IMPUGNAÇÃO DA RESOLUÇÃO DE ACORDO DE PARTILHA
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
CREDOR NO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
Sumário


1. A legitimidade processual para a instauração da ação de impugnação afere-se, face: ao interesse direto em demandar, expresso pela utilidade derivada da procedência da ação; às duas relações jurídicas conexas subjacentes à declaração resolutória (a relação entre as partes da insolvência, que confere legitimidade ao administrador para extinguir um negócio alheio, em benefício da massa insolvente e da satisfação dos credores; a relação subjacente ao ato ou ao negócio declarado resolvido).

2. Tem legitimidade processual para instaurar uma ação de impugnação da resolução de um acordo de partilha de bens comuns de extinto casal, nos termos do art.125º do CIRE, em relação à declaração resolutória do administrador da insolvência, realizada nos termos dos arts.120º ss do CIRE, ao abrigo do disposto no art.30º do C. P. Civil, um credor: que tem créditos reconhecidos no processo insolvência e pode apenas beneficiar coletivamente do ato resolvido, juntamente com os demais credores; que entende que o ato resolutório é intempestivo e infundamentado; que antes da declaração da insolvência pediu a ineficácia do mesmo acordo de partilhas, em ação de impugnação pauliana, nos termos dos arts.610º ss do C. Civil, que apenas pode prosseguir em caso de invalidade ou ineficácia do ato resolutório e que pode vir a beneficiar apenas esse credor, de acordo com as soluções plausíveis das questões de direito, nos termos do art.127º/2 e 3 do CIRE e 616º/4 do C. Civil.

Texto Integral


As juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte:

ACORDÃO

I. Relatório:

Na ação de impugnação de resolução, prevista no art. 125º do CIRE em relação à resolução de atos dos arts.120.º ss do CIRE, instaurada por C. C. contra a Massa Insolvente de A. P.:
1. A autora (credora da insolvente com créditos reconhecidos pela administradora da insolvência):
1.1. Pediu que fosse declarada a nulidade e a ineficácia do ato de resolução da partilha dos bens comuns por divórcio (do devedor com o ex-cônjuge M. C.), com todas as legais consequências.
1.2. Alegou, para o efeito: que, após divórcio do insolvente, a 14/07/2017 foi efetuada a partilha dos bens comuns daquele com o ex-cônjuge M. C.; que a administradora da insolvência, após a distribuição do processo como insolvência a 01/10/2019 e a declaração de insolvência do referido A. P. de 02/10/2019), pretendeu resolver a referida partilha por carta de 27/12/2019, enviada ao ex-cônjuge do insolvente, M. C., declaração esta que teve conhecimento pelo requerimento ao processo do ex-cônjuge do insolvente de 15/01/2020; que a partilha não pode ser objeto de resolução, pois ocorreu há mais de 2 anos na data da declaração da insolvência, sendo que o art. 120º do CIRE prescreve que só podem ser resolvidos, em benefício da massa insolvente, os atos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência; que a administradora já conhecia esta partilha desde a instauração do processo especial (PEAP), em 23/01/2019, razão pela qual na data da declaração de resolução de 27/12/2019 também já tinha decorrido o prazo de 6 meses do art.123º do CIRE; que faltam factos concretos que conduzem à prejudicialidade da partilha em relação à massa insolvente e/à presunção da má-fé do insolvente, não havendo fundamento para a resolução da partilha em benefício da massa insolvente; que ocorre uma ilegalidade e uma caducidade do direito de resolução; que, quanto a esta partilha, corre termos a ação pauliana n.º560/17.7T8AVV, intentada pela impugnante no Juízo Central Cível – Juiz 1, do Tribunal da Comarca de Viana do Castelo, sendo-lhe a resolução oponível, o que lhe confere legitimidade para instaurar a presente ação de impugnação da resolução.
2. A Ré Massa Insolvente: deduziu contestação, na qual, nomeadamente, respondeu às exceções de caducidade do direito de resolução e pugnou pelos fundamentos da resolução; após a réplica referida em I-3 infra, apresentou um requerimento atípico no qual arguiu a ilegitimidade ativa da Autora, defendendo que a relação controvertida em causa tem como sujeitos a Ré Massa Insolvente e A. P. (insolvente no processo de insolvência de que os presentes autos são apenso) e o seu ex-cônjuge M. C..
3. A Autora apresentou réplica e exerceu o contraditório ao requerimento em que foi arguida a sua ilegitimidade ativa.
4. Por despacho de 17.07.2020 foi proferida a seguinte decisão:
«Do saneamento do processo
O Tribunal é o competente.---
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem totalmente.---
As partes têm personalidade, capacidade judiciárias e estão nos autos devidamente representadas.---
Da (i)legitimidade activa
(…)
Quid iuris?
Desde logo, nos termos do disposto nos art.ºs 576.º, n.º 1 e 2, 577.º, al. e) e 578.º do Cód. Proc. Civil ex vi art.º 17.º do CIRE, a ilegitimidade de alguma das partes é de conhecimento oficioso.

Nos termos do disposto no art.º 30.º do Cód. Proc. Civil ex vi art.º 17.º do CIRE:
1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Dispõe por seu turno o art.º 125.º do CIRE sobre o direito de impugnar a resolução, fazendo constar o prazo de caducidade de três meses para propor a ação correspondente para contra a massa insolvente, como dependência do processo de insolvência.
Não define a lei quem tem a legitimidade ativa para a ação de impugnação da resolução.
É no art.º 124.º do CIRE que se trata da oponibilidade da resolução do acto a transmissários posteriores pressupõe a má-fé destes, salvo tratando-se de sucessores a título universal ou se a nova transmissão tiver ocorrido a título gratuito (n.º 1) aplicando-se esta norma, com as necessárias adaptações, à constituição de direitos sobre os bens transmitidos em benefício de terceiro (n.º 2).
Conforme refere Teixeira de Sousa (in A Legitimidade Singular em Processo Declarativo, BMJ 292º/105), “a legitimidade tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da ação possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como a apresenta o autor
Entendemos, assim, que quer o devedor (insolvente) tem legitimidade para impugnar a resolução de atos em benefício da massa insolvente, operada pelo administrador da insolvência, face ao seu interesse em demonstrar a inexistência de prejuízo para a massa insolvente, quer tem ainda tal legitimidade o terceiro envolvido no respectivo negócio cuja resolução se pretende impugnar (no caso a ex-cônjuge do devedor), este pelo interesse na manutenção do negócio.
Sucede que, o facto do CIRE prever um modo especial de conservação da garantia patrimonial da massa insolvente não afasta a possibilidade de poder ser declarada judicialmente a nulidade de negócios jurídicos efectuados pelo devedor. E, uma dessas vias é, precisamente, a da acção pauliana que a Autora admite ter já interposto em sede própria.—
Assim, salvo melhor entendimento, não tem a Autora legitimidade para propor ação com vista a pedir a declaração de nulidade do ato de resolução (quanto a si), nem eventualmente que esse acto lhe fosse inoponível, porque não foi parte no negócio sobre o qual operou a resolução, o que aliás não era sequer peticionado.
Pelo exposto, julga-se procedente a exceção dilatória de ilegitimidade da Autora para pedir a declaração de nulidade ou ineficácia do acto de resolução da partilha dos bens comuns, por divórcio, do insolvente com a ex-cônjuge M. C., absolvendo-se da instância a ré Massa Insolvente de A. P..—
Custas pela Autora.--- ».
5. A Autora interpôs recurso da decisão de I-4 supra, no qual apresentou as seguintes conclusões:
«A – No requerimento inicial da presente impugnação da resolução, em benefício da massa insolvente, a apelante, em 3º, alega que, quanto à partilha de que se pretende a dita resolução, corre termos a ação pauliana, intentada, por esta, sob o processo n.º 560/17.7T8AVV, no Juízo Central Cível – Juiz 1, do Tribunal da Comarca de Viana do Castelo, relativamente à partilha, em resolução.
B – Tal resolução é oponível à apelante, atendendo que, sendo eficaz, a ação pauliana extingue-se.
C – Por documento junto aos autos, em 02/07/2020, pede-se informação, atendendo ao prosseguimento ou não da ação pauliana, referida em A.
D – Decorre, até, dos números dos processos que a ação pauliana foi proposta em 2017 e a insolvência foi decretada, posteriormente, em 2019.
E – Atendendo que, se a resolução da partilha em benefício da massa insolvente for eficaz, o resultado da venda do bem imóvel partilhado, reverterá para o pagamento de todos os credores de forma rateada, ou seja, em benefício coletivo.
F – Porém, se a resolução for anulada e tornada ineficaz, pela procedência da impugnação da resolução, proposta pela apelante, prosseguirá a ação pauliana que, pela procedência desta, apenas beneficiará, a apelante, do resultado da venda do bem imóvel, objeto da partilha, nos termos do Art.º 616º, n.º 4, do Código Civil, “ex vi” do n.º 3, do Art.º 126º, do CIRE.
G – Assim, da procedência da impugnação da resolução, pretendida pela Administradora da Insolvência, resulta um benefício, apenas, a favor da apelante e não um benefício coletivo, em relação a todos os credores, rateando-se o resultado da venda do bem em causa, verificando-se prejuízo para a apelante.
H – Existe, por isso, utilidade para a apelante e só, para esta, da procedência da presente ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente.
I – Pelo que, a apelante é parte legitima na presente ação, pois há um interesse direto em demandar, pela utilidade derivada da procedência da presente impugnação da resolução da partilha.
J – A conclusão, como se fez, na sentença recorrida que considera a ilegitimidade ativa, da apelante, é contrária à lei.
K – A sentença recorrida, infringiu, entre outros, os dispositivos legais dos Art.os 616º, do Código Civil, 17º e 126º, do CIRE e 30º do C.P. Civil.

Termos em que:
Revogando-se a sentença recorrida farão, Vossas Excelências, mais uma vez, JUSTIÇA.».
6. A Ré Massa insolvente respondeu, declarando apenas:
«A sentença recorrida não merece qualquer reparo, pois não violou, antes pelo contrário, qualquer normativo legal.
Efetivamente a A. recorrente é parte ilegítima na presente ação.

REQUER-SE ASSIM, A VOSSAS EXCELÊNCIAS VENERANDOS DESEMBARGADORES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES, QUE JULGUEM IMPROCEDENTE O PRESENTE RECURSO, MANTENDO A SENTENÇA RECORRIDA.».

7. Recebido o recurso de apelação, colheram-se os vistos.

II. Questões a decidir:

Se a credora de um processo de insolvência, que tem pendente uma ação de impugnação pauliana da partilha de bens comuns (por divórcio do devedor e do seu cônjuge mulher), anterior à declaração da insolvência do devedor, tem legitimidade para impugnar a resolução desse ato de partilha, declarada posteriormente pelo administrador da insolvência, nos termos do art.125º ss do CIRE, em referência aos arts.120º ss do CIRE.

III. Fundamentação:

A decisão recorrida julgou a credora da insolvência como parte ilegítima para impugnar a resolução da partilha por divórcio (realizada entre o insolvente e o seu ex-cônjuge em julho de 2017), declarada pela administradora em dezembro de 2019, fundamentando essa decisão por a autora não ter sido parte no negócio sobre o qual operou a resolução (realizado entre o insolvente e o seu ex-cônjuge), mesmo que esse ato de resolução não lhe fosse oponível (efeito que não teria sido pedido), nos termos do art.30º do C. P. Civil.
Reapreciar-se-á esta decisão e os seus fundamentos, em face da motivação e conclusões do recurso e do regime de direito aplicável.
A ação de impugnação da declaração do administrador de resolução de atos praticados pelo insolvente, prevista no art.125º do CIRE em referência aos arts.120º ss do CIRE, não prevê expressamente quais as partes que têm legitimidade na respetiva ação.
A aferição da legitimidade processual deverá ser achada, assim, de acordo com as regras gerais do art.30º do C. P. Civil, ex vi do art.17º/1 do CIRE, que prescreve: «1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. 2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.».

A legitimidade nas ações constitutivas, como refere Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, deve atender à conexão entre relações jurídicas:

«(…), a relação material controvertida é, em primeiro lugar, o direito potestativo que o autor se propõe exercer e, em seguida, a relação jurídica que, através do direito potestativo, se pretende constituir, modificar ou extinguir. (…)
Assim (…) Na impugnação pauliana (art.610.º do Cód. Civil), bem como na generalidade dos casos em que o titular duma relação conexa com outra pretende, ao abrigo da lei, interferir nesta, a legitimidade do autor, ligada à titularidade do direito potestativo, depende da prova do crédito e da sua anterioridade; a legitimidade passiva, conexionada por seu turno com a titularidade do estado de sujeição e do acto impugnado, consiste em serem réus o devedor (alienante) e o terceiro adquirente.» (1).
Numa ação que impugne a declaração resolutória do administrador da insolvência dum ato ou negócio jurídico do devedor/ prévio a insolvência, nos termos do art.125º do CIRE em relação aos arts.120º ss do CIRE, estão em causa duas relações jurídicas conexas: a relação jurídica de que emerge o direito potestativo de resolução exercido pelo administrador da insolvência (a relação entre o devedor insolvente e os seus credores, no âmbito do processo de insolvência destinado a uma execução universal dos bens daquele para a satisfação destes, nos termos do art.1º CIRE, relação que confere ao administrador da insolvência legitimidade para resolver um ato ou negócios jurídico do devedor insolvente com terceiros, nos termos do art.123º do CIRE, para que o bem possa ser apreendido para a massa insolvente); a relação jurídica subjacente ao ato ou ao negócio que a declaração da resolução (impugnada) pretendeu extinguir (a relação entre o devedor, que depois foi declarado insolvente, e o beneficiário do ato ou a contraparte no negócio jurídico).
Examinando a qualidade da autora e o pedido por si formulado na ação de impugnação da resolução e os seus fundamentos, verifica-se que esta: é credora no processo de insolvência, com créditos reconhecidos pelo administrador da insolvência e fundamentou a sua legitimidade com o facto de ter também previamente instaurado em 2017 uma ação de impugnação pauliana sobre a partilha cuja resolução foi posteriormente declarada pela administradora da insolvência; pediu a declaração de nulidade ou de ineficácia do ato de resolução da partilha de bens comuns do extinto casal (do insolvente e ex-mulher), acordada e homologada na Conservatória de Registo Civil cerca de 27 meses antes da declaração da insolvência do devedor em 2019, por entender que a mesma é ilegal, intempestiva e infundamentada.
A declaração de resolução pelo administrador da insolvência de atos ou negócios do devedor, reportados aos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, com os requisitos e fundamentos previstos nos arts.120º ss do CIRE, tem efeitos retroativos, com a reconstituição da situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado, de acordo com as regras gerais do disposto nos arts.433º e 289º do C. Civil, e de acordo com o regime específico do art.126º/1 do C. P. Civil. A restituição do património (neste caso, do direito do insolvente a ½ do seu património comum do extinto casal) possibilitaria a sua apreensão para a massa insolvente em benefício da totalidade dos credores, nos termos do art.36º/1-g), 46º, 149º e 150º do CIRE.
Esta declaração de resolução desencadeia também efeitos obrigatórios em relação às ações de impugnação pauliana com o mesmo objeto, instauradas nos termos dos arts.610º ss do C. Civil, e que estivessem pendentes nessa data, efeitos que variam consoante tivesse sido ou não tivesse sido instaurada ação de impugnação da resolução e a ação fosse ou não fosse julgada procedente: a ação de impugnação pauliana pendente não pode prosseguir após a declaração de resolução do negócio objeto da mesma, impossibilidade esta que, no caso de haver alguma impugnação do ato de resolução nos termos do art.125º do CIRE, deve implicar apenas suspensão da ação de impugnação pauliana, nos termos do art.127º/2 do CIRE a contrario e dos arts.276º/1-c) e d) e 272º do C. P. Civil; a ação de impugnação pauliana já pode prosseguir os seus termos «se tal resolução vier a ser declarada ineficaz por decisão definitiva», isto é, em caso de procedência da ação de impugnação da resolução por sentença transitada em julgado, caso em que esta decisão «terá força vinculativa no âmbito daquelas acções» (de impugnação pauliana) «quanto às questões que tenha apreciado, desde que não ofenda caso julgado de formação anterior», nos termos do art.127º/2 do CIRE.
Havendo o prosseguimento da ação de impugnação pauliana, o art.127º/3 do CIRE prevê que «Julgada procedente a acção de impugnação, o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do artigo 616.º do Código Civil, com abstracção das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos.», previsão que tem gerado discussão jurídica e divisão jurisprudencial, entre: aqueles que, entendendo que a solução normativa é desadequada face à natureza universal da insolvência, consideram que é necessário soluções corretivas do art.127º/3 do C.I.R.E. que permitam que os bens dos negócios impugnados na ação de impugnação pauliana possam regressar ao património do devedor e ser apreendidos para a massa insolvente (2); aqueles que entendem que os efeitos da sentença procedente da impugnação pauliana apenas aproveitam ao credor requerente da mesma, como decorre do regime geral e da remissão do 127º/3 do CIRE para o referido regime geral do art.616º do C. Civil (onde se prevê, no seu nº4, que «Os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido»), razão pela qual os bens do negócio impugnado devem ser executados no património do terceiro e não podem ser apreendidos para a massa insolvente (3).
Examinando o caso em análise, face ao regime jurídico enunciado e às soluções plausíveis das questões de direito, considera-se que a credora de um processo de insolvência, com créditos reconhecidos na mesma, e que se arroga simultaneamente da qualidade de autora de uma ação de impugnação pauliana anterior à declaração da insolvência, tem interesse direto em invalidar ou tornar ineficaz a declaração de resolução pelo administrador da insolvência do negócio que havia sido previamente por si impugnado nessa ação, quando entenda que a resolução é intempestiva, ilegal e infundamentada face ao regime de que de, uma vez: que a resolução da partilha de bens comuns de casal faz restituir o direito à ½ dos bens do extinto casal à massa insolvente, em beneficio de todos os credores, e impede o prosseguimento da sua ação de impugnação pauliana, apta a tornar ineficaz a partilha em seu benefício exclusivo de acordo com uma das soluções defendidas face ao regime vigente; que a declaração de invalidade ou ineficácia da resolução, que efetivamente seja extemporânea ou infundamentada, permite o prosseguimento da sua ação de impugnação pauliana prévia e a reivindicação de efeitos pessoais da mesma, de acordo com uma das soluções plausíveis das questões de direito; que, em qualquer caso, esta credora faz parte da relação jurídica conexa com a relação jurídica subjacente ao negócio impugnado (a relação entre os credores e o devedor da insolvência), com base na qual foi declarada a resolução da partilha pela administradora da insolvência.
Desta forma, procede a apelação, devendo revogar-se a decisão recorrida, substituindo-se a mesma por outra que reconheça à credora legitimidade processual para instaurar a ação de impugnação da resolução, prevista no art.125º do CIRE.

IV. Decisão:

Pelo exposto, as Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, julgando procedente a apelação, revogam a decisão recorrida e reconhecem legitimidade processual à recorrente para instaurar a ação de impugnação da resolução prevista no art.125º do CIRE.

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Custas pela recorrida.
*
Sumário da relatora:


1. A legitimidade processual para a instauração da ação de impugnação afere-se, face: ao interesse direto em demandar pela utilidade decorrente da procedência da ação; às duas relações jurídicas conexas subjacentes à declaração resolutória (a relação entre as partes da insolvência, que confere legitimidade ao administrador para extinguir negócio alheio em benefício da massa insolvente e da satisfação dos credores; a relação subjacente ao ato ou ao negócio declarado resolvido).

2. Tem legitimidade processual para instaurar uma ação de impugnação da resolução de um acordo de partilha de bens comuns de extinto casal, nos termos do art.125º do CIRE, em relação à declaração resolutória do administrador da insolvência, realizada nos termos dos arts.120º ss do CIRE, ao abrigo do disposto no art.30º do C. P. Civil, um credor: que tem créditos reconhecidos no processo insolvência e pode apenas beneficiar coletivamente do ato resolvido, juntamente com os demais credores; que entende que o ato resolutório é intempestivo e infundamentado; que antes da declaração da insolvência pediu a ineficácia do mesmo acordo de partilhas, em ação de impugnação pauliana, nos termos dos arts.610º ss do C. Civil, que apenas pode prosseguir em caso de invalidade ou ineficácia do ato resolutório e que pode vir a beneficiar apenas esse credor, de acordo com as soluções plausíveis das questões de direito, nos termos do art.127º/2 e 3 do CIRE e 616º/4 do C. Civil.

Guimarães, 03.12.2020

Elaborado, revisto e assinado eletronicamente pelas Juízes Desembargadoras Relatora, 1ª Adjunta e 2ª Adjunta

Alexandra Viana Lopes
Anizabel Sousa Pereira
Rosália Cunha



1. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª edição, Revista e Atualizada, 1985, Coimbra Editora, Lda., págs.157 e 158.
2. Vide Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, Almedina, setembro de 2019, pág.253 (em relação ao art.127º/3 do CIRE e, de acordo com a nota 372, ao Acórdão do STJ de 11 de julho de 2013, proferido no processo 283/09.0TBVFR-C.P1.S1, relatado por Fonseca Ramos, e acórdãos que o seguem), que refere: «A restrição dos efeitos das acções de impugnação procedentes ao credor requerente (cfr. art.127.º, n.º3) pode estar- está- em harmonia com o regime geral da impugnação pauliana- com a natureza pessoal desta (cfr. art.616.º, n.º4, do CC)- mas, por isso mesmo, é completamente desadequada ao processo de insolvência- à sua natureza universal. Invocando “razões de justiça material e respeito pela execução universal que a insolvência despoleta”, alguma jurisprudência portuguesa vem tentando corrigir os resultados de uma aplicação excessivamente rigorosa daquela norma. Nomeadamente o Supremo Tribunal de Justiça decidiu, num caso em que o devedor havia sido declarado insolvente na pendência de uma acção pauliana, que “os bens alienados e objecto da acção de impugnação pauliana julgada procedente, devem, excepcionalmente, regressar ao património do devedor para, integrando a massa insolvente, responderem perante os credores da insolvência, sendo o crédito do (…) autor triunfante na acção de impugnação pauliana, tratado em pé de igualdade com os demais credores.” Esta é, com efeito, a única solução compatível com o princípio per conditio creditorum que deve imperar no processo de insolvência.».
3. Vide AC STJ de 17.12.2019, proferido no processo nº1542/13.3TBMGR-K.C1.S1, relatado por Maria Olinda Garcia, disponível in http://www.homepagejuridica.net/pesquisador/jurisprudencia.htm, que concluiu e sumariou: «1. Dado que a procedência da impugnação pauliana não tem como consequência a extinção do efeito translativo da venda, o credor impugnante executa os bens, alvo da impugnação, no património do terceiro adquirente. 2. Assim, não regressando os bens vendidos ao património do alienante, posteriormente declarado insolvente, a impugnação pauliana da respetiva venda não aproveita aos demais credores do insolvente. Por isso, o art.127º do CIRE determina que aquela ação de impugnação pauliana não é apensa aos autos da insolvência do devedor alienante. 3. Tratando-se, assim, de bens de terceiro, não pode o administrador da insolvência (que não procedeu à resolução em benefício da massa) apreender esses bens para a massa insolvente.».