TESTAMENTO
CAPACIDADE TESTAMENTÁRIA
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I - O artigo 2180.º do Código Civil exige que o testador tenha expressado a sua vontade por palavras suas, tenha manifestado claramente a sua vontade e que essa expressão revele uma vontade que tenha ultrapassado a fase da ideia, projecto ou mero desígnio.
II - A capacidade testamentária activa não é afectada por qualquer deficiência cerebral ou mental do testador mas apenas por anomalias daquela natureza que no momento da celebração do testamento eliminem a vontade e o entendimento.
III - Recai sobre o interessado na anulação do testamento o ónus da prova da situação de incapacidade de facto do testador.
IV - Porém, se estiver demonstrado que o testador se encontrava num estado de saúde mental em que a incapacidade era a consequência mais provável, cabe ao beneficiário do testamento o ónus de demonstrar que apesar disso, no momento da celebração do testamento, o testador se encontrava com aptidão natural para entender o sentido da declaração e exercer livremente o poder de dispor dos seus bens.

Texto Integral

Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2020:5271.18.3T8MTS.P1

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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B…, contribuinte fiscal n.º ………, residente em …, instaurou a presente acção declarativa, com processo comum, contra C…, contribuinte fiscal n.º ………, residente em … e D…, notário, contribuinte fiscal n.º ………, com Cartório Notarial em Matosinhos, formulando contra estes os seguintes pedidos: que seja declarada a nulidade do testamento lavrado em 19 de Julho de 2016, no Cartório Notarial de Matosinhos, a cargo do Notário aqui réu, em que foi testadora E…, ordenando-se o averbamento da sua nulidade ao respectivo testamento; se assim não se entender, que o referido testamento seja anulado nos termos do disposto no artigo 2199.º do Código Civil.
Alegou para o efeito, em síntese, que E…, mãe do autor e da ré, faleceu em 08/01/2018, tendo deixado testamento instituindo a ré herdeira da sua quota disponível; anteriormente a falecida E… instituíra o autor herdeiro da sua quota disponível; sempre foi ele, e não a ré, a manter uma boa relação com a mãe; no ano de 2017, contra a vontade do autor, a sua mãe passou a viver em casa da ré; que à data em que outorgou o testamento a favor da ré a testadora sofria de deterioração cognitiva, não sendo capaz de juízo crítico para a tomada de decisões importantes; encontrava-se dependente de terceiros, vulnerável e influenciável; a testadora não conhecia as testemunhas do testamento; a testadora nunca teve boas relações com a sua filha; face a estas circunstâncias, o notário que elaborou o testamento deveria ter pedido a intervenção de perito médico que abonasse a sanidade mental da testadora, o que não fez.
A ré C… contestou impugnando parcialmente os factos alegados pelo autor e afirmando, em síntese, que a testadora passou a residir em sua casa, com o acordo do autor, por ter problemas de saúde e ter deixado de ter condições para habitar sozinha; durante o período em que a mesma passou a estar entregue à ré o autor não a visitou mais que duas vezes, nem lhe telefonava, votando-lhe desinteresse, o que muito a desgostou; a testadora manteve-se lúcida, conservando o juízo crítico e discernimento para se autodeterminar e avaliar as consequências dos seus actos; com o testamento quis beneficiar a autora por esta a ter amparado na velhice; a autora em nada induziu ou condicionou a testadora.
O réu D… contestou arguindo a sua ilegitimidade e afirmando que na elaboração do testamento cumpriu enquanto notário os deveres e obrigações que resultam da lei. Mais impugnou a factualidade alegada pelo autor, alegando que aquando da outorga do testamento não teve qualquer percepção de que a testadora tivesse demência senil, nem de que fosse vulnerável ou fortemente influenciável; que para esse efeito realizou diligências para aferir se a testadora se encontrava na posse das suas faculdades mentais e o testamento correspondia à sua vontade real, não tendo tido qualquer dúvida quanto a esses factos, não padecendo o testamento dos vícios que lhe vêm imputados.
No despacho saneador o réu D… foi absolvido da instância por ilegitimidade.
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo a ré C… do pedido.
Do assim decidido, o autor interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objecto a decisão proferida, datada de 12/12/2019.
2. Sentença, essa que julgou que "não se verificam os pressupostos legais para declarar anulado o testamento em apreço" e conclui que "logrou a ré fazer prova de que aquando da outorga do testamento a testadora se encontrava lúcida e capaz de compreender o sentido e as consequências do ato que praticava
3. Decidindo o Tribunal, ora, recorrido que "face ao exposto julgo a presente acção integralmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvo a ré do pedido".
4. É desta decisão que discorda o Apelante, por entender que houve uma desconsideração da prova produzida, em particular de prova documental.
5. Uma vez que ficou provado por documentos que a testadora (aqui mãe do Apelante e Recorrida) sofria de patologia associada a «parkinsonismo de predomínio acinético-rígido de gravidade moderada associado a disfunção cognitiva e anedonia, desinteresse, discurso telegráfico, bradipsiquismo, discalculia grave, desorientação temporo-espacial, entre outros».
6. Esta doença começou a manifestar-se na testadora no decurso do ano de 2014 tendo originado a marcação de consulta na especialidade de neurologia a 12/04/2016.
7. Consulta essa que comprovou o diagnóstico médico apresentado anteriormente e que consequentemente motivou que a testadora ficasse a cargo dos seus filhos Apelante e Recorrida, inicialmente, embora fosse relativamente a esta última que se verificou o vínculo habitacional mais duradouro.
8. Isto porque, o quadro médico-clínico da testadora assim o justificou para sua segurança, já que a sintomatologia da doença (esperadas, diga-se!) já haviam manifestar-se com regularidade e por esse motivo era preciso que a família cuidasse de forma continua da testadora, quer providenciando a alimentação, higiene e cuidados com deslocações a consultas médicas e entre outras.
9. Não obstante, até início de 2016, o Apelante e a sua família sempre providenciaram e cuidaram da testadora, prestando-lhe maior conforto e auxílio na sua vida, já que viviam em casa contígua à sua.
10. Provendo cuidados com a sua alimentação, a higiene, deslocações a consultas e tudo o que mais que fosse preciso e necessário fazer para que a testadora conservasse todos o actos quotidianos a que estava habituada, com o maior conforto e dignidade possível.
11. Neste ano de 2016, a sua saúde deteriorou-se e começava a indicar sinais de maior debilidade em resultado das patologias associadas.
12. E foi aí que Apelante e Recorrida decidiram que o melhor seria que a testadora residisse com eles.
13. E assim foi, nos primeiros meses de 2016, alternando mensalmente entre a casa de cada um dos filhos (Apelante e Recorrida), cada um deles cuidava da testadora.
14. Contudo ao fim de 4/5 meses começou a residir permanentemente em casa da Recorrida.
15. Porquanto a cônjuge do aqui Apelante foi diagnosticada com a doença de alzheimer e, perante tal situação, o Apelante não conseguia acompanhar devidamente as duas doentes.
16. Corroborando e exposto veja-se e fora declarado pelo filho da Recorrida, testemunha F… na gravação n.º 20191016093701_15312056_2871548 da sessão de Audiência de Julgamento de 16/10/2019, com início às 00:02:34 e fim às 00:02:38 e com início 00:04:58 e com fim 00:05:37; pela Recorrida na gravação n.º 20191016093701_15312056_2871548 da mesma sessão de audiência de julgamento, com inicio às 00:09:34 e fim às 00:10:04 e ainda da passagem com início às 00:10.37 00:10.55 e ainda a G… na gravação n.º 20191016105747_15312056_2871548 da mesma sessão de audiência de julgamento, com inicio às 00:03:40 e fim às 00:05:53; com inicio às 00:44:11 e fim às 00:46:00; e com inicio às 00:47:00 e fim às 00:47:40.
17. E ainda as testemunhas arroladas, como a H…, o I… (na gravação n.º 20191016134933_15312056_2871548 da sessão de audiência de julgamento do dia 16/10/2019, com início às 00:06:30 e fim às 00:08:30) ou a J… (na gravação n.º 20191105161605_ 15312056_2871548 da sessão de audiência de julgamento do dia 05/11/2019, com início às 00:05:05 e fim às 00:05:58), e ainda corroborados pelas declarações prestadas pela Recorrida
18. Portanto, não se concebe os factos dados como provados nos n.º 8 e 19 a 22 da decisão recorrida, porque o Apelante sempre manifestou preocupação, interesse e zelo com a testadora, independentemente do período, ou seja, quando morava sozinha a testadora, com o Apelante e/ou com a Recorrida, sua irmã.
19. Mais, vários foram os contactos estabelecidos entre o Apelante e a testadora, quer através de visitas regulares que fazia à casa da sua irmã, quer por intermédio de contactos telefónico ou ainda por conversa com pessoas que assiduamente a visitavam, como a testemunha H…, veja-se a gravação n.º 20191016 105747_15312056_2871548, com inicio às 01:15:14 e fim às 01:16:06.
20. É verdade que houve um período (entre finais de Junho/16 e meados de Julho/16) que o Apelante e Recorrida ficaram de relações cortadas, mas nem por isso a preocupação e cuidado com a testadora diminuiu.
21. Dita o senso comum que nem sempre a ausência de contacto físico corresponde a um desinteresse pela pessoa ou estado.
22. Pois se assim fosse, o Apelante nunca teria cuidado da sua mãe (testadora) até meio de 2016, na verdade, sempre viveu ao lado da testadora e tal realidade terá de ser tida em consideração para a convicção da decisão que ora se recorre.
23. Ainda demonstrativo do seu interesse constante e continuo pela sua mãe, em Novembro/16 retomou as visitas à casa da Recorrida para visitar a sua mãe e testadora, tendo desde aí sido, novamente, presença assídua até ao seu falecimento.
24. Dito isto, salienta-se que as questões a decidir nos autos são o modo como a testadora expressou a sua vontade na outorga do testamento e a falta de consciência de capacidade volitiva da testadora para outorga do testamento.
25. E, por essa razão, da decisão recorrida encontram-se provados e incorrectamente julgados os factos vertidos nos pontos 8, 9, 11, 19 a 22, 25, 31 e 38 e ainda os factos não provados dos pontos j), m), n) e q).
26. Devendo os factos 25), 31), 38) a 40), j), k), m) e n) ser eliminados daí e tidos como escritos, passando o facto provado a ter a seguinte redacção:
25) A testadora, nesta data, evidenciava desde há muito, uma desorientação espacial e temporal, indiferença em relação ao seu estado pessoal e ao de quaisquer outras pessoas.
