que é Recorrido o FGA – FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, notificada da decisão singular de não admissão do recurso de revista, proferida pela Relatora neste Supremo Tribuna lde Justiça, vem, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 652.º, n.º 3, do CPC, requerer que a decisão singular seja submetida à conferência e revogada, para prolação de acórdão que admita o recurso de revista, para os efeitos do disposto no artigo 671.º, n.º 1, do CPC.

2. Apresenta a reclamante as seguintes conclusões:
«1.  A  Recorrente  não  pode  concordar  com  a  posição  expressa  pela  Sra.  Juíza Conselheira Relatora no douto despacho de fls… e no qual é indeferido o recurso interposto pela Recorrente.
2. Na verdade, dispõe o art.º 671.º, n.º 1 do CPC que “Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo (…)”.
3. Para aferição da admissibilidade da revista, é atribuído relevo ao efeito extintivo da instância que emana do acórdão da Relação, independentemente daquele que produzira a decisão da primeira instância sobre que incidiu.
4. Aqui se integra o acórdão que, conquanto não aprecie o mérito da causa (situação já contida no primeiro segmento do preceito), ponha termo (total ou parcial) ao processo quanto a todos ou algum dos réus ou quanto a todos ou algum dos pedidos ou pedido reconvencional.

5. A ponderação do elemento histórico permite concluir que ficam abarcados por tal segmento normativo os acórdãos em que a Relação se tenha envolvido efectivamente na resolução material do litígio, no todo ou em parte, incluindo os casos em que aprecie a procedência ou improcedência de alguma excepção (v.g. prescrição, caducidade, nulidade, anulabilidade, compensação, etc).
6. Não faria qualquer sentido que resolvendo o acórdão da Relação do Porto uma parte da questão que se encontra a ser dirimida (a prescrição do direito da Recorrida) se considere que como o processo “baixa” à primeira instância a questão da prescrição não resultou no conhecimento do mérito da causa relativamente a essa questão.

7. Se esta decisão tivesse sido tomada pelo Tribunal de primeira instância depois de realizado o julgamento e o Tribunal da Relação tivesse decidido em sentido inverso, a ora Recorrente, segundo parece ser a posição da Senhora Conselheira, já poderia recorrer.

8. Como o processo baixa à primeira instância, já não poderá recorrer.

9. Num caso existiria possibilidade de recurso ao Supremo Tribunal de Justiça.

10. No caso dos autos, para discussão da mesmíssima decisão, já não se considera admissível o recurso ao Supremo Tribunal de Justiça.

11. O Legislador preconizou, para este caso, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça uma vez que a decisão impugnada revoga a decisão do Tribunal de primeira instância e existe alçada para recurso.
12. A interpretação manifestada no douto despacho agora colocado em crise não faz qualquer sentido e não foi essa, com toda a certeza, a intenção do legislador.

13. A Recorrente não concorda, de todo em todo, com esta apreciação, pois no que à prescrição invocada por si nos presentes autos diz respeito, o Tribunal da Relação do Porto tomou uma decisão de mérito, conheceu do mérito da causa.
14. O recurso interposto pela Recorrente sempre teria que ser admitido, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 671.º, n.º 1 do CPC.

15. A douta decisão deverá ser submetida à conferência, para prolação de acórdão, uma vez que o douto despacho viola, de forma clara, o disposto no art.º 671.º, n.º 1 do CPC devendo, pois, ser revogada».

3. O FGA, notificado da reclamação apresentada, respondeu, dizendo que concorda e adere integralmente aos fundamentos e conclusões vertidos na decisão singular.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A decisão reclamada considerou o recurso inadmissível, por não estarem preenchidos os requisitos do artigo 671.º, n.º 1, do CPC.

Entende, contudo, em síntese, a reclamante que esta decisão de não admissibilidade do recurso viola o artigo 671.º, n.º 1, do CPC, e não tem em conta a intenção do legislador que quis admitir neste tipo de casos o recurso de revista, uma vez que a decisão impugnada revoga a decisão do tribunal de primeira instância e existe alçada para recurso, e que decidindo que não se verificava a exceção da prescrição, ordenando a baixa do processo, pronunciou-se sobre o mérito (não na totalidade, mas parcialmente) no que diz respeito à prescrição por si invocada. Considera, ainda, com base num argumento histórico, que se deve admitir o recurso de revista nos casos em que «a Relação se tenha envolvido efectivamente na resolução material do litígio, no todo ou em parte, incluindo os casos em que aprecie a procedência ou improcedência de alguma excepção (v.g. prescrição, caducidade, nulidade, anulabilidade, compensação, etc.)».

Mas não tem razão.

A admissibilidade do recurso de revista, nos termos que constam do artigo 671º, nº 1, do Novo Código de Processo Civil, deixou de estar associada ao teor da decisão da 1ª instância, como se previa no artigo 721º, nº 1, do CPC de 1961, e passou a ter por referencial o resultado declarado no próprio acórdão da Relação.

Esta alteração não teve como objetivo restringir o âmbito da revista, mas prever a sua admissibilidade, para além dos casos em que o acórdão da Relação, incidindo sobre decisão da 1.ª instância, aprecia o mérito da causa, aos casos em que o acórdão da Relação põe termo total ou parcial ao processo por razões de natureza adjetiva.

Em face da argumentação da reclamante - que defende que o conhecimento da exceção perentória da prescrição corresponde ao conhecimento parcial de um dos segmentos do mérito da causa - importa em primeiro lugar afirmar o que se entende por decisão que aprecia o mérito da causa e, em segundo lugar, aferir da questão de saber se põe ou não termo ao processo.

Inexiste um precito delimitador do conceito de decisão que incida sobre o “mérito da causa”. Defende a reclamante que se deve seguir o critério que Abrantes Geraldes (cf Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013) propõe para o artigo 644.º, n.º 1, al. b), do CPC, segundo o qual se considera decisão sobre o mérito da causa aquela que julga procedente ou improcedente algum ou alguns dos pedidos relativamente a todos ou alguns dos interessados; outrossim quando, independentemente da solução dada ou da posterior evolução processual, nela se apreciem exceções perentórias, como a caducidade, a prescrição, a anulabilidade.

Os acórdãos da Relação que conhecem do mérito são aqueles em que a Relação se envolve efetivamente na resolução material do litígio, no todo ou em parte. Ora, apesar de o conhecimento de exceção perentória, enquanto meio de defesa material, se considerar uma questão de mérito, como afirma a reclamante, porque incide sobre a existência ou não do direito do autor, não se pode perder de vista que essencial para a admissibilidade do recurso é, não a fundamentação do acórdão recorrido, mas o seu dispositivo, bem como o efeito processual decretado.

Assim, para decidir a questão da admissibilidade do recurso há que atender, como fator decisivo, ao efeito processual do acórdão do Tribunal da Relação. Ora, tendo o acórdão recorrido revogado a decisão de 1.ª instância, que decretou a absolvição da instância, e ordenado o prosseguimento do processo, o recurso de revista não deve ser admitido por não pôr termo ao processo.

Este Supremo Tribunal tem seguido uma interpretação alargada acerca do que significa pôr termo ao processo, para admitir o recurso de revista do acórdão da Relação que não admite o recurso de apelação, por razões estritamente formais, por exemplo, por cumprimento deficiente do ónus de conclusão (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-01-2016, proc. n.º 1006/12.2TBPRD.P1-A.S1), entendendo, embora não de forma unânime, que, para além dos casos de extinção da instância, também estes que resultam do incumprimento de ónus formais põem termo ao processo para o efeito de admissibilidade da revista. Assim, concluiu-se no Acórdão deste Supremo tribunal, de 3 de março de 2020 (proc. n.º 3402/08.0TBVLG-E.P1.S1), o seguinte: «Deve considerar-se incluída entre os fundamentos da revista a decisão do Tribunal da Relação, que rejeita o recurso de apelação por falta de conclusões, ao abrigo do artigo 641.º, n.º 1, alínea b), do CPC, enquanto decisão que põe termo ao processo nos termos do artigo 671. º, n. º 1, em conjugação com o artigo 674. º, n. º 1, alínea b), ambos do CPC».

Contudo, este raciocínio não é aplicável aos casos em que o acórdão da Relação se limita a decidir o prosseguimento do processo, como o caso do acórdão recorrido, que considerou o recurso improcedente e ordenou a baixa do processo ao tribunal de 1.ª instância.
Conforme se afirmou, para a delimitação da revista é de considerar o efeito processual que emana do acórdão recorrido, independentemente daquele que tenderia a produzir a decisão de 1.ª instância.

Neste sentido, estão excluídos de recurso de revista os acórdãos da Relação que, revogando a sentença que absolveu o réu da instância, determinem o  prosseguimento  dos  autos  (cf   Abrantes  Geraldes/Paulo  Pimenta/Pires  de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, p. 835).

Ora, foi o que sucedeu no caso em apreço. O Tribunal da Relação, no dispositivo, não se pronunciou sobre o mérito e apenas ordenou a baixa do processo ao tribunal de 1.ª instância: «Acordam, pois, os juízes que compõem a 3a Secção (Cível) do Tribunal da Relação do Porto, em conceder provimento ao presente recurso e revogar o saneador sentença recorrido, com a consequente baixa dos autos à 1a instância para prosseguimento dos ulteriores termos da acção».

Deve notar-se, também, que a reclamante poderá ainda fazer valer a sua perspetiva no processo quanto à prescrição do direito, em sede de recurso de revista do acórdão da Relação que vier a ser proferido neste processo.

É que, sendo o acórdão agora recorrido um acórdão interlocutório, que ordenou a baixa do processo, a sua impugnação é, por princípio, diferida para a revista que vier a ser interposta ao abrigo do artigo 671.º (artigo 673.º e 671.º, n.º 4, ambos do CPC), pelo que a reclamante, pode ainda vir a questionar o decidido quanto à prescrição em recurso de revista do acórdão da Relação que vier a ser proferido na sequência de sentença de 1.ª instância que conheça dos requisitos do enriquecimento sem causa.

Em consequência, indefere-se a reclamação e confirma-se a decisão reclamada.

III - Decisão

Pelo exposto, acorda-se, neste Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir a reclamação e confirmar a decisão reclamada.

Custas pela reclamante.




Supremo Tribunal de Justiça, 29 de setembro.


Nos termos do artigo 15.º-A do DL 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade do Juiz Conselheiro Alexandre Reis (1.º Adjunto) e do Juiz Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto).

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Alexandre Reis (1.º Adjunto)

Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto)