SEGURO DE VIDA
CONTRATO DE SEGURO
DECLARAÇÃO INEXATA
ERRO VICIO
ANULABILIDADE
QUESTIONÁRIO
BOA -FÉ
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
RECURSO DE REVISTA
Sumário

I. O Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer de questão sobre a matéria de facto e, não tendo a Relação usado de qualquer presunção judicial, não há sequer fundamento para a apreciação do seu uso.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – RELATÓRIO

AA instaurou, em 12 de novembro de 2018, no Juízo Central Cível de …, Comarca de …, contra Ageas Portugal – Companhia de Seguros de Vida, S.A., ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que fosse:

1) declarada a nulidade da declaração de anulação do contrato de seguro feito pela R.. em 20 de março de 2018;

2) reconhecida a validade do contrato de seguro celebrado entre as partes;

3) condenada a Ré a cumprir todas as condições do contrato, incluindo as respeitantes à sua obrigação de apresentação a pagamento dos recibos de prémios, quando devedor;

4) condenada a Ré a pagar-lhe a quantia de € 200,00 por cada dia, entre 4 de janeiro de 2018 e 14 de setembro de 2018, por incapacidade temporária para o trabalho, no montante de € 50 600,00, acrescida de juros vencidos sobre as importâncias devidas mensalmente, no valor de € 909,00, e juros vincendos sobre a quantia de € 50 600,00;

5) condenada a Ré a pagar-lhe a quantia eventualmente resultante do aumento do capital seguro, por força da cláusula de participação nos resultados, a liquidar em momento posterior;

6) condenada a Ré a pagar-lhe a quantia de € 25 000,00, acrescida de juros vincendos, por dano não patrimonial.

Subsidiariamente, pediu que fosse:

1) declarada a ilicitude da declaração de anulação do contrato de seguro, feito pela R., em 20 de março de 2018, sendo condenada a reconstituir a situação que para o A. e beneficiários no contrato existiria se não fosse o ato ilícito;

2) condenada a Ré a pagar-lhe a quantia de € 200,00 por cada dia, entre 4 de janeiro de 2018 e 14 de setembro de 2018, por incapacidade temporária para o trabalho, no montante de € 50 600,00, acrescida de juros vencidos sobre as importâncias devidas mensalmente, no valor de € 909,00, e juros vincendos sobre a quantia de € 50 600,00;

3) condenada a Ré a pagar-lhe a quantia eventualmente resultante do aumento do capital seguro, por força da cláusula de participação nos resultados, a liquidar em momento posterior;

4) condenada a Ré a pagar-lhe a quantia de € 25 000,00, acrescida de juros vincendos, por dano não patrimonial;

5) condenada a Ré a pagar-lhe, ou aos beneficiários das coberturas indicadas no contrato, todas as quantias a que o A., ou as pessoas por si indicadas, teria direito nos termos do contrato, a liquidar em momento posterior.  


Para tanto, alegou, em síntese, a celebração com a Ré, em 2017, de um contrato de seguro, do risco de incapacidade para o trabalho, de que é beneficiário/segurado, e depois de ter realizado exames médicos; verificado o risco segurado, acionou o seguro a 27 de dezembro de 2017, quando foi submetido a uma cirurgia, durante a qual lhe foi diagnosticada uma neoplasia da cabeça do pâncreas; a R. declinou o pagamento, invocando a nulidade do contrato, por declarações inexatas, o que é infundado.

Contestou a R., por impugnação, alegando que o contrato fora anulado, por declarações inexatas ou reticentes do A. quanto à sua situação clínica, e concluindo pela improcedência da ação.

Durante a audiência prévia, foi proferido o despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 20 de janeiro de 2020, a sentença, que, julgando a ação improcedente, absolveu a Ré do pedido.


Inconformado, o Autor apelou para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 9 de julho de 2020, julgando parcialmente procedente a apelação, revogou a sentença, tendo:

1) Declarado a nulidade da declaração de anulação do contrato de seguro feita pela Ré, em 20 de março de 2018;

2) Reconhecido a validade e vigência dos termos do contrato de seguro celebrado.

