Um contrato de comodato como o dos autos em que o tipo de uso da coisa não está temporalmente definido nem limitado, é de considerar como sendo um contrato de duração indeterminada, sujeito à regra da cessação ad nutum prevista n.º 2 do art. 1137.º do CC
1. AA veio intentar a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC, pedindo que estas sejam condenadas a reconhecê-la como única e legítima proprietária da fracção autónoma designada pela letra “A” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, da freguesia de …, concelho de … e inscrito na respectiva matriz sob o artigo n.º … e a restituir-lhe a mesma no estado em que lhes foi entregue, livre e devoluta de pessoas e bens, a pagarem-lhe o montante de € 1.000,00 (mil euros) por cada mês de atraso na entrega do imóvel à A., desde o dia 13.07.2018 até efectiva entrega, acrescido dos juros de mora que se vencerem relativamente a cada mês em dívida e ainda, solidariamente, ao abrigo do disposto no artigo 829.º-A do Código Civil, a pagarem-lhe o montante de € 100,00 (cem euros) por cada dia de atraso na entrega do imóvel.
As RR. contestaram centrando a sua defesa na falta de poderes da Autora/sociedade para exigir a restituição do imóvel; e alegando também não estarem obrigadas a proceder à restituição, uma vez que o mesmo lhe foi entregue para sua“habitação permanente”.
Foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, tendo sido decidido o seguinte:
«A. Declaro que a sociedade/autora “AA” é a proprietária da fração autónoma designada pela letra “A” do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito no Sítio ...., Lote ..., em ...., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...º, da freguesia de ...., concelho de ...., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..., da mesma freguesia e concelho;
B. Declaro que as rés possuem título legítimo (contrato de comodato) que fundamenta a recusa de restituição do imóvel à autora, até ao momento que o deixem de habitar;
C. Absolver as rés do demais peticionado…»
Inconformada, a A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de … pedindo a reapreciação da decisão de direito.
Por acórdão de 7 de Maio de 2020 foi proferida a seguinte decisão:
«Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação e, por isso, revogam as alíneas B) e parte da alínea C), da decisão recorrida.
Em consequência determinam:
1 - A entrega à Autora pelas Rés da fração autónoma designada pela letra “A” do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de .... sob o n.º ...., da freguesia de ...., concelho de .... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...., livre e devoluta de pessoas e de bens.
2 - Condenar as Rés no pagamento à Autora do montante de € 1.000,00 (mil euros) por cada mês de atraso na entrega do imóvel à Autora, desde o dia 13.07.2018 até efetiva entrega, acrescido dos juros de mora à taxa legal.
Custas pela Recorrente e Recorrida na proporção do decaimento.»
2. Vieram as RR. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
«1.ª Os segmentos decisórios constantes das alíneas b) e c) do douto acórdão recorrido deverão ser revogadas, porquanto resultam de um erro de interpretação dada pelo Tribunal da Relação de .... ao artigo 1137.º do Código Civil, em violação com o que se encontra estatuído nesta norma legal;
2.ª Os factos considerados provados pelo Tribunal a quo provam a celebração de contrato de comodato, para habitação familiar das Recorrentes, mãe e filha, à data menor, sem o pagamento de qualquer contrapartida e sem convenção de qualquer prazo para a restituição do imóvel, pelo que, as Recorrentes possuem título legítimo que fundamenta a recusa de restituição do imóvel à Recorrida, até ao momento que deixem de habitar o imóvel (vd. art. 1137.º n.º 1 do Código Civil e art. 65.º da Constituição da República Portuguesa);
3.ª O douto acórdão recorrido do Tribunal da Relação de ... interpretou incorretamente o artigo 1137.º do Código Civil e concluiu pela procedência do pedido de restituição do imóvel para habitação familiar, objeto do contrato de comodato, por considerar que estando em causa um comodato sem prazo certo, as Rés, ora Recorrentes, teriam obrigação de restituir o imóvel ao seu legítimo proprietário mediante a requisição deste;
4.ª Aplica-se ao caso em concreto o entendimento do recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que decidiu que: “I. Se o comodato tiver prazo certo, a restituição deve ser realizada até ao termo do prazo previsto; não tendo o comodato prazo, a restituição deve ocorrer logo que finde o uso do prédio. II. Tratando-se de comodato sem prazo e para uso de habitação familiar, não há obrigação de restituir o andar, enquanto continuar a ter esse uso. III. A necessidade da proteção familiar pode estender-se à casa objeto de um contrato de comodato, para habitação. IV. Continuando a servir-se do prédio, por efeito do contrato de comodato, o comodatário possui título legítimo para a ocupação do prédio” (vd. Ac. do STJ, de 05.06.2018, Proc. n.º 1281/13.5TBTMR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt );
5.ª Na falta de delimitação temporal do contrato de comodato para a utilização da coisa comodatada - como é o caso dos autos -, o comodatário não tem o dever de restituir a coisa, caso esta continue a ser utilizada para o fim inicialmente determinado aquando da celebração do comodato;
6.ª Ao contrário do decidido no douto acórdão recorrido, não merece censura o entendimento vertido na decisão do Tribunal a quo - de impossibilidade de terminar o contrato de comodato enquanto as Rés, com respetivos agregados familiares, habitarem o imóvel – que permite garantir o cumprimento do direito constitucional de habitação, bem como os princípios da confiança e da segurança jurídica;
7.ª Tendo as Recorrentes celebrado um contrato de comodato com a Recorrida para habitação familiar, e mantendo as Rés/Recorrentes o uso para o qual o imóvel foi concedido – habitação familiar -, estas possuem título legítimo que fundamenta a recusa de restituição do imóvel, até ao momento que deixem de habitar o imóvel, pelo que não há lugar à restituição da habitação familiar das comodatárias à comodante, e consequentemente não há direito ao pagamento do montante de € 1.000,00 (mil euros) por cada mês de atraso na entrega do imóvel à Autora, desde o dia 13.07.2018 até efetiva entrega (vd. art. 1137.º n.º 1 do Código Civil e art. 65.º da Constituição da República Portuguesa);
8.ª O douto acórdão recorrido enferma de manifesto erro de julgamento porquanto errou na interpretação e aplicação do art. 1137.º n.º 1 do Código Civil, devendo ser mantida a decisão proferida pelo Tribunal a quo e revogado o douto acórdão recorrido (vd. arts. 1137.º n.º 1, 1137.º n.º 2, 1131.º do Código Civil e art. 65.º da Constituição da República Portuguesa).»
Terminam pedindo que o recurso seja julgado procedente e, em consequência, sejam revogadas as alíneas B) e C) da parte dispositiva do douto acórdão recorrido.
A Recorrida contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:
«I. Ao contrário das Recorrentes, a Recorrida entende que o Tribunal da Relação de ... interpretou corretamente o disposto no artigo 1137.º do Código Civil, razão pela qual se deve manter integralmente a respetiva decisão.
II. Conforme resulta da matéria de facto assente desde a primeira instância e aceite por ambas as partes, no contrato de comodato celebrado entre Recorrentes e Recorrida não foi convencionado qualquer prazo para a restituição do imóvel, nem foi delimitada temporalmente a sua utilização por parte das ora Recorrentes, razão pela qual será de aplicar ao pedido de restituição a regra prevista no n.º 2 do artigo 1137.º do Código Civil.
III. Tal interpretação - do Tribunal da Relação de .... - é a única correta e que vai ao encontro da jurisprudência e doutrina maioritária.
IV. O exemplo que os Ilustres Professores PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, em anotação ao artigo 1137.º do Código Civil, referem para aplicação do seu n.º 2, é precisamente o caso de o comodante deixar o comodatário instalar-se gratuitamente num prédio urbano sem fixar prazo nem delimitar a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer (vide Código Civil Anotado, Volume II, 4.ª edição revista e atualizada, 1997, páginas 756 e 757).
V. A par destes Ilustres Professores, muitos outros defendem igual interpretação conforme as respetivas transcrições efetuadas na fundamentação supra.
VI. Também a jurisprudência dominante segue os ensinamentos dos mencionados Ilustres Professores, conforme podemos verificar, a título exemplificativo, nos seguintes Acórdãos, todos disponíveis em www.dgsi.pt: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2019, em que é Relatora a Exma. Senhora Juiz Conselheira Maria do Rosário Morgado, proferido no âmbito do processo 2/16.5T8MGL.C1.S1; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23.02.2017, em que é Relator o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Mário Branco Coelho, proferido no âmbito do processo 167/15.3T8ADV.E1; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14.09.2010, em que é Relator o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Gregório Jesus, proferido no âmbito do processo 1275/05.4TBCTB.C1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.03.2014, em que é Relator o Exmo. Senhor Juiz Desembargador Freitas Neto, proferido no âmbito do processo 886/11.3TBVIS.C1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.05.2003, em que é Relator o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Silva Salazar, proferido no âmbito do processo n.º 03A1323; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.10.2008, em que é Relator o Exmo. Senhor Juiz Desembargador José Augusto Ramos, proferido no âmbito do processo n.º 2875/2008-1.
VII. Para uma maior facilidade de exposição e leitura, voltamos a transcrever, nas conclusões do recurso, apenas o Acórdão recentemente proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça: «I - Da disciplina contida no n.º 1 do art.º 1137º, do CC resulta que a determinação do uso da coisa envolve a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, para que tenha lugar a aplicação do regime aí estabelecido;
II - Não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do imóvel, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado art.º 1137º, do CC.»
VIII. A interpretação correta do artigo 1137.º do Código Civil é a prosseguida no Acórdão agora em crise e nos mencionados Acórdãos e pelos Ilustres Professores, ou seja, na hipótese de não se ter delimitado temporalmente a utilização para a qual se destinava a coisa comodatada - como é o caso dos autos -, o comodante, seu legítimo proprietário, tem o direito de exigir a restituição da coisa, independentemente da coisa continuar a ser utilizada para o fim determinado aquando do comodato.
IX. A interpretação contrária confunde os conceitos de fim do contrato, previsto no artigo 1131.º do Código Civil, e de uso determinado, previsto no artigo 1137.º do Código Civil. No caso dos autos, foi estabelecido que o fim do contrato seria a habitação das Recorrentes, sem contudo se ter delimitado temporalmente a respetiva utilização.
X. Ou seja, não tendo sido convencionado prazo certo para a restituição da coisa emprestada, nem tendo sido determinado o seu uso (em termos temporais) - como o caso dos autos - ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 1137.º do Código Civil, tem o comodante, ora Recorrida, direito a exigir a respetiva restituição.
XI. Este entendimento em nada contraria o direito constitucional à habitação consagrado no artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa, conforme já foi, várias vezes, analisado pelo Tribunal Constitucional, cujos exemplos de Acórdão também se transcreveram na fundamentação supra.
XII. Apenas este entendimento respeita o princípio geral constante do artigo 237.º do Código Civil, de acordo com o qual, nos contratos gratuitos deve prevalecer o sentido da declaração menos gravosa para o comodante.
XIII. Também as regras de experiência comum e bom senso aconselhariam tal decisão, já que, seguindo a interpretação agora defendida pelas Recorrentes, um contrato de comodato como o em causa nos autos, seria bastante mais desvantajoso para o comodante/proprietário do que qualquer contrato de arrendamento, cujo prazo está limitado a 30 anos e que, ainda assim, é passível de resolução antecipada em certos e determinados casos.
XIV. A recente interpretação do artigo 1137.º dada pelas Recorrentes viola o direito constitucional de propriedade da Recorrida, assim como os princípios da confiança e da segurança jurídica, permitindo, em última análise, a utilização gratuita de um imóvel ad eternum por quem não é seu proprietário e contra a vontade deste, o que não se pode admitir de forma nenhuma.
XV. Termos em que se requer a V. Ex.as que se dignem julgar improcedente o recurso interposto pelas Recorrentes do Acórdão do Tribunal da Relação de .... e, consequentemente, determinem a manutenção integral do referido Acórdão, com as demais consequências legais.»
O recurso foi admitido por despacho de 4 de Setembro de 2020.
Cumpre apreciar e decidir.
3. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção das instâncias):
1. Pela Ap. 32, de 28 de março de 2000, a fração autónoma designada pela letra “A” do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito no Sítio …, Lote .., em …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ….º, da freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, da mesma freguesia e concelho encontra-se registada a favor da autora, por permuta com a sociedade com a mesma morada, denominada “DD”.
2. São sócios da autora os fiduciários “EE” e “FF”, sendo cada uma destas sociedades detentora de mil ações no valor nominal de USD 1,60 por ação, em nome do beneficiário efetivo da sociedade que, atualmente e desde 12 de julho de 2010, é GG.
3. Em agosto de 2008, a autora, através da sua beneficiária efetiva, à data, HH, autorizou verbalmente a ré BB, sua irmã, a residir na referida fração com o respetivo agregado familiar que, na altura, era composto pela filha, à data menor, CC, sem o pagamento de qualquer contrapartida.
4. Com a mencionada autorização não foi convencionado nem acordado entre as partes qualquer prazo para a restituição da posse da fração autónoma em causa à autora, nem o foi posteriormente.
5. Por essa razão, no passado dia 5 de junho de 2018, a autora enviou à ré BB uma carta registada, por aquela recebida no dia 13.06.2018, através da qual concedeu à ré um prazo de 30 dias a contar da receção da carta para proceder à restituição à autora do imóvel no estado em que lhe foi entregue.
6. As rés recusaram a entrega do imóvel.
7. Em virtude desses factos, a sociedade/autora encontra-se impossibilitada de rentabilizar o imóvel em causa, no montante mensal equivalente às rendas praticadas, cujo montante mensal ronda os € 1.000,00 (mil euros).
4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões.
Assim, o presente recurso tem por objecto unicamente a seguinte questão:
- Se as RR. estão obrigadas a restituir à A. a fracção autónoma descrita no ponto 1 dos factos provados, a qual lhes foi entregue numa relação contratual de comodato.
5. As partes enquadraram juridicamente a situação dos autos no âmbito de um contrato de comodato, qualificação que foi aceite pelas instâncias e merece a nossa concordância. Com efeito, foi dado como provado que “Em agosto de 2008, a autora, através da sua beneficiária efetiva, à data, HH, autorizou verbalmente a ré BB, sua irmã, a residir na referida fração com o respetivo agregado familiar que, na altura, era composto pela filha, à data menor, CC, sem o pagamento de qualquer contrapartida.”
Deste modo, e tal como entenderam as instâncias, não oferece dúvidas ser aplicável ao caso o regime dos arts. 1129.º e segs. do Código Civil, estando essencialmente em causa a interpretação e aplicação das normas dos n.ºs 1 e 2 do art. 1137.º que regulam a obrigação de restituição da coisa e que aqui se transcrevem:
«1. Se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação.
2. Se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida.»
As instâncias decidiram de forma divergente. A 1.ª instância entendeu que, ainda que não tivesse sido acordado um prazo para a restituição (facto 4), nos encontramos perante a segunda hipótese prevista no n.º 2 do art. 1137º – ter sido determinado o uso da coisa (no caso o uso para habitação das RR.) – que afasta a obrigação de restituição.
Diversamente, a Relação considerou não estar preenchida essa segunda previsão, uma vez que “O uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer”. Fazendo apelo à orientação adoptada pelo mesmo Tribunal da Relação, no acórdão de 23.02.2017, proferido no proc. n.º 167/15.3T8ADV.E1, entendeu que, permitindo o n.º 2 do art. 1137.º do CC a restituição ad nutum, “apenas se poderá obstar à restituição caso tenha ocorrido a estipulação de prazo certo ou determinado um uso de duração limitada, temporalmente delimitado”. Em consequência, decidiu estarem as RR. obrigadas a restituir a fracção à A..
Insurgem-se as RR. contra esta decisão, alegando essencialmente que “Na falta de delimitação temporal do contrato de comodato para a utilização da coisa comodatada - como é o caso dos autos -, o comodatário não tem o dever de restituir a coisa, caso esta continue a ser utilizada para o fim inicialmente determinado aquando da celebração do comodato” (invocando em seu apoio esta doutrina seguida no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.06.2018, proferido no proc. n.º 1281/13.5TBTMR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Quid iuris?
Entende-se que a questão objecto do presente recurso se encontra devidamente explanada e resolvida – a propósito de um caso concreto de contornos factuais idênticos aos dos autos – pelo recente acórdão do STJ de 21.03.2019, proferido no proc. n.º 2/16.5T8MGL.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt, cuja fundamentação se transcreve:
«Nos termos do art.º 1129º do Cód. Civil, “comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir”.
