INSOLVÊNCIA
CÔNJUGE NÃO DEVEDOR
APREENSÃO DE BENS
BENS COMUNS
Sumário

I - A insolvência de um dos cônjuges casado num dos regimes de comunhão (ou, sendo divorciado, não tenha havido lugar à partilha dos bens comuns do casal), envolverá a apreensão de todos os bens do insolvente, neles se incluindo não só os bens próprios do cônjuge/insolvente, mas também os bens comuns do casal.
II - A apreensão dos bens comuns é a solução que melhor acautela os interesses dos credores, por permitir a invocação da garantia real resultante da hipoteca que incida sobre imóvel comum e por ser de mais fácil alienação.
III - Apreendidos bens comuns para a massa, a liquidação não poderá prosseguir contra tais bens, sem que se proceda à citação do cônjuge do insolvente, seja para requerer a separação de meações, seja exercer nos autos os mesmos direitos que a lei processual concede ao insolvente relativamente a tais bens.
IV - Assim, para concretização desta faculdade/direito, o cônjuge deverá ser citado para requerer a separação de meações, tal como o artigo 740º do Código de Processo Civil dispõe para a execução singular, uma vez que tal direito terá de ser exercido nos prazos previstos nos artigos 141º, 144º e 146º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
V - Tal procedimento esgota-se, porém, na obtenção do reconhecimento de que os bens em questão são comuns e do direito à separação da sua meação, separação essa que, entretanto, correrá termos junto do Cartório Notarial competente (cfr. artigos 3.º e 81.º da Lei n.º 23/2013, de 5.3).

Texto Integral

Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2020:96/20.9T8OAZ-D.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório

Por apenso ao processo de insolvência em que foi declarada a insolvência de B… foi apreendido o prédio urbano sito na Rua …, n.º …, lote …, no …, da freguesia …, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob o n.º 1384 e inscrito na matriz predial respectiva sob o artigo 5265.

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Por despacho proferido a 22.04.2020 foi determinado o prosseguimento dos autos para liquidação e considerando o disposto no artigo 690º, do Código Civil, notificada a Sr.ª Administradora de Insolvência para proceder à apreensão da totalidade do prédio dando, posteriormente, cumprimento ao disposto no artigo 740º do Código de Processo Civil.
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A 07.07.2020 o Recorrente C…, cônjuge da insolvente, tendo sido citado para o efeito, veio juntar aos autos um requerimento demonstrando que instaurou o processo de separação no Cartório Notarial de Santa Maria da Feira.
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Por despacho proferido a 04.09.2020 a Srª Juiz a quo considerando que não assiste a C… o direito a separar da massa insolvente a sua meação no bem imóvel apreendido, concluiu que a junção do documento comprovativo da interposição de processo de separação de bens não suspende a liquidação do activo.
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Não se conformando com a decisão proferida C… interpôs o presente recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

2. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:
Das conclusões formuladas pelo recorrente as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso consistem nas seguintes:
- Da questão prévia da (in)admissibilidade do recurso interposto;
- Da apreensão de bem imóvel comum, da citação do cônjuge do insolvente e da amplitude dos seus direitos.

3. Fundamentação de Facto
Os factos a ter em consideração são os que constam do relatório.

4. Conhecimento do mérito do recurso
4.1 Da questão prévia da (in)admissibilidade do recurso
Como é sabido, a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica do pedido, sendo que na petição em que propõe a acção deve o autor declarar o valor da causa (artigos 296º, nº 1 e 552º, nº 1, alínea f) do Código de Processo Civil aplicável ex vi artigo 17º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
No que respeita ao valor da causa no âmbito do processo de insolvência dispõe o artigo 15º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que “Para efeitos processuais, o valor da causa é determinado sobre o valor do activo indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real.”.