25 A) Evidenciava fortes sinais de demência senil, e incapacidade de providenciar pela sua alimentação, muito embora tivesse momentos em que (mantém-se os factos provados 26 a 28)
31) Não se sabe se foi E… que teve a iniciativa de elaborar o testamento,
31 A) Foi a a Dra. K… que determinou os termos do testamento e que a E… acabou por o outorgar nesses exactos termos.
31 B) Quando outorgou o testamento a testadora estava totalmente dependente de terceiros para todos os actos da sua vida.
31 C) Não se encontrava com as capacidades mentais necessárias e suficientes para reger a sua vida, nem tão-pouco para celebrar a disposição de sua última.
27. Isto porque, de facto, é ao Apelante que incumbe o ónus da prova dos factos demonstrativos da incapacidade acidental do testador, no momento da feitura do testamento, nos termos do artigo 2199.º do Código de Civil,
28. Isto é, recai sobre o interessado na anulação do testamento (ora, Apelante), nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil.
29. Assim, procedeu o Apelante, ao fazer prova da patologia médico-clínica diagnosticada à testadora, bem como a data em que o mesmo sucedeu,
30. Tal prova encontra-se feita através de declarações médicas juntas aos autos nos documentos 3 a 5 da petição inicial.
31. Acontece que a doença de que padecia a testadora é degenerativa, pelo que o fundamento da decisão recorrida de que os sintomas que a testadora sentia e manifestava se deviam ao consumo de determinada medicação (Stugeron e Tercian) e não à sintomatologia da própria doença, não corresponde à verdade, com o devido respeito.
32. E mesmo que assim fosse, o que não se coaduna, tal fundamentação carece de prova, não tendo, neste sentido, nenhuma evidência sido trazida à colação que, eventualmente, possibilitasse averiguar se há uma relação directa entre essa toma medicamentosa e os sintomas apresentados pela testadora.
33. Até porque, não há prova de que tenha ocorrido o "desmame" da aludida medicação.
34. Para além disso, não se encontram provas de que, conforme alegado na contestação da Recorrida, as consultas desmarcadas tenham substituído a tal medicação. (Diga-se até que posteriormente foram desmarcadas as consultas de especialidade neurológica, não existindo, assim, qualquer reagendamento das mesmas para que fosse possível comprovar o que alega a Recorrida).
35. Mais, comprovado foi o estado da testadora, senão veja-se o relatório médico de 12/04/2016, de onde se pode ler que a toma dessa medicação não sucedeu apenas neste período de 2014 a 2016, mas sim que a mãe do Apelante e Recorrida "já fez gotas de tercian no passado mas já foram suspensas".
36. Pelo que deste documento se extrai que a administração de tal medicamento já teria sido interrompida, antes, e que a sintomatologia não se devia a essa administração,
37. Pois se assim fosse, teria nessa altura de também ter tido sintomas, o que não sucedeu.
38. Além disso, nem o próprio médico de família, no seu depoimento nem no seu relatório médico, da deslocação que efectuara a casa da Recorrida indicou qualquer informação quanto à medicação que prescrevera à testadora nem a que se encontrava a tomar.
39. Aliás, no seu depoimento (gravação n.º 20191105141407_15312056_2871548, da sessão de julgamento do dia 05/11/2019, com inicio às 00:23:31 e fim às 00:34:44) consta que "nas duas situações que fui chamado [a casa da Recorrida] fui por causa de febre". Não
40. Daí que não se extrai de qualquer prova, quer documental quer de ordem testemunhal, que existe uma estrita correspondência entre os efeitos da sua administração e os sintomas manifestados pela paciente.
41. Assim, perante todas estas proposições, não se poderá fazer crer que à data do acto testamentário e perante todo este historial clinico, que a testadora estaria num cenário, seja absoluto ou relativo, de capacidade natural de entender e/ou de querer o sentido da sua declaração.
42. A tudo isto, acresce ainda que, ficou provado, por prova testemunhal que a intenção da testadora nunca fora beneficiar a aqui Recorrida ao dispor da quota disponível do seu património a favor desta em detrimento do aqui Apelante, mas sim legar determinado bem, a saber o imóvel de … (a casa onde a Recorrida residia).
43. Corroborando o exposto, veja-se a gravação n.º 20191016142954_15312056_2871548 da sessão de audiência de julgamento do dia 16/10/2019, com inicio às 00:23:48 e fim às 00:24:58, da qual a testemunha Drª K… explica que conversa teve com a testadora e qual seria a sua intenção, e ainda a gravação n.º 20191016105747_15312056_2871548, com inicio às 00:23:25 e fim às 00:24:13, onde a testemunha H… refere o mesmo.
44. Daí que o próprio impulso da realização do acto testamentário foi dado a conhecer ao notário Dr. D1…, não pela testadora mas por intermédio da testemunha Drª K…, que entrou em contacto com aquele a fim de proceder às diligência necessárias para concretizar alegada vontade.
45. Declara a testemunha Dr. D…, na sua inquirição, que a testadora estaria perfeitamente capaz, convicção que formou através de conversa privada com a mesma e sobre a sua vida, cf. Gravação 20191016152317_15312056_2871548 da sessão de audiência de julgamento do dia 16/10/2019, com inicio às 00:02:00 e fim às 00:03:40, com início às 00:03:57 e fim às 00:06:33 e com início às 00:07:05 e fim às 00:08:13.
46. Realidade que se diga um pouco incoerente, atendendo a que o testamento foi outorgado quando a testadora se encontrava acamada.
47. Ainda assim e mesmo que não se entenda, a testemunha, Dr. D…, após ter constado que foi contactado por pessoa diversa da testadora, que a testadora se encontrava a acamada e que teria de se deslocar ao local para realizar a outorga (casa da Recorrida), deveria ter averiguado se estariam efectivamente reunidas todas as condições para que o testamento fosse lavrado.
48. Assim deveria ter mobilizado o expediente que o Código de Notariado que dispõe, que é possível fazer-se acompanhar de perito médico, vide artigo 67.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3.
49. Não podendo, de todo o modo, o Notário referido automaticamente partir da premissa de que técnico especializado que goza de fé pública, tem e teria competência suficiente e bastante para apreender da capacidade plena de sem qualquer tipo de contraditório, sob condição de perigar a validade do trafego jurídico de competência notarial, nomeadamente os actos testamentários.
50. Até porque, mesmo que perante a conversa que declara que teve com a testadora momentos antes da outorga, constata-se, eventualmente, estaria num momento de perfeita consciência e capacidade de entender e querer o alegadamente pretendido,
51. Certo é que mesmo num estado neuro degenerativo existem momentos de lucidez que poderão interromper a sua incapacidade testar, mas que não fazem cessar o vicio de vontade nem o erro na declaração, nos termos do artigo 2199.º do Código Civil.
52. Portanto, nessa sequência de actos estamos perante meros juízos pessoais do Notário que "só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador", ex vi artigo 371.º, n.º 1.
53. Concluindo-se que não sabia o Notário, Dr. D…, se a vontade declarada correspondia à vontade real.
54. O que não corresponde, conforme demonstrado pelas declarações prestada pela Drª K…, vide gravação n.º 20191016142954_15312056_2871548 da sessão de audiência de julgamento do dia 16/10/2019, com inicio às 00:23:48 e fim às 00:24:58.
55. Em face de tudo quanto antecede, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e a decisão recorrida ser revogada e substituída pela declaração de nulidade do testamento público lavrado em 19/07/2016.
56. Porquanto, o Apelante juntou aos autos prova do modo como a testadora expressou a sua vontade na outorga do testamento e que não tinha consciência de capacidade volitiva para a referida
57. E tais factos foram dados como provados pelo Tribunal recorrido, mas que não relevaram, de todo, para a procedência da acção, no que há nulidade diz respeito, por se encontrar ferido da nulidade do artigo 2180.º do Código Civil, pois no caso a testadora nem consciência tinha do acto praticado.
58. Caso assim não se entenda, deve proceder o presente recurso relativamente ao pedido subsidiário de anulabilidade do referido testamento por incapacidade acidental, consubstanciada na incapacidade do testador de entender o sentido da sua declaração nos termos do artigo 2199.° do Código Civil.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i) Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada;
ii) Se a testadora se encontrava no momento em que outorgou o testamento incapacitada, ainda que acidentalmente, de entender e querer o sentido do acto jurídico que ia realizar.

III. Os factos:
Na decisão recorrida foram julgados provados os seguintes factos:
1 – A 8 de Janeiro de 2018, faleceu, no estado de viúva de M…, E…, mãe dos aqui Autor e primeira Ré, conforme documento junto a fls. 11, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
2 – Os herdeiros legitimários da falecida à data do seu decesso eram o Autor e a primeira Ré, conforme documento junto a fls. 11 verso a 13 verso, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
3 – Mais ou menos um mês após o falecimento de E…, o Autor foi informado de que esta deixara testamento a favor da Autora, na qual a instituíra herdeira da sua quota disponível, outorgado em 19 de Julho de 2016, no Cartório Notarial de Matosinhos, a cargo do licenciado, D…, conforme documento junto a fls. 14, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
4 – Nesse mesmo testamento consta que a testadora, em 22 de Novembro de 2011, revogou todos os testamentos anteriores, através de escritura também outorgada naquele Cartório.
5 – A existência desse testamento, onde a primeira Ré é instituída herdeira da quota disponível, era desconhecida do Autor, até à comunicação que lhe foi feita.
6 – Até 2014 a falecida E… teve uma vida autónoma, sendo mormente acompanhada pelo seu filho, aqui Autor.
7 – A partir dos finais do ano de 2015, tendo o Autor e a primeira Ré notado uma deterioração física e motora de sua mãe, decidiram cuidar desta de forma alternada em casa de cada um deles.
8 – Passado cerca de dois meses, o Autor, não obstante morasse ao lado da casa de sua mãe, comunicou à Ré, que não dispunha de condições que lhe permitissem prestar a assistência e os cuidados necessários à sua mãe, por a sua mulher se encontrar doente com Alzheimer e não poder nisso colaborar.
9 – Por essa razão, no início de 2016, aquela passou a viver apenas em casa da primeira Ré.
10 – Por esse motivo coube a esta o cargo de cabeça de casal da herança por óbito de sua mãe.
11 – Em 12 de Abril de 2016, na consulta externa de neurologia a que E… se submeteu, a mesma apresentava uma deterioração cognitiva de carácter lentamente progressivo; encontrava-se lentificada; sem iniciativa verbal; só falava se falassem com ela e o discurso era telegráfico; mostrava-se desinteressada de tudo, lenta nos movimentos; parada e vindo a tremer cada vez mais dos membros superiores, mais à direita.
12 – Nessa consulta o referido clínico concluiu:
“Trata-se de uma senhora com 87 anos, com quadro de deterioração cognitiva desde há 2 anos a agravar de forma lentamente progressiva, associado a parkinsonismo acinético-rígido. Como etiologias prováveis temos:
- iatrogenia a Stugeron e Tercian (que provocam parkinsonismo e disfunção cognitiva).
- estado infeccioso por Sifilis, não se excluindo neurosífilis, provavelmente transmitida pelo marido.
Plano:
- peço consulta de infecciologia urgente
- para suspensão completa de Stugeron e Tercian.
- Reavaliação neurológica no final do ano, após wash-out de fármacos ofensores e eventual tratamento da sífilis (…)”,
conforme documento junto a fls. 15, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
13 – Em 23 de Agosto de 2016, em consulta de medicina interna é relatado:
Foi observada em consulta de neurologia: “trata-se de uma senhora com 87 anos, com quadro de deterioração cognitiva desde há 2 anos a agravar de forma lentamente progressiva, associado a parkinsonismo acinético-rígido. Como etioplogias prováveis temos:
- iatrogenia a Stugeron e Tercian (que provocam parkinsonismo e disfunção cognitiva).
- estado infeccioso por Sifilis, não se excluindo neurosífilis, provavelmente transmitida pelo marido”, conforme diagnóstico de neurologia já realizado em 12/04/2016.
14 – Na referida consulta de 23 de agosto de 2016, no exame objectivo, E… mostrou-se consciente, pouco colaborante e lentificada, conforme documento junto a fls. 16, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
15 – O Sr. Dr. N…, neurologista, portador da cédula profissional ….. da Ordem dos Médicos, que observou E… na referida consulta de neurologia, emitiu declaração em 19/08/2018, na qual é atestado que
a senhora em epígrafe, já falecida, foi observada por mim em consulta de Neurologia em duas ocasiões (nomeadamente a 12/02/2016 e 13/12/2016) na Unidade Local de Saúde … – EPE – por declínio cognitivo-comportamental, de carácter progressivo notado pelos familiares desde 2014. Não foi mais observada por mim, desde então, por motivo de sucessivas desmarcações de consulta até à sua morte.
Esta doente apresentou, na avaliação nessas consultas, e pela mais recente definição do DSM-5 (Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, 5ª Edição), sinais clínicos compatíveis com o diagnóstico de Perturbação Neurocognitiva Major. Com base nesse diagnóstico clínico objectivado nesse período temporal, depreende-se que esta senhora esteve incapaz, do ponto de vista cognitivo, com perda de Autonomia, e a necessitar de apoio de terceira pessoa para as suas actividades básicas da vida diária. Mais informo que não se encontrava, portanto, em posse de capacidades cognitivas suficientes para zelar pelos seus melhores interesses, nem capaz de juízo crítica para a tomada de decisões importantes em total consciência
– cfr. doc. junto a fls. 16 verso, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
16 – Na data em que outorgou o testamento, a testadora estava totalmente dependente de terceiros para proceder à sua higiene pessoal, se calçar e confeccionar comida.
17 – Encontrando-se debilitada fisicamente, sobretudo a nível motor, tendo dificuldades de locomoção autónoma.
18 – A testadora não conhecia a testemunha O….
19 – Durante os mais de dois anos em que E… se encontrou entregue aos cuidados da Ré, o Autor não a visitou mais de três vezes.
20 – E não lhe telefonava para se inteirar do seu estado de saúde.
21 – Provocando-lhe, com esse comportamento, tristeza e desgosto.
22 – Que a mesma expressava, amiúde, à filha, aos netos e até a terceiros.
23 – Durante o tempo em que viveu em casa da Ré E… guardava e manifestava, com clareza as memórias do passado,
24 – Evocando nas conversas com a filha, genro e neto, que com ela viviam e com terceiros, vários episódios ocorridos com os seus antepassados e falecido marido, que identificava e descrevia.
25 – Mantendo-se ciente da sua identidade e do contexto espácio-temporal em que se encontrava.
26 – Ali recebia e convivia com familiares e pessoas amigas que a visitavam.
27 – Assistia e comentava os programas de televisão da sua preferência, cujos horários de difusão sabia.
28 – Conhecia o valor do dinheiro de mão que geria e que, por ocasiões festivas distribuía, na medida que entendia, pelos netos,
29 – incluindo as quantias que, todos os meses, entregava à filha do Autor para cumprimento de obrigações religiosas inerentes à religião por eles professada (dízima).
30 – Com o testamento elaborado em 19/07/2013, E… pretendeu beneficiar a sua filha, seu amparo e fonte de afecto nessa fase da sua vida.
31 – Foi E… quem teve a iniciativa de elaborar esse testamento, o qual foi concertado e preparado por esta com a sua procuradora de há já muitos anos, a Dra K1….
32 – Pessoa que, até então, a Ré conhecia apenas de nome, mas mandou chamar a pedido expresso de sua mãe.
33 – A Ré não interveio no agendamento, nem na preparação desse testamento, com o notário que o celebrou.
34 – O notário, Dr. D…, deslocou-se a casa da Ré para celebrar o testamento em 19/07/2016.
35 – No quarto da testadora, pediu a todas as pessoas que saíssem, ficando sozinho com aquela.
36 – Quando ficou sozinho com a testadora estabeleceu com ela um diálogo com vista a certificar-se de que a mesma se encontrava na posse das suas faculdades mentais, e não coagida para celebrar o seu testamento e se era, efectivamente, sua vontade instituir a sua filha C… herdeira da sua quota disponível.
37 – Neste diálogo, para além de ser abordado o conteúdo do testamento, foram referidas várias situações da vida pessoal da testadora, bem como da vida comum, do dia-a-dia.
38 – Finda esta conversa, o referido notário ficou absolutamente convencido de que E… estava na posse das suas faculdades mentais para outorgar o seu testamento e de que era sua vontade beneficiar a sua filha C… com a sua quota disponível,
39 – Não tendo tido qualquer dúvida sobre a sanidade mental da testadora, tendo, por isso elaborado o seu testamento.
40 – A testadora exprimiu de viva voz, claramente a sua vontade, tendo sido o notário que elaborou os termos constantes do ato notarial, por adaptação à linguagem jurídica da vontade real da testadora, expressa em linguagem comum.
41 – O testamento foi lido à testadora, na presença simultânea da testadora e das duas testemunhas, tendo antes das assinaturas, o notário procedido à explicação à testadora, em linguagem comum, do conteúdo, alcance e consequências legais daquele testamento, o que aquela entendeu bem.
42 – Só de seguida, foi o testamento assinado por todos os intervenientes.

IV. O mérito do recurso:
A] impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
O recorrente impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto. Fê-lo, no entanto, salvo melhor opinião, em termos algo imprecisos quanto aos pontos da matéria de facto cuja decisão deseja efectivamente que seja revista.
As alegações de recurso dividem-se em corpo das alegações, nas quais o recorrente expõe os fundamentos ou argumentos através dos quais procura convencer o tribunal de recurso da sua razão, e conclusões das alegações, nas quais o recorrente sintetiza as concretas questões que pretende que o tribunal de recurso aprecie e o sentido com que as deverá decidir (artigo 639.º do Código de Processo Civil).
Constitui entendimento pacífico que o thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não sendo permitido ao tribunal ad quem conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso, excepto se as mesmas forem de conhecimento oficioso (artigos 608.º, nº 2, 609.º, n.º 1, 635.º, nº 4, e 639.º, do Código de Processo Civil).
A delimitação do objecto do recurso pela formulação das conclusões das alegações conduz a que seja em função destas, e não propriamente do corpo das alegações (ainda que estas possam servir para interpretar aquelas) que se devam interpretar a balizar as questões que o tribunal de recurso pode e deve conhecer, as quais só podem exceder o mencionado nas referidas conclusões no caso de se tratar de questões de conhecimento oficioso e cujo conhecimento não esteja precludido ou prejudicado.
Servindo as conclusões de recurso para sintetizar as questões que se pretende que o tribunal aprecie e o sentido com que as deverá decidir, no caso em que uma dessas questões é a impugnação da decisão da matéria de facto, terão de fazer parte das conclusões itens especificando essa pretensão e cumprindo os requisitos da impugnação da decisão da matéria de facto.
Não obstante, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a entender que a impugnação deve ser conhecida pela Relação ainda que os requisitos da indicação dos concretos meios de prova e da indicação das passagens da gravação (quando esses meios de prova são depoimentos que se encontram gravados) estejam cumpridos somente no corpo das alegações. Indispensável é apenas, segundo essa jurisprudência que por ser do Supremo Tribunal de Justiça se acolhe, que das conclusões das alegações conste a indicação dos concretos pontos da matéria de facto cuja decisão se pretende impugnar e do sentido da decisão que deverá proferir sobre eles o tribunal de recurso.
Tendo isso presente vejamos o que consta das conclusões de recurso:
«[…] 18. Portanto, não se concebe os factos dados como provados nos n.º 8 e 19 a 22 da decisão recorrida, porque o Apelante sempre manifestou preocupação, interesse e zelo com a testadora, independentemente do período, ou seja, quando morava sozinha a testadora, com o Apelante e/ou com a Recorrida, sua irmã.
[…] 25. E, por essa razão, da decisão recorrida encontram-se provados e incorrectamente julgados os factos vertidos nos pontos 8, 9, 11, 19 a 22, 25, 31 e 38 e ainda os factos não provados dos pontos j), m), n) e q).
26. Devendo os factos 25), 31), 38) a 40), j), k), m) e n) ser eliminados daí e tidos como escritos, passando o facto provado a ter a seguinte redacção:
25) A testadora, nesta data, evidenciava desde há muito, uma desorientação espacial e temporal, indiferença em relação ao seu estado pessoal e ao de quaisquer outras pessoas.
25-A) Evidenciava fortes sinais de demência senil, e incapacidade de providenciar pela sua alimentação, muito embora tivesse momentos em que (mantém-se os factos provados 26 a 28)
31) Não se sabe se foi E… que teve a iniciativa de elaborar o testamento,
31-A) Foi a a Dra. K… que determinou os termos do testamento e que a E… acabou por o outorgar nesses exactos termos.
31-B) Quando outorgou o testamento a testadora estava totalmente dependente de terceiros para todos os actos da sua vida.
31-C) Não se encontrava com as capacidades mentais necessárias e suficientes para reger a sua vida, nem tão-pouco para celebrar a disposição de sua última.»