3) Condenado a Ré a cumprir todas as condições do contrato de seguro, incluindo as respeitantes à sua obrigação de apresentação a pagamento dos recibos de prémio, quando devedor;

4) Condenado a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 200,00, por cada dia, entre 4 de janeiro de 2018 e 14 de setembro de 2018, por incapacidade temporária para o trabalho, no montante de € 50 600,00, acrescida de juros vencidos sobre as importâncias devidas mensalmente, no montante líquido de € 909,00, e vincendos sobre a quantia de € 50 600,00;

5) Condenado a Ré a pagar ao Autor a quantia de 10 % de revalorização do capital seguro, por força da cláusula de participação nos resultados.


Inconformada, a Ré interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:

a) Nenhum sentido faz o raciocínio da Relação de que o A. desconhecia, em 19 de abril de 2017, qualquer situação clínica que fosse necessário reportar à Seguradora, com efeitos para o contrato de seguro que se encontrava a ser subscrito.

b) Ao invés, na referida data, o A. já era detentor de diversa informação verdadeiramente relevante e suscetível de fazer alterar a análise de risco pela Seguradora, optando por omiti-la.

c) A Relação não pode concluir que o A. desconhecia as queixas que tinha e os exames que se encontrava a realizar.

d) Nunca poderia a Relação alterar a matéria constante do ponto 3.1.24, por não ser objeto de recurso formulado pelo A.

e) A obrigação de agir de boa-fé respondendo com verdade na fase pré-contratual resulta da lei e é instintiva ao homem médio que celebra um qualquer contrato.

f) É difícil entender que um médico, com os sintomas que apresentava e com exames médicos e de diagnóstico que necessitava de realizar, ignore que o conhecimento desses factos pela Seguradora é determinante na decisão de contratar.

g) De qualquer modo, nos termos dos artigos 24.º e 25.º do DL n.º 72/2008, os contratos de seguro são anuláveis.

h) É sobre o segurado que recai o dever de declaração do risco.

i) A anulabilidade do contrato de seguro não pressupõe a existência de um nexo causal entre a patologia omitida pelo segurado e a celebração do contrato de seguro.

j) O Autor, ao omitir tais questões clínicas de que tinha conhecimento, proferiu uma declaração inexata, por contrária à verdade dos factos, sendo tal omissão essencial para que a Ré aceitasse subscrever o contrato de seguro, pelo menos, naquelas situações deu causa à anulabilidade do contrato.

k) O Autor estava obrigado a indicar, no questionário, o seu estado de saúde à data, ainda que não passassem de meras suspeitas, hipóteses de diagnóstico e pesquisas clínicas.

l) É forçoso concluir pela invalidade do contrato de seguro e pela improcedência dos pedidos.

m) O Segurado não adere ao questionário, responde-lhe para fornecer à Seguradora elementos em função dos quais esta estabelece as condições de aceitação do contrato.

n) À Seguradora não é exigido que solicite ou realize quaisquer exames médicos aquando da celebração dos contratos de seguro.


Com o provimento do recurso, a Ré pretende a repristinação da sentença, com a sua absolvição dos pedidos formulados.


Contra-alegou o Autor, pugnando pela confirmação da decisão recorrida, depois de ter aludido também a um erro material cometido na alegação da apelação, quando, na impugnação da decisão relativa à matéria de facto, identifica o “ponto 3.1.23” em vez do “ponto 3.1.24”.


Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Neste recurso, discute-se essencialmente a alteração da matéria de facto pela Relação e a invalidade do contrato de seguro de vida, por declarações inexatas do segurado.

II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:

1. A 10 de março de 2017, o A., na qualidade de representante da tomadora do seguro Jorge Marques Machado Correia e Filho, Lda., e na qualidade de pessoa segura, subscreveu o instrumento junto por cópia a fls. 128/130, denominado “Proposta” e “Temporário vida individual — Associações Profissionais”.

2. Na mesma data, o A. subscreveu o instrumento junto por cópia a fls. 133v/134, denominado “questionário médico”.

3. Nesse instrumento está impressa uma parte, com a designação “declarações”, onde consta: “(…) Declaro que tenho conhecimento que as garantias cobertas por esta Apólice/Adesão só terão efeito se a apólice — recibo/proposta de seguro/boletim de adesão for aceite pela Ageas Portugal, Companhia de Seguros de Vida SA. Declaro que tomei conhecimento que estou obrigado(a) a responder com exatidão e veracidade a todas as questões colocadas na apólice-recibo/proposta de seguro/boletim de adesão e no presente questionário médico e a declarar todas as circunstâncias ou factos que conheça e que sejam significativos para a avaliação do risco proposto, mesmo que não tenham sido solicitados expressamente no questionário médico, devendo-o fazer no campo assinalado para o efeito denominado “outros factos significativos para apreciação do risco”, sob pena de serem aplicáveis as consequências previstas nas Condições Gerais da Apólice”.

4. No final da referida consta a assinatura do A.

5. Foi solicitado à R. autorização para que as análises e exames fossem realizados em prestadores de serviços não convencionados com a mesma, autorização que foi dada.

6. O A. realizou exame médico a 20.03.2017 e análises a 21.03.2017.

7. A proposta referida em 1., o questionário referido em 2. e os exames referidos em 6. deram entrada nos serviços da R. a 04.04.2017.

8. Com a data de 05.04.2017., a R. enviou à Jorge Marques Machado Correia e Filho, Lda., mediante registo e AR, a carta junta por cópia a fls. 145, carta que foi recebida a 07.04.2017., com o seguinte teor: Na sequência do processo de análise da proposta/adesão acima referenciada, informamos a situação do candidato Jorge Marques Machado Correia. Em resultado da análise efectuada constatámos a existência de fatores agravantes de risco que nos é proposto. Desta forma, apenas nos será possível aceitá-lo em condições especiais. O prémio será agravado em 25% pelo que o valor anual inicial da apólice será de € 4.063,97. Solicitamos, portanto que, até 19-04-2017, nos seja dada uma resposta quanto á proposta apresentada, a fim de podermos, ou não, proceder à respetiva emissão. Findo este prazo, e se nada nos for devidamente comunicado, procederemos à aceitação do proponente nas condições propostas pela seguradora. (…)”.

9. A proposta feita pela seguradora na carta que antecede foi aceite a 19.04.2017.

10. Com a data de 20.04.2017, a R. enviou à Jorge Marques Machado Correia e Filho, Lda., a carta junta por cópia a fls. 32, que recebeu, e a apólice junta por cópia a fls. 33/36, com o n.º …, denominada “Seguro de Vida — Ordem dos Médicos”.

11. Quer nessa carta, quer nessa apólice consta como “data de efeito: 20.04.2017”.

12. Na mesma apólice consta ainda: Dados da apólice: (...) capital seguro:  € 200.000,00 (…) Pessoa segura: AA. Entidade referida no artigo 4.º das Condições Gerais: Ordem dos Médicos (…). Garantias. Garantia principal — Morte. Em caso de morte da pessoa segura, durante a vigência do contrato, seja qual for a causa e o local onde ocorrer, antes de 31 de dezembro do ano em que a pessoa segura atinja 70 anos de idade, o segurador garante o pagamento do capital seguro indicado nas condições particulares, em vigor na data em que ocorrer o evento. (…) Garantia complementar- exoneração de pagamento de prémios. Em caso de incapacidade total temporária para o trabalho ou invalidez profissional da pessoa segura, antes de 31 de dezembro do ano em que a pessoa segura atinja os 65 anos de idade, garante-se a exoneração do pagamento de prémios. (…) A incapacidade funcional para reconhecimento do estado de invalidez prevista no n.º 1 do art. 4.º é fixada em 60 %. (…) Garantia complementar — incapacidade total temporária para o trabalho. Em caso de incapacidade total temporária para o trabalho da pessoa segura, antes de 31 de dezembro do ano em que a pessoa segura atinja os 65 anos de idade, o segurador obriga-se a liquidar a indemnização diária correspondente a um por mil do capital seguro da garantia principal morte ( n.º 1 do art. 2.º). A indemnização será devida depois de decorrido o período da franquia absoluta de 30 dias e paga mensalmente, independentemente da duração do período de incapacidade ( n.º 2 do art. 2.º). (...) Participação nos resultados. O segurador concede aos tomadores do seguro uma participação nos resultados do contrato, que passará a reger-se pelas seguintes condições: - Anualmente, para cada exercício de 1 de janeiro a 31 de dezembro, será estabelecida pelo segurador a seguinte conta de resultados para o conjunto dos contratos da modalidade: (…) - Do saldo desta conta, se for positivo, 50 % (...) do seu montante será atribuído aos tomadores do seguro, para revalorização das garantias na anuidade seguinte à do ano a que se refere a conta de resultados. - O aumento do capital seguro resultante da revalorização vigorará até 31 de dezembro do ano a que respeita”.

13. As condições gerais do acordo de seguro são as que constam de fls. 37/61.

14. A 01.01.2018, Jorge Marques Machado Correia e Filho, Lda., e AA solicitaram à R. a alteração do tomador do seguro, passando a ser AA.

15. A 26.01.2018, foi alterado o tomador do seguro, nos termos solicitados.

16. O A. é médico oftalmologista no Hospital Particular d …..

17. A 11.04.2017, o A. foi internado na urgência geral do Hospital Particular d …., por dor abdominal tipo cólica, duas dejecções diarreicas, mal estar e mialgias, queixas com 4 dias de evolução, sensação de náuseas concomitantes.

18. A 11.04.2017, o A. realizou uma tomografia computorizada do abdómen e pelve, cujo relatório consta de fls. 152. e onde consta: Informação clinica: Dor abdominal intensa tipo cólica ( fossa ilíaca esquerda). Diarreia, perda de peso. Técnica: Foi efetuado estudo tomodensitométrico antes da administração de contraste ora positivo e endovenoso para estudo do abdómen e pelve, e após a ingestão de contraste ora positivo e após administração de contraste e.v., para o abdómen e pelve. Obtiveram-se reconstruções MPR. Relatório: No presente estudo nota-se aumento das dimensões e globosidade da cabeça e apófise uniforme do pâncreas. Pancreas restante com normalidade morfo dimensional. Observa-se marcado espessamento das 2.ª e 3.ª porções do duodeno, com cerca de 1,3 cm de maior espessura da parede. Não se verificou extravasamento do contraste oral positivo, excluindo a perfuração. Associa-se a densificação da gordura periduodenal e do pâncreas nesta topografia. Nota-se uma formação alongada, hipodensa e hipovascular localizada na vertente antero-lateral da apófise uniforme do pâncreas, que mede aproximadamente 2,4 cm de diâmetro transversal e 1,6 cm de diâmetro antero-posterior, em relação com peque coleção, sem sobre-quantidade de liquido infrajacente ao duodeno. Estas alterações podem estar em relação com pancreatite aguda com envolvimento do duodeno por processo inflamatório por contiguidade. A correlacionar com dados clínicos e laboratoriais. (…)”.

19. A 12.04.2017, o A. realizou RMN de que resultou: “Continuamos a observar um espessamento significativo da 2.ª e 3.ª porções duodenais que se associa a um edema peri-duodenal e que envolve a cabeça pancreática, existindo tb sinais de edema da porção cefálica pancreática adjacente. O canal Wirsung tem aumento de visibilidade, mas não demonstra dilatação significativa. Na porção cefálica pancreática observa-se uma imagem microquistica, com cerca de 8.8mm, que poderá ter ligação filifome ao canal Wirsung, embora divididos. Os achados descritos poderão estar relacionados com pancreatite duodenal ou pancreatite auto-imune, não se podendo excluir lesão neoplásica subjacente. As vias biliares intra-hepáticas tem um discreto aumento da visibilidade no lobo esquerdo, não se verificando dilatação valorizável da BP (5,5 cm). No interior da VBP não conseguimos visualizar a presença de litíase. (...)”.

20. A 15.04.2017, o A. realizou endoscopia digestiva alta, cujo relatório constitui fls. 151 v. tendo por objeto o esófago, o estômago e o duodeno, onde consta: “(...) Duodeno: Bulbo sem alterações. Segunda e terceira porção com ligeiro edema, mas com pregas e sem lesões ulcerativas ou neoformativas. Conclusão: Liegiro edema da 2.ª e 3.ª porção duodenais”.

21. A 16.04.2017, o A. realizou ecografia abdominal cujo relatório constitui fls. 153 e onde consta: Informação clinica: quadro sugestivo de pancreatite com TAC não revelando litáse vesicular. Ligeira dilatação das vias biliares e Wirsung. Estudo para esclarecer eventual microlitíase vesicular (lama biliar). Relatório: O estudo encontra-se prejudicado por interposição gasosa na região epigastro-pancreática, não permitindo adequada caracterização do pâncreas. (…) O pâncreas não se consegue definir de forma satisfatória devido á interposição gasosa já descrita. Visualiza-se em aparente relação com a cabeça do pâncreas ecogenicidade com cerca de 2 cm de diâmetro que é sugestiva de coleção liquida / pseudo-quisto? Outro ?). O corpo e a cauda pancreática não se conseguem definir por interposição gasosa (…)”.

22. A 16.04.2017, o médico BB, da especialidade de gastroenterologia, do Hospital Particular d …, subscreveu o relatório médico de fls. 151, onde consta: “Dados do utente: AA (…). Admissão: 15.04.2017. Paciente de 63 anos, médico desta instituição (...). Quadro de dor abdominal, com inicio há 10 dias, inicialmente difusa e posteriormente localizada ao epigastro e hipocôndrio direito, sem vómitos, com 2 dej diarreicas no 1.º dia ( actualmente com trânsito normal), sem febre. À 1a observação ( 3 dias depois do inicio do quadro, no SU, (...) o abdómen estava depressível, sem distensão e ligeiramente doloroso, em todos os quadrantes. Ontem observei plastrom no hipoc dto muito doloroso, mas, restante abdómen depressível e sem distensão e com RHA. Analiticamente (11-04) com elevação das transaminases (...) e colestase bioquímica ligeira agravada nas últimas análises. Amilase sempre normal - mas realizadas mais de 4 dias após o 1° episódio de dor ( pedi lípase). Fez TAC a 11-04: aumento da cabeça do pâncreas e edema das 2.ª e 3.ª posições do duodeno. Realizou RM há 2 dias — não tenho relatório. Hoje sofre agravamento clinico — dor mais intensa, sem vómitos, alteração do trânsito ou febre. Análises com hemograma normal, PCR baixou para 27 (a 11-04 era 98), agravamento as enzimas hepáticas ( nomeadamente colestase). Repetiu TAC ABD — aumento das dimensões da cabeça do pâncreas, evidenciando-se uma pequena área liquida no seu interior, com 20 mm. Leve densificação da gordura peripancreática, ligeira ectasia do Wirsung e das vias biliares, intra e extra hepáticas. Estes achados sugerem pancreatite, não se podendo excluir neoplasia dada a morfologia nodular da área afetada. Figado morfologicamente normal. Fica internado com o diagnóstico provável de pancreatite aguda de etiologia desconhecida ( microlitíase não detetada em TAC, impactada na VBP ? Neo pâncreas ? ) sem critérios de gravidade”.

23. O A. teve conhecimento dos factos referidos em 17. (alterado pela Relação, quando a sentença declarara que “o A. teve conhecimento dos factos referidos em 17. a 22., incluindo a suspeita de neoplasia do pâncreas, antes de 19.04.2017”).

24. (Eliminado pela Relação, por não estar provado (17.) e estar prejudicado (18. a 22.), quando a sentença declarara que “o A. não comunicou á Ré os factos referidos em 17. a 22.”).

25. Caso a R. tivesse tido conhecimento dos factos referidos em 17. a 22. teria adiado a celebração do contrato por um ano até á definição da situação clinica do A. e, no limite, não teria aceite a cobertura do risco.

26. A 22.04.2017, o A. realizou CPRE (Colangiopancreatografia Retrógada Endoscópica) tendo por indicação icterícia obstrutiva, daí tendo resultado: “Bulbo sem lesões: Mucosa de DII edemaciada. Papila sem lesões. Estenose cerrada no terço inferior da VBP [ Via Biliar Principal ] com dilatação a montante. ETE de 11 mm, com pequena hemorragia que cede á eletrocoagulação. Fez-se citologia. Vesícula biliar preenchida. Pancreático não contrastado”.

27. A 08.05.2017, o A. realizou ecoendoscopia na sequência do que foi elaborado o Relatório de fls. 193 com o seguinte teor: “Sem adenopatias mediastínicas com significado patológico nas estações 4 e 7. Sem adenopatias na área ciliaca. Adrenal esquerda sem alterações. Lobo hepático esq homogéneo identificando-se no segmento III a nível subapsular nódulo de 19,5mmm hiperecogenico com centro hipoecoide — angioma atípico?? Pâncreas avaliado do processo uncinado até a causa —homogéneo sem massa. Wirsung não dilatado embora não visível na região cefálica. A nível cefálico, justa VBP com stent de plástico in situ, lesão quistica de 15 mm sem componente sólido. Wirsung não visível a este nível pelo que não é possível comentar sobre eventual comunicação. (...) VBP dilatada (16 mmhilo) com stent de plástico insitu, espessamento difuso da parede biliar com sludge no interior. Cistico de inserção alta com aerobilia. VB distendida com sludge”.

28. A 18.05.2017, o A. realizou CPRE com remoção da prótese plástica.

29. A 30 de maio de 2017, realiza RMN, donde resulta: “VBP com diâmetro máximo de 9mm no seu 1/3 médio, observando-se segmento distai intra-pancreático, afilado, numa extensão de 20 mm de comprimento. Não há sinais de coledocolitiase. Ducto pancreático principal ligeiramente dilatado, com diâmetro máximo de 5mm, observando-se peque quisto de ducto secundário com 4 mm, com comunicação com ducto pancreático principal ( IPMN de ducto secundário ?). Distalmente observa-se estenose regular da porção terminal da VBP e Wirsung, sem [que] se observe qualquer massa definida na cabeça do pâncreas. Não se observam formações nodulares sólidas pancreáticas, nomeadamente na porção cefálica, nas diferentes sequências, incluindo após administração e contraste na difusão. Vesícula biliar normalmente distendida, de paredes finas, sem sinais de litíase. A parede duodenal adjacente à cabeça do pâncreas tem uma espessura de 6 mm, sendo que o duodeno não está suficientemente distendido para poder concluir a esse respeito. Observa-se área quistica junto à cabeça do pâncreas, com cerca de 20 mm de diâmetro, que se admite em relação com divertículo duodenal de D1".

30. A 19.09.2017, realiza Colangio — RM, de que resulta: “Observam-se algumas formações nodulares hepáticas: uma no segmento IV, com 17 mm compatível com hemangioma, inferiormente ao qual se observa quito biliar com 10 mm; uma no segmento VIII com 10 mm compatível com quisto biliar ; uma no segmento V/VI, com 14 mm, compatível com hemangioma. Outras descritas no exame anterior não são facilmente observáveis por questões técnicas. VBP menos proeminente que no exame anterior ( 30/05/2017), medindo agora 7 mm de diâmetro ( antes 9 mm), mantendo ligeiro afilamento na porção pancreática, sem coledocolitiase. Ducto pancreático principal não dilatado, com diâmetro máximo de 3 mm, continuando a observar-se formação quistica na sua dependência, ao nível da cauda pancreática, medindo 4 mm de diâmetro , podendo traduzir IPMN de ducto secundário. Não há formações nodulares na cabeça do pâncreas, nem se observa espessamento duodenal. Vesicula biliar normalmente distendida, de paredes finas, sem sinais de litíase. (…) Conclusão - VBP Wirsung não dilatados. - 1PNM Intraductal papillary mucinous neoplasm (IPMN) // Neoplasia mucinosa papilar intraductal (NMPI) de ducto secundário, com 4 mm; Múltiplos quistos biliares e hemangiomas hepáticos”.

31. A 07.12.2017, repetiu CPRE, de que resulta: " Duodenoscopia: D2, sem lesões. Status pós ETE. Colagiografia: ETE patente. Estenosoe dos 3 cm distais da VBP, regular, com dilatação a montante. Colocação da prótese metálica autoexpansiva, totalmente coberta (...). Pancreatografia: Não efectuada.. Conclusões. Status pós-ETE. Estenose da porção distai da VBP. Colocação da prótese metálica autoexpansiva totalmente coberta”.

32. A 13.12.2017, foi decidido que o A. deveria ser sujeito a duodeno pancreatectomia cefálica.

33. A 26.12.2017, o A. foi internado no Hospital … para realização de duodeno pancreatectomia cefálica por estenose da porção distal da VBP com suspeita de tumor periampolar vs colangiocarcinoma, que se vem a realizar a 27.12.2017, em que ocorre: “Laparatomia mediana com prolongamento subcostal dto. Volumoso tumor cabeça do pâncreas, com limites muito infiltrativos, em particular no retroperitoneu. (…) Após libertação do tumor da veia cava envia-se tecido aderencial perivascular para exame extemporâneo: Infiltração por adenocarcinoma. (...)”.

34. O resultado do exame anatomo-patológico da peça operatória foi compatível com “adenocarcinoma moderadamente diferenciado, de tipo ductal, da cabeça do pâncreas (...)”.

35. A 12.01.2018, o A. participou á R. a incapacidade temporária para o trabalho.

36. A R. enviou ao A. a carta de fls. 69, com a data de 31 de janeiro de 2018, em que consta: Na sequência da conclusão da análise do processo de indemnização relativa à Apólice de Seguro de Vida em epigrafe, somos a informar que foram acionadas as garantias de Incapacidade Total Temporária, pelo que procederemos ao pagamento referente ao período de 06-12-2017 a 31-01-2018. pelo valor de [ ilegível], mediante a apresentação da minuta de quitação em anexo (...).”

37. Com a data de 20 de março de 2018, a R. enviou ao A., que a recebeu, a carta de fls. 71, com o seguinte teor: Acusamos a receção da documentação enviada aos nossos Serviços, relativa à situação de invalidez que lamentavelmente afeta V.Exa, a qual mereceu a nossa melhor atenção. Da apreciação efetuada pelo nosso Departamento Clinico á informação médica disponibilizada, concluímos que V.exa., aquando do preenchimento da referida Proposta de Adesão e respetivo Questionário Médico, em 10 de março de 2017, não mencionou todas as patologias pré-existentes, conforme documentação em nossa posse. Nestas condições verificámos que existia uma quadro clínico pré-existente que se tivesse sido declarado teria condicionado a aceitação do risco. Esclarecemos ainda que é através da Proposta de Seguro e respetivo Questionário Médico que este segurador pode avaliar e aceitar os riscos garantidos ao abrigo do referido Contrato de Seguro. As declarações inexatas, reticentes ou que omitam qualquer facto, designadamente, relativas a alguma doença pré-existente, isto é, que tenha ocorrido antes da entrada em vigor do Contrato de Seguro, e que por isso se encontram excluídas do âmbito da cobertura de riscos, tomam nulo o pedido de adesão ao Contrato de Seguro de Vida em causa. Nestas circunstâncias lamentamos informar V.exa. que , nos termos do estabelecido nas Condições Gerais e Especiais da Apólice, declinamos qualquer responsabilidade pelo pagamento do Capital Seguro na Apólice, procedendo, nesta data, á anulação do Contrato de Seguro (…)”.

38. A Ré deixou de enviar ao A. recibos/avisos para pagamento do prémio.

39. A 26.10.2018, a R. pagou ao A. o estorno correspondente ao período de tempo não decorrido de 20.03.2018 a 19.04.2018.

40. O A. esteve incapaz para o trabalho, por doença, nos seguintes períodos: - 06.12.2017 e 17.12.2017; - 18.12.2017 a 16.01.2018; - 17.01.2018 a 15.02.2018; - 16.02.2018 a 17.03.2018; - 18.03.2018 a 16.04.2018; - 18.04.2018 a 17.05.2018; - 18.05.2018 a 16.06.2018; - 17.06.2018 a 16.07.2018; - 17.07.2018 a 15.08.2018; - 16.08.2018. a 14.09.2018.

41. A recusa da R. em assumir a responsabilidade pelo sinistro e, em consequência, proceder ao pagamento do capital contratado causou no A. revolta.

42. A R. estabeleceu a conta de resultados referida em 8., para o período de 1 de janeiro a 31 de dezembro de 2017, da qual resulta uma revalorização do capital seguro em            10 %.


***


2.2. Delimitada a matéria de facto, com a modificação decidida pela Relação, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas respetivas conclusões, nomeadamente da alteração da matéria de facto pela Relação e da invalidade do contrato de seguro de vida, por declarações inexatas do segurado.

O acórdão recorrido, dissentindo da sentença, que julgara a ação improcedente, pronunciou-se pela procedência da ação, exceto quanto à atribuição de indemnização, por dano não patrimonial.

A Recorrente, porém, insurge-se contra a alteração da matéria de facto, decidida pela Relação, e pela invalidade do contrato de seguro de vida, resultante de declarações inexatas por parte do segurado, pondo em causa a sua boa-fé.

Por sua vez, o Recorrido revê-se na decisão recorrida.

Assim, sumariados os termos da controvérsia jurídica emergente dos autos, importa então proceder à sua análise e decisão, nomeadamente à luz do direito aplicável.


Como se assinalou, a Relação, conhecendo da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, alterou-a, nomeadamente quanto aos factos identificados na sentença por 3.1.23. e 3.1.24. (agora 23. e 24.).

Essa modificação decorre dos poderes atribuídos à Relação pelo disposto no art. 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC).

Essa decisão, porém, é definitiva.

Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, apenas conhece de direito, esgotando-se, por regra, o conhecimento da matéria de facto na Relação.

Como decorre do disposto no art. 674.º, n.º 3, do CPC, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista.

Por outro lado, não vindo alegada qualquer violação do direito probatório material, não sobra qualquer espaço para a aplicação da exceção prevista na segunda parte do n.º 3 do art. 674.º do CPC.

Por isso, não pode o Supremo Tribunal de Justiça conhecer da questão sobre a matéria de facto, sendo certo ainda que, não tendo a Relação usado de qualquer presunção judicial, não há sequer fundamento para a apreciação do seu uso, como matéria de direito.

Acresce que a Relação limitou-se a apreciar a matéria de facto impugnada, sem qualquer excesso de pronúncia, sendo irrelevante o lapso material cometido quanto à especificação do facto 3.1.24, face ao contexto da alegação da apelação (fls. 371 e 372).

Nesta conformidade, a matéria de facto da ação corresponde àquela que a Relação declarou como provada e, antes, descrita.


2.3. Passando à questão substantiva, interessa então saber se o contrato de seguro de vida formalizado padece de invalidade, resultante de declarações inexatas prestadas pelo segurado.

A causa da invalidade do contrato reporta-se à sua fase pré-contratual, por poder ter influído na sua celebração, mediante a emissão da correspondente apólice.

Na verdade, de harmonia com o disposto no art. 24.º, n.º 1, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16 de abril, o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.

Essa obrigação estende-se também a circunstância cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito (art. 24.º, n.º 2, do RJCS).

Com semelhantes normas consagra-se um dever específico de boa-fé, que recai sobre o tomador do seguro ou o segurado, nomeadamente sobre as circunstâncias que conheça e possam influir na determinação do risco pelo segurador, ainda que não estejam incluídas em questionário fornecido pelo segurador.

Por isso, as declarações do tomador do seguro ou do segurado devem ser verdadeiras e completas, de modo a disponibilizar ao segurador os elementos reais e atuais para a determinação do risco a cobrir pelo contrato, sendo certo que tal é essencial tanto para a vontade de contratar, como para especificar os termos do contrato.

O incumprimento do dever de prestar declarações exatas e completas por parte do tomador do seguro ou do segurado pode gerar a anulabilidade do contrato, quando aquelas sejam dolosas, ou a alteração ou cessação do contrato, no caso das declarações serem negligentes (arts. 25.º, n.º 1, e 26.º, n.º 1, do RJCS).  

 

Ponderando a situação fáctica apurada nos autos, verifica-se, desde logo, que não foram feitas declarações falsas pelo tomador do seguro ou do segurado. Na verdade, nada se alegou que as respostas ao “questionário médico” contivessem declarações 

2.4. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante: 

I. O Supremo Tribunal de Justiça não pode conhecer de questão sobre a matéria de facto e, não tendo a Relação usado de qualquer presunção judicial, não há sequer fundamento para a apreciação do seu uso.

II.


2.5. O Recorrente e a Recorrida, ao ficarem vencidos por decaimento, são responsáveis pelo pagamento proporcional das custas, em todas as instâncias, por efeito da regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do Código de Processo Civil.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Conceder a revista parcial e, em consequência, condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 9 000,00 (nove mil euros), acrescida dos juros de mora legais, a partir da data deste acórdão.

2) Condenar o Recorrente (Autor) e a Recorrida (Ré) no pagamento proporcional das custas, em todas as instâncias, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao Recorrente.

Lisboa, 26 de novembro de 2020


Olindo dos Santos Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

Oliveira Abreu

O Relator atesta que os Juízes Adjuntos votaram favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.