Importa, antes de mais, referir que o valor em causa a que se reporta o dispositivo em apreço, é o valor processual que apenas vale para efeitos processuais (nomeadamente os relativos à alçada do tribunal), sendo que o valor para efeito de custas é o que vem regulado no artigo 301º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Assim, o valor a considerar para efeitos processuais é o valor do activo indicado na petição, valor que é provisório pois, como resulta da parte final do artigo 15º em referência, será corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real.
A este respeito tecem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, as seguintes considerações: “De acordo com o nº 1 do artº 153º, o administrador da insolvência deve elaborar antes da primeira reunião da assembleia de credores, um inventário dos bens e direitos integrados na massa insolvente, com a indicação do seu valor.
Não é, porém, esta indicação que cabe, em princípio, relevar para a fixação definitiva do valor da causa. Com efeito, conquanto em alguns casos deva obedecer a critérios rígidos, o valor atribuído pelo administrador é sempre um valor estimado e ideal, fruto de elaborações de carácter predominantemente intelectual, mas sem expressão na actividade efectiva de liquidação, que façam equiparar os bens e direitos a dinheiro.
Ora, o que interessa para a correcção do valor da causa é o que possa traduzir e concretizar o valor do activo do insolvente em operações realmente praticadas, porquanto só elas exprimem, verdadeiramente, o seu valor real, que é a variável a considerar na rectificação, de acordo com o próprio texto da lei.” (in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, págs. 132/133).
O actual regime é compreensível pois no momento da instauração do processo nem sempre existem elementos que permitam apurar o valor real da causa permitindo-se a sua correcção logo que os autos forneçam os necessários elementos para o efeito, rectificação que tanto pode determinar o aumento, como a diminuição do valor fixado provisoriamente.
Daqui deflui que pouco importa qual seja o valor indicado na petição inicial, uma vez que o mesmo não é imutável, sendo alterado logo que se constate ser diverso do valor real, o que poderá acontecer quando houver lugar à elaboração do inventário a que alude o artigo 153º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
E, assim sendo, não se poderá estar a coarctar ao Recorrente a possibilidade de impugnar a decisão recorrida, sob pena de se estar a violar direitos constitucionalmente consagrados, maxime, o acesso à justiça prevenido no artigo 20º, da Constituição da República Portuguesa.
Diferentemente se entenderia, caso se estivesse face a uma questão sobre o valor da acção para efeitos puramente tributários, pois nesta circunstância aplicar-se-ia o disposto no artigo 301º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, no qual se predispõe o seguinte:
“Para efeitos de custas, o valor da causa no processo de insolvência em que a insolvência não chegue a ser declarada ou em que o processo seja encerrado antes da elaboração do inventário a que se refere o artigo 153º é o equivalente ao da alçada da Relação, ou ao valor aludido no artigo 15º, se este for inferior; nos demais casos o valor é atribuído ao activo referido no inventário, atendendo-se aos valores mais elevados dos bens, se for o caso.”.
Quer dizer, para efeitos processuais as regras em ter em atenção, nos casos em que a insolvência é decretada, são as resultantes do normativo inserto no artigo 15º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, regras essas que coincidem com o valor da causa para efeitos de custas, nos termos da segunda parte do artigo 301º do mesmo diploma; se a insolvência não vier a ser decretada ou o processo venha a ser encerrado antes da elaboração do inventário a que alude o artigo 153º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o valor para efeitos tributários é o equivalente ao da alçada da Relação, isto é 30.000 Euros, ou ao valor decorrente do activo indicado pela Insolvente no seu Requerimento Inicial, se for inferior, nos termos do artigo 15º daquele mesmo diploma.
No caso vertente, tendo sido decretada a insolvência e tendo havido lugar à apresentação do inventário a que se refere o artigo 153º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o valor da causa para efeitos processuais, bem como para efeitos de custas é largamente superior ao valor da alçada da 1ª instância e da Relação uma vez que se mostra apreendido um bem imóvel com o valor patrimonial de € 194.265,31 e daí que o valor da acção tenha sido fixado em € 194.265,31 aquando do despacho de admissão do recurso.
Assim sendo, teremos de concluir que o valor da acção não constitui obstáculo à admissibilidade do presente recurso.
Ademais, apesar do cônjuge da Insolvente não ser parte principal no presente processo de insolvência, o certo é que tem legitimidade para interpor o recurso uma vez que foi apreendido um bem imóvel comum e determinado a sua citação para requerer a separação da sua meação da massa insolvente quanto ao bem imóvel comum apreendido.
Com efeito, prescreve o n.º 2, do artigo 631.º do Código de Processo Civil que “As pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias”, sendo certo que consideramos que o cônjuge da Insolvente é prejudicado pela decisão.
Afigura-se-nos, por isso, que o recorrente/cônjuge da Insolvente tem legitimidade para interpor recurso.
Já relativamente ao efeito do recurso não podemos aquiescer com o efeito que o recorrente pretende atribuir ao recurso interposto porquanto o mesmo carece de fundamentação legal que o legitime à luz do disposto no artigo 14.º, n.º 5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que é meramente devolutivo.
Face a tudo o que supra se expõe, a interposição do presente recurso preenche os pressupostos e requisitos da sua admissibilidade - quer face ao valor da causa, quer pelo facto de o recorrente ter legitimidade para tanto -, devendo, por conseguinte, ser apreciado.

4.2. Da apreensão do bem imóvel comum, da citação do cônjuge do insolvente e da amplitude dos seus direitos.

Como é sabido a vulgarização da utilização do crédito bancário e a facilidade de acesso ao mesmo por particulares, associadas à crise financeira que se instalou na Europa, e em particular em Portugal, a partir de 2008, acarretaram um incremento do risco de incumprimento e consequentemente de insolvência.
A partir de 2009 assistiu-se, de facto, a um crescimento exponencial do número de processos de insolvência nos Tribunais e, particularmente a partir de 2011/2012, do número de processos de insolvência de pessoas singulares
Como é sabido as pessoas singulares podem apresentar-se à insolvência sozinhas ou em coligação com o cônjuge, mas, neste caso, apenas nos casos previstos no artigo 264.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ou seja, caso sejam casadas no regime da comunhão geral de bens ou da comunhão de adquiridos.
É, assim, frequente, ocorrer a declaração de insolvência de uma pessoa singular, desacompanhada do cônjuge ou ex-cônjuge, cujo património inclui bens comuns do casal e, em especial bens imóveis.
A apreensão destes bens tem suscitado diversas questões, cujo tratamento originou posições diversas, que se verificam quer na actuação dos Administradores de Insolvência, quer na posição das Conservatórias do Registo Predial aquando do registo da declaração de insolvência sobre os bens, quer nas decisões proferidas pelos Tribunais de Primeira Instância e das Instâncias Superiores.
Assim, proferida a sentença de declaração de insolvência, procede-se à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente, conforme determina o artigo 149.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Sendo a massa insolvente composta, nos termos do artigo 46.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, “por todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo”.
Assim, a massa insolvente de uma pessoa casada (ou divorciada, sem que tenha sido realizada a partilha) abrangerá os seus bens próprios e a meação nos bens comuns (cfr. artigos 1722.º, 1723.º, 1726.º e 1696.º do Código Civil).
A questão da apreensão e liquidação dos bens comuns do casal tem dado azo a acesa discussão, essencialmente centrada na interpretação do regime jurídico previsto no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e no Código de Processo Civil para o processo executivo e na natureza da comunhão conjugal, com consequências na forma de concretizar a apreensão e posterior liquidação, na possibilidade de impugnação/separação de bens e na qualificação dos créditos do credor titular de hipoteca registada sobre esses bens.
Encontram-se na prática judiciária e na jurisprudência, essencialmente, duas posições divergentes: segundo uns, a apreensão deve cingir-se ao direito à meação que o cônjuge insolvente tem sobre os bens comuns, uma vez que para a massa insolvente apenas podem ser apreendidos bens incluídos no património do devedor e apenas o direito à meação é da exclusiva titularidade do cônjuge insolvente - o bem em si é comum e não lhe pertence; para outros, a apreensão deve incidir sobre a totalidade do bem, cabendo ao ex-cônjuge, querendo, requerer a separação de meações.
Com efeito, há quem entenda que se deve apreender o direito à meação e quem entenda que são os próprios bens comuns que devem ser apreendidos, havendo depois a possibilidade de separação de meações para o que, segundo este entendimento, se procede à citação para os termos do disposto no artigo 740.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Afigura-se-nos, sempre com o devido respeito por opinião diversa, que este último, em face das características e natureza jurídica da comunhão conjugal, constitui o entendimento e procedimento mais acertado.
Com efeito, enquanto persiste o casamento, nenhum dos cônjuges pode, em princípio, requerer a divisão, mantendo-se a comunhão, por imperativo da lei, enquanto persistir a sociedade conjugal, a cuja sustentação económica os bens comuns se encontram adstritos.
Seguindo de perto o Prof. Antunes Varela, in Direito da Família, págs. 373 e ss., importa notar que nenhum dos cônjuges pode alienar ou onerar bens determinados da comunhão conjugal, nem parte especificada de qualquer um dos bens comuns, nem sequer dispôr de qualquer quota ideal de participação no direito comum, uma vez que os bens comuns estão especialmente afectados aos encargos da sociedade conjugal, constituindo um património autónomo sujeito a um regime/afectação especial, consistente no facto de os bens comuns responderem pelas dívidas de interesse comum do casal, ou seja, pelas dívidas que responsabilizam ambos os cônjuges (cfr. artigo 1695.º, n.º 1, 1.ª parte), e ainda no facto de, por essas dívidas, só responderem outros bens quando não haja bens comuns ou estes sejam insuficientes (cfr. artigo 1695.º, n.º 1, 2.ª parte), sem prejuízo da meação ideal responder subsidiariamente por dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges (cfr. artigo 1696.º, n.º 1, 2.ª parte).
Daí que se afirme, na doutrina, que os bens comuns dos cônjuges constituem objecto, não de uma relação de compropriedade, mas duma propriedade coletiva (a que se dá a designação de propriedade/contitularidade de mão comum ou comunhão germânica), em que os sujeitos dessa propriedade colectiva são ambos os cônjuges, sem que seja correcto falar, enquanto persiste a comunhão, numa divisão de quotas entre eles, em que há a contitularidade de duas pessoas (os cônjuges) num único direito, em que os sujeitos da comunhão conjugal são titulares de um único direito sobre o chamado bem comum, razão pela qual a comunhão conjugal, enquanto propriedade coletiva, é uma comunhão una, indivisível e sem quotas.
Pelo que o direito à meação, de que cada um dos cônjuges é idealmente titular, só ganha consistência, a ponto de se tornar exequível, depois de finda a sociedade conjugal.
E é como corolário e consequência de tudo isto que surge o disposto nos artigos 740.º a 742.º do Código de Processo Civil, que mais não é que a devida e inevitável adjectivação do que resulta do recorte substantivo do regime dos bens comuns na sociedade conjugal.
Importa, no entanto, aqui salientar que a referida adjectivação (no âmbito da execução singular) não se circunscreve à citação para requerer a separação de bens prevista no artigo 740.º, n.º 1 (situação/citação esta que pressupõe que se está perante dívida da exclusiva responsabilidade do cônjuge executado/insolvente), incluindo também uma outra solução processual: o incidente de comunicabilidade da dívida (previsto no artigo 741.º).
Efectivamente, a lei processual comum - subsidiariamente aplicável ao Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (cfr. artigo 17.º do CIRE) - vem estabelecendo, quanto à comunicação da dívida, regras, procedimentos e comportamentos processuais, que têm um papel que não é meramente indicativo/facultativo.
Assim, Rui Pinto, in Manual da Execução e Despejo, pág. 551 e ss., refere que:
A reforma processual de 2003 - lei processual, ao caso não aplicável - optou por estabelecer, nos n.ºs 2, 3, 4 e 6 do então artigo 825.º, um incidente (provocado pelo exequente ou pelo executado) de comunicação da dívida não contraída por ambos os cônjuges, ou seja, desde que o título executivo fosse extrajudicial e dele constasse apenas um dos cônjuges, passou a admitir-se a alegação da comunicabilidade pelo exequente e pelo executado na acção executiva.
Estabeleceu tal reforma de 2003 um mecanismo/incidente de base declarativa em que se previu a oposição à alegação do requerente e em que se associou ex lege um efeito ao funcionamento de tal mecanismo.
Concretizando um pouco mais: o exequente procedia à alegação fundamentada de que a dívida, a despeito da singularidade passiva do título, era comunicável (alegação feita no modelo de requerimento executivo, a par da indicação dos bens comuns); sendo citado o cônjuge do devedor, neste contexto alegatório, para requerer a separação de bens ou para a junção de certidão de acção pendente (n.º 1) e para declarar se aceita ou não a comunicabilidade nos termos fundados pelo exequente (n.º 2).
Após o que, assim cominatoriamente citado o cônjuge do devedor, duas coisas podiam acontecer:
Ou o reconhecimento da comunicabilidade da dívida, quer por falta de oposição (confissão ficta), quer por confissão expressa; produzindo-se a comunicabilidade da dívida, que passava a ser tida da responsabilidade de ambos os cônjuges (passando a valer o regime de responsabilidade subsidiária do artigo 1695.º, n.º 1, 2.ª parte do Código Civil); e passando a execução a “prosseguir também contra o cônjuge não executado” (na expressão do artigo 825.º, n.º 3), o mesmo é dizer, passando este à condição de parte executada (e a execução a ter dois executados, em regime de litisconsórcio necessário superveniente) e resultando, assim, do encadeamento processual, a exequibilidade da obrigação contra quem não constava do título original (e formando-se um título executivo ex novo, autónomo, embora genericamente ligado ao título executivo extrajudicial inicial).
Ou o não reconhecimento da comunicabilidade da dívida, caso o cônjuge a recusasse, hipótese em que podia/devia, então, requerer a separação de bens ou juntar certidão de acção pendente, nos termos da norma mais geral do artigo 825.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, uma vez que, se o não fizesse, a execução prosseguiria sobre os bens comuns penhorados - artigo 825.º, n.º 4 do Código de Processo Civil; ou seja, caso o cônjuge recusasse a comunicabilidade da dívida, esta mantinha a qualidade de dívida própria do outro cônjuge (o problema substantivo saía, então, da esfera da execução) e a execução continuaria a contar com um único executado, porém, se não requeresse a separação de bens ou juntasse certidão de acção pendente, a execução prosseguiria sobre os bens comuns penhorados - cfr. artigo 825.º, n.º 4 do Código de Processo Civil.
Parte disto (da reforma processual de 2003) foi modificado na reforma processual de 2013 passando a questão da comunicação da dívida a merecer um tratamento autónomo nos novos artigos 741.º e 742.º.
Agora, o cônjuge do executado é citado - do pedido de comunicabilidade da dívida formulado no requerimento executivo – para dizer se aceita e pode:
- reconhecer expressamente a natureza comum da dívida;
- nada dizer, o que dita que a dívida será considerada comum;
- recusar a comunicabilidade da dívida, por oposição/impugnação.
O que - esta última possibilidade - constitui a novidade, uma vez que, se antes, a mera recusa do cônjuge impedia logo a comunicação, agora a recusa de reconhecimento da comunicabilidade determina a abertura duma fase contraditória.
Assim, se o pedido de comunicação da dívida foi deduzido pelo exequente no requerimento executivo, a oposição do cônjuge à comunicabilidade da dívida, caso também pretenda opor-se à execução, será cumulada com a própria oposição à execução.
Após o que, julgado o incidente da comunicabilidade - ou na sequência declarativa da própria oposição à execução ou dum incidente autónomo (caso não tenha havido oposição à execução) - se a dívida for considerada comum, vale a mesma solução do artigo 825.º, n.º 3 do vCódigo de Processo Civil: a execução prossegue também contra o cônjuge (que passa a ter o estatuto de executado) cujos bens próprios podem ser nela subsidiariamente penhorados (e se, antes da penhora dos bens comuns, tiverem sido penhorados bens próprios do executado inicial, pode este requerer a respetiva substituição); se a dívida não for considerada comum, retoma-se à solução do artigo 825.º, n.º 1 do vCPC = artigo 740.º, n.º 1 do nCPC: se já tiverem sido penhorados bens comuns do casal, o cônjuge do executado deve, no prazo de 20 dias após o transito em julgado da decisão, requerer a separação de bens ou juntar a certidão comprovativa da pendência da ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena da execução prosseguir sobre os bens comuns (artigo 741.º, n.º 6 do nCPC).
Significa tudo isto - e resulta claramente do confronto entre a lei processual de 2003 e a “novidade” trazida pela actual (de 2013) - que passou a estar prevista, na lei processual de 2013, a possibilidade de haver uma discussão e uma decisão sobre a comunicabilidade da dívida, sendo que esta novidade, com as devidas adaptações, também é aplicável à fase executiva do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – cf. acórdão da Relação de Coimbra de 18.05.2020, proferido no processo 2510/19.7T8CBR.C.C1 e aqui seguido de perto.
Isto exposto, voltando ao raciocínio que estávamos a efectuar, do mesmo modo que, de acordo com o recorte substantivo referido, os cônjuges não podem sequer dispor de qualquer quota ideal de participação no direito comum (comunhão conjugal), também qualquer diligência de cariz executivo por parte do tribunal (penhora, arresto, apreensão em insolvência, etc.) não pode incidir sobre o chamado direito à meação.
O que “obrigou” o legislador processual, pese embora a existência duma disposição como a do artigo 781.º, do Código de Processo Civil (que prevê, entre outras, a penhora de quinhão em património autónomo e que, não fosse o específico regime substantivo dos bens comuns na sociedade conjugal, se ajustava, na sua aplicação, ao chamado direito à meação), a prever uma outra e diversa solução processual para os bens comuns, enquanto há casamento, tendo em vista estes bens comuns serem efetivamente chamados a responder pelas dívidas pelas quais são substantivamente responsáveis, nos termos dos artigos 1695.º, n.º 1, 1.ª parte e 1696.º, n.º 1, 2.ª parte, ambos do Código Civil.
E, claro está, não havendo no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas nenhuma específica disposição sobre o tema, é a matéria regida, como se diz no artigo 17.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, pelo Código de Processo Civil, o que significa que são aplicáveis os artigos 740.º a 742.º, do Código de Processo Civil (todos eles e não apenas o artigo 740.º), o mesmo é dizer que, enquanto há casamento e sociedade conjugal, o direito à meação é insusceptível de ser apreendido como bem integrante duma massa insolvente (em que só um cônjuge foi declarado insolvente), devendo, isso sim, ser apreendidos os próprios bens comuns, tendo que haver, a seguir, ou a citação para separação de meações ou o incidente de comunicabilidade da dívida.
Uma vez assente que a solução que melhor se compagina com o regime substantivo e processual por dívidas dos cônjuges é a penhora e apreensão dos próprios bens comuns e não do “direito à meação nos bens comuns”, o que aliás sucedeu no caso vertente, passamos agora à análise relativa à intervenção do cônjuge no processo de insolvência.
Com efeito, não se aceitando que possam ser apreendidos bens para a massa insolvente sem que os respetivos titulares sejam chamados a intervir, há que assegurar que a insolvência não corra sobre os bens comuns sem que o cônjuge seja colocado em condições de salvar a sua meação – cf. Alberto dos Reis a propósito da execução singular “Processo de Execução”, Vol. 1º, pág. 300.
Assim, defendendo a apreensão dos bens comuns do casal no processo de insolvência, nomeadamente por aplicação das regras do Código de Processo Civil quanto à penhora, defendemos, consequentemente, a aplicação do regime previsto no Código de Processo Civil e a necessidade de citação do cônjuge estabelecida no artigo 740.º, do Código de Processo Civil, que cremos ser a única resposta que permite alcançar a necessária segurança jurídica.
Tal citação será mesmo condição necessária para a conversão em definitivo do registo da declaração de insolvência que incida sobre cada um dos bens comuns apreendidos para a massa
Discute-se, porém, qual a forma adequada a promover tal separação.
Os capítulos II e III, do título V, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas versam expressamente sobre a “restituição e separação de bens” e prevêem, grosso modo, três momentos e meios processuais para requerer a separação de bens, dependendo essencialmente do momento em que ocorreu a apreensão.
O artigo 141.º, n.º 1, al. b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas prevê a possibilidade de “reclamação e verificação do direito que tenha o cônjuge a separar da massa insolvente os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns”, à qual são aplicáveis as disposições relativas à reclamação e verificação de créditos.
A reclamação apresentada nos termos deste normativo é feita por simples requerimento ao processo, no prazo fixado na sentença para a reclamação de créditos, seguindo a tramitação prevista no artigo 134.º do CIRE para as impugnações à lista de créditos.
A separação nestes termos pode ainda ser requerida oficiosamente pelo Administrador de Insolvência e ordenada pelo Juiz, nos termos previstos no n.º 3 daquele normativo.
Já o artigo 144.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aplicável aos casos de apreensão “tardia” dos bens, prevê a possibilidade de tal reclamação ser intentada, no prazo de cinco dias após a apreensão, ainda mediante simples requerimento, em incidente que correrá por apenso ao processo principal e cuja tramitação se encontra prevista no artigo 144.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Por fim, é ainda admitida a possibilidade de verificação ulterior do direito à separação de bens, a exercer nos termos do artigo 146.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, mediante a proposição de uma acção contra a massa insolvente, os credores e o devedor, a qual, face à previsão do n.º 2 deste artigo, não se encontra sujeita a qualquer limite temporal.
Tal procedimento esgota-se, porém, na obtenção do reconhecimento de que os bens em questão são comuns e do direito à separação da sua meação, separação essa que, entretanto, correrá termos junto do Cartório Notarial competente (cfr. artigos 3.º e 81.º da Lei n.º 23/2013, de 5.3).
Com efeito, muito embora o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas preveja expressamente a forma e tramitação do pedido de separação, cabe ainda tomar em consideração a previsão constante do artigo 81.º da Lei n.º 23/2013, de 05-03 (Novo Regime do Inventário).
Dispõe o n.º 1 do artigo 81.º, sob a epígrafe “processo para a separação de bens em casos especiais”:
“requerendo-se a separação de bens nos casos de penhora de bens comuns do casal, nos termos do Código de Processo Civil, ou tendo de proceder-se a separação por virtude da insolvência de um dos cônjuges, aplica-se o disposto no regime do processo de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação do casamento, com as seguintes especificidades:
a) O exequente, nos casos de penhora de bens comuns do casal, ou qualquer credor, no caso de insolvência, tem o direito de promover o andamento do inventário;
b) Não podem ser aprovadas dívidas que não estejam devidamente documentadas;
c) O cônjuge do executado ou insolvente tem o direito de escolher os bens com que deve ser formada a sua meação e, se usar desse direito, são notificados da escolha os credores, que podem reclamar contra ela, fundamentando a sua reclamação.”.
Ora, o que se pretende com a separação de meações é a realização da partilha dos bens comuns do casal (única forma de pôr fim à comunhão e de definir quais os bens abrangidos pelo património de cada um dos ex-cônjuges), por forma a que a apreensão se concretize sobre bens exclusivamente da titularidade do cônjuge insolvente e não sobre o direito à meação.
Afigura-se-nos, assim, que as normas expressamente previstas no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas tendentes a concretizar a separação são igualmente insuficientes para solucionar a presente situação, impondo-se suprir esta insuficiência com o recurso à norma especial prevista no artigo 81.º, do Regime Jurídico do Inventário, devendo a separação de meações efectivar-se através do processo de inventário para a separação de bens em casos especiais, a instaurar no Cartório Notarial.