Trata-se de um contrato real (quoad constitutionem) que se aperfeiçoa apenas com a entrega da coisa, a fim de que a pessoa a quem o seu gozo é cedido se possa servir dela, e não sinalagmático, pois que não há correspectividade entre as obrigações dele emergentes para as partes contratualizantes, ou seja, o uso da coisa não beneficia de contraprestação.
Como se colhe da sua própria definição, é da natureza do contrato de comodato a obrigação de restituir a coisa.
A precariedade do uso facultado ao comodatário transparece, ainda, claramente, quer das obrigações específicas do comodatário, quer do regime estabelecido para a restituição da coisa (cf. arts. 1135º e 1137º, do CC). [nota 1: Cf. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, Vol. IV, Almedina, págs. 242-243; Antunes Varela, RLJ, ano 119º, nºs 3747 e 3748 e Menezes leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, Contratos em Especial, 11ª edição, págs. 361 e ss.]
Efectivamente, dispõe-se no art. 1135º, al. h), do CC que o comodatário deve restituir a coisa ao comodante findo o contrato.
Por sua vez, quanto à restituição da coisa, estabelece-se no art.º 1137º, n.º 1, do mesmo Código, que “se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação”; e acrescenta o n.º 2 que “se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida”.
A propósito da duração do uso da coisa refere Rodrigues Bastos [nota 2: Ob. cit., págs. 251-252.] que “o uso da coisa, no comodato, deve durar por todo o tempo estabelecido no contrato. Discute-se se será admissível um comodato por mais de trinta anos, dado o que preceitua o art. 1025.° (para a locação). Embora a lei não marque, para esta hipótese, um limite à duração do uso, a verdade é que tem de considerar-se a cedência sempre limitada a certo período de tempo, sob pena de desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel. Bastará para isso pensar que um comodato muito prolongado de um imóvel converter-se-ia em doação (indirecta) do gozo da coisa, ou, se fosse para durar por toda a vida da outra parte, o comodato descaracterizar-se-ia em direito de uso e habitação.”.
Em razão dessa nota de temporalidade, assumida como traço essencial do comodato, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido que o «uso determinado», a que se alude no art. 1137º, do CC, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de atos concretos de execução isolada mas antes atos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável.[nota 3: Cf., neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 13.5.2003, revista n.º 1323/03, Relator: Silva Salazar; de 27.5.2008, revista n.º 1071/08, Relator: Alberto Sobrinho; 31-03-2009 ; de 31.3.2009, revista n.º 359/09, Relator: Pereira da Silva; de 16.11.2010, revista n.º 7232/04.0TCLRS.L1.S1, Relator: Alves Velho, disponíveis in www.dgsi.pt.].
Trata-se de orientação que também acolhemos, por se nos afigurar que, no quadro normativo vigente, não seria de aceitar um comodato que subsistisse indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico, de tal modo que o comodatário pudesse manter gratuitamente e sem limites o gozo da coisa.
Esta posição que sufragamos é, além disso, a nosso ver, a mais consentânea com o princípio geral emanado do art. 237º, do CC, segundo o qual, em caso de dúvida, nos contratos gratuitos deve prevalecer o sentido da declaração menos gravoso para o disponente.
Dir-se-á, finalmente, que, a vingar a tese dos recorrentes, o comodatário ficaria numa posição bem mais sólida e favorável do que se tivesse, por exemplo, celebrado um contrato de arrendamento (cf., quanto à duração do contrato de locação o art. 1025º, do CC), solução que, salvo o devido respeito, a ordem jurídica não poderia tolerar.
Dito isto, retornemos ao caso dos autos.
Decorre dos factos provados que a casa foi cedida ao réu, gratuitamente, para sua habitação (finalidade que, mesmo que não tivesse sido convencionada pelos outorgantes, sempre resultaria do art. 1131º, do CC), e sem indicação de prazo certo para a restituição.
Sendo assim, a restituição do imóvel que é pedida nesta ação mostra-se regulada pelo nº 2, do art. 1137º, do CC, norma que visa precisamente impedir a perpetuação das relações obrigacionais de comodato para as quais não tenha sido fixado prazo de duração, nem determinado o uso da coisa.
Consequentemente, é de concluir que, não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante (...) tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do imóvel, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado art.º 1137º, do CC.» [negritos nossos]
Esta orientação, a que se adere, decorre logicamente da índole temporária inerente ao contrato de comodato, sem o que, afinal, o mesmo seria descaracterizado em doação ou em uso e habitação. Compreende-se, por isso, que suscitem especiais dificuldades os casos dos denominados “comodatos vitalícios”, aqueles em que a coisa é emprestada para ser usada enquanto o beneficiário for vivo, em relação aos quais tem vindo a ser defendido, entre outras soluções possíveis, o tratamento como contratos de duração indeterminada e, em consequência, sujeitos à possibilidade de cessação ad nutum. Neste sentido, ver António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. XII – Contratos em especial, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 166 e seg., e o acórdão do STJ de 16.11.2010 (proc. n.º 7232/04), consultável em www.dgsi.pt.
Não estando em causa, no presente recurso, um comodato vitalício, não cabe aprofundar aqui tal problemática. Para a resolução do caso concreto basta assinalar, na linha do acórdão de 21.03.2019, a cuja fundamentação aderimos, que, um contrato de comodato como o dos autos em que o tipo de uso da coisa (para habitação das RR.) não está temporalmente definido nem limitado, é de considerar como sendo um contrato de duração indeterminada, sujeito à regra da cessação ad nutum prevista no n.º 2 do art. 1137.º do CC. Cfr. neste sentido, além dos autores citados no sobredito acórdão, António Menezes Cordeiro, ob. cit., págs. 167 e seg.
Esta orientação não colide com a consagração constitucional do direito à habitação, uma vez que, de acordo com a jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional, integrando a categoria dos direitos económicos, sociais e culturais, tal direito tem como destinatários primaciais o Estado e demais entidades públicas, dele não resultando, em princípio, uma vinculação directa para os proprietários de imóveis.
6. Assinale-se ainda, a respeito das decisões deste Supremo Tribunal que as Recorrentes invocam em prol da sua pretensão que – quanto às que apresentam efectivamente pontos de contacto com o presente caso – existem especificidades fácticas que determinam a distinta solução jurídica adoptada.
Senão vejamos.
No caso apreciado no acórdão de 05.06.2018 (proc. n.º 1281/13.5TBTMR.E1.S1), disponível em www.dgsi.pt, estava em causa um diferendo em que um dos autores, sucedendo na posição de um dos comodantes, entretanto falecido, pretendia que a ré, de quem se divorciara, restituísse a habitação na qual residia ao abrigo do acordo celebrado entre o autor e a ré quanto ao destino da casa de morada de família. Já no caso apreciado no acórdão de 09.04.2019 (proc. n.º 697/10.3TCFUN.L1.S1), in www.dgsi.pt, estava em causa um contrato de comodato celebrado entre as partes, na constância do matrimónio, para que a ré deixasse a casa de morada de família, na qual o autor continuou a viver, para ir habitar, juntamente com os filhos do casal, no imóvel objecto do comodato; tendo ademais o tribunal entendido resultar do acordo celebrado que o contrato duraria até à maioridade dos filhos comuns.
Deste modo, quer num quer noutro caso, a decisão de não obrigar à restituição da coisa assenta em factualidade e enquadramento jurídico específicos – no domínio das relações entre ex-cônjuges – não verificados no caso dos autos.
Nada mais há a apreciar no presente recurso, seja quanto à razoabilidade do prazo fixado pela A. para a entrega da fracção autonóma, que não foi judicialmente impugnado, seja quanto ao valor da indemnização determinada pelo tribunal a quo por cada mês de atraso no cumprimento da obrigação de restituição, que não foi impugnado em sede de revista.
7. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.
Custas pelas Recorrentes.
Lisboa, 26 de Novembro de 2020
Nos termos do art. 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade das Exmas. Senhoras Conselheiras Maria Rosa Tching e Catarina Serra que compõem este colectivo.
Maria da Graça Trigo
Maria Rosa Tching
Catarina Serra