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DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE DE TRABALHO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Sumário
I - A descaracterização do acidente de trabalho, exonerando o empregador de reparar os danos decorrentes do acidente, pode ter fundamentos diferentes, não confundíveis entre si, que se verificam nas situações enunciadas nas alíneas a) e b), do n.º1, do art.º 14.º, da Lei 98/2009. Uma coisa é a violação, sem causa justificativa, das regras de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; outra bem diferente, a actuação do trabalhador que subsuma ao conceito de negligência grosseira, dado depois pelo n.º3, do mesmo artigo. II - A causa excludente do direito à reparação do acidente a que se alude na segunda parte da alínea a) do n.º 1, a conjugar com o n.º2, do artigo 14.º, da Lei n.º 98/2009, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (a) que se trate de uma conduta do acidentado, seja ela por acção, seja por omissão; (b) que essa conduta seja representativa de uma vontade do mesmo iluminada pela intencionalidade ou dolo na adopção dela; (c) que inexistam causas justificativas, do ponto de vista do acidentado, para a violação das condições de segurança; (d) que existam, impostas legalmente ou por estabelecimento da entidade empregadora, condições de segurança que foram postergadas pela conduta do acidentado. III - Sendo um dos requisitos exigidos a voluntariedade na violação das regras de segurança, quer legais quer estabelecidas pela entidade patronal, ficam excluídos da descaracterização os actos ou omissões que resultem as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes ou não da habituação ao risco. IV - A violação das regras de segurança, só por si, não é bastante que operar a descaracterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave do sinistrado. V - A violação das regras de segurança, por parte do trabalhador, pode ter outras causas justificativas para além das dificuldades daquele em conhecer ou entender a norma legal ou estabelecida pelo empregador. VI - Para que se considere que há “negligência grosseira”, para os efeitos do art.º 14.º n.º1, al. b) e n.º3, é necessário estar-se perante uma conduta do sinistrado que se possa considerar temerária em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, que ofenda as mais elementares regras de senso comum e que não se materialize em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.
Texto Integral
APELAÇÃO n.º 1425/18.0T8MTS.P1 SECÇÃO SOCIAL
ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I.RELATÓRIO I.1 No Tribunal da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho de Matosinhos – B… intentou a presente acção especial, emergente de acidente de trabalho, contra C…, Lda, e D…, SA., a qual veio a ser distribuída ao J 1, pedindo a condenação das rés no pagamento da pensão devida em função da IPP de que ficou a padecer (sendo a da empregadora de 496,87€ e a da seguradora de 341,25€), das diferenças devidas nas indemnizações por incapacidades temporárias - 613,01€ pela seguradora e 892,39€ pela empregadora-, das despesas que suportou - 2.229,34€+70€ - e de uma compensação por danos não patrimoniais - 15.000€ a suportar pela empregadora -, para além dos legais juros de mora.
Alegou, no essencial, ter sofrido um acidente de trabalho no dia 05/01/2018, o qual consistiu no facto de ter sido atingido no olho direito por uma limalha, quando estava a cortar uma calha metálica para montar uma estufa, em consequência do qual sofreu lesões, as quais que lhe determinaram períodos de incapacidade temporária, sequelas e uma incapacidade permanente para o trabalho de 4,5%.
Aquando do acidente, não usava óculos de protecção, os quais nunca lhe foram disponibilizados pela ré empregadora e teriam evitado o acidente.
Refere, também, nunca ter recebido formação quanto ao manuseamento da rebarbadora na qual se lesionou, bem como que os riscos decorrentes da utilização da mesma não foram contemplados pela empregadora.
À data, trabalhava como serralheiro / montador de estufas e auferia uma retribuição anual ilíquida de 11.041,46€, pese embora apenas estivesse transferida para a ré seguradora uma retribuição de 10.833,34€.
Conclui que o acidente ocorreu por violação de regras de segurança imputável à ré empregadora, nessa consideração reclamando o pagamento de uma pensão agravada.
Regularmente citadas, ambas as rés contestaram.
A empregadora alegou o desconhecimento quanto ao acidente descrito nos autos. No entanto, defende terem sido fornecidos óculos de protecção e ministrada formação.
Mais alega que estando a sua responsabilidade transferida para a ré seguradora, só esta última poderá ser responsabilizada, razão pela qual sempre será parte ilegítima.
Nega ter ocorrido alguma violação de regras de segurança por sua parte e defende que o próprio autor apresentou já diversas e contraditórias versões do sucedido.
Conclui pela improcedência da acção.
Por seu turno, a ré seguradora defende a descaracterização do acidente, no termos das alíneas a) e b), do n.º1, do art.º 14.º da Lei 98/2009, por o mesmo se ter ficado exclusivamente a dever à violação das regras de segurança e negligência grosseira do sinistrado autor, dado que estava a trabalhar sem usar os óculos de protecção, sabendo que tinha de os ter colocados e que tinha instruções da empregadora nesse sentido.
Conclui pela improcedência da acção e a sua absolvição do pedido.
Realizou-se uma audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho saneador, tendo as partes sido consideradas legítimas. Simultaneamente foi seleccionada a factualidade assente e organizada a base instrutória.
Nos termos do disposto nos arts. 131.º, n.º 1, alínea e) e 132.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, foi ordenado o desdobramento do processo e a consequente abertura do apenso de fixação da incapacidade, no âmbito do qual foi efectuado exame por junta médica e veio a ser proferida decisão final em conformidade.
Procedeu-se a julgamento, com observância do legal formalismo. I.2 Subsequentemente foi proferida sentença, concluída com o dispositivo seguinte: «Pelo exposto, e sem necessidade de maiores considerações, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por provada, e, nessa sequência: 1.condenam-se ambas as rés a pagarem ao autor: a) o capital de remição correspondente à pensão anual e vitalícia no montante de 347,81€, devida desde 08/03/2018, sendo a seguradora responsável por 341,25€ e a empregadora por 6,56€; b) 885,13€ a título de indemnização por it´s, na medida das respectivas responsabilidades; 2. condena-se a ré seguradora a pagar ao autor: a) 99,34€ de despesas médicas; b) 50€ a título de despesas suportadas com deslocações obrigatórias; 3. condenam-se ambas as rés a pagarem ao autor os legais juros de mora vencidos e vincendos sendo os referentes ao capital de remição contados desde 08/03/2018 e os referentes à indemnização por it´s contados dos termos previstos pelo art. 72º n.º 3 da Lei n.º 98/2009, até integral pagamento; 4. condena-se a ré seguradora a fornecer os óculos de correcção, com protecção solar, de que o autor necessita; 5. absolve-se a ré empregadora dos demais pedidos contra a mesma formulados na presente acção. Custas pelo autor e por ambas as rés, na proporção dos respectivos decaimentos e responsabilidades, sem prejuízo do apoio judiciário de que o primeiro beneficia. Fixa-se o valor da acção em 5.298,27€ (art. 120º n.º 1 do CPT). Notifique. Oportunamente, proceda-se ao cálculo da remição da pensão - art. 76º da Lei n.º 98/09 e Portaria n.º 11/00 de 13/01.
(..)». I.3 Inconformada com a sentença, a Ré seguradora apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido com o modo de subida e efeito adequados. As alegações foram sintetizadas nas conclusões seguintes:
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Conclui pedindo a procedência do recurso, alterando-se a sentença recorrida em conformidade com o exposto, declarando-se a descaraterização do acidente e a desresponsabilização da recorrente, por virtude de negligência grosseira do trabalhador sinistrado; ou, quando assim não se entenda, declarando-se a culpa grave da co-R. entidade patronal e que o acidente ocorreu por virtude da violação culposa das regras de Segurança. I.4 A recorrida entidade empregadora apresentou contra-alegações e, invocando o disposto no artigo 636.º do C.P.C., “pugna pela ampliação do âmbito do recurso no que tange a uma pequena parte da douta sentença recorrida”, concluindo-as nos termos seguintes:
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30. Face ao exposto, deve o recurso apresentado pela recorrente ser julgado improcedente e ser o presente recurso julgado procedente, por se provar que o trabalhador sabia que deveria usar óculos de proteção, os óculos de proteção existentes na empresa não estavam riscados e se o sinistrado tivesse usado os óculos de proteção o acidente teria sido evitado. I.5 O Sinistrado apresentou contra-alegações, mas não as sintetizou em conclusões.
No essencial, defende a improcedência da impugnação da matéria de facto, contrapondo que dos depoimentos dos trabalhadores da Ré Empregadora, invocados pela recorrente, resulta inequívoco que os mesmos tinham uma base decalcada, no intuito de defender a Entidade patronal e, em primeira linha, o seu posto de trabalho, sendo, no essencial, concertado e pouco espontâneos. Invoca meios de prova para contrapor aos fundamentos invocados pela recorrente.
Defende, ainda, que a sentença faz a correcta aplicação do direito aos factos.
Pugna pela improcedência do recurso da Ré seguradora, mantendo-se integralmente a sentença recorrida. I.6 O Ministério Público junto desta Relação emitiu o parecer a que alude o art.º 87.º3, do CPT, pronunciando-se pela improcedência do recurso, na consideração, no essencial, do seguinte:
- “(..) não assiste razão à recorrente no modo como impugna a matéria de facto da sentença sub iudice, fazendo o aproveitamento que lhe convém designadamente da prova testemunhal que foi prestada em audiência de julgamento”. -“ (..)haverá que se notar a fragilidade da 36ª. conclusão ao não identificar quais as concretas normas jurídicas que, em seu dizer, foram violadas, atenta a estrutura da douta sentença, sem que se lhe aponte concreto vício específico”
- “(..) atenta a factualidade apurada, que não merece reparo, não se pode concluir que possa ter lugar a descaracterização do acidente de trabalho ocorrido”. I.7 Foram colhidos os vistos legais e determinou-se que o processo fosse inscrito para ser submetido a julgamento em conferência. I.8 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho] as questões suscitadas são as seguintes: i) Recurso da Ré seguradora
a) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto ao Ponto 37.º da matéria de facto provada e Factos não provados correspondentes aos itens 4.º e 30.º da Base Instrutória [conclusões 1.ª e 2.ª].
b) Impugnação da decisão por erro de aplicação dos factos ao direito, ao não ter concluído que o acidente ocorreu por culpa (negligência grosseira) do trabalhador sinistrado, atento o provado nos pontos 5., 6., 34. e 35 [conclusões 3.ª a 21.ª]; ou, por não ter concluído que o acidente terá de ser imputado a culpa da Ré e empregadora, caso se entenda que a circunstância de os óculos de proteção individual se encontrarem riscados os tornava inúteis e inaptos para serem usados pelo Autor/Sinistrado, posto que tal equivalerá à inexistência desse equipamento obrigatório de proteção individual [conclusões 18.ª a 34.º]. ii) Ampliação do objecto do recurso da Ré empregadora, na hipótese de se decidir pela sua responsabilidade:
a) Impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto ao facto provado 6; e, por se ter considerado não provado: que a Ré, em data anterior ao acidente, tenha entregue ao A. algum par de óculos de proteção; que o A. não usou óculos de proteção por a tarefa a executar se traduzir num único corte; e, que a Empregadora tenha dado ao autor instruções para utilizar óculos de proteção na execução da tarefa que estava a efectuar aquando do acidente.
b) Impugnação da decisão por erro de aplicação dos factos ao direito, face à pretendida alteração da matéria de facto. II. FUNDAMENTAÇÃO II.1 MOTIVAÇÃO DE FACTO
O elenco factual fixado pelo tribunal a quo consiste no que passa a transcreve.
1. O autor nasceu no dia 14 de outubro de 1961 (cfr. certidão de nascimento de fls. 21/22) – al. a) da FA.
2. Desde 13/10/2014 que exerce funções de Serralheiro/Montador de Estufas sob as ordens, direção e fiscalização da primeira ré, mediante uma remuneração anual ilíquida de 11.041,46€ (700,00€x14 + 5,13€x22x11) – al. B) da FA.
3. No dia 05/01/2018, pelas 16h, quando se encontrava a montar uma estufa no terreno de uma cliente da primeira ré (“E…, Lda.”), sito na Rua …, …, …, Vila do Conde, designadamente a cortar uma calha metálica fixa (que já tinha colocado), com uma rebarbadora, o autor foi atingido por uma limalha projetada do referido tubo, a qual lhe atingiu a córnea do olho direito – al. C) da FA.
4. A rebarbadora utilizada pelo autor integra um protetor contra a projeção de limalhas que estava devidamente colocado, encontrava-se de acordo com as suas características originais (respeitando a segurança exigida pelo fabricante) e mantinha-se em bom estado de funcionamento (cfr. docs. de fls. 207v e ss) – al. D) da FA.
5. O autor, no momento do acidente, não utilizava qualquer equipamento de proteção individual, designadamente óculos – al. E) da FA.
6. À data do acidente, na empresa empregadora, existia um único par de óculos de proteção individual, os quais se encontravam já riscados, o que era do conhecimento do autor – respostas aos factos 1º e 2º da BI.
7. No dia 02/01/2018, o autor assinou uma declaração na qual atestava terem-lhe sido entregues os Equipamentos de Proteção Individual - composto por capacete, óculos, luvas, botas e proteção de ouvidos e máscara (cfr. doc. de fls. 210) – al. M) da FA.
8. Apesar do constante do facto anterior, apenas após a ocorrência do acidente aqui em causa é que a ré empregadora entregou ao autor óculos de protecção para o seu uso exclusivo – resposta ao facto 3º da BI.
9. No dia 08/01/2018, com o agravar dos sintomas no olho afetado, o autor deslocou-se ao Hospital F…, onde foi atendido em consulta de clínica geral e despendeu 29,34€ (docs. de fls. 155/155v) – resposta ao quesito 9º da BI.
10. Do Hospital F… foi enviado para o Serviço de Urgências da ULS de Matosinhos (Hospital …), onde foi tratado, com intervenção para a remoção da limalha de ferro alojada no olho direito – resposta ao quesito 10º da BI.
11. Já sob indicação da ré seguradora, o autor teve consultas nos dias 15, 22 e 29 de Janeiro de 2018, na G…, onde, em 29/01/2018, apresentava uma visão de 9/10 no olho direito e apresentava queixas de fotofobia – respostas aos quesitos 11º e 12º da BI.
12. No dia 17/02/2018 foi observado pelo Dr. H…, da I…, concluindo-se por uma acuidade visual 10/10 no olho esquerdo e de 8/10 no olho direito, sendo a hipovisão no OD “justificada por, em OD, ter leucoma central - 1mm (discretamente desviado supero temporalmente) (cfr. doc. de fls. 156v) – resposta ao quesito 13º da BI.
13. Na consulta referida no facto anterior, o autor despendeu 70€ (doc. de fls. 240) - resposta ao facto 14º da BI.
14. Como consequência directa e necessária do acidente, o autor apresenta sequelas oftalmológicas no olho direito: leucoma de córnea e queixas de hipovisão e fotofobia – resposta ao quesito 15º da BI.
15. O autor esteve em situação de ITA entre 06/01 e 11/02/2018 e em situação de ITP de 20% entre 12/02 e 07/03/2018, data da consolidação médica – respostas aos quesitos 16º e 17º da BI.
16. Em consequência do acidente, o autor ficou a padecer de uma IPP para o trabalho de 4,5% – facto aditado oficiosamente.
17. O autor vai necessitar de uso de óculos com proteção solar – resposta ao quesito 18º da BI.
18. O autor continua e permanecerá com queixas decorrentes da lesão, com acuidade visual diminuída, incómodo e acentuada sensibilidade à luz no olho afectado – resposta ao quesito 19º da BI.
19. O autor sente incómodo e dificuldade em locais muito iluminados e, quando no exterior, em dias de sol, mas especial transtorno no período noturno, concretamente com a iluminação dos veículos, que lhe causa desconforto, dificultando a condução durante a noite – resposta ao quesito 20º da BI.
20. O autor necessita de óculos de sol durante o dia, bem como de óculos com correcção da hipovisão no olho direito – resposta ao quesito 21º da BI.
21. O autor padeceu de dores e desconforto permanente no olho, com lacrimejar e incómodo constante – resposta ao quesito 24º da BI.
22. O facto de ter ficado sensível à luz e apresentar dificuldades na condução de veículos durante o período da noite, causam incómodo ao autor – resposta ao quesito 25º da BI.
23. À data dos factos, a ré empregadora tinha a sua responsabilidade transferida para a ré seguradora por contrato de seguro titulado pela Apólice n.º ………. (válida e eficaz à data), pela retribuição anual ilíquida de 10.833,34€ – al. F) da FA.
24. A primeira ré tem como atividade principal a fabricação e montagem de estruturas metálicas, serviços de apoio a empresas agrícolas, nomeadamente montagem de estufas, apoio técnico e assessoria; comércio por grosso e a retalho de equipamentos agrícolas, embalagens e outros artefactos de plástico e de papel. – al. G) da FA.
25. No dia 09/01/2014, a primeira ré celebrou um contrato de prestação de serviços com a sociedade “J…, L.da” (para que esta prestasse serviços de saúde, segurança e higiene no trabalho e outras opções SHT), empresa essa que elaborou, a 15/01/2016, o relatório de avaliação de riscos em sede de segurança e saúde no trabalho junto aos autos a fls. 175v e 176 a 195, para os quais se remete e cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais). - al. H) da FA.
26. No relatório mencionado no facto anterior, no que respeita ao posto de trabalho/tarefa Tratamento / Máquina multifunções e ao risco referente a aparas metálicas, é descrita a medida preventiva de “utilizar EPI (óculos de proteção, luvas, botas de proteção mecânica)” (cfr. fls. 187v) – facto aditado oficiosamente.
27. A 09/02/2017 foi feita uma auditoria em sede de apreciação do cumprimento das medidas de segurança e saúde no trabalho (doc. fls. 195v a 202v, para o qual se remete e cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais) – al. I) da FA.
28. A 17/07/2015 foi dada ação formativa aos trabalhadores relativamente à condução de empilhadores, tendo o autor estado presente (doc. fls. 203) – al. J) da FA.
29. Em 09/02/2017 foi ministrada formação de primeiros socorros, tendo o autor estado presente (doc. de fls. 203v) – al. L) da FA.
30. Quando o autor exerce as respectivas funções nos terrenos/campos onde são montadas as estufas, a supervisão do seu trabalho é feita por K… e, na ausência deste, pelo colega com maior antiguidade – resposta ao facto 7º da BI.
31. Com deslocações ao Hospital, Clínicas, IML, bem como ao Tribunal no âmbito deste processo, o autor suportou um custo de montante não concretamente apurado – respostas aos factos 22º e 26º da BI.
32. Quando ouvido pela Sr.ª Inspectora da ACT, o autor declarou à mesma que não usava os óculos porque estavam muito riscados e não tinham visibilidade suficiente – resposta ao facto 27º da BI.
33. Apenas três dias depois do sinistro é que o autor comunicou à ré empregadora que se encontrava com sinais de derrame e dores no olho direito – resposta ao facto 28º da BI.
34. O autor/sinistrado sabia que deveria usar óculos de protecção – resposta ao facto 29º da BI.
35. Se o sinistrado, à data, usasse os óculos de protecção, o acidente teria sido evitado – resposta ao facto 31º da BI.
Mais se provou que:
36. A ré empregadora, à data do acidente, tinha, pelo menos, 9 trabalhadores.
37. Pelo menos até à data do acidente, tais trabalhadores executavam as tarefas de corte (como a aqui em causa), sem utilizar óculos de protecção.
38. Aquando do acidente, K… (a que se alude no facto n.º 30), não se encontrava no local.
39. A sociedade “L…, Unipessoal, L.da” emitiu uma declaração datada do dia 10/09/2019, segundo a qual: “(…) declara para os devidos efeitos que a 03 de Março de 2017 vendeu a empresa C…, L.da uma Minirebarbadora 18V 115mm 5,0Ah. Patilha, travão. BL MakPac da marca Makita de acordo com o n/ documento Fatura n.º …. e que fazia parte do seu equipamento básico um óculos de protecção” (doc. de fls. 245/245v).
40. A sociedade “J…, L.da”, na pessoa do técnico superior de higiene e segurança M…, emitiu uma declaração datada do dia 12/09/2019 através da qual atestou que a ré empregadora: “(…) no dia 9 de fevereiro de 2017, evidenciou na minha presença vários equipamentos de proteção individual pertencentes à empresa para uso dos trabalhadores, nomeadamente (…) óculos de proteção (..)” (doc. de fls. 246).
41. No catálogo resumido da marca Makita (do ano de 2016), consta como equipamento básico da máquina na qual o autor se lesionou: disco de rebarbar, punho auxiliar, chave de pivots e protector do disco (doc. de fls. 255/255v).
42. Com relação ao acidente aqui em causa, a ACT efectuou a análise a que se reporta o documento de fls. 82 e ss.
Mais nenhum facto se provou, designadamente que:
- em data anterior ao acidente, a ré empregadora tivesse entregado ao autor algum par de óculos de protecção (facto 1º da BI);
- a mesma ré tenha fornecido ao autor informação ou formação relativa à operação de rebarbagem, designadamente indicando os riscos inerentes a tal operação e medidas de prevenção dos mesmos, bem como informação relativa à necessidade de utilização de equipamentos individuais de segurança - óculos de proteção ou outros (facto 4º da BI);
- a avaliação de riscos da ré empregadora, anterior ao acidente, contemplasse a operação de rebarbagem (facto 5º da BI);
- a previsão específica do risco de projeção de limalhas ou outras partículas tenha sido contemplada na avaliação realizada após a ocorrência do acidente (facto 6º da BI);
- o autor, antes do acidente, tivesse uma acuidade visual de 10/10 em ambos os olhos, não apresentando qualquer doença ou queixa de natureza oftalmológica (facto 8º da BI);
- o custo da consulta mencionada no facto 14º da BI tenha sido de 60€;
- o autor tenha estado com ITA entre 08 e 29/01/2018 e entre 06 e 11/02/2018 e com ITP de 50% entre 05 e 07/01/2018 (facto 16º da BI);
- a data da alta clínica seja 12/02/2018 (facto n.º 16º da BI);
- o autor tenha suportado 140€ com deslocações (facto 22º da BI); - em óculos corretivos e de proteção solar de que ficou a necessitar, o autor tenha de vir a suportar um valor não inferior a 500€, tendo de os renovar, no mínimo a cada 5 anos, para um total estimado de 2.000€ (facto n.º 23º da BI);
- o autor, com o seu estado clínico, tenha ficado mais nervoso, desgostoso e ansioso (factos n.º 24º e 25º da BI);
- o autor tenha despendido mais 70€ com deslocações a tribunal (facto n.º 26 da BI);
- no momento do acidente, o autor não tenha sentido qualquer incómodo no olho direito, nem apresentasse qualquer sinal de derrame e de dor (facto n.º 28º da BI);
- o autor não tenha usado óculos de protecção por a tarefa a executar se traduzir num único corte (facto n.º 29 da BI); e
- a ré empregadora tenha dado ao autor instruções para utilizar óculos de protecção na execução da tarefa que estava a efectuar aquando do acidente (facto 30º da BI). II.2 Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A recorrente seguradora vem impugnar a decisão sobre a matéria de facto, nomeadamente, quanto ao ponto 37.º da matéria de facto provada, pretendendo seja considerado não provado; e, quanto aos pontos 4.º e 30.º da base Instrutória, que foram considerados não provados, defendendo que devem dar-se como provados [Conclusões 1.ª e 2.ª].
Por seu turno, nas suas contra-alegações a recorrida Ré empregadora defende a improcedência da impugnação.
A mesma posição assume o recorrido sinistrado, contrapondo que dos depoimentos dos trabalhadores da Ré Empregadora, invocados pela recorrente, resulta inequívoco que os mesmos tinham uma base decalcada, no intuito de defender a Entidade patronal e, em primeira linha, o seu posto de trabalho, sendo, no essencial, concertados e pouco espontâneos. Invoca meios de prova para contrapor aos fundamentos invocados pela recorrente.
No mesmo sentido pronunciou-se também o Digno Magistrado do Ministério Público no seu parecer, dizendo não assistir razão à recorrente no modo como impugna a matéria de facto, fazendo o aproveitamento que lhe convém designadamente da prova testemunhal que foi prestada em audiência de julgamento.
Conforme decorre do n.º1 do art.º 662.º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Nas palavas de Abrantes Geraldes, “(..) a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância” [Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 221/222].
Pretendendo a parte impugnar a decisão sobre a matéria de facto, deve observar os ónus de impugnação indicados no art.º 640.º do CPC, ou seja, é-lhe exigível a especificação obrigatória, sob pena de rejeição, dos pontos mencionados no n.º1 e n.º2, enunciando-os na motivação de recurso, nomeadamente os seguintes:
- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
- Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
- A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
- Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A propósito do que se deve exigir nas conclusões de recurso quando está em causa a impugnação da matéria de facto, sendo estas não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações, mas atendendo sobretudo à sua função definidora do objeto do recurso e balizadora do âmbito do conhecimento do tribunal, é entendimento pacífico que as mesmas devem conter, sob pena de rejeição do recurso, pelo menos uma síntese do que consta nas alegações da qual conste necessariamente a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende e o sentido e termos dessa alteração [cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça: de 23-02-2010, Proc.º 1718/07.2TVLSB.L1.S1, Conselheiro FONSECA RAMOS; de 04/03/2015, Proc.º 2180/09.0TTLSB.L1.S2, Conselheiro ANTÓNIO LEONES DANTAS; de 19/02/2015, Proc.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, Conselheiro TOMÉ GOMES; de 12-05-2016, Proc.º 324/10.9TTALM.L1.S1, Conselheira ANA LUÍSA GERALDES; de 27/10/2016, Proc.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Conselheiro RIBEIRO CARDOSO; e, de 03/11/2016, Proc.º 342/14.8TTLSB.L1.S1, Conselheiro GONÇALVES ROCHA (todos eles disponíveis em www.dgsi.pt)].
Para além disso, exige-se também que o recorrente fundamente “em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa” [cfr. Ac. STJ de 01-10-2015, Proc.º n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, Conselheira Ana Luísa Geraldes, disponível em www.dgsi.pt].
É também entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do STJ, que o recorrente não cumpre o ónus de especificação imposto no art.º 640º, nº 1, al b), do CPC, quando procede a uma mera indicação genérica da prova que, na sua perspetiva, justifica uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal de 1.ª Instância, em relação a um conjunto de factos, sem especificar quais as provas produzidas quanto a cada um dos factos que, por as ter como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, fazendo a apreciação crítica das mesmas. Nesse sentido, acompanhando o entendimento afirmado nos acórdãos do STJ de 20-12-2017 e 5-09-2018 [respectivamente, nos processos n.ºs 299/13.2TTVRL.C1.S2 e 15787/15.8T8PRT.P1.S2, disponíveis em www.dgsi.pt], no mais recente acórdão de 20-02-2019, daquela mesma instância [proc.º 1338/15.8T8PNF.P1.S2, Conselheiro Chambel Mourisco, disponível em www.dgsi.pt], consignou-se no respectivo sumário o seguinte:
- I. O artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil estabelece que se especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, e determina que essa concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, e quando gravados com a indicação exata das passagens da gravação em que se funda o recurso. II - Não cumpre aquele ónus o apelante que nas alegações não especificou os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, relativamente a cada um dos factos concretos cuja decisão impugna, antes se limitando a proceder a uma indicação genérica e em bloco, para aquele conjunto de factos.
A este propósito, Abrantes Geraldes, após observar que a possibilidade de alteração da matéria de facto deixou de ter carácter excepcional, acabando “por ser assumida como uma função normal do Tribunal da Relação, verificados os requisitos que a lei consagra”, logo prossegue advertindo que “Nesta operação foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por abrir apenas a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente“ [Op. cit., p. 123/124].
Acresce dizer, que conforme o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido, quando o recorrente não cumpra o ónus imposto no art.º 640.º do Código de Processo Civil não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento, que está reservado para os recursos da matéria de direito [Cfr. acórdãos de 7-7-2016, processo n.º 220/13.8TTBCL.G1.S1, Conselheiro Gonçalves Rocha; e, de 27-10-2016, processo n.º 110/08.6TTGDM.P2.S1, Conselheiro Ribeiro Cardoso; (ambos disponíveis em www.dgsi.pt)]. II.2.1 Atento os princípios enunciados, cabe apreciar e decidir sobre a admissibilidade da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
No que concerne às conclusões consideramos ter sido cumprido o que se entende suficiente, isto é, estão afirmados quais os factos impugnados e o sentido em que devem ser alterados. Porém, como de seguida melhor veremos, constata-se que o mesmo não se verifica quanto a todos os demais ónus.
Recorrendo às alegações, o percurso seguido pela recorrente inicia-se com a indicação da matéria de facto impugnada, nomeadamente:
- Ponto 37.º da matéria de facto provada, onde consta assente que “Pelo menos até à data do acidente, tais trabalhadores executavam as tarefas de corte (como a aqui em causa), sem utilizar óculos de proteção”;
- Facto controvertido 4.º da Base Instrutória, julgado não provado e onde se pergunta se “A ré patronal forneceu ao autor informação ou formação relativa à operação de rebarbagem, designadamente indicando os riscos inerentes a tal operação e medidas de prevenção dos mesmos, bem como informação relativa à necessidade de utilização de equipamentos individuais de segurança (óculos de proteção ou outros)?”;
- Facto controvertido 30.º, também julgado não provado, onde se questiona se “Sendo que a ré patronal havia dado instruções para a sua utilização [óculos de protecção]?
A recorrente prossegue dizendo que “Sobre a factualidade em apreço, foram ouvidas em audiência de julgamento as seguintes testemunhas”, passando a indicá-las sucessivamente – N…, O…, P…, K…, Q… - fazendo menção dos tempos da gravação onde se encontram os extractos que invoca e referindo o que cada uma delas declarou.
Imediatamente a seguir finaliza a impugnação, conforme segue:
-«Todas estas testemunhas prestaram depoimentos que se revelaram sérios isentos e credíveis. Todas eram, ou foram, colegas de trabalho do Autor e todas revelaram ter perfeito e direto conhecimento dos factos sobre que depuseram e cuja veracidade asseveraram. Portanto, deverá este Alto Tribunal, fazendo uma apreciação crítica e conjugada das provas, alterar a resposta (positiva) ao ponto 37.º da Matéria de Facto provada, dando esse facto por não provado. E mais deverá alterar a resposta negativa aos pontos 4.º e 30.º da Base Instrutória, dados os respetivos factos por provados».
Como bem se vê, a recorrente impugna os factos em causa em bloco, vertendo toda prova que se lhe afigura relevante sucessivamente e sem formular qualquer juízo critico, mormente, facto a facto. Note-se que os factos não provados que se pretendem sejam dados como provados não são o reverso do facto provado que se quer ver não provado. Na verdade, cada um desses três factos respeita a realidades distintas e autónomas.
Dito por outras palavras, não há uma impugnação individualizada dirigida a cada um dos factos impugnados, suportada na prova que especificamente lhe sirva, nem tão pouco a formulação de um juízo crítico no sentido de justificar a pretendida alteração, facto a facto, visando convencer este tribunal ad quem quanto à pertinência da impugnação. Pelo contrário, a recorrente impugna esses factos conjuntamente, com base nos mesmos meios de prova, sem qualquer argumentação, para depois concluir pedindo que este Tribunal faça “uma apreciação crítica e conjugada das provas” e altere a decisão sobre a matéria de facto, o que vale por dizer, que proceda a um segundo julgamento da causa quanto a essa matéria.
Por conseguinte, por incumprimento dos necessários ónus de impugnação, nomeadamente, o dever de impugnação individualizada dos factos, isto é, especificando com precisão quais os meios de prova para cada um dos factos e apresentando as razões concretas que impunham decisão diferente, rejeita-se a impugnação da decisão sobre a matéria de facto (art.º 640.º n.º 1 al. b), do CPC) II.3 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
A recorrente insurge-se contra a sentença com duas linhas de argumentação distintas:
i)Em razão do Tribunal a quo não ter concluído que o acidente ocorreu por culpa (negligência grosseira) do trabalhador sinistrado, atento o provado nos pontos 5., 6., 34. e 35 [conclusões 3.ª a 21.ª].
ii) Caso assim não se entenda, por não ter concluído que o acidente terá de ser imputado a culpa da Ré e empregadora, caso se entenda que a circunstância de os óculos de proteção individual se encontrarem riscados os tornava inúteis e inaptos para serem usados pelo Autor/Sinistrado, posto que tal equivalerá à inexistência desse equipamento obrigatório de proteção individual [conclusões 22.ª a 34.ª]. II.3.1 Para sustentar a primeira linha de argumentação a recorrente invoca a alteração da matéria de facto cuja impugnação não foi admitida, mas defende também que “para chegar a tal conclusão, bastará atentar e ponderar os factos 5., 6., 34. e 35”, dos quais resulta “que o acidente se deveu a culpa (negligência grosseira) do trabalhador sinistrado”, sendo de “concluir que, nos termos do disposto no artigo 14.º, n.º 1, alínea b) da LAT, o acidente deverá ser descaraterizado e a Recorrente não será responsável pela reparação dos danos causados” [Conclusões 3 a 21].
Consta dos invocados factos o seguinte:
5. O autor, no momento do acidente, não utilizava qualquer equipamento de proteção individual, designadamente óculos.
6. À data do acidente, na empresa empregadora, existia um único par de óculos de proteção individual, os quais se encontravam já riscados, o que era do conhecimento do autor.
34. O autor/sinistrado sabia que deveria usar óculos de protecção.
35. Se o sinistrado, à data, usasse os óculos de protecção, o acidente teria sido evitado.
Refere a recorrente que a exclusão do direito à reparação fundada em negligência grosseira do sinistrado, a que se reporta alínea b) do n.º 1 do Artigo 14.º da LAT (Lei 98/2009), pressupõe que cumulativamente ocorra negligência grosseira do sinistrado e que tal seja causa do acidente, sendo que a “negligência grosseira” “comporta: (i) Um comportamento temerário, arriscado, imprudente, (ii) em alto e relevante grau de risco (iii) e que não resulte da habitualidade da exposição ao risco”.
Enunciados esses princípios, defende que face àqueles factos é de concluir que “todas as apontadas exigências estão amplamente preenchidas”, dado que: “a Ré empregadora dispunha de um par de óculos de proteção individual, o que era do cabal conhecimento do Autor”;“o Autor igualmente sabia que era necessário usar os óculos de proteção”; “O Autor não usava esses óculos de proteção e não aduziu qualquer razão que justifique a omissão desse uso”, não sendo “justificação válida, a circunstância de os óculos disponíveis estarem riscados, pois que, embora riscados, não se demostrou que estivessem imprestáveis ou inaptos para ser usados e para os fins a que se destinavam.”
Mais refere que o Autor, estava obrigado a cumprir o Regulamento de Segurança no Trabalho de Construção Civil, plasmado no Decreto 41821/58, de 11 de agosto, cujo artigo 155.º determina que “o pessoal das obras tomará as precauções em ordem à segurança própria ou alheia, abstendo-se de quaisquer atos que originem situações de perigo”, bem como «o artigo 17.º da Lei n.º 102/2009, que, na sua alínea c), diz que constituem, entre o mais, obrigações do trabalhador “utilizar corretamente e de acordo com as instruções transmitidas pelo empregador, máquinas, aparelhos, instrumentos, substâncias perigosas, e outros equipamentos e meios postos à sua disposição, designadamente os equipamentos de proteção individual (…)”», preceitos que violou.
Sustenta que o Autor “Optou por não usar esses óculos, bem ciente dos riscos que essa atitude (in)consciente comportava”, preterindo “sem qualquer justificação plausível, as mais elementares regras de segurança, violou, ainda, os citados comandos legais”, para concluir que “ao invés do decidido pelo Tribunal a quo, o Autor agiu de forma temerária e com negligência grosseira e que essa atuação constituiu causa – a única causa – adequada do acidente em apreço”.
Num parêntesis, deve notar-se que embora a recorrente só faça apelo à alínea b) do n.º 1 do artigo 14.º da LAT e apenas refira expressamente que está demonstrada a negligência grosseira, o certo é que usa argumentos que têm mais a ver com a violação das regras de segurança, a outra das causas de descaracterização do acidente de trabalho, enunciada na alínea a), do mesmo artigo. De resto, como se retira do relatório inicial, na sua contestação veio defender a descaracterização do acidente, mas aí referindo-se às alíneas a) e b), do n.º1, do art.º 14.º da Lei 98/2009, na consideração de que o acidente se terá ficado exclusivamente a dever à violação das regras de segurança e negligência grosseira do sinistrado autor (dado que estava a trabalhar sem usar os óculos de protecção, sabendo que tinha de os ter colocados e que tinha instruções da empregadora nesse sentido).
Justamente por isso, como decorre da fundamentação da sentença, o Tribunal a quo pronunciou-se sobre essas duas causas de exclusão do direito à reparação, na parte mais relevante lendo-se o seguinte:
-«[…]
Com efeito, de acordo com o previsto no n.º 1 do art. 14º da Lei n.º 98/2009: “O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: a) for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; b) provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; (…).”
No n.º 2, a mesma norma define o que se entende por causa justificativa.
Por fim, no n.º 3, pode ler-se: “Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão”.
Tem-se entendido que, para que se verifique exclusão de responsabilidade da demandada, mostra-se necessária a verificação cumulativa de três requisitos, a saber: a) falta grave do sinistrado na produção do acidente; b) que essa falta fosse indesculpável; e, c) que não houvesse concorrência de culpas entre o sinistrado e o empregador ou terceiro (requisito da exclusividade – cfr. art. 17º n.º 1 da Lei n.º 98/2009).
Na verdade, no art. 17º n.º 1 da citada Lei, refere-se expressamente que “quando o acidente for causado por outro trabalhador ou por terceiro, o direito à reparação devida pelo empregador não prejudica o direito de acção contra aquele (…)”. Consequentemente, sempre serão de afastar as situações de concorrência de culpa, por banda do empregador ou de terceiro.
Note-se que igualmente ficam excluídas da descaracterização aquelas situações que correspondam às chamadas culpas leves, devidas a actos de inadvertência, imperícia ou distracção do sinistrado.
Assim, exige-se que o sinistrado viole voluntariamente as condições de segurança e que tal violação ocorra sem causa justificativa (que ele tivesse conhecimento do perigo que a sua conduta acarretava ou podia acarretar).
Visa-se, pois, uma acentuação da falta do dever objectivo de cuidado, traduzida num comportamento temerário, em alto e relevante grau.
O ónus da prova dos factos correspondentes, porque impeditivos do direito do impetrante, cabe à entidade responsável pela reparação do acidente – art. 342º n.º 2 do CC. Nestes casos, mesmo estando em causa um acidente de trabalho, o autor não terá direito à peticionada reparação caso seja apurado que aquele ocorreu devido ao comportamento negligente do próprio.
Mas, terá o aqui autor provocado o acidente que o vitimou com um qualquer acto ou omissão violador das regras de segurança? Ou seja, terá o mesmo agido com aquilo a que se poderá chamar “culpa qualificada”?
Como se pode ler no Ac. do STJ de 10/10/2007 (pese embora de 2007, com plena actualidade no novo regime legal), “Em geral, considera-se temerário, um comportamento perigoso, arriscado, arrojado, intrépido, que não tem fundamento. (…) A mera culpa ou negligência traduz-se na violação de um dever objectivo de cuidado ou diligência, sendo comum distinguir os casos em que o agente prevê a produção do resultado lesivo como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação (representa um puro vício de vontade), daqueles que, por inconsideração, descuido, imperícia ou ineptidão, o agente não concebe a possibilidade do resultado lesivo se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação (representa um vício de representação e de vontade)” – in www.dgsi.pt.
E, continua o mesmo acórdão, “a lei acolheu a figura da negligência grosseira que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.
Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares”.
Reitera-se que a lei exige, para que ocorra descaracterização, que o sinistrado viole voluntariamente as condições de segurança e que tal violação ocorra sem causa justificativa (que ele tivesse conhecimento do perigo que a sua conduta acarretava ou podia acarretar).
Ora, salvo o devido respeito por opinião diferente, é nosso entendimento que a conduta do autor não poderá ser considerada como tal.
Se é certo que o mesmo, aquando do corte da calha com a rebarbadora, não se encontrava a usar óculos de protecção, e que ficou assente que, na empresa, existia, à data, um par de óculos, também o é que se provou que tais óculos estavam, pelo menos, riscados.
Acresce que o único par de óculos existente na empresa nem sequer tinha sido entregue ao autor, assim como não resultou provado que a ré empregadora tivesse dado alguma instrução para que os mesmos fossem utilizados. Aliás, apurou-se precisamente o contrário, ou seja, que os trabalhadores da empresa (autor e demais colegas), não os usavam, não sendo contrariados/censurados pela empresa.
Ou seja, se é certo que se apurou que, à data, existiam óculos de protecção e que o autor os não utilizava, a verdade é que nada mais se apurou, designadamente que a ré impusesse a utilização dos mesmos e que, por exemplo, tenha sido o trabalhador a recusar usá-los (o facto de o mesmo ter mencionado que não os usou por estarem riscados, desacompanhado de qualquer outra particularidade, não poderá configurar uma verdadeira recusa, nos moldes acabados a mencionar).
Acresce que, segundo o n.º 3 do mencionado art. 14º da LAT, não se poderá considerar negligência grosseira da vítima o acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
Com esta norma visa-se proteger o trabalhador, não apenas dos riscos próprios da simples execução do trabalho, mas também da progressiva diminuição da prudência normal (resultante da exposição habitual e diária aos riscos e perigos da sua actividade que, instintivamente, pode levar à inobservância dos cuidados que se impunham).
A simples circunstância de o autor não usar óculos de protecção aquando do acidente não é, pois, suficiente para considerar tal acto como falta grave e indesculpável tendente a descaracterizar o acidente.
E, se assim é, ter-se-á de concluir que o autor não violou qualquer condição de segurança imposta pela ré empregadora.
Claro que se podia trazer à colação o disposto no art. 4º da Portaria n.º 702/80 de 22/09, segundo o qual são obrigações do trabalhador “usar correctamente os dispositivos de protecção individual que lhes forem fornecidos e zelar pelo seu bom estado e conservação” – al. c) – e “tomar as precauções necessárias para a segurança própria ou alheia e abster-se de quaisquer actos que possam originar situações de perigo (…)” – al. d) -, bem como no art. 145º do mesmo diploma, o qual, aludindo à protecção da face e dos olhos, estatui que “Os trabalhadores que realizem trabalhos que possam apresentar qualquer perigo para a face e para os olhos, por projecção de estilhaços, de materiais quentes ou cáusticos, de poeiras, fumos perigosos ou incómodos (…) devem usar óculos bem adaptados à configuração do rosto, viseiras ou anteparos, consoante os casos”.
Contudo, nada se apurou (nem sequer se alegou) acerca de o autor ter ou não conhecimento de tais normas (desconhecendo-se igualmente qual o seu grau de instrução).
Inexiste qualquer actuação do autor que possa ser qualificada de negligente e, muito menos, temerária pelo que nunca se poderá considerar uma descaracterização do acidente aqui em causa por culpa do mesmo». II.3.2 Concordamos, no essencial, com esta fundamentação e, consequentemente, com a conclusão final a que conduziu, significando isso, como já se percebeu, que não reconhecemos razão à recorrente.
Contudo, impõe-se justificar esta asserção, mas sublinhando-se, desde já, que a descaracterização do acidente de trabalho, exonerando o empregador de reparar os danos decorrentes do acidente, pode ter fundamentos diferentes, não confundíveis entre si, que se verificam nas situações enunciadas nas alíneas a) e b), do n.º1, do art.º 14.º, da Lei 98/2009. Uma coisa é a violação, sem causa justificativa, das regras de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; outra bem diferente, a actuação do trabalhador que subsuma ao conceito de negligência grosseira, dado depois pelo n.º3, do mesmo artigo.
Uma nota mais, para referirmos que na fundamentação que segue acompanha-se de perto o acórdão desta Relação de 26 de Outubro de 2017, relatado pelo aqui relator e com intervenção do excelentíssimo primeiro adjunto [Proc.º n.º 586/12.7TTGDM.P1, disponível em www.dgsi.pt].
O art.º 2.º da Lei n.º 98/2009, consagra o direito do trabalhador e dos seus familiares à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho, nos termos nela previstos.
Segundo o conceito dado pelo n.º1 do art.º 8.º, da mesma lei, “É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.
Casos há, porém, em que apesar de ter ocorrido um acidente de trabalho, a lei exclui o direito à reparação. Para tanto é necessário que se verifique uma causa excludente daquele direito, nos termos previstos taxativamente na lei, que conduz à denominada “Descaraterização do acidente”. Na actual lei ocupa-se desses casos o art.º 14.º, estabelecendo, no que aqui releva, o seguinte:
[1] O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que: a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado; c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
[2] Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la.
[3] Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
Para determinar o sentido e alcance destes normativos, mostra-se pertinente, senão mesmo indispensável, atentar nas correspondentes normas que nos anteriores regimes jurídicos de acidentes de trabalho, nomeadamente, a Lei nº 2127, de 8 de Agosto de 1965, e a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, antecederam as aqui em causa. II.3.2.1 Debrucemo-nos, pois, sobre a causa de exclusão do direito à reparação por violação das regras de segurança estabelecidas pela entidade empregadora [art.º 14.º n.º1, al. a) e n.º2, da Lei 98/2009].
Na Lei n.º 2127, a Base VI, com a epígrafe “Descaracterização do acidente”, sobre essa causa de exclusão do direito à reparação estabelecia seguinte:
[1] “Não dá direito a reparação o acidente: a) Que for dolosamente provocado pela vítima ou provier de seu acto ou omissão, se ela tiver violado, sem causa justificativa, as condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal”.
A propósito da parte final dessa norma, Cruz de Carvalho, na sua incontornável obra de anotação à Lei n.º 2127, referindo estarem aí previstos “(..) os casos de violação injustificada das condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal – que o podem ser, quer em regulamento de empresa ou de serviço, quer em ordem especial”, defendeu que para se verificar essa hipótese “(..) não exige a lei, que a violação das condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal seja propositada, intencional - por isso que fala em acto ou omissão –mas exige que tenha sido sem causa justificativa. Assim, não estão ali compreendidos não só os actos involuntários, como até os cometidos com violação daquelas condições de segurança, por espírito de abnegação e sentimento de caridade ou impulso meramente instintivo ou altruísta de salvar outrem, ou o intuito de beneficiar o patrão, ou ainda os devidos a imprudência ou imprevidência resultante do longo hábito ao contacto diário com o perigo”. E, após elucidar sobre a necessidade de demonstração de um nexo de causalidade entre o acto ou omissão violador das condições de segurança e o acidente, concluiu o seguinte:
- “Para que se verifique a hipótese prevista na 2.ª parte da alínea a), é necessária a prova cumulativa (que compete à entidade patronal): 1.º) da existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal; 2.º) da existência de acto ou omissão da vítima que os viola; 3.º) que tal acto seja voluntário, embora não intencional, e sem causa que o justifique; 4.º) que o acidente tenha sido consequência desse acto ou omissão”. [Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Legislação Anotada, 2.ª Edição, Livraria Petrony, Lisboa, 1983, pp. 50/51].
Como se sabe, àquela lei sucedeu a Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, na qual as causas excludentes do direito à reparação do acidente de trabalho encontram-se no art.º 7.º, igualmente com a epígrafe “Descaracterização do acidente”, no que aqui releva, dispondo o seguinte:
[1]”Não dá direito a reparação o acidente: a) Que for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pela entidade empregadora ou previstas na lei;”
Por seu turno, o art.º 8º n.º 1 do D.L. n.º 143/99 (correspondente ao n.º2, do actual art.º 14.º), ao regulamentar o preceito transcrito, estipula como segue:
“Para efeitos do disposto no artigo 7º da Lei, considera-se existir causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pela entidade empregadora da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la”.
Confrontando essas normas, vê-se que na evolução da Lei n.º2127, para a lei 107/97, as únicas inovações consistiram em acrescentar – na alínea a) - que a violação das condições de segurança pode incidir quer sobre as estabelecidas pela entidade empregadora (na terminologia anterior, entidade patronal), quer em relação às “previstas na lei”; e, para além disso, que foi acrescida uma norma procurando clarificar quando se deve entender “existir causa justificativa da violação das condições de segurança” (o art.º 8º n.º 1 do D.L. n.º 143/99). Por último, constata-se que daquela última lei para a actual não resultou qualquer inovação, apenas havendo alterações de redação e terminologia (empregador, em vez de entidade empregadora), para além da inclusão do n.º 2, no art.º 14.º, em resultado da opção legislativa pela inclusão de normas regulamentadoras na própria lei, deixando de existir um diploma regulamentador autónomo.
Feita esta constatação, é seguro afirmar-se que mantêm inteira validade e actualidade os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais suscitados pela interpretação e aplicação desta causa excludente do direito à reparação, desde a mais longínqua Lei 2127, passando pela mais recente, mas também já revogada, Lei n.º 100/97.
Na esteira do que já era entendido na Lei n.º 2127, acima expresso pelas palavras de Cruz de Carvalho, há um entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, respaldado também na doutrina, no que respeita à causa excludente do direito à reparação, a que se reporta a al. a), do art.º 7.º da lei n.º 100/97. Elucida-o o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Dezembro de 2012, onde a propósito se pode ler o seguinte:
- «Assim, a causa excludente do direito à reparação do acidente a que se alude na segunda parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º, tal como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 17 de Maio de 2007 (Revista n.º 53/2007, da 4.ª Secção), exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; (ii) acto ou omissão do sinistrado que importe a violação dessas condições de segurança; (iii) voluntariedade desse comportamento, ainda que não intencional, e sem causa justificativa; (iv) nexo causal entre o acto ou omissão do sinistrado e o acidente».
Nas palavras do professor Pedro Romano Martinez [Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 851-852], neste caso, «o legislador exige somente que a violação careça de “causa justificativa”, pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 7.º da LAT (correspondentes às mesmas alíneas do n.º 1 do artigo 290.º do Código do Trabalho) tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras.»
E, mais adiante, conclui, «[s]e o trabalhador, conhecendo as condições de segurança vigentes na empresa, as viola conscientemente e, por força disso, sofre um acidente de trabalho, não é de exigir a negligência grosseira do sinistrado nessa violação para excluir a responsabilidade do empregador. Contudo, a responsabilidade não será excluída se o trabalhador, atendendo ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento das condições de segurança ou se não tinha capacidade de as entender (artigo 8.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 143/99)».
Note-se, que na mesma linha fundamental de entendimento, o sobredito acórdão de 17 de Maio de 2007, referindo-se à segunda situação prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º, afirma que «[s]e a lei se basta, na espécie, com o pressuposto assinalado — ausência de causa justificativa — é porque recai sobre o trabalhador um especial dever de observar […] as condições de segurança que lhe são impostas», dever especial que «é tanto mais evidente quanto é certo que a lei só justifica a omissão quando seja de concluir que o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento da norma impositiva ou tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la — artigo 8.º, n.º 1, supra citado».
[Proferido no processo 827/06.0TTVNG.P1.S1, Pinto Hespanhol; no mesmo sentido, vejam-se, ainda os Acórdãos do STJ seguintes: 17-05-2007, Proc.º 07S053, Sousa Grandão;22-11-2007, Proc.º 07S3657, Pinto Hespahol; 19-12-2007, Proc.º 07S3381, Bravo Serra; 25-03-2009, Proc.º 09S0227, Pinto Hespanhol; 3-06-2009, Proc.º 1321/05.1TBAGH.S1, Bravo Serra; 9-12-2010, Proc.º 838/06.5TTMTS.P1.S1, Mário Pereira;18-05-2011, Proc.º 1368/05.8TTVNG-C1.S1, Pinto Hespanhol; 3-10-2012, Proc.º 54/03.8TBPSR.E1, Gonçalves Rocha; 28-11-2012, Proc.º 181/07.2TVFIG.C1.S1, Pinto Hespanhol, todos eles disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj].
Aquele mesmo autor, pronunciando-se em obra mais actual [Direito do Trabalho, 6ª Edição, Almedina, 2013, p. 819 e segs.], sobre a violação das condições de segurança sem causa justificativa, referida no art.º 14.º, n.º 1, alínea a), da Lei 98/2009, reafirma aquele entendimento, escrevendo o seguinte:
- «Neste caso, o legislador exige somente que a violação careça de “causa justificativa”, pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.º 1, do art.º 14.º, do Regulamentação do Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e de Doenças Profissionais tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras. As condições de segurança, quando estabelecidas pela entidade patronal, podem constar de regulamento interno de empresa, de ordem de serviço ou de aviso afixado em local apropriado na empresa. As condições de segurança podem igualmente encontrar previsão na lei e, neste caso, incluem-se não só as regras de segurança no trabalho, como as que respeitam à segurança em outros sectores, nomeadamente na circulação rodoviária. Se o trabalhador, conhecendo as condições de segurança vigentes na empresa, as viola conscientemente e, por força disso, sofre um acidente de trabalho, não é de exigir a negligência grosseira do sinistrado nessa violação para excluir a responsabilidade do empregador”.
Mas releva também assinalar que em qualquer das obras citadas, ao debruçar-se sobre as causas de exclusão e de redução da responsabilidade emergente de acidente de trabalho e a propósito da culpa do trabalhador, o Professor Pedro Romano Martinez antecede a posição acima transcrita, referindo que a “exclusão ou a redução da responsabilidade por acidentes de trabalho pode advir de motivos imputáveis à vítima. Corresponde a uma autorresponsabilização do trabalhador pela sua conduta”, mas depois afirmando que “não é qualquer atuação menos cuidada por parte do trabalhador que acarreta a exclusão ou a redução da responsabilidade; torna-se necessário que a falta tenha alguma gravidade.”
Começando por assinalar que a interpretação dessa posição não é, para si, tarefa fácil, o Professor Júlio Manuel Vieira Gomes [O Acidente de Trabalho, O acidente in itinere e sua descaracterização, Coimbra Editora, p. 224 e sgts], debruçando-se sobre a mesma, escreve o seguinte:
-«Em primeiro lugar, parece-nos que PEDRO ROMANO MARTINEZ não se basta, claramente, com uma negligência inconsciente do trabalhador, na violação das regras de segurança, para que haja uma descaracterização do acidente de trabalho, exigindo que o trabalhador “conhecendo as condições de segurança” as viole conscientemente. Mas a posição adoptada (..) parece ser a de que basta aqui, na violação das condições de segurança, esta negligência consciente – que parece ser, para alguns, automaticamente grave – não se exigindo uma negligência grosseira, como na alínea b), do n.º1 do art.º 14.º. Ou seja, não se exige negligência grosseira, mas apenas negligência grave (seja qual for a diferença…) ou, porventura, negligência consciente, na violação das regras de segurança para que opere a descaraterização do acidente. Com a consequência, é claro, de que não se aplicaria aqui a parte final do n.º3 do artigo 14.º que atende à habitualidade no perigo do trabalho executado, à confiança na experiência profissional para permitir afastar, no caso concreto, a negligência grosseira.
(..) A tese do Autor acarreta, com efeito, a necessidade de distinguir, dentro da negligência, a negligência inconsciente (que não relevaria para descaracterizar o acidente), a negligência consciente ou, porventura, a negligência grave (que seria tudo o que se exigiria para que a violação das condições de segurança sem causa justificativa descaracterizasse o acidente) e a negligência grosseira, causa exclusiva do acidente. A história conhece exemplos de graduações de culpa (..). Esta distinção, contudo, não só não tem qualquer apoio na letra da lei – em matéria de acidentes de trabalho a nossa lei nunca se refere a uma negligência grave do trabalhador, que se contraponha ou distinga de negligência grosseira (…).
O Professor Júlio Manuel Vieira Gomes prossegue a sua análise, fazendo uma incursão pelos antecedentes da atual legislação e debruçando-se sobre vários arestos da jurisprudência dos tribunais superiores que se debruçaram sobre a questão da descaracterização do acidente de trabalho por violação das regras de segurança, para em jeito de conclusão dizer parecer-lhe que «(..) tanto pelas razões históricas já atrás aduzidas, como para garantir a coerência do sistema face às consequências extremamente severas da descaracterização - com a exclusão de todas as prestações, ressalvando-se apenas o dever de prestar primeiros socorros e pedir auxílio – não pode ser o mero facto da violação das regras de segurança que opera a descaracterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave, ao que acresce que outras «justificações» poderão ser relevantes. Terá, por conseguinte, que verificar-se, também aqui, uma culpa grave do trabalhador, tão grave que justifique a sua exclusão, mesmo que ele esteja a trabalhar, a executar a sua prestação, do âmbito de tutela dos acidentes de trabalho. Essa culpa deverá ser aferida em concreto e não em abstrato, e não poderá deixar de atender a fatores como o excesso de confiança induzido pela própria profissão, a eventual passividade do empregador perante condutas similares no passado – até porque muitos especialistas sublinham que o desrespeito por regras de segurança resulta, muitas vezes, de o trabalhador tentar encontrar “atalhos” para produzir mais rapidamente, sobretudo quando lhe são impostos ritmos de produção muito elevados ou de o trabalho ter sido, anteriormente, elogiado ou apreciado, apesar de o empregador bem saber que tinha sido prestado com violação das condições de segurança – e, simplesmente, fatores fisiológicos e ambientais, como o cansaço, o calor ou o ruído existentes no local de trabalho. Destarte, deve considerar-se, (..) que a violação das regras de segurança pode ter outras causas justificativas para além das dificuldades do trabalhador em conhecer ou entender a norma legal ou estabelecida pelo empregador ” [Op. cit., p.240/246].
Acompanha-se esta posição do Professor Júlio Manuel Vieira Gomes, pois, conforme se assinala no Ac. do STJ de 11/05/2017 [Proc.º 1205/10.1TTLSB.L1.S1, Conselheiro Chambel Mourisco, disponível em www.dgsi.pt], compagina-se “com os objetivos de uma lei que se pretende que seja o mais amplamente reparadora dos acidentes de trabalho”, aceitando-se que o mero facto da violação das regras de segurança não é bastante que operar a descaracterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave, bem assim que a violação das regras de segurança, por parte do trabalhador, possa ter outras causas justificativas para além das referidas no n.º 2, do art.º 14, da Lei 98/2009.
Em suma, de tudo isto retira-se o seguinte:
i) A causa excludente do direito à reparação do acidente a que se alude na segunda parte da alínea a) do n.º 1, a conjugar com o n.º2, do artigo 14.º, da Lei n.º 98/2009, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (a) que se trate de uma conduta do acidentado, seja ela por acção, seja por omissão; (b) que essa conduta seja representativa de uma vontade do mesmo iluminada pela intencionalidade ou dolo na adopção dela; (c) que inexistam causas justificativas, do ponto de vista do acidentado, para a violação das condições de segurança; (d) que existam, impostas legalmente ou por estabelecimento da entidade empregadora, condições de segurança que foram postergadas pela conduta do acidentado; e) que se verifique um nexo causal entre o acto ou omissão do sinistrado e o acidente.
ii) Sendo um dos requisitos exigidos a voluntariamente na violação das regras de segurança, quer legais quer estabelecidas pela entidade patronal, ficam excluídos da descaracterização os actos ou omissões que resultem as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes ou não da habituação ao risco.
iii) A violação das regras de segurança, só por si, não é bastante que operar a descaracterização, devendo exigir-se um comportamento subjetivamente grave do sinistrado.
iv) A violação das regras de segurança, por parte do trabalhador, pode ter outras causas justificativas para além das dificuldades daquele em conhecer ou entender a norma legal ou estabelecida pelo empregador. II.3.2.2 Prosseguimos para a segunda causa de descaracterização do acidente de trabalho prevista na lei, com a consequente exclusão do direito à reparação, isto é, quando o acidente provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado [art.º 14.º n.º1, al. b) e n.º 3, da Lei 98/2009].
Na Lei n.º 2127, a Base VI, com a epígrafe “Descaracterização do acidente”, no que aqui interessa, dispunha o seguinte:
[1] Não dá direito a reparação o acidente: a) (..) b) Que provier exclusivamente da falta grave e indesculpável da vítima.
A propósito da parte final dessa norma, Cruz de Carvalho observa que a lei considera «[..] indemnizáveis os acidentes resultantes de negligência, imprudência, imprevidência, imperícia, distracção, esquecimento de uma ordem e comportamentos análogos, abrangidos na figura jurídica de culpa em sentido genérico, como a simples e involuntária inobservância daquele diligência que se deveria ter empregado, e que se tivesse sido empregada teria impedido a realização do facto danoso», defendendo que para aplicação dessa norma “[..] é preciso que haja um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, uma impudência e temeridade inútil, indesculpável, mas voluntária embora não intencional, e além disso que tal comportamento seja a causa única do acidente, como resulta do advérbio “exclusivamente”; (..)» [Op. cit. p. 51].
Releva assinalar, que o Decreto-lei n.º 360/71, de 21 de Agosto, diploma que regulamentou aquela lei, veio estabelecer no art.º 18.º - reportando-se à Base VI n.º1 al. a) da Lei - o seguinte: ”Não se considera falta grave e indesculpável da vítima do acidente o acto ou a omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes das profissões”.
Face ao disposto na Base VI da Lei 2127 e no art.º 18.º do respectivo regulamento, era entendimento dominante da doutrina e da jurisprudência, exigir-se um comportamento temerário, que revestisse as características de indesculpabilidade e de inutilidade ou desnecessidade. Para que tal sucedesse, impunha-se o comportamento fosse reprovado por um elementar sentido de prudência, por evidenciar de forma manifesta uma temeridade voluntária, não necessariamente intencional, mas inútil e indesculpável. Para afastar o direito à reparação, não bastava, portanto, um acto de mera negligência ou imprudência, a culpa simples (leve ou levíssima), sendo necessário que a negligência revestisse a natureza de negligência grosseira [nesse sentido, entre outros, Acórdãos do STJ de 1-3-85, Ac. Doutr. n.º 282, p.749; de 24-01-85, BMJ n.º 361, p. 268; de 30-01-87, BMJ n.º 363, p. 378; de 19-06-87, Ac. Doutr. n.º 308/309, p. 1219; de 3-03-88, Ac. Doutr. 322, p. 1297; e de 20-09-88, Ac. Doutr. n.º 324, p. 1594].
Na Lei 100/97, de 13 de Setembro, usualmente designada por LAT, esta matéria constava regulada no art.º 7 [Descaracterização do acidente], com o texto seguinte:
[artigo 7.º]
-«1 - Não dá direito a reparação o acidente:
(..) b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
(..)».
Por seu turno, o n.º 2 do art.º 8.º, do DL 143/99 de 30 de Abril, que regulamentou a LAT, veio estabelecer: “Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão”.
Confrontando estas disposições com os correspondentes normativos do precedente regime de reparação dos acidentes de trabalho, constata-se que os mesmos não trouxeram qualquer alteração essencial, apenas procurando integrar, com novas redacções, aquele entendimento desenvolvida pela doutrina e pela jurisprudência.
Justamente por isso, no que respeita à causa excludente do direito à reparação, a que se reporta a al. b), do art.º 7.º da Lei n.º 100/97, aquela linha de entendimento afirmada desde a Lei 2127 manteve-se pacífica na jurisprudência dos tribunais superiores. Elucidam-no os sumários dos Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (disponíveis em www.dgsi.pt), que se passam a transcrever:
i) “I -Para que um acidente de trabalho provenha exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, é necessário: (i) que se verifique uma acentuada e indesculpável falta de cuidados, diligência e zelo, face ao circunstancialismo rodeador da actuação, por tal forma que, num juízo de prognose póstuma, se alcance um juízo segundo o qual um homem já dotado de boa diligência, se estivesse colocado na posição do sinistrado, não teria prosseguido idêntico comportamento; (ii) que o comportamento verificado seja causa adequada e exclusiva do sinistro. [Acórdão de 22-11-2007, Recurso n.º 3659/07, Conselheiro Bravo Serra].
ii) “ II - A negligência grosseira a que alude o art. 7.º, n.º 1, al. b) da LAT/97 e o n.º 2 do art.º 8º do RLAT traduz um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência, comportamento esse que só por uma pessoa particularmente negligente se mostra susceptível de ser assumido, revestindo as características da indesculpabilidade e da inutilidade ou desnecessidade” [Acórdão de 22-04-2009, proc.º 08S1901, Conselheiro Mário Pereira];
ii) “I- Para excluir o direito à reparação de acidente de trabalho, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (LAT), é indispensável que o evento seja imputado, em termos de causalidade adequada, exclusivamente, a comportamento temerário em alto e relevante grau do sinistrado (n.º 2 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril), o que implica, por um lado, a prova de que o acidente se deveu a conduta inútil, indesculpável, sem fundamento, e de elevado grau de imprudência, da vítima, e, por outro lado, a prova de que nenhum outro facto concorreu para a sua produção.
(..) IV - O ónus da prova dos factos que integram a negligência grosseira e a imputação do nexo de causalidade, a título exclusivo, entre ela e o evento danoso, recai, por serem factos impeditivos do direito à reparação, nos termos do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, sobre a parte demandada” [Ac. de 17-09-2009, proc.º n.º 451/05.4TTABT.S1, Conselheiro Vasques Dinis].
Avançando para a actual Lei 98/2009, sendo certo que as correspondentes disposições, acima transcritas, acolhem os normativos da Lei 100/97, é seguro afirmar-se que mantêm inteira validade e actualidade os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais suscitados pela interpretação e aplicação desta causa excludente do direito à reparação, desde a Lei 2127.
Em suma, para que se considere que há “negligência grosseira”, para os efeitos do art.º 14.º n.º1, al. b) e n.º3, é necessário estar-se perante uma conduta do sinistrado que se possa considerar temerária em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, que ofenda as mais elementares regras de senso comum e que não se materialize em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.
Compete à entidade que invoca a descaracterização do acidente por negligência grosseira do sinistrado, alegar e provar os factos que a integram, bem assim a imputação do nexo de causalidade, a título exclusivo, entre ela e o evento danoso, nos termos gerais da repartição do ónus de prova, por serem factos impeditivos do direito à reparação (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil). II.3.3 Revertendo ao caso, contrariamente ao que pretende sustentar a recorrente, da matéria provada não resulta o necessário para se concluir estar-se perante uma conduta do sinistrado que se enquadre na noção de negligência grosseira, ou seja, como se acima se concluiu, uma conduta que se possa considerar temerária em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, que ofenda as mais elementares regras de senso comum e que não se materialize em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão.
Importa assinalar estarem também provados os factos seguintes:
[4] A rebarbadora utilizada pelo autor integra um protetor contra a projeção de limalhas que estava devidamente colocado, encontrava-se de acordo com as suas características originais (respeitando a segurança exigida pelo fabricante) e mantinha-se em bom estado de funcionamento.
[36] A ré empregadora, à data do acidente, tinha, pelo menos, 9 trabalhadores.
[37] Pelo menos até à data do acidente, tais trabalhadores executavam as tarefas de corte (como a aqui em causa), sem utilizar óculos de protecção.
Começaremos por notar que a rebarbadora dispunha de “protetor contra a projeção de limalhas que estava devidamente colocado”. Pois bem, embora seja indiscutível que tal não dispensava o uso de óculos de protecção, enquanto meio complementar que confere maior segurança na execução daquela tarefa, o facto não deixa de ser relevante pois mostra que o sinistrado sempre contava com alguma protecção e, logo, é suficiente para afastar a ideia de uma conduta temerária em alto e relevante grau, ostensivamente indesculpável, contrária às mais elementares regras de senso comum, requisitos necessários para que se conclua pela existência de uma conduta qualificável a título de negligência grosseira.
Mas para além disso, ainda que assim não se entendesse, acresce que face ao que se provou, nomeadamente, nos factos 36 e 37, constata-se que até à data do acidente, a prática na empresa - seguida por todos os 9 trabalhadores – passava por executar as tarefas de corte sem utilizar óculos de protecção.
Para melhor contextualizar essa prática, não é despiciendo relembrar que o sinistrado exerce funções de Serralheiro/Montador de Estufas e a ré (facto 24) tem como atividade principal a fabricação e montagem de estruturas metálicas, serviços de apoio a empresas agrícolas, nomeadamente montagem de estufas, apoio técnico e assessoria; comércio por grosso e a retalho de equipamentos agrícolas, embalagens e outros artefactos de plástico e de papel. Vale isto por dizer que, atenta a actividade desenvolvida, as tarefas desempenhadas pelo autor e pelos demais trabalhadores da Ré não consistem em estar constante e sistematicamente a usar máquinas rebarbadoras, mas implicam seguramente o uso frequente dessa ferramenta para fazerem os cortes necessários às montagens de estufas.
Pode dizer-se, pois, que o A., tal como os demais trabalhadores da Ré, têm habitualidade ao perigo do trabalho executado, bem como confiança na experiência profissional ou nos usos e costumes da profissão, só assim se compreendendo que todos eles, até à data do acidente do autor, executassem as tarefas de corte com rebarbadoras sem utilizar óculos de protecção. Como bem refere o Tribunal a quo, a exposição habitual e diária aos riscos e perigos da sua actividade, instintivamente, pode levar à inobservância dos cuidados que se impunham, ou seja, a uma progressiva diminuição da prudência normal.
Por conseguinte, o facto do sinistrado autor estar a executar aquela tarefa sem fazer uso de óculos de protecção, se bem que imprudente, não pode deixar de ser enquadrado nessa prática reiterada dele e dos seus companheiros de trabalho, consubstanciando uma omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão, como tal, também por esta via, ficando afastada a qualificação de tal conduta como “negligência grosseira”.
Mas para além disso, pese embora a recorrente apenas se referir expressamente à negligência grosseira, mas atentos os argumentos que invoca, deixamos também claro que dos factos provados não resulta estarem reunidos os requisitos para se concluir estar-se perante uma situação de violação das regras de segurança pelo sinistrado, enquadrável na segunda parte da alínea a) do n.º 1, a conjugar com o n.º2, do artigo 14.º, da Lei n.º 98/2009.
Em primeiro lugar, para repor o rigor das coisas, do facto 6, consta “À data do acidente, na empresa empregadora, existia um único par de óculos de proteção individual, os quais se encontravam já riscados, o que era do conhecimento do autor”, ou seja, o sinistrado não só sabia da existência dos óculos, como apenas refere a recorrente, mas também que os mesmos estavam riscados.
Acresce não estar provado que a Ré tivesse dado instruções precisas aos seus trabalhadores, designadamente, ao autor, para usarem óculos de protecção sempre que procedessem a cortes de materiais com rebarbadoras. Aliás, como se sublinha na fundamentação da sentença, apurou-se precisamente o contrário, ou seja, que os trabalhadores da empresa (autor e demais colegas), não os usavam, na sua prática diária até à data do acidente.
É certo que a lei impõe também aos trabalhadores que cumpram as regras de segurança legalmente estabelecidas, mas os factos provados são insuficientes para se saber se o sinistrado autor tinha consciência de não estar a cumprir essa imposição. Veja-se, desde logo, que não se provou que tenha tido formação em matéria de segurança relativamente ao uso de máquinas rebarbadoras, mas também, como com pertinência também refere o tribunal a quo, que “nada se apurou (nem sequer se alegou) acerca de o autor ter ou não conhecimento de tais normas (desconhecendo-se igualmente qual o seu grau de instrução)”.
Mas contrariamente ao que defende a recorrente, acresce que não é irrelevante o facto de os óculos estarem riscados. É certo, como refere, que “não se demostrou que estivessem imprestáveis ou inaptos para ser usados e para os fins a que se destinavam”, mas o simples facto de estarem riscados traduz-se, pelo menos, numa diminuição das suas funcionalidades, o que em contraponto implica logicamente uma maior dificuldade na realização da tarefa.
Conforme deixámos elucidado, a inexistência de causas justificativas, do ponto de vista do acidentado, para a violação das condições de segurança, é um dos requisitos de verificação cumulativa para se concluir que houve violação das regras de segurança. Ora, como ficou provado, no âmbito do inquérito realizado pela ACT, [facto 32] “Quando ouvido pela Sr.ª Inspectora da ACT, o autor declarou à mesma que não usava os óculos porque estavam muito riscados e não tinham visibilidade suficiente”, não podendo por isso excluir-se que essa razão apresentada pelo sinistrado seja suficiente para consubstanciar uma causa justificativa para a falta de observância das normas legais que impõem o uso de óculos de protecção na execução de trabalhos com máquinas rebarbadoras.
Mas mesmo que assim não se entenda, estando demonstrado que os óculos estavam riscados, a razão invocada pelo sinistrado é pelo menos adequada a reduzir o seu grau de culpa, ficando excluída a existência de um comportamento subjetivamente grave do sinistrado, juízo que seria necessário para operar a descaracterização por violação das regras de segurança.
Concluindo, improcede esta linha de argumentação do recurso, desenvolvida nas conclusões 3.ª a .21.ª. II.3.4 Numa segunda linha de argumentação [conclusões 22.ª a 34.ª] sustenta a recorrente que, “caso venha a entender-se que os óculos de proteção, por estarem comprovadamente riscados, não se mostravam aptos a ser usados pelo trabalhador sinistrado, tal equivalerá à inexistência desse equipamento, que era obrigatório”.
Argumenta, no essencial, que “caso venha a entender-se que os óculos de proteção, por estarem comprovadamente riscados, não se mostravam aptos a ser usados pelo trabalhador sinistrado, tal equivalerá à inexistência desse equipamento, que era obrigatório” , depois prosseguindo, defendendo que “ Se assim suceder, importa concluir pela omissão, por parte da Ré empregadora, do cumprimento das normas de segurança e que esta violação será apta a gerar, como consequência normal e previsível, o sinistro”, nesses pressupostos concluindo que a Ré entidade patronal terá, assim, violado ostensivamente as mais elementares regras de segurança que, por lei, estava obrigada a cumprir, nomeadamente o artigo 281.º do Código do Trabalho, os artigos 5.º e 15.º da Lei n.º 102/2009, de 10/09, bem como do DL n.º 50/2005, de 28/02, devendo declarar-se ser responsável pelo acidente de trabalho, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 18.º e 79.º da LAT (Lei n.º 98/2009), condenando-a solidariamente com a aqui recorrente nos montantes em que esta última foi condenada, possibilitando o ulterior exercício do direito de regresso.
Antes de prosseguirmos deve assinalar-se que a recorrente apenas agora vem colocar esta questão, indo ao encontro da posição assumida pelo autor na acção, mas que não foi acolhida pelo Tribunal a quo.
Na fundamentação da sentença recorrida, a este propósito e n que aqui interessa, consta o seguinte:
-«[..]
Vejamos, agora, se poderá ser assacada alguma responsabilidade à ré empregadora.
Rege o n.º 3 do art. 79º da Lei n.º 98/2009 que, “Verificando-se alguma das situações referidas no artigo 18º, a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso”.
Já segundo o referido art. 18º n.º 1 se “(…) o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada (…), ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança, higiene ou saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais”.
Nestas hipóteses, a pensão deverá ser calculada nos moldes consagrados pelo n.º 4 do mesmo artigo.
Verifica-se, assim, que o empregador responde pela clara inobservância das regras de segurança, determinantes das lesões do trabalhador.
Refira-se que, se é certo que a seguradora assegura, desde logo, o pagamento das prestações legalmente devidas ao sinistrado, tal responsabilidade não abrange qualquer agravamento, nos termos supra explanados, agravamento esse da exclusiva responsabilidade do empregador.
Actualmente, tal como já sucedia com o anterior regime - Lei nº 100/97 de 13/09 – não consagra a lei qualquer presunção de culpa do empregador. Torna-se, pois, imperativo provar a violação de tais regras de segurança – como decidiu o STJ no seu aresto de 28/11/2012, “(…) a violação por parte da entidade empregadora ou do seu representante das mencionadas regras passou a constituir um caso de culpa efectiva e não um caso de culpa meramente presumida, (…)”.
O nosso ordenamento jurídico, através da Lei n.º 102/2009 de 10/09, designadamente do seu art. 15º, prevê as obrigações gerais do empregador – ….
[…].
Porém, também nesta parte, não se provou que a ré empregadora não tenha disponibilizado o par de óculos existente na empresa.
Isto é, nem se provou que os tivesse disponibilizado, nem que não o tenha feito.
Acresce que também resultou provado que o funcionário responsável pela supervisão do trabalho do autor também não estava no local à data do acidente.
A única falta que poderia ser imputada à ré empregadora era a atinente à formação do autor, já que a mesma não logrou provar que a tenha ministrado com referência ao uso da rebarbadora, propriamente dita.
Contudo, atendendo a que não ficou minimamente indiciado que o acidente se tenha ficado a dever a um mau manuseamento da máquina, nunca se poderá concluir que a eventual falta de formação tenha sido causal desse mesmo acidente.
Termos em que, também nesta parte, se conclui pela ausência de responsabilidade da ré empregadora.
[…]».
Como se retira da fundamentação da sentença recorrida, quer nesta parte quer na acima transcrita, o Tribunal a quo não entendeu, em momento algum, que “os óculos de proteção, por estarem comprovadamente riscados, não se mostravam aptos a ser usados pelo trabalhador sinistrado”. Ali, ao debruçar-se sobre a descaracterização, a Senhora Juíza refere que “ se é certo que se apurou que, à data, existiam óculos de protecção e que o autor os não utilizava, a verdade é que nada mais se apurou, designadamente que a ré impusesse a utilização dos mesmos e que, por exemplo, tenha sido o trabalhador a recusar usá-los (o facto de o mesmo ter mencionado que não os usou por estarem riscados, desacompanhado de qualquer outra particularidade, não poderá configurar uma verdadeira recusa, nos moldes acabados a mencionar).” Aqui, pronunciando-se sobre a alegada responsabilidade da Ré empregadora por violação das regras de segurança, afirma-se que “ não se provou que a ré empregadora não tenha disponibilizado o par de óculos existente na empresa. Isto é, nem se provou que os tivesse disponibilizado, nem que não o tenha feito”.
Por outro lado, pela nossa parte demos relevância ao facto dos óculos estarem riscados, mas apenas nos termos acima constantes, partindo da consideração formada com base nos factos provados, mas que a recorrente veio invocar na primeira linha de argumentação que opôs à sentença, que “não se demostrou que estivessem imprestáveis ou inaptos para ser usados e para os fins a que se destinavam”.
Com o devido respeito, não percebemos com que base factual pretende a recorrente sustentar esta linha de argumentação. Mais, deve dizer-se, até nos causa alguma perplexidade que tendo ali usado como fundamento o facto de não se ter demonstrado que os óculos de protecção “estivessem imprestáveis ou inaptos para ser usados e para os fins a que se destinavam”, venha agora, sem mais, configurar a hipótese de se entender precisamente o oposto, ou seja, “ que os óculos de proteção, por estarem comprovadamente riscados, não se mostravam aptos a ser usados pelo trabalhador sinistrado, tal equivalerá à inexistência desse equipamento, que era obrigatório”.
Por conseguinte, não tendo o Tribunal a quo, nem tão pouco este Tribunal de recurso, partido do alegado entendimento para a apreciação de qualquer uma das questões, carece esta linha de argumentação de qualquer apoio e, logo, sem necessidade de qualquer outra consideração, resta concluir pela sua improcedência.
Concluindo, não assiste razão à recorrente, sucumbindo no recurso e, logo, devendo ser mantida a sentença recorrida. II.4 Ampliação do objecto do recurso da Ré empregadora
A ampliação do objecto do recurso foi requerida ao abrigo do disposto no art.º 636.º1, do CPC, e nesse pressuposto admitida, prevenindo a Ré a necessidade da sua apreciação na hipótese de acolhimento da segunda linha de argumentação da recorrente, ou seja, da sua responsabilização pela reparação dos danos emergentes do acidente de trabalho, por violação das regras de segurança, nos termos previstos no art.º 18.º n.º1 (segunda parte), da Lei 98/2009.
Assim, tendo o recurso sucumbido também nessa parte, necessariamente fica prejudicada a apreciação da ampliação do objecto do recurso. III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso nos termos seguintes:
a) Rejeita-se a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
b) Julga-se o recurso improcedente, confirmando a sentença na parte recorrida.
c) Considerar prejudicada a apreciação da ampliação do objecto do recurso.
Custas do recurso a cargo da Ré Seguradora, atento o decaimento (art.º 527.º do CPC)
Porto, 23 de Novembro de 2020
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Teresa Sá Lopes