Assim sendo, se forem apreendidos bens comuns do casal, a liquidação não poderá prosseguir contra os mesmos sem que ao respectivo cônjuge seja dada oportunidade de intervir na acção, devendo proceder-se à sua citação para exercer os seus direitos relativamente a tais bens.
Afigura-se-nos, assim, que o recorrente deveria ter sido citado como foi e tendo instaurado processo de inventário deverá a liquidação do bem imóvel ficar suspensa até ao termo da partilha.
A circunstância de o recorrido vir alegar que a dívida é comum não é suficiente para, atenta a especificidade da tramitação do presente processo, justificar a ausência de citação do cônjuge do insolvente, e a defesa dos seus direitos.
Com efeito, a insolvência enquanto tipo de processo de liquidação de um património (cfr. epígrafe do Capítulo XV do Livro III, Título IV do Código de Processo Civil), encontra-se afastada dos demais processos de liquidação de um património pela finalidade (a insolvência é o processo de liquidação realizado em benefício dos credores) e da liquidação singular por esta consistir num processo de liquidação em benefício de um credor (o credor exequente da acção executiva destinada ao pagamento de quantia certa). Para além dos gravosos efeitos substantivos que desencadeia, sendo um processo tendencialmente universal (a insolvência envolve a liquidação de todo o património penhorável do devedor em benefício de todos os seus credores), a insolvência apresenta-se como um processo de elevada complexidade, incluindo múltiplas actividades, repartidas por uma fase declarativa e por uma fase executiva.
Assim, ao contrário de um processo executivo singular, o processo de insolvência configura uma execução colectiva.
Com efeito, são convocados todos os credores do insolvente, são reclamados múltiplos créditos, podendo uns revestir a natureza de dívidas comuns do casal e outros a natureza de dívidas singulares do insolvente.
Só que em sede de processo de insolvência tal discriminação usualmente não ocorre, desde logo, na relação de créditos apresentada pelo Administrador de Insolvência, o que sucedeu no caso vertente, como resulta da análise do despacho saneador sentença de verificação e graduação de créditos.
Limitou-se a reconhecer os créditos, sem descriminar se se tratam de dívidas comuns ou singulares do insolvente. Ademais, o cônjuge do insolvente não teve intervenção em tal discussão, que nem sequer foi aberta.
Assim, no referido contexto a admitir-se a apreensão e liquidação da totalidade do bem imóvel apreendido, sem proceder a tal debate que naturalmente iria complicar e protelar a decisão em sede de apenso de verificação e graduação de créditos, seria altamente lesivo dos direitos do recorrente uma vez que os bens apreendidos e liquidados visam garantir o pagamento do passivo reconhecido.
Ou seja, as especificidades da tramitação de um processo de execução e de um processo de insolvência não permitem sem mais a equiparação de tramitações quando são apreendidos bens comuns do casal, sob pena de serem gravemente lesados os direitos do cônjuge não insolvente num processo de insolvência em que não é parte e em que não teve intervenção na discussão da natureza das dívidas.
Aliás, a decisão proferida pelo Tribunal a quo entra, inclusive em contradição com o despacho anteriormente proferido, sem que possamos falar de violação de caso julgado dada a amplitude diversa dos mesmos.
A apelação será assim de proceder.
Impõe-se, por isso, revogar a decisão recorrida, procedendo a apelação, determinando-se que assiste ao recorrente C… o direito a separar da massa insolvente a sua meação no bem imóvel apreendido, conforme aliás havia sido determinado, sendo que a junção do documento comprovativo da interposição de processo de separação de bens suspende a liquidação.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto julgar procedente a apelação, revogando decisão recorrida, devendo a liquidação do bem imóvel comum apreendido ficar suspensa até ao termo da partilha.
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Custas a cargo do apelado.
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Notifique.

Porto, 19 de Novembro de 2020
Os Juízes Desembargadores
Paulo Dias da Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas)