CASO JULGADO
DEVERES DE AUXÍLIO E ASSISTÊNCIA DOS FILHOS AOS PAIS
PRESTAÇÃO DE ALIMENTOS
OBRIGAÇÃO CONJUNTA
Sumário


1. Os recíprocos deveres de auxílio e assistência entre pais e filhos previstos no art. 1874º do Código Civil devem ser qualificados como verdadeiros deveres jurídicos e não como obrigações naturais (art. 402º do Cód. Civil). Os direitos pessoais familiares repousam em deveres de ordem moral e de solidariedade familiar, integrando «a variante moderna dos poderes-deveres, e, como tais, são irrenunciáveis, são intransmissíveis, mediante acto entre vivos ou por morte, e têm o respectivo exercício controlado pela lei» (cfr. Almeida Costa, obra citada, p. 63), todos eles de execução obrigatória (cfr. Antunes Varela, Direito da Família, 1982, pág. 53).

2. Os poderes poderes-deveres previstos no art. 1874º do Cód. Civil, reciprocamente atribuídos a pais e filhos, transcendem a mera obrigação de prestar alimentos. São relações eminentemente pessoais que geram “situações muito complexas que envolvem sentimentos, instintos, aptidões físicas, laços afectivos, atitudes de conteúdo moral, formas exteriores e interiores de comportamento, inibições, ligadas às camadas mais fundas da personalidade” (Antunes Varela, obra citada, p. 13).

3. Os filhos estão perpetuamente vinculados a cumprir conjuntamente um mesmo dever jurídico de acordo com as suas possibilidades e recursos, e as necessidades da vida dos pais (neste sentido, Moitinho de Almeida, Os alimentos no Código Civil de 1966, pá. 117, e Vaz Serra, A obrigação alimentar, BMJ 108º, p. 97/98).

4. Significa que essa obrigação não obedece ao regime das obrigações solidárias previsto no art. 512º e ss do Cód. Civil, em que o devedor que satisfaça o direito do credor fica em relação aos outros com o chamado direito de exigir de cada um dos seus condevedores a parte que lhes cabia na responsabilidade comum (art. 524º). Trata-se de uma obrigação conjunta, o regime-regra das obrigações plurais (art 513º), cujo traço característico se traduz na autonomia e independência de cada um dos vínculos: “os vínculos obrigacionais dos vários credores e dos vários devedores mostram-se em tudo distintos e independentes uns dos outros, estando cada um deles imune às consequências dos actos ou factos jurídicos praticados pelos restantes credores ou devedores” (Almeida Costa, Direito Das Obrigações, 4ª ed. pág. 448).

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. M. A. e marido A. B., pretendem obter nesta acção a condenação de A. C. no pagamento da quantia de 6.600,00 euros, e a condenação de cada um dos demais demandados no pagamento de €21.600,00 - M. G., M. S., A. G., M. L., e J. C. -, ou que, subsidiariamente, seja o tribunal a fixar a quantia por cada herdeiro (sem descurar o que já comparticipou o Réu A. C.), a título de compensação dos autores pelo tratamento e cuidado dado aos pais desde 1987 até à sua morte.

II. Contestaram os réus M. S., A. G. e M. G.. Todos eles invocam a excepção de caso julgado, impugnam a versão dos factos alegada na petição inicial e concluem pelo pedido de condenação dos autores como litigantes de má-fé.

III. O despacho saneador julgou improcedente a evocada excepção do caso julgado, e a sentença final julgou a acção parcialmente procedente, condenando cada um dos réus a pagar aos autores €5.000,00, sem prejuízo da quantia que voluntariamente foi pago pelo réu A. C., absolvendo os réus do restante peticionado.

IV. Interpôs recurso da sentença M. G., terminando com as seguintes conclusões:
1ª.- Por força do disposto no Art. 1357º do Código do Processo Civil, seria em sede de inventário, antes de se operar a partilha do acervo hereditário, que as dívidas da herança deveriam ser reclamadas e liquidadas.2ª.- Por do óbito dos pais dos litigantes - V. S. e marido J. C.-, foi instaurado inventário judicial para partilha do respetivo acervo hereditário, que correu termos no Tribunal de Instância Local de Montalegre, sob o Processo nº 16/13.7TBMTR, no qual foi proferida sentença homologatória da partilha, a qual transitou em julgado no dia 06.06.2016.
3ª.- no âmbito do referido inventário, foi alcançado um acordo, plasmado em ata, no qual foi consignado que «todos os interessados acordam excluir o passivo referido na relação de bens…», sendo que o referido acordo foi homologado por sentença já transitada em julgado.
4ª.- Do mesmo modo, na conferência de interessados, os autores M. A. e marido, por consenso com os demais interessados na partilha, declararam «Acordam que nada mais têm a reclamar.»
5ª.- A matéria relativa a eventuais dívidas (passivo) da herança dos inventariados, pais da autora recorrida e dos réus recorrentes, é questão definitivamente resolvida no inventário, por força do disposto nos artigos 1336º e 1327º, nº3, do C. P. Civil. Há duas decisões nesse inventário, que apreciaram essa matéria, já transitadas em julgado.
6ª.- O caso julgado constitui exceção dilatória, obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa, conduz à absolvição da instância e é de conhecimento oficioso.
O Tribunal recorrido, erradamente não absolveu os réus da instância, como se impunha por força do caso julgado, pelo que deverá este venerando Tribunal de recurso reparar o erro, declarando verificar-se a exceção do caso julgado e a absolvendo os réus da instância.
7ª -Se outro for o douto entendimento deste Tribunal, acresce também que, porque os depoimentos prestados em audiência final foram documentados, através de gravação no sistema integrado na aplicação informática, nos termos do disposto no Art. 662º do C. P. Civil, o presente recurso conhecerá de facto e de direito, visto que do processo constam todos os elementos que serviram de base á decisão recorrida.
8ª.- Os documentos juntos aos autos e a prova produzida em audiência de julgamento, analisados com lógica e à luz da experiência comum, impunham que o Tribunal a quo valorasse a matéria de facto de modo diferente, e aplicasse o direito corretamente, absolvendo os réus de todos os pedidos formulados pela autora.
9ª.- A decisão aqui impugnada afasta-se (não respeita) da verdade material e processual. Ignorou documentos e outros elementos de prova, que impõem decisão absolutamente contrária ao julgamento que fez.
A fundamentação de facto que o Tribunal a quo julgou provada, só por si, impunha que julgasse totalmente improcedente a ação e absolvesse os réus de todos os pedidos.
10ª.- O Tribunal a quo julgou de modo deficiente a matéria vertida nas alíneas s., u., e v. dos “Factos não provados” da sentença recorrida, que deveriam ter sido julgados provados, com fundamento nos documentos juntos aos autos, nos depoimentos de parte dos autores M. A. e A. B., nos depoimentos de parte dos réus A. C., M. S., e das testemunhas A. F., M. C., D. A., R. S. e M. M..
11ª.- Este Venerando Tribunal constatará, ao ouvir a prova gravada digitalmente, no Sistema Habilus Media Studio, os depoimentos de parte, declarações de parte e das testemunhas identificadas na antecedente conclusão 10ª, que resulta provado que a autora M. A. foi compensada pelos pais com legados e doação, que os réus, nas respetivas férias, em ..., auxiliavam os pais nos trabalhos agrícolas e que o réu J. C., porque residia em ..., auxiliava os pais durante todo o ano.
12ª.- Assim, ao abrigo do disposto no Art. 662º do C. P. Civil, o Tribunal de recurso deverá alterar a matéria de facto narrada nas alíneas s., u., e v. dos “Factos não provados” da sentença recorrida, julgando como provado:
.- «s.- Os progenitores da autora M. A., reconhecendo a assistência e afeto que esta lhes dedicou, compensaram-na, doando-lhe imóveis rústicos: a terra de ... e ½ do ....»
.- «u.- Todos os Réus, quando vinham de férias a ..., no período de maior atividade agrícola (Julho e Agosto) auxiliavam na recolha das produções (feno, centeio, batatas).»
.- «v.- O réu J. C., porque residia em ..., auxiliava os pais nos trabalhos agrícolas durante todo o ano.»
13ª.- O Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão, a nosso ver erradamente, no disposto no art. 1874º do Código Civil, considerando que o apoio que a autora deu a seus pais, era também obrigação dos demais filhos, os réus, e que estes devem compensar a autora, por esta ter assumido um encargo que era comum.
14ª.- Da prova produzida, resulta vivamente, que não se verificam os pressupostos éticos de que o Tribunal a quo se socorre para fundamentar a alegada compensação aos autores, porque ela não é devida.
15ª.- A matéria de facto apurada nos autos não consubstancia a previsão normativa do artigo 1874º do Código Civil.
A interpretação que o Tribunal recorrido faz desta norma legal desvirtua o sentido, a ratio da lei.
16ª.- Pais e filhos devem mutuamente respeito, auxílio e assistência.
O dever de assistência compreende o dever de prestar alimentos e de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar.
Ressaltam dois vetores fundamentais do prescrito nesta norma: a reciprocidade e a vida em comum, uma relação de convívio.
17ª.- No caso em análise, está abundantemente demonstrado que os pais de autora e réus deram àquela auxílio e assistência, desde que ela nasceu até que eles morreram. Ao invés, os irmãos da autora, aqui réus, desde a juventude que partiram da casa paterna, votados à sua sorte, para terras estranhas e longínquas, e nunca mais tiveram vida em comum com os pais. Desde que os réus ”partiram” da casa dos pais nunca mais foi estabelecida entre eles e os pais uma relação de convívio permanente, de vida em comum.
18ª.- A autora sempre viveu em comum com os pais, quer em solteira quer depois de casada, usando e fruindo de todos os bens que integravam o património dos progenitores, que geriu durante os últimos anos de vida deles.
19ª.- Evidencia-se, ao pensamento do homem médio, que impendia sobre a autora um elevado dever jurídico, social e moral de retribuir aos pais, na fase da vida em que precisaram (sobretudo a mãe), a assistência e auxílio que eles generosamente lhe tinham dedicado a ela.
20ª. Em face da realidade material concreta, ao condenar os réus a compensar a autora pela assistência que esta prestou aos pais, melhor dito, à mãe, quando a assistência e auxílio era um dever que sobre ela impendia, o tribunal adultera a ratio da referida norma legal e impõe aos réus um encargo moralmente injusto e sem fundamento legal.
21º.- Do acórdão do V Tribunal da Relação de Guimarães, proferido no Proc 5717/17.8T8VNF.G.1., e que a sentença recorrida cita, e supra referenciado, obrigatoriamente decorria outra decisão bem diferente da que foi proferida, ou seja, impunha-se a absolvição dos réus.
22ª.- No caso dos presentes autos e segundo o ensinamento resultante do acórdão, estamos perante uma obrigação natural. Dos factos considerados provada, resultou que os Autores, por sua livre e espontânea vontade decidiram conviver, em comunhão de vida, com os pais da apelada M. A. durante a fase ativa e saudável destes, e, no ocaso da sua existência, do mesmo modo livre e desejado quiseram assisti-los, auxilia-los.
23ª.- Como o supra referido acórdão refere, o cumprimento de uma obrigação natural, que é o que aqui está em causa, de forma espontânea, livre, assumindo o encargo de sozinhos se dedicarem a prestar-lhes a obrigação de auxílio de que sobretudo a mãe se encontrava necessitada, não lhes assiste, nos termos do disposto no art. 403º do CC., o direito de agora pretenderem receber uma indemnização dos restantes irmãos, pois, reafirma-se, os Autores cumpriram uma obrigação natural de forma espontânea, livre de qualquer coação.
24ª.- Não há fundamento de facto nem de direito para que o tribunal recorrido tenha proferido sentença a condenar cada um dos réus a pagar aos autores a quantia de cinco mil euros (5.000,00 €).
25ª.- A sentença recorrida viola o disposto nos artigos 576º nº2, 577º al. i), 578º, 1327º nº3, 1336º e 1357º do C. P. Civil, e 1874º do Código Civil.

IV. Factos considerados provados na 1ª instância:

1º- A A. mulher e os demais demandados são filhos de V. S., que também usava o nome de V. G., e de J. C., falecidos, respetivamente, em 27 de abril de 2006 e 17 de janeiro de 2008.
2º- A mãe da A. e dos demandados, em 29/06/1987, sofreu uma trombose, ficando paralisada em toda a extensão do corpo na parte esquerda, passando a carecer de auxilio para as rotinas diárias, para a medicarem, para ir ao médico, para se vestir e comer, bem como para realizar a sua higiene e ser vigiada por terceira pessoa.
3º- Os Autores comunicaram aos Réus, o estado da mãe.
4º A mãe auferia, em 1991, uma pensão de 122,08 euros (anual 1.465,47 euros) e o pai, nessa altura, uma pensão de 85,33 euros (anual 1.024,00 euros).
5º Os autores ficaram a cuidar dos pais desde junho de 1987 até à data do óbito destes, com exceção, neste hiato temporal, de 5 meses em que os pais foram para casa da Ré M. L. e de 3 meses que ficaram em casa da Ré M. S..
6º Os Autores, com esforço, dedicação e sacrifício (porque não podiam ir para lado nenhum, nem de férias, nem fins de semana e outras festividades fora da localidade de ...) tomaram conta dos pais, desde junho de 1987 até ao seu óbito.
7º Eram os Autores que os alimentavam, vestiam, levavam-nos ao médico ou chamavam o médico a casa.
8º Sobretudo, a mãe que estava paralisada totalmente do lado esquerdo, não andava, tendo de ser transportada ao colo, de casa para o carro para ir ao médico.
9º Era a Autora que dava banho à mãe, que a vestia, cuidava e vigiava, com muito esforço, porque era professora primária e tinha que dar escola em ..., ... e ... (locais por onde passou neste tempo como professora).
10º No horário em que lecionava, pedia a uma senhora amiga, A. M., para ir lá a casa e verificar se os pais dela estavam bem, fazer-lhes companhia e saber se necessitavam de alguma coisa.
11º A autora e marido abdicaram muito da sua vida pessoal e profissional nesses anos a cuidar dos pais da autora.
12º O Autor marido, A. B., agora reformado da GNR, mas à data ativo, nos dias de folga, cuidava também dos seus sogros, dos seus bens/terrenos, tendo inúmeras vezes pegado na sua sogra ao colo para a levar ao médico no seu carro, já que esta, paralisada do lado esquerdo, não subia nem descia as escadas da residência e não andava.
13º Deixaram, neste tempo todo, os Autores de ter vida própria, nunca podiam sair para fora, ou ir de férias, porque estavam sempre pendentes de cuidar dos pais da Autora.
14º O que piorou nos últimos anos, antes da mãe falecer, já que, acabou por acamar, usava fraldas, comia através de uma sonda e estava algaliada.
15º O herdeiro A. C. compensou a sua irmã com a quantia de 15.000,00 euros, por ter cuidado dos pais.
16º Os demais, em nada comparticiparam.
17º Os inventariados nunca necessitaram do dinheiro da filha.
18º Na sequência do óbito de V. S. e J. C., pais dos litigantes, foi instaurado inventário judicial para partilha do respetivo património hereditário, que correu termos no Tribunal da Instância Local de Montalegre sob o Processo nº16/13.7TBMTR, no qual foi proferida sentença homologatória da partilha, que transitou em julgado no dia 06.06.2016.
19º Nesse inventário intervieram todos os litigantes na presente ação, tendo a autora M. A. exercido a função de cabeça-de-casal.
20º A autora, na sua qualidade de cabeça-de-casal, apresentou a relação de bens, que foi várias vezes por si rectificada, e não relacionou no passivo da herança os valores que agora peticiona.
21º No âmbito do referido inventário, em audiência de produção de prova, foi alcançado acordo, plasmado em ata, no qual foi consignado que “todos os interessados acordam excluir o passivo referido na relação de bens…”.
22º Este acordo, outorgado em 28.01.2016, foi homologado por sentença já transitada em julgado.
23º Do mesmo modo, na conferência de interessados, realizada no dia 05.05.2016, os autores M. A. e marido, por consenso com os demais interessados na partilha, declararam “Acordam que nada mais têm a reclamar, …”.
24º Os pais da ré A. G. e da autora esposa foram donos de vasto património imobiliário, que integrava uma das maiores “casas agrícolas” de ....
25º Que produzia consideráveis rendimentos anuais, de natureza agropecuária, superiores ao montante da despesa anual do casal, gerando aforros.
26º Que lhes permitiram aumentar o património (fizeram muitas compras de imóveis rústicos a vizinhos).
27º E obter poupanças, que rentabilizaram em contas bancárias a prazo.
28º A autora tinha autorização para movimentar, pelo menos, uma conta do seu pai.
29º No momento da morte do último dos progenitores, em 17.01.2008, o saldo bancário ainda era superior a vinte mil euros.
30º Que a A. movimentou e de cujo valor se apropriou, em 27.06.2011, muito depois da morte do último dos seus progenitores.
31º Porque os aqui contestantes o reclamaram, os autores viram-se obrigados a pagar o montante de 3.000,000 € a cada irmão, correspondentes a 1/7 do saldo da referida conta bancária.
32º A autora, enquanto solteira, e ambos os demandantes depois do respetivo casamento, viveram na casa dos pais daquela (ali nasceram os seus filhos).
33º Beneficiando do lar e dos rendimentos que a casa agrícola da família gerava.
34º Até final de Fevereiro do ano 2000, data em que se mudaram para uma casa dos autores.
35º Participando nas sementeiras e plantações e aproveitando as colheitas que os imóveis do “casal agrícola” produziam, para consumo próprio.
36º Os autores nunca prestaram contas dos rendimentos do casal agrícola, aos demais co-herdeiros, nem estes as pediram.
37º O pai das litigantes (J. C.) esteve sempre ativo, com capacidade para cuidar de si próprio, com plena autonomia.
38º Auxiliando na assistência que a esposa careceu, dentro do que lhe era possível, atenta a sua idade.
39º Durante os anos de 1991 a 2006, a mãe da Autora e dos Réus recebeu a título de pensão a quantia de 42.233,72 € e o pai da A. e dos RR, entre 1991 e 2008 recebeu a título de pensão 32.997,13 €.
40º Valores que foram utilizados para suportar as despesas pessoais dos referidos mãe e pai da autora e dos réus.
41º O montante das duas pensões recebidas, dos subsídios agrícolas recebidos, dos saldos bancários, chegava para pagar as despesas dos pais da Autora.

IV. Cumpre decidir.

Questões suscitadas nas conclusões de recurso:
1. Excepção dilatória de caso julgado;
2. Incorrecto julgamento dos factos elencados na sentença sob as als s), u) e v).
3. Erro na aplicação ao caso do disposto no artigo 1874º do Código Civil.

Do caso julgado.
Concluem os recorrentes que o passivo da herança é uma questão que se deve considerar definitivamente resolvida no inventário nº16/13.7TBMTR instaurado por óbito de seus pais, por força do trânsito em julgado das decisões homologatórias dos acordos aí celebrados sobre essa matéria. Razão por que deve julgar-se procedente a excepção dilatória do caso julgado, com a consequente absolvição dos réus da instância.

A excepção do caso julgado foi invocada na contestação, sendo julgada improcedente no despacho saneador por entre as duas causas não existir uma tríplice identidade sujeitos pedido e causa de pedir (artigo 580º, nº1, do Código de Processo Civil) e que “os autores não estão a reclamar qualquer crédito sobre a herança, mas sobre cada um dos filhos dos falecidos pais”.

Essa decisão não era passível de apelação autónoma, contudo os réus podiam impugná-la no recurso interposto da sentença final (art. 644º, nºs 1, alínea b) e 4, do CPC), desde que manifestassem expressamente esse propósito no requerimento de interposição de recurso, coisa que os réus não fizeram.
É certo que nas conclusões é represtinada a questão do caso julgado, e o réu alude ainda ao erro em que incorreu a decisão ao julgar improcedente essa excepção, sucede que isso não substitui nem supre o requisito prévio de o recorrente ter de manifestar o interesse e a pretensão de impugnar também a decisão interlocutória.

Mesmo a entender-se que a decisão interlocutória está validamente impugnada, sempre se teria de considerar a sua manifesta improcedência.
Desde logo pela ineptidão recursiva, dado que nenhuma objecção de índole jurídica ou argumentativa é direccionada pelo recorrente aos fundamentos da decisão. E, ademais, o objecto desta acção não tem nenhuma conexão com as questões dirimidas no processo de inventário. Na verdade, como bem refere a decisão, os autores não estão a reclamar dos demandados o pagamento de uma dívida da herança, mas sim uma compensação por ter sido a A. que cumpriu uma obrigação que recaía sobre todos os filhos - a assistência e cuidados prestados aos pais.
Concluindo: nesse segmento, não se tomará conhecimento do objecto do recurso.

Da impugnação da decisão da matéria de facto:
O recorrente reclama a inclusão no acervo provado dos factos que a sentença recorrida elenca como factos não provados nas alíneas s/, u/ e v/ (1), matéria que alude a benefícios que os autores receberam de seus pais como reconhecimento dos cuidados prestados, e ainda à colaboração dos réus nos trabalhos agrícolas na casa onde residiam os pais.

Essa factualidade é irrelevante para a decisão da questão de direito suscitada no recurso, razão por que não se deve tomar conhecimento do objecto da impugnação.
O que nesta acção se discute respeita às relações entre obrigados ao mesmo dever de respeitar, cuidar e dar assistência aos pais conforme a previsão do nº1 do artigo 1874º do Código Civil, e não a uma dívida da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito dos pais de autor e réus.

Do mérito da questão de direito.
A sentença recorrida concluiu que no centro da discussão não está o dever de prestação de alimentos, até porque resulta dos factos provados que os pais da autora e dos RR deles não necessitavam, mas sim o dever de auxílio, “aquilo que vai para além da satisfação das necessidades de alimentação, vestuário e até assistência médica, é o carinho, o apoio, o satisfazer das necessidades básicas e pessoais que o progenitor devido à sua idade ou da doença, não pode satisfazer por si próprio”.

E mais refere que esse “encargo” foi assumido apenas pela autora quando se tratava de um dever que recaía sobre todos os filhos nos termos do artigo 1874º, nº1, do Cód. Civil, daí o direito em obter dos irmãos a correspondente compensação económica, achando como medida justa e equitativa a quantia de 5.000,00€ para cada um dos réus (artigo 566º, nº3).

Acompanhamos as considerações expendidas na sentença recorrida sobre a natureza e âmbito do recíproco dever de auxílio entre pais e filhos previsto no art. 1874º do Cód. Civil, contudo divergimos do entendimento de que assiste à autora o direito a obter dos réus uma compensação económica, apesar de os factos provados demonstrarem que foi ela a única filha a cuidar e auxiliar os pais durante o período de tempo em que integraram o mesmo agregado familiar, com os inerentes incómodos e sacrifícios de diversa ordem:
- A mãe da A. e dos demandados, em 29/06/1987, sofreu uma trombose, ficando paralisada em toda a extensão do corpo na parte esquerda, passando a carecer de auxilio para as rotinas diárias, para a medicarem, para ir ao médico, para se vestir e comer, bem como para realizar a sua higiene e ser vigiada por terceira pessoa; - Os autores ficaram a cuidar dos pais desde junho de 1987 até à data do óbito destes, com exceção, neste hiato temporal, de 5 meses em que os pais foram para casa da Ré M. L. e de 3 meses que ficaram em casa da Ré M. S.; - Os Autores, com esforço, dedicação e sacrifício (porque não podiam ir para lado nenhum, nem de férias, nem fins de semana e outras festividades fora da localidade de ...) tomaram conta dos pais, desde junho de 1987 até ao seu óbito; - Eram os Autores que os alimentavam, vestiam, levavam-nos ao médico ou chamavam o médico a casa; - Sobretudo, a mãe que estava paralisada totalmente do lado esquerdo, não andava, tendo de ser transportada ao colo, de casa para o carro para ir ao médico; - Era a Autora que dava banho à mãe, que a vestia, cuidava e vigiava, com muito esforço, porque era professora primária e tinha que dar escola em ..., ... e ...; - No horário em que lecionava, pedia a uma senhora amiga, A. M., para ir lá a casa e verificar se os pais dela estavam bem, fazer-lhes companhia e saber se necessitavam de alguma coisa; - A autora e marido abdicaram muito da sua vida pessoal e profissional nesses anos a cuidar dos pais da autora; - O Autor marido, A. B., agora reformado da GNR, mas à data ativo, nos dias de folga, cuidava também dos seus sogros, dos seus bens/terrenos, tendo inúmeras vezes pegado na sua sogra ao colo para a levar ao médico no seu carro, já que esta, paralisada do lado esquerdo, não subia nem descia as escadas da residência e não andava; - Deixaram, neste tempo todo, os Autores de ter vida própria, nunca podiam sair para fora, ou ir de férias, porque estavam sempre pendentes de cuidar dos pais da Autora; - O que piorou nos últimos anos, antes da mãe falecer, já que, acabou por acamar, usava fraldas, comia através de uma sonda e estava algaliada.

Divergimos do referido entendimento e da consequente condenação dos demandados, porquanto eles não são devedores solidários, antes sujeitos que estavam perpetuamente vinculados a cumprir conjuntamente um mesmo dever jurídico de acordo com as suas possibilidades e recursos, e as necessidades da vida dos beneficiários (neste sentido, Moitinho de Almeida, Os alimentos no Código Civil de 1966, pá. 117, e Vaz Serra, A obrigação alimentar, BMJ 108º, p. 97/98).

Ou seja, essa obrigação não obedece ao regime das obrigações solidárias previsto no art. 512º e ss do Código Civil, em que o devedor que satisfaça o direito do credor fica em relação aos outros com o chamado direito de exigir de cada um dos seus condevedores a parte que lhes cabia na responsabilidade comum (artigo 524º). Trata-se de uma obrigação conjunta, o regime-regra das obrigações plurais (artigo 513º), cujo traço característico se traduz na autonomia e independência de cada um dos vínculos: “os vínculos obrigacionais dos vários credores e dos vários devedores mostram-se em tudo distintos e independentes uns dos outros, estando cada um deles imune às consequências dos actos ou factos jurídicos praticados pelos restantes credores ou devedores” (Almeida Costa, Direito Das Obrigações, 4ª ed. pág. 448).

Pelo exposto, resulta que a apelação merece provimento, mas com fundamentos distintos dos invocados pelo recorrente, que qualificou a obrigação do autor como uma obrigação natural nos termos do artigo 402º do Código Civil, segundo o qual “a obrigação diz-se natural, quando se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça”.

Os direitos pessoais familiares repousam em deveres de ordem moral e de solidariedade familiar, contudo integram «a variante moderna dos poderes-deveres, e, como tais, são irrenunciáveis, são intransmissíveis, mediante acto entre vivos ou por morte, e têm o respectivo exercício controlado pela lei» (cfr. Almeida Costa, obra citada, p. 63), todos eles de execução obrigatória, e “alguns deles são direitos reciprocamente atribuídos aos dois titulares da relação familiar” como sucede com direitos-deveres estabelecidos no nº1 do artigo 1874º do Código Civil - Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência (cfr. Antunes Varela, Direito da Família, 1982, pág. 53).

Os poderes poderes-deveres previstos no artigo 1874º do Código Civil, reciprocamente atribuídos a pais e filhos, transcendem a mera obrigação de prestar alimentos. Tratam-se de relações eminentemente pessoais que geram situações muito complexas “que envolvem sentimentos, instintos, aptidões físicas, laços afectivos, atitudes de conteúdo moral, formas exteriores e interiores de comportamento, inibições, ligadas às camadas mais fundas da personalidade” (Antunes Varela, obra citada, p. 13).

Decisão.
Pelo exposto, na procedência da apelação, acordam os Juízes desta Relação em revogar a sentença recorrida no segmento em que condenou o réu M. G. no pagamento aos autores da quantia de 5.000,00€.
Custas pelos recorridos.

TRG, 3 de Dezembro de 2020

Heitor Gonçalves
Maria da Conceição Bucho
António Sobrinho


1- Alínea s/: Os progenitores da autora M. A., reconhecendo a assistência e afeto que esta lhes dedicou, compensaram-na, doando-lhe dois imóveis rústicos: a terra de … e ½ do …;
Alínea u/: “Todos os Réus, quando vinham de férias a ..., no período de maior atividade agrícola (julho e agosto), auxiliavam na recolha das produções (feno, centeio, batatas)”; Alínea v/: “O réu J. C., porque residia em ..., auxiliava os pais nos trabalhos agrícolas durante todo o ano”.