Como se vê, o elenco dos pontos de facto cuja decisão se pretende impugnar não é a mesma em cada uma das conclusões transcritas, havendo diferenças entre elas que dificultam a compreensão de quais são mesmos os factos cuja decisão devemos reapreciar. Num caso são os pontos 8 e 19 a 22 (dos factos provados), no outro os pontos 8, 9, 11, 19 a 22, 25, 31 e 38 (dos factos provados) e os pontos j), m), n) e q) (dos factos não provados) e no último os pontos 25), 31), 38) a 40) (dos factos provados), j), k), m) e n) (dos factos não provados).
Considerando que parte dos factos mencionados acabam por não ter relevância para o conhecimento do mérito (v.g. pontos 8, 9 e 19 a 22 por ser totalmente irrelevante para a economia da acção saber se e qual dos herdeiros seria mais merecedor da disposição testamentária), que a impugnação do facto do ponto 11 não parece ter sentido (trata-se da reprodução do texto de um documento junto pelo próprio recorrente que revela factos que ele mesmo alegou) e que apenas em relação aos factos mencionados especificamente na conclusão 26 o requisito da indicação do concreto sentido da decisão que deverá ser proferida pelo tribunal de recurso se mostra cumprido nas conclusões das alegações de recurso, iremos conhecer somente da impugnação da decisão proferida sobre estes factos: os dos pontos 25), 31), 38) a 40) dos factos provados e os dos pontos j), k), m) e n) dos factos julgados não provados.
Os factos provados estão reproduzidos acima. A redacção dos factos não provados na sentença recorrida é a seguinte: «j) Quando outorgou o testamento a testadora estava totalmente dependente de terceiros para todos os actos da sua vida»; «k) Não se encontrava com as capacidades mentais necessárias e suficientes para reger a sua vida, nem tão pouco para celebrar a disposição de sua última vontade.»; «m) A testadora, nesta data, evidenciava desde há muito, uma desorientação espacial e temporal, indiferença em relação ao seu estado pessoal e ao de quaisquer outras pessoas.»; «n) Evidenciava fortes sinais de demência senil, e incapacidade de providenciar pela sua alimentação.»
Refira-se que, conforme era obrigatório numa acção como a presente, esta Relação teve necessidade de proceder à audição da totalidade da audiência e de todos os depoimentos nela produzidos para assim se inteirar devidamente de todos os pormenores da vida da testadora descritos em tais depoimentos, do contexto da acção e da celebração do testamento e assim poder formar a sua convicção sobre a matéria de facto.
Do conjunto desses depoimentos extrai-se com segurança que a testadora não se encontrava numa situação em que fosse clara, manifesta ou inequívoca a sua incapacidade para avaliar convenientemente e tomar decisões sobre a sua pessoa ou os seus bens. Por conseguinte, a discussão necessitava de atingir um grau de pormenorização da situação da testadora que manifestamente não se obteve, pese embora, registe-se, a forma aplicada e conhecedora como os ilustres mandatários se empenharam na produção dos meios de prova.
Os depoimentos produzidos pelo autor, designadamente os dos seus filhos, são perfeitamente insuficientes para que um tribunal pudesse julgar provados os factos alegados pelo autor sobre a incapacidade da testadora. Se a prova produzida fosse somente a prova testemunhal indicada pelo autor a falência da acção em sede de matéria de facto era, a nosso ver, inevitável.
Os únicos meios de prova que o autor logrou produzir com algum valor probatório sobre tais factos são os documentos médicos juntos com a petição inicial e que se mostram reproduzidos nos factos dos pontos 11, 12, 13, 14 e 15, cujo relevo probatório analisaremos mais tarde.
Os factos dos pontos 31, 38, 39 e 40 encontram-se sem qualquer dúvida correctamente decididos. Esses factos reportam-se ao que foi praticado, presenciado ou ouvido pelas testemunhas K…, solicitadora que conhecia há muitos anos a testadora e a tinha ajudado a formalizar anteriores disposições de última vontade, e D…, notário que elaborou o testamento e que relatou os procedimentos que adoptou para determinar se o podia elaborar, isto é, se a testadora tinha capacidade para o celebrar.
Os seus depoimentos foram claros, firmes e coerentes, assentando em afirmações plausíveis feitas com espontaneidade e resistentes ao contraditório exercido, sendo particularmente relevante que ambos tenham afirmado que não conheciam sequer a filha da testadora ou razão para a estar a favorecer escondendo para o efeito o estado mental em que e encontrava a mãe e faltando aos respectivos deveres deontológicos e profissionais.
Acresce que o Sr. Notário esclareceu a sua prática nestas situações de ficar a sós com a pessoa que pretende celebrar a escritura e ter com ela uma conversa demorada sobre diversos assuntos de forma a determinar se ela tem conhecimento e consciência do acto que vai praticar e se ele corresponde mesmo à sua vontade, comportamento que, segundo afirmou, adoptou igualmente aqui.
O recorrente argumenta com o facto de estas testemunhas terem admitido que a preocupação que a testadora demonstrava era a de deixar à filha uma casa que suscitava algum conflito familiar e não obstante o que foi levado ao testamento foi a deixa da quota disponível. Este argumento, com todo o devido respeito, extrapola o que as testemunhas afirmaram.
O que resultou dos depoimentos produzidos foi que de facto a testadora manifestou a vontade de adoptar alguma disposição testamentária para assegurar que essa casa ficasse para a filha e as testemunhas em causa conversaram com a testadora sobre a melhor forma jurídica de alcançar esse resultado, tendo ela aceite a sugestão no sentido de o testamento ficar com a redacção que lhe foi dada, tendo o Sr. Notário esclarecido que o objectivo de deixar especificamente aquela casa não era fácil de concretizar porque a mesma já integrava a herança indivisa aberta por óbito do respectivo marido e daí a necessidade de encontrar outra formulação jurídica para se alcançar, na medida do possível, o objectivo da testadora de proporcionar uma vantagem à filha.
Não estamos pois perante um caso em que no testamento se declare uma vontade negocial diversa daquela que a testadora havia decidido levar ao testamento, mas sim perante o caso em que o testador tinha em mente um determinado resultado prático, foi elucidada por técnicos do direito sobre a forma juridicamente possível de obter ou se aproximar do resultado pretendido, tendo a testadora aceite essa sugestão que depois foi convertida em disposição testamentária.
O facto do ponto 25 e os factos das alíneas j), k), m) e n) são diferentes e respeitam directamente ao estado de saúde mental da testadora no momento da celebração do testamento, no tocante à capacidade da mesma para tomar decisões livres e conscientes sobre os seus bens.
O tribunal a quo julgou provado que quando já estava a viver em casa da filha a testadora se manteve ciente da sua identidade e do contexto espácio-temporal em que se encontrava. O recorrente pretende que seja julgado provado que a testadora evidenciava desde há muito desorientação espacial e temporal, indiferença em relação ao seu estado pessoal e ao de quaisquer outras pessoas, fortes sinais de demência senil e incapacidade de providenciar pela sua alimentação.
A testadora tinha nessa altura cerca de 87 anos, pelo que é perfeitamente natural que apresentasse já momentos de perda de memória, esquecimentos e/ou confusão. Raríssimas são as pessoas que nessa idade não apresentam esse quadro mental. Todavia, a prova produzida permite com segurança afirmar que pelo menos em regra, na maior parte do tempo ela tinha perfeita consciência de quem era e do lugar e do tempo em que se encontrava, reconhecia os seus familiares, tinha noção do valor do seu dinheiro e realizava mesmo as obrigações pecuniárias que considerava ter com a igreja a que pertencia (entregava á neta o dinheiro da dízima para ela levar para a igreja).
Nenhum dos depoimentos produzidos por iniciativa do autor revelou um conteúdo consistente para infirmar esta constatação que resulta à saciedade do conjunto da prova produzida, sendo certo que não foi aventada sequer a possibilidade de as pessoas com responsabilidade na elaboração do testamento (a solicitadora e o notário) terem qualquer razão ou benefício para participarem na farsa de levarem a senhora a celebrar um testamento sem ter condições para tomar tal decisão ou estar consciente da mesma (nas alegações o recorrente faz considerações sobre a coincidência de apelidos P… que porque por não terem sido aventadas ou exploradas no decurso da audiência têm aqui de ser consideradas totalmente gratuitas).
Não foi produzida qualquer prova de que por essa altura a testadora apresentasse fortes sinais de demência senil, pelo que tal facto nunca poderia ser julgado provado.
A incapacidade para providenciar por si mesma pela sua alimentação e higiene encontra-se provada nos pontos 16 e 17 mas daí não resulta um estado de demência senil, apenas a deterioração das condições físicas, motoras ou motivacionais para se ocupar dessas tarefas conforme é muito natural que aconteça em pessoas com a sua idade.
Demonstrou-se que a testadora mandou chamar a solicitadora com a qual desejava falar sobre o testamento que desejava fazer e que manifestou esse desejo à solicitadora, a qual acedeu à sua vontade e foi contactar um Cartório Notarial para formalizar o acto, pelo que não se pode julgar provado, como pretende o recorrente, que se desconheça se foi ela que teve a iniciativa de elaborar o testamento (sendo certo que é evidentemente impossível determinar se essa vontade lhe foi sugestionada ou incentivada por outrem).
Quando outorgou o testamento a testadora tinha 87 anos e estava dependente de terceiros para os actos da sua vida referidos nos pontos 16 e 17, bem como para se deslocar a médicos, hospitais, ou outros locais, mas não se provou que estivesse «totalmente dependente de terceiros para todos os actos da sua vida», pelo que isso não pode ser julgado provado.
No que respeita ao facto de a testador estar sem «as capacidades mentais necessárias e suficientes para reger a sua vida ou celebrar a disposição de última vontade» que o recorrente pretende que seja julgado provado, a prova testemunhal, como já referido por várias vezes, não consente de modo algum essa conclusão; aponta, aliás em sentido contrário.
O que cabe averiguar aqui é se os documentos médicos juntos permitem formar essa conclusão, sendo certo que, como é evidente, excepto em casos de incapacidade manifesta e/ou de demência notória, a aferição da existência ou não dessa capacidade é essencialmente um juízo médico, do domínio da neurologia e/ou da psicologia/psiquiatria, mas necessariamente alicerçado no exame clínico da pessoa.
O testamento foi celebrado em 19-07-2016 e a testadora faleceu em 08-01-2018, razão pela qual era impossível realizar no âmbito do presente processo uma prova pericial para apurar aqueles factos clinicamente e de forma retroactiva.
O primeiro documento médico junto tem data de 12-04-2016, cerca de três meses antes da celebração do testamento. Trata-se do registo clínico de uma consulta externa de Neurologia com o Dr. N… para a qual a testadora terá sido remetida pela Medicina Interna.
Nesse registo, no historial da paciente o médico regista que até há dois anos atrás a paciente era autónoma e assintomática do ponto de vista cognitivo, que desde então começou a apresentar «deterioração cognitiva de carácter lentamente progressivo» e no último ano ficou «cada vez pior, mais lentificada, sem iniciativa verbal, só falava se falarem com ela e o discurso é telegráfico, desinteressada de tudo, lenta nos movimentos; parada e vindo a tremer cada vez mais dos membros superiores, mais à direita». Resulta do documento que o médico que realizou esta consulta não sabia desses factos, os quais só podem ter-lhe sido transmitidos ou pelo médico que a remeteu para a consulta desta especialidade ou pela filha que a acompanhava, razão pela qual há que considerar que essa descrição tem essa proveniência não sendo do conhecimento pessoal do neurologista.
Do exame neurológico que o neurologista realizou na consulta apurou que «predomina um quadro de parkinsonismo de predomínio acinético-rígido de gravidade moderada associado a disfunção cognitiva e anedonia, desinteresse muito baixa iniciativa verbal, discurso telegráfico apenas em resposta directa, perseverante no discurso, bradipsiquismo, discalculia grave, desorientação temporo-espacial, acinésia».
Descoberto no dicionário o significado destas palavras alcança-se que o neurologista encontrou na paciente um quadro depressivo acentuado, próprio do parkinsonismo, com as consequência que isso acarreta ao nível cognitivo: desinteresse, imobilidade, incapacidade para sentir prazer, lentidão nas actividades mantais, designadamente ao nível do cálculo aritmético. Salvo melhor opinião, designadamente opinião de especialista médico, daqui não se retira a existência de um quadro mental de incapacidade para tomar decisões e compreender o sentido e alcance das mesmas (revela-nos a experiência do contacto, por exemplo, com a doença de Parkinson que há doentes que sofrem a evolução dessa doença durante muitos anos sem ficarem numa situação de incapacidade dessa natureza, a qual só surge numa fase muito adiantada da evolução da doença, apesar de a depressão logo se manifestar, ser acentuada e carecer de acompanhamento).
O segundo documento tem data de 23-08-2016, sendo portanto posterior à celebração do testamento cerca de um mês o mais próximo desse evento). Trata-se agora do registo clínico de uma consulta de medicina interna cujo médico havia remetido a paciente para a consulta de neurologia antes referida. Este registo apenas repete a observação do neurologista. No exame objectivo que realizou este médico anotou somente que a paciente se mostrou «consciente, pouco colaborante e lentificada».
Este registo clinico contém, no entanto, a informação, não vertida para a matéria de facto, de que «entretanto esteve internada em Julho/2016 por AIT em território VB, tendo recuperado para o estádio basal». Desconhece-se em que dia exacto do mês de Julho ocorreu esse internamento, se ocorreu antes ou depois do testamento, mas o que está escrito é que a testadora sofreu um acidente isquémico transitório (AIT) nas artérias que irrigam o cérebro e que permitiu a recuperação do estado anterior da paciente (estádio basal). Como o médico não deu relevo clínico a esta informação e manteve a realização dos exames propostos pelo neurologista, também não é possível deduzir desta informação que a mesma possa ter determinado uma situação de incapacidade da paciente (que normalmente sobrevém como resultado de sucessivos pequenos acidentes isquémicos que vão ocorrendo ao longo do tempo).
Depois temos um documento intitulado «Declarações/Atestados», subscrito pelo neurologista N…, autor do primeiro dos documentos referidos, e datado de 19-08-2018, ou seja, um documento elaborado mais de meio ano depois da morte da testadora. Conforme resulta do texto do documento, o que nele se afirma é apenas o resultado das observações do médico em duas consultas (que o médico diz terem tido lugar em 12/02/2016 - crê-se que será lapso porque o 1.º documento tem data 12-04-2016 -, e em 13/12/2016 - de cuja consulta não existe no processo o registo clínico -) na Unidade Local de Saúde de Matosinhos «por declínio cognitivo-comportamental, de carácter progressivo notado pelos familiares desde 2014». O médico acentua que não observou a testadora fora dessas duas consultas, donde resulta que o seu documento foi elaborado mais de ano e meio depois da última vez que a testadora foi à sua consulta.
No documento, o médico afirma que a testadora «apresentou, na avaliação nessas consultas, e pela mais recente definição do DSM-5 (Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, 5ª Edição), sinais clínicos compatíveis com o diagnóstico de Perturbação Neurocognitiva Major. Com base nesse diagnóstico clínico objectivado nesse período temporal, depreende-se que esta senhora esteve incapaz, do ponto de vista cognitivo, com perda de Autonomia, e a necessitar de apoio de terceira pessoa para as suas actividades básicas da vida diária. Mais informo que não se encontrava, portanto, em posse de capacidades cognitivas suficientes para zelar pelos seus melhores interesses, nem capaz de juízo crítica para a tomada de decisões importantes em total consciência».
O que ressalta deste documento é que o médico apresenta conclusões, as suas conclusões, mas não fornece os dados clínicos específicos da doente que permitam saber se as suas conclusões são as mais correctas ou merecem consenso. Afirma que a testadora apresentava «sinais clínicos compatíveis com o diagnóstico de Perturbação Neurocognitiva Major» mas não indica quais eram esses sinais clínicos, qual a sua dimensão ou expressão, nem que testes realizou (ou se realizou) para apurar e avaliar esses sinais clínicos de forma a poder concluir que a paciente não tinha «capacidades cognitivas suficientes para zelar pelos seus interesses, nem capaz de juízo crítico para a tomada de decisões importantes em total consciência».
Este documento foi seguramente elaborado a pedido do autor que todavia não arrolou o médico como testemunha a fim de ele esclarecer o conteúdo do documento que emitiu e fornecer as informações que manifestamente faltam nesse documento. Acresce que as conclusões do neurologista não constam do registo clínico da primeira consulta e não existe registo clínico da segunda consulta.
O último documento médico foi junto com a contestação da ré e foi seguramente elaborado a pedido desta, porquanto a testadora já tinha falecido. O seu autor é agora um especialista de medicina geral e saúde familiar que refere ter feito duas consultas domiciliárias à testadora por motivo de doença aguda em Junho e Novembro de 2017.
Neste «atestado médico» o médico declara que nessas ocasiões a doente estava «consciente, colaborante e orientada no espaço e no tempo, respondendo a todas as questões de índole médica, com total compreensão das respectivas perguntas colocadas». Como é fácil de verificar, também neste caso o médico apresenta a sua conclusão sem fornecer qualquer dado objectivo que permita aferir a correcção da mesma: que perguntas foram colocadas, que respostas foram dadas. O documento, por sua vez, tem data de 08/12/2018, ou seja, é posterior ao testamento cerca de dois anos e meio e posterior à última consulta mais de um ano, sendo certo que não existe nos autos qualquer registo clínico das consultas.
Este médico foi, no entanto, ouvido como testemunha, o que consentiu o exercício do contraditório em relação ao seu «atestado». Afirmou que é médico de família há muitos anos, que fez as consultas domiciliárias por a senhora apresentar febre, que sempre que está perante doentes idosos e acamados lhes faz testes para avaliar o seu estado mental através de perguntas ditadas pelo seu conhecimento e experiência profissional, que neste caso fez perguntas à senhora e ela respondeu-lhe com acerto, que repetiu as perguntas em momentos diferentes para verificar se as respostas eram coerentes e constatou que sim, que tem registos clínicos das consultas e foi em função deles que elaborou o atestado, que a senhora era obesa, diabética e hipertensa o que provoca uma progressiva deterioração das capacidades cognitivas que de caso para caso é mais ou menos lenta.
Na nossa leitura, estes documentos médicos são insuficientes para o tribunal poder julgar provado que no momento em que celebrou o testamento a testadora estava sem «as capacidades mentais necessárias e suficientes para reger a sua vida ou celebrar a disposição de última vontade». O único onde se encontra a afirmação desse juízo de valor é a mencionada declaração do neurologista Dr. N…, mas, como já se referiu, o seu conteúdo possui apenas a conclusão, não a descrição dos elementos de facto que a poderiam sustentar, sendo certo que não havendo possibilidade de submeter ao contraditório os dados em que ela se filia este tribunal não pode aceitar como bastante a afirmação dessa conclusão, ainda que provinda de pessoa com habilitações profissionais para a formular.
Isso é assim sobretudo quando estamos perante uma pessoa cuja idade avançada (87 anos) e problemas de saúde (obesidade, diabetes, hipertensão arterial) tornam absolutamente natural que a mesma apresentasse já redução das capacidades intelectuais e para expressar o seu pensamento e afectação da memória, o que é compatível com um quadro de incapacidade, mas também é compatível com a manutenção da capacidade de autodeterminação, de tomar decisões e ter consciência das suas consequências, tudo dependendo sempre das circunstâncias concretas reveladas pelos pormenores da vida.
Sublinhe-se que o registo clínico da consulta de 12-04-2016 menciona que «até há dois anos atrás a paciente era autónoma e assintomática do ponto de vista cognitivo» e que desde então começou a apresentar «deterioração cognitiva de carácter lentamente progressivo». A ser verdade que até dois anos antes a paciente não apresentava qualquer sintoma (assintomática) de deterioração cognitiva e que a deterioração foi progressiva mas lenta, parece, a nós que somos leigos, difícil sustentar que apenas dois anos depois a deterioração já tinha gerado um estado de incapacidade de autodeterminação pessoal (sendo certo que nem toda a situação de deterioração das faculdades intelectuais em processos como a memória, a iniciativa e a localização temporal, equivale a uma situação de incapacidade jurídica).
A conclusão sustentada neste documento é contrariada pelo último documento médico referido e cujo conteúdo foi defendido e explicado em audiência pelo seu autor. O que é normal que acontecesse é que a situação da testadora, qualquer que ela fosse, se agravasse com o tempo, não que melhorasse, pelo que a passagem de um estado de incapacidade, afirmado no primeiro documento, para um estado de capacidade, afirmado no último, não é provável nem compreensível (sendo certo, sublinha-se que se aquele estado tivesse sido determinado pelos medicamentos que a testadora tomava – Stugeron e Tercian – na segunda consulta realizada pelo neurologista este teria observado melhorias e não dá conta delas no terceiro documento mencionado).
Em princípio, qualquer dos médicos estaria habilitado para apreender os sinais do estado mental da testadora e para os interpretar convenientemente. Todavia, estiveram ambos com a testadora apenas duas vezes, sendo pouco provável que a intervenção clínica de qualquer deles nas duas consultas que cada um realizou tivesse tido por objectivo apurar e qualificar esse estado de saúde mental. A emissão de declarações/atestados em datas bem posteriores e a pedido de familiares interessados na informação obtida através dessas declarações também deixa dúvidas sobre o contexto e a razão de ser da emissão das declarações/atestados. Por isso a existência de conclusões contraditórias deixa ao tribunal dúvidas de tal monta que o impedem de julgar provado que a testadora estivesse num estado de incapacidade para se autodeterminar.
Não encontramos razões palpáveis para duvidar fundadamente da afirmação do Notário de que esteve a sós com a testadora e conversou com ela para verificar se ela compreendia mesmo o acto que ia ser praticado e este correspondia à sua vontade manifestada de modo livre. A avaliação que o Notário faz da existência de capacidade da testadora não produz evidentemente prova plena da existência dessa capacidade. Todavia, a sua experiência profissional seguramente já o colocou em situações similares e ter-lhe-á proporcionado assim habilidade bastante para perceber os contornos da situação e saber o que fazer e como fazer (no seu depoimento referiu que ainda há pouco tempo se recusou a celebrar um testamento por ter percebido pelo contacto com o testador que este não se encontrava já no uso das suas faculdade mentais). Acresce que não vislumbramos que este tivesse qualquer interesse pessoal em afirmar falsamente essa capacidade de entendimento e decisão.
Da mesma forma, não foi aventado qualquer interesse pessoal da Solicitadora que a testadora conhecia há muito, era da sua confiança e tratava de assuntos da família, e que chamou para lhe pedir para tratar da celebração do testamento, para mentir sobre as capacidades intelectuais que disse ter detectado na testadora quando lhe fez esse pedido e ela acedeu concretizá-lo ou para decidir fazer aquilo que sabia não corresponder a uma vontade livre e consciente da sua conhecida e cliente.
Por todas estas razões, em consciência mas também em resultado de uma avaliação rigorosa dos meios de prova, entendemos que não existe prova suficiente para se julgar provado, como pretende o recorrente por último, que quando outorgou o testamento a testadora não tinha já as capacidades mentais necessárias e suficientes para reger a sua vida ou celebrar a disposição de última vontade.
A decisão sobre a matéria de facto proferida na 1.ª instância deve pois ser mantida.

B] da matéria de direito:
O autor deduziu a título principal o pedido de declaração de nulidade do testamento com fundamento no disposto no artigo 2180.º do Código Civil.
Nos termos do artigo 2179.º, n.º 1, do Código Civil, «diz-se testamento o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles.». O nº 2 do preceito permite, no entanto, que o testamento possa, conjuntamente ou exclusivamente, conter disposições de carácter não patrimonial.
São exemplo de disposições de carácter não patrimonial que podem ser incluídas no testamento, a confissão, a perfilhação, a designação de tutor, a reabilitação de sucessor indigno, a publicação de cartas ou memórias do testador, a divulgação do seu retrato, tornar público factos sobre a sua vida privada e a sua identidade pessoal, a proibição da realização de homenagem pública, a divulgação da sua ideologia política, partidária ou filosófica, a autorização para a escrita e publicação da sua biografia (cf. artigos 2179.º, n.º 2, 358.º nº 4, 1853.º, alínea b), 1928.º, nº 3, 2038.º, n.º 1, todos do Código Civil; apud Capelo de Sousa, in Lições de Direito das Sucessões, vol. I, Coimbra Editora, 2000, pág. 203).
O testamento caracteriza-se por ser um negócio jurídico unilateral, mortis causa, não receptício, pessoal, individual, livremente revogável e formal.
O testamento é um acto pessoal porque não pode ser feito por meio de representante ou ficar dependente do arbítrio de outrem (artigo 2182.º do Código Civil). Por esse motivo deve ser o testador a expressar a sua vontade e «a expressão da vontade da pessoa tem de ser integral» sem prejuízo, naturalmente, das excepções expressamente consagradas nos artigos 2182º, n.º 2, e 2183º, do Código Civil (cf. Guilherme de Oliveira, in O testamento: apontamentos, Coimbra, pág. 10).
A exigência de forma para a celebração do testamento visa o reforço das condições para que a declaração corresponda à vontade real do testador, surgindo o formalismo «como garante de expressão livre e última do testador». (cf. Pamplona Corte Real, in Curso de Direito de Sucessões, Vol. I, pág. 150).
Por não garantirem o carácter pessoal do testamento, são nulos os testamentos quando o testador se tenha exprimido por meros sinais ou monossílabos em resposta a perguntas que lhe tenham sido feitas. Isso mesmo resulta do disposto no artigo 2180º do Código Civil, segundo o qual «é nulo o testamento em que o testador não tenha exprimido cumprida e claramente a sua vontade, mas apenas por sinais ou monossílabos, em resposta a perguntas que lhe fossem feitas».
Escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 289, o seguinte: «Para se compreender, no entanto, o verdadeiro sentido e o exacto alcance deste preceito, há que ler a disposição por inteiro, duma só vez, e não em dois lanços sucessivos. A disposição legal não pretende eliminar … as disposições testamentárias cujo texto não seja claro e inequívoco, como poderia depreender-se da leitura isolada da primeira parte do preceito, na qual se exige do testador uma expressão clara e cumprida da sua vontade, sob pena de nulidade. Essa bizarra exigência viria não só ao arrepio da doutrina tradicional da interpretação dos testamentos, que sempre reconheceu a primazia da vontade real do testador sobre as impressões desencontradas dos chamados à herança, mas colidiria ainda abertamente com a doutrina expressa no próprio Código sobre o tema (art. 2187.º), que manda em termos inequívocos recorrer à prova complementar (estranha às cláusulas do testamento) para, esclarecendo as cláusulas de sentido dúbio, ambíguo ou equívoco, as salvar das garras da nulidade jurídica, em homenagem à vontade real do testador. Mas a parte final do preceito, com a alusão expressa e directa aos casos em que a expressão da vontade do testador se tenha processado, não através de declarações verbais acabadas, mas de puros sinais ou acenos (de cabeça ou de mão) ou de simples monossílabos, em resposta a perguntas que lhe foram feitas, facilmente revela ao intérprete que a lei se quer, especificada, concreta e restritamente referir aos casos excepcionais, mas verificáveis na prática, em que as declarações imputadas ao disponente não oferecem já (pelo estado de inconsciência, semi-consciência ou de depressão psicológica, em que ele se encontra, possivelmente com o espectro da morte à sua frente ou com a presença inibitória de algumas pessoas à sua volta) as garantias mínimas de certeza e de autenticidade psicológica. […] A intenção fundamental da lei é a de garantir o carácter pessoal do testamento, não a de reforçar a exigência de clareza ou inequivocidade da declaração.»
Conforme resulta da epígrafe do preceito, o mesmo tem por referência o modo como o testador manifesta ou expressa a sua vontade. Refira-se que não obstante a sua redacção e conforme anotado no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30-06-1994, proc. n.º 9351009, in http://www.dgsi.pt, o artigo 2180.º do Código Civil tem que ser interpretado restritivamente de forma que o mesmo só seja aplicável aos testadores que, sabendo e podendo falar ou escrever, todavia manifestem a sua vontade através de sinais ou monossílabos, em resposta a perguntas que lhe foram feitas, não se aplicando aos surdos-mudos ou analfabetos.
A redacção do preceito exige portanto para a validade do testamento que o testador tenha expressado a sua vontade por palavras suas que não se confinem à mera resposta monossilábica a perguntas feitas por outrem. Exige ainda que a vontade seja claramente manifestada, ou seja, que não fiquem dúvidas sobre aquilo que o testador manifestou querer (o que não se confunde com dúvidas sobre o teor da vontade manifestada, as quais são resolvidas por via de interpretação do testamento mas, em regra, não afectam a sua validade). E exige, por fim, que essa expressão revele uma vontade consumada, esgotada, finalizada (nas palavras da lei, cumprida), algo que tenha ultrapassado a fase da ideia, projecto ou desígnio e traduza já uma resolução tomada (o que não se confunde com ser uma resolução irreversível porque o testamento pode sempre ser alterado ou revogado).
Lida a matéria de facto provada não se encontra nesta qualquer facto que evidencie que a testadora não exprimiu por palavras suas, de forma clara, uma vontade consumada de celebrar o testamento. Existe, ao invés, matéria de facto que revela que a testadora manifestou de viva voz e de forma clara a vontade de outorgar o testamento.
A circunstância de nessa tarefa ter sido assistida por solicitadora da sua confiança e de o testamento ter sido celebrado por notário, como não podia deixar de ser, que para o efeito entabulou uma conversa a sós com a testadora, permitem presumir (presunção natural baseada nas regras da experiência) que o testamento foi efectivamente celebrado naquelas condições. Por esse motivo o pedido formulado pelo autor a título principal não podia deixar de improceder.
A título subsidiário, o autor pede que o testamento seja anulado com fundamento no artigo 2199.º do Código Civil. Segundo este preceito, «é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória».
Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. VI, pág. 323, afirmam em comentário a este preceito o seguinte:
«A primeira destas regras específicas, constante do artigo 2199.º, refere-se à incapacidade (tomada a expressão no sentido rigoroso próprio da falta de aptidão natural para entender o sentido da declaração ou da falta do livre exercício do poder de dispor mortis causa dos próprios bens, por qualquer causa verificada no momento em que a disposição é lavrada.
A disposição legal refere-se expressamente ao carácter transitório que pode ter a falta de discernimento ou de livre exercício da vontade de dispor, por parte do testador, para significar que o vício contemplado nesta norma é a deficiências psicológica que comprovadamente se verifica no preciso momento em que a disposição é lavrada. E por conseguinte o mesmo tipo de deficiência psicológica que o artigo 257º considera em relação aos actos entre vivos em geral. Na área das disposições testamentárias, trata-se de uma situação de crise essencialmente distinta da abrangida na alínea b) do artigo 2189º (incapacidade de testar baseada na interdição por anomalia psíquica). A nulidade do testamento feito pelo interdito baseia-se na presunção do estado ou situação de incapacidade, juris et de jure, criada pela sentença, desde que é proferida até ao momento em que a interdição é levantada. A anulação decretada, a requerimento do interessado, com base no artigo 2199º, assenta pelo contrário na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam.»
Os mesmos autores, in Noções Fundamentais de Direito Civil, 5.ª edição, volume II, pág. 384, ensinavam que se «devem considerar como não estando em seu perfeito juízo aqueles que, em virtude de qualquer perturbação ou desarranjo mental, quer de natureza permanente, quer passageira, careçam de vontade própria ou da percepção necessária para compreenderem o alcance e o sentido do negocio da ultima vontade. […] «Não se exige, para se poder afirmar que o testador não está em seu perfeito juízo, que ele seja demente ou mentecapto; basta que ele tenha juízo não perfeito ou seja fraco de espírito».
O testamento é um acto jurídico e, como tal, a sua validade depende dos mesmos requisitos de validade de qualquer outro acto jurídico. A disposição de vontade deve ser querida e assumida, o que pressupõe que no momento em que faz a disposição o testador esteja munido de plena consciência desse acto e possua capacidade de perceber, entender e manifestar as consequências, efeitos e alcance do acto que vai realizar.
É indispensável que o testador tenha a «consciência do seu acto e dos efeitos deste; que tenha uma ideia justa da extensão do bem de que dispõe; que esteja em estado de compreender e de apreciar os direitos que vão nascer da sua disposição de ultima vontade, e, especialmente, com relação a este ultimo objecto, que nenhuma perturbação de espírito envenene as suas afeições, ou perverta o seu sentimento do justo, ou ponha obstáculo ao exercício das suas faculdades naturais; que nenhum delírio influencie a sua vontade, quando dispõe da sua fortuna, ou o arraste a fazer um uso dela que não faria, se estivesse em plena integridade do seu espírito» (apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2013, Gabriel Catarino, in www.dgsi.pt).
A incapacidade acidental, a que se refere o artigo 2199º do Código Civil, afectando ou obnubilando a vontade do testador, constitui vício volitivo que determina a anulabilidade do acto; o normativo quer proteger o testador, o seu acto de vontade unilateral, ao passo que o artigo 257º do Código Civil, que também versa sobre a incapacidade acidental, mas em actos contratuais e tem o seu campo de aplicação nos negócios jurídicos bilaterais visa proteger, sobretudo, o declaratário desde logo exigindo como requisito de anulabilidade da declaração que o facto determinante da incapacitação acidental de entender o sentido da declaração de vontade seja notório, ou conhecido do declaratário. No citado normativo prescinde-se dos requisitos notoriedade ou cognoscibilidade do vício que afecta a vontade do declarante, desde logo, por se tratar de um acto unilateral, um negócio jurídico não recipiendo, que não carece de aceitação para produzir os seus efeitos” (apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-01-2016, proc. nº 893/05.5TB PCV.C1.S1, Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt).
A questão de saber se o facto de o testamento ter sido outorgado perante notário constitui presunção legal e suficiente de como aquele acto é dotado de validade e eficácia, na medida em que […] “aquele garante em primeira linha a capacidade do testador aquando da outorga do testamento”, tem sido repetidamente apreciada na jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido que encontramos consignado, entre outros, no acórdão de 8 de Março de 2018 (proc. nº 2170/13.9TVLSB.L1.S1 […]: Relativamente à questão da alegada força probatória plena do testamento quanto à capacidade da testadora no momento da sua outorga por ter sido lavrado por notária, dispõe o nº 1 do art. 371º do CC: “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”. Interpretando esta regra, é entendimento pacífico que “Não é sempre a mesma a força material de um documento autêntico: depende da razão de ciência invocada. Assim, ficam plenamente provados os factos que nele se referem como tendo sido praticados pela entidade documentadora, autora do documento (que conferiu a identidade das partes, ou que lhes leu o documento…), ou que nele são atestados com base nas suas percepções (por ex., as declarações que ouviu ou os actos que viu serem praticados); mas os meros juízos pessoais do documentador (que a parte se encontrava no pleno uso das faculdades mentais ou semelhante) ficam sujeitos à regra da livre apreciação pelo julgador.” (Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, anotação ao artigo 371º, da autoria de Maria dos Prazeres Pizarro Beleza) [apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-09-2019, proc. n.º 1146/17.1T8BGC.G1.S2, Maria Graça Trigo, in www.dgsi.pt].
No entanto, no Acórdão da Relação de Lisboa de 16-06-09, Abrantes Geraldes, in www.dgsi.pt, sublinhou-se o seguinte a propósito da intervenção do notário: «Para além de a matéria de facto provada não sustentar a afirmação de uma situação de incapacidade para testar, uma tal conclusão debater-se-ia com a forte presunção em sentido inverso emergente do facto de o testamento ter sido exarado perante Notário. Tratou-se de testamento público, acto jurídico regulado pela lei substantiva de forma extremamente rigorosa, o que, por exemplo, se revela através da sua natureza pessoal, nos termos que constam do art. 2182º do CC, ou da previsão de um conjunto de indisponibilidades relativas decorrentes dos arts. 2192º e segs. Semelhante rigor foi espelhado na solenidade que rodeia a sua outorga. Sendo lavrado pelo próprio Notário, segundo as declarações do testador, o testamento fica exarado no respectivo Livro de Notas. Na ocasião em que recebe a declaração, cumpre ao Notário esclarecer o testador acerca dos seus efeitos, devendo estar atento ainda a qualquer aspecto que faça duvidar das suas faculdades mentais. Mais do que acontecerá com a generalidade das pessoas, os Notários são profissionais familiarizados tanto com as dificuldades e motivações das pessoas de idade que se apresentam a outorgar testamentos, como com as situações de aproveitamento por parte de terceiros das debilidades físicas ou mentais dos testadores ou dos efeitos que podem projectar-se a partir de situações de dependência em que se encontrem».
O ónus da prova dos factos reveladores de uma situação de incapacidade de facto do testador, no momento da feitura do testamento, para efeitos do artigo 2199.º, recai sobre o interessado na anulação do testamento em virtude do estatuído no artigo 342.º, n.º 1, ambos do Código Civil.
A capacidade testamentária activa não é afectada por qualquer deficiência cerebral ou mental do testador, ao tempo da feitura do testamento, mas tão-somente por anomalias daquela natureza que eliminem a vontade e o entendimento (apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-1971, in Boletim do Ministério da Justiça nº 212, Ano 1972, pág. 257).
Não é qualquer psicopatia que tira ao indivíduo a possibilidade de dispor dos seus bens: a doença mental há-de obnubilar-lhe a inteligência ou enfraquecer-lhe de tal jeito a vontade, que possa afirmar-se que não entendeu o que disse ou, em condições normais, não quereria o que declarou (apud Acórdão da Relação do Porto de 14-3-73, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 226, pág. 279).
O testamento só pode ser anulado quando o testador não estiver em condições de entender o sentido daquilo que declare no testamento ou não tenha o livre exercício da sua vontade. A existência de doenças, tais como a senilidade e a arteriosclerose não é, por si só, suficiente para afastar a capacidade testamentária activa, tornando-se necessário, para tal, que, ao tempo da feitura do testamento, o testador não tenha podido entender a sua declaração constante do mesmo testamento (apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-01-1991, in www.dgsi.pt).
Para efeitos do disposto no artigo 2199.º do Código Civil, o essencial é determinar se, no momento da feitura do testamento, o testador se encontrava ou não privado de uma vontade sã. Se, à data do testamento, o testador sofria de esquizofrenia paranóide, em contínua actividade e progressão, tendo entrado numa fase crónica e irreversível, encontrando-se num verdadeiro estado de demência paranóide, é de concluir que, no momento da feitura do testamento, aquele se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração testamentária. Naquela hipótese, incumbia à beneficiária do testamento fazer a prova de que, no momento da feitura do testamento, apesar da esquizofrenia paranóide de que sofria, o testador não foi influenciado pelo concreto estado demencial em que se encontrava (apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-05-2011, proc. n.º 4936/04.1TCLRS.L1.S1, Marques Pereira, in www.dgsi.pt).
O que importa para efeitos do artigo 2199.º do Código Civil é determinar se o processo de formação da vontade da testadora de outorgar o testamento foi perturbado, sofreu interferências anómalas em termos que permitam afirmar que a vontade não se formou de um modo normal e são. Tal ocorre, por exemplo, quando por razões de idade ou doença prolongada a pessoa atinge um estado de afectação da sua capacidade de compreensão e de avaliação das situações e das respectivas consequências, a um ponto em que se pode afirmar que a mesma já se encontra privada materialmente do seu poder jurisgénico de autodeterminação, isto é, da aptidão natural para entender o sentido da declaração e da liberdade para decidir sobre a disposição dos seus bens.
Porém, uma vez que a autodeterminação pressupõe e compreende o poder de fazer a sua avaliação e de se determinar em função dela, não releva para o efeito o modo como os outros avaliam as circunstâncias que determinam a decisão de outorgar o testamento, se perante as mesmas circunstâncias os outros tomariam a mesma decisão que o testador. O que releva é a presença de factores estranhos, anómalos, que interferem com o processo decisório e o condicionam em termos que escapam ao domínio do testador, seja porque este nem sequer tem consciência da presença desses factores, seja porque não se consegue libertar da influência dos mesmos e por isso a sua vontade acaba por não ser livre e resultar desvirtuada. Essencial, por isso, é estar-se perante uma situação de deficiência psicológica, psíquica ou mental que determine uma falta de discernimento ou de livre exercício da vontade de dispor.
Sublinham Pires de Lima e Antunes Varela, loc. cit., vol. VI, 1998, pág. 309, que «se deve ser particularmente exigente quanto a dois pontos fundamentais: primeiro, quanto à real incapacidade de captar o sentido e alcance da disposição e quanto ao domínio da vontade; depois, quanto ao momento da verificação da incapacidade de facto, não esquecendo a existência dos casos de perturbações psíquicas anómalas e passageiras, mas reais, como a embriaguez, o acesso febril, o sonambulismo
A permanência da situação de incapacidade não é incompatível com a existência de intervalos lúcidos por parte da pessoa demente, cabendo ao interessado na manutenção do acto jurídico em causa a prova dessa lucidez aquando da realização do acordo (apud Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-07-2001, in Colectânea de Jurisprudência, Ano IX, Tomo II, página 151).
Segundo Galvão Teles, in Revista dos Tribunais, ano 72, pág. 268, «provado o estado de demência em período que abrange o acto anulando, é de presumir, sem necessidade de mais, que na data do mesmo acto aquele estado se mantinha sem interrupção. Corresponde ao id quod plerum accidit; está em conformidade com as regras da experiência. À outra parte caberá ilidir a presunção demonstrando (se puder fazê-lo) que o acto recaiu num momento excepcional e intermitente de lucidez
Conforme se escreveu no Acórdão da Relação de Lisboa de 16-06-09, Abrantes Geraldes, in www.dgsi.pt, já antes citado: «O quadro clínico normalmente associado a vícios da vontade relacionados com testamentos pode envolver situações de delirium (perturbação da consciência e alteração da cognição que se desenvolve num curto período de tempo), de demência (doença caracterizada por múltiplos défices cognitivos que incluem diminuição da memória, podendo assumir diversas variantes, consoante a sua etiologia - tipo Alzeimer, Vascular ou Secundária a outros estados físicos gerais), de perturbação mnésica (caracterizada por uma diminuição da memória na ausência de outros défices cognitivos significativos) ou de perturbação cognitiva inespecífica (abarcando a disfunção cognitiva devida a um estado físico geral ou à utilização de determinadas substâncias. Em concreto, o estado de demência determinante de uma incapacidade acidental pode revelar-se através de uma diversidade de sintomas, de que constituem exemplos a alteração profunda da inteligência, com afectação da memória, do juízo e do raciocínio, a perda de capacidade de autocrítica ou a alteração da linguagem
Afirmou-se no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2013, Gabriel Catarino, in www.dgsi.pt, que «compete ao peticionante da anulabilidade do acto jurídico de disposição post mortem, a prova dos factos conducentes à verificação do estado de incapacidade que obnubilaria a sã capacidade de dispor dos seus bens e o discernimento quanto às consequências decorrentes do acto ditado. […] ao peticionante da anulabilidade do acto jurídico testamentário, por incapacidade acidental, compete provar que o testador sofria de doença, que no plano clínico, é comprovada e cientificamente susceptível de afectar a sua capacidade de percepção, compreensão, discernimento e entendimento, e passível de disturbar e comprometer qualquer acto de vontade que pretenda levar a cabo, na sua vivência quotidiana e corrente. Tratando-se de uma doença que no plano clínico e cientifico está comprovada a degenerescência evolutiva e paulatina das condições de percepção, compreensão, raciocínio, gestão dos actos quotidianos e da sua vivência existencial, aptidões de pensamento abstracto e concreto, discernimento das opções comportamentais básicas e factores de funcionamento das relações interpessoais e sociais, o peticionante da anulabilidade de um acto jurídico praticado por uma pessoa portador deste quadro patológico apenas estará compelido a provar o estado de morbidez de que o declarante é padecente, por ser previsível, à luz da ciência e da experiência comum, que este tipo de situações não se compatibilizam com períodos de lucidez ou compreensão (normal) das situações vivenciais
No caso, está provado que até 2014, ou seja, até à idade de 85 anos, a testadora teve uma vida autónoma, tendo a partir do final do ano seguinte apresentado deterioração física e motora. Em Julho de 2016, quando outorgou o testamento, estava totalmente dependente de terceiros para proceder à sua higiene pessoal, se calçar e confeccionar comida, e encontrava-se debilitada fisicamente, sobretudo a nível motor, tendo dificuldades de locomoção autónoma.
Segundo a matéria de facto provada, por essa altura a testadora guardava e manifestava, com clareza, memórias do passado, nas conversas com os familiares e com terceiros evocava e descrevia episódios com os seus antepassados e falecido marido, mantinha-se ciente da sua identidade e do contexto espácio-temporal em que se encontrava, assistia e comentava os programas de televisão da sua preferência, cujos horários de difusão sabia, conhecia o valor do dinheiro de mão que geria e que dava aos netos quanto entendia, incluindo a dizima que, todos os meses, entregava a uma neta para esta entregar na Igreja da religião que professava.
Neste quadro factual não existe absolutamente nada de anómalo ou estranho relativamente à situação normal numa pessoa desta idade mas que não é reveladora por si mesma de uma situação de incapacidade.
Existem no entanto dois dados médicos contraditórios entre si, um afirmando a incapacidade outro negando-o.
O primeiro é o atestado do neurologista N…, onde este afirma ter vista a testadora em duas consultas realizadas em 12/02/2016 e 13/12/2016, por declínio cognitivo-comportamental, de carácter progressivo notado pelos familiares desde 2014. Segundo este médico, na avaliação que fez nessas consultas[1] apurou que a testadora apresentava «sinais clínicos compatíveis com o diagnóstico de Perturbação Neurocognitiva Major». Conclui o médico que «com base nesse diagnóstico clínico objectivado nesse período temporal, depreende-se que esta senhora esteve incapaz, do ponto de vista cognitivo, com perda de autonomia, e a necessitar de apoio de terceira pessoa para as suas actividades básicas da vida diária. Mais informo que não se encontrava, portanto, em posse de capacidades cognitivas suficientes para zelar pelos seus melhores interesses, nem capaz de juízo crítico para a tomada de decisões importantes em total consciência».
O segundo é o «atestado médico» de um especialista de medicina geral e saúde familiar que refere ter feito duas consultas domiciliárias à testadora por motivo de doença aguda em Junho e Novembro de 2017. Neste «atestado médico» o médico declara que nessas ocasiões a doente estava «consciente, colaborante e orientada no espaço e no tempo, respondendo a todas as questões de índole médica, com total compreensão das respectivas perguntas colocadas».
Conforme já se anotou, ambos estes documentos foram elaborados em momento muito posterior à das consultas médicas que proporcionam as observações dos médicos, seguramente a pedido dos familiares interessados na causa e para as finalidades específicas desta acção, e nenhum deles indica que exames foram realizados e/ou métodos de análise foram seguidos para sustentar as conclusões opostas a que ambos chegaram, sendo certo que o diagnóstico de perturbação neurocognitiva é essencialmente um diagnóstico da psiquiatria ou da neuropsiquiatria, não sendo essa a especialidade de nenhum dos médicos que subscreve tais documentos.
Considera-se que a pessoa tem perturbação neurocognitiva major quando existem evidências de declínio cognitivo acentuado, relativamente a um nível prévio de desempenho, num ou mais domínios cognitivos, tendo por base a preocupação do sujeito, de um informador conhecedor ou do clínico. O défice acentuado no desempenho cognitivo deve ser, sobretudo, fundamentado no resultado de testes neuropsicológicos estandardizados ou, na sua ausência, por outra avaliação clínica quantitativa.
Ora o é objectivamente descrito no primeiro documento é que a senhora tinha 87 anos e apresentava um quadro de deterioração cognitiva desde há 2 anos a agravar de forma lentamente progressiva, associado a parkinsonismo acinético-rígido.
Esta patologia denominada por parkinsonismo ou síndrome Parkinson, distinta da doença de Alzheimer ou de uma situação de demência senil, não é suficiente para permitir concluir que a testadora se encontrava numa situação de incapacidade de entender e querer na medida em que a mesma tanto pode corresponder a estados de perturbações neurocognitivas ligeiras (minor) ou acentuadas (major), tudo dependendo de saber se a alteração cognitiva é própria da idade ou está associada e em que grau a perturbações depressivas, demenciais, mnésicas ou de múltiplos domínios.
Tanto quanto julgamos saber, em regra, os problemas de raciocínio e comportamentais e os sinais de demência apenas surgem em estádios avançados da doença de Parkinson (o que é pouco compatível com a descrição de um estado de deterioração que se iniciou apenas dois anos antes). Aliás, a forma acinético-rígida é o primeiro quadro de parkinsonismo, o qual depois evoluiu para quadros mais graves, para a forma mista e por fim para a forma tremórica. As alterações no domínio cognitivo cognitivas comuns em quados de parkinsonismo são a maior lentidão para achar palavras e a redução da fluência verbal por disfunção executiva e só com o passar dos anos podem surgir progressivamente manifestações de demência subcortical com dificuldade para executar tarefas do quotidiano, apesar de manter memória e funções de linguagem relativamente preservadas[2].
Acresce a isso a circunstância de ter ficado provado que foi a testadora que teve a iniciativa de elaborar o testamento e que tratou de o concretizar recorrendo aos serviços de uma solicitadora que lhe tratava de assuntos há muitos anos. E a circunstância de o notário que celebrou o testamento ter estado reunidos a sós com a testadora e travado com ela um diálogo para avaliar se a mesma tinha capacidade para celebrar esse acto por se encontrar na posse das suas faculdades mentais ser efectivamente sua vontade fazer o testamento, tendo ficado ficou absolutamente convencido de ambas as coisas.
Nesse contexto afigura-se-nos impossível concluir que a testadora se encontrava já num estado de saúde mental em que o mais provável fosse que a mesma estivesse impedida de compreender o sentido das suas declarações e de as querer efectivamente em resultado de uma vontade forma de modo livre e são. Por isso, seguindo o entendimento sufragado nos arestos a que se fez referência, entendemos que o autor não fez a prova de uma situação em que a incapacidade fosse de tal modo provável que coubesse à beneficiária do testamento o ónus de demonstrar que no momento da celebração do testamento a testadora encontrava-se, apesar disso, com aptidão natural para entender o sentido da declaração ou e exercer livremente o poder de dispor mortis causa dos próprios bens.
Concluímos assim que a acção foi correctamente julgada improcedente e que o recurso deve igualmente improceder.
Não terminaremos sem sublinhar que esta decisão tem por objecto e por limite a causa de pedir apresentada na petição inicial (a nulidade do testamento com fundamento no disposto no artigo 2180.º e a anulação do testamento com fundamento no artigo 2199.º do Código Civil), razão pela qual, não pode ser aqui decidida a questão da eventual diferença entre a vontade real da testadora e a vontade declarada no testamento (a deixa de uma casa ou a deixa da quota disponível) que o recorrente aflora nas suas conclusões das alegações de recurso a propósito do teor de dois depoimentos prestados na audiência (e que por isso mesmo só foi aflorada para efeitos de fixação da matéria de facto).

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação confirmam a sentença recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente, sendo certo que por beneficiar de apoio judiciário, tal como a recorrida, nenhum pagamento a esse título deverá ter lugar.
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Porto, 19 de Novembro de 2020.
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 582)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas certificadas]
______________
[1] Sublinhe-se que o médico não indica se e que exames realizou e que lhe permitiram concluir desse modo, sendo certo que de acordo com os registos clínicos juntos aos autos não foram realizados quaisquer exames complementares de diagnóstico.
[2] Acompanha-se, na medida, sublinhe-se, em que a nossa qualidade de leigos nos permite compreender e apreender, o que se escreve em “Proposta de qualificação dos quadros parkinsónicos” in http://rihuc.huc.min-saude.pt/bitstream; “Prognóstico do défice cognitivo ligeiro em medicina geral e familiar”, in http://www.scielo.mec.pt/scielo.php, “Caracterização dos distúrbios cognitivos na Doença de Parkinson”, in http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-18462009000600015, “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais DSM-5”, in http://dislex.co.pt/images/pdfs/DSM_V.pdf, todos consultados nesta data.