I. Nos termos do artigo 1848.º, n.º 1, para obter o reconhecimento judicial da paternidade terá de se remover o obstáculo da filiação em contrário constante do registo, mediante ação de estado para impugnação da paternidade constante do registo, se for o caso, sujeita aos prazos de caducidade estabelecidos no artigo 1842.º, n.º 1, do CC.
II. Segundo o entendimento corrente, a ação de impugnação tanto pode ser instaurada, em simultâneo, sob a forma de pretensão cumulada, com a ação para o reconhecimento da paternidade, como poderá ser intentada autonomamente, sem prejuízo dos prazos de caducidade estabelecidos para a ação de investigação.
III. A procedência da ação de impugnação da filiação registal implica o cancelamento do registo desta filiação nos termos do artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do Código de Registo Civil, com o que fica eliminado o registo inibitório do reconhecimento de outra filiação de paternidade.
IV. Em sintonia com isto, segundo o n.º 2 do artigo 1817.º, aplicável à ação de investigação da paternidade por via do artigo 1873.º do CC, se não for possível estabelecer a paternidade em consequência do disposto no n.º 1 do artigo 1848.º do mesmo Código, a ação de investigação da paternidade pode ser proposta nos três anos seguintes à retificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório.
V. Embora a conjugação do artigo 1817.º, n.º 2, com o artigo 1842.º, n.º 1, do CC faça supor a instauração tempestiva da ação de impugnação da paternidade contrária constante do registo, o prazo de caducidade de três anos para a subsequente instauração da ação de investigação da paternidade, em detrimento do prazo previsto no n.º 1 do artigo 1817.º, depende, neste particular, tão só da procedência da ação de impugnação e do consequente cancelamento do registo inibitório, obstando a que, na própria ação de investigação, se possa apreciar a questão da exceção da caducidade da anterior ação de impugnação.
VI. Assim, se a ação de impugnação da paternidade presumida tiver sido julgada procedente sem que nela tenha sido suscitada a respetiva caducidade, o caso julgado material formado sobre essa decisão, com o alcance objetivo e subjetivo decorrente do preceituado nos artigos 621.º e 622.º do CPC, consolida, na ordem jurídica, o efeito extintivo da paternidade impugnada, provocando a preclusão da eventual da caducidade dessa ação.
VII. Por virtude disso, abre-se o prazo de caducidade de três anos subsequentes ao cancelamento do registo daquela paternidade presumida, estabelecido no n.º 2 do artigo 1817.º, aplicável por via do artigo 1873.º do CC, impedindo que sobre ele opere o prazo de caducidade de 10 anos estabelecido no n.º 1 do mesmo artigo 1817.º.
VIII. O exercício do direito fundamental à identidade pessoal e genética colimado como está à salvaguarda do reduto inalienável da dignidade da pessoa humana, essencial para a afirmação e sustentação da identidade de cada pessoa, não pode ser considerado como manifestamente excessivo dos limites impostos pelos bons costumes nem disfuncional do seu fim social, nos termos e para os efeitos do artigo 334.º do CC.
IX. Pelas mesmas razões, um tal direito não deve ser constrangido, no seu exercício, por limites impostos pela boa fé no mero quadro casuístico das relações do seu titular perante terceiros.
X. Tratando-se de um direito de cariz tendencialmente absoluto, não deve o seu reconhecimento, em princípio, ficar dependente das expetativas de outrem, salvo quando estas se encontrem asseguradas no âmbito das restrições legais ao exercício desse direito, como sucede por via dos respetivos prazos legais de caducidade.
I – Relatório
1. BB (A.) instaurou, em 28/10/2017, ação declarativa para reconhecimento da paternidade, sob a forma de processo comum, contra AA (R.), alegando, sem síntese, que:
. A A. nasceu em 00/00/1971, tendo sido registada como filha de CC e de DD, reciprocamente casados de 00/00/1966 a 00/00/1985;
. Porém, a A. não é filha biológica de DD, mas de AA, ora réu.
Concluiu a pedir que fosse reconhecida a sua paternidade como filha de AA.
2. O R. apresentou contestação a impugnar o alegado pela A. e a invocar a caducidade do direito por ela peticionado, pugnando pela improcedência da ação.
3. Realizada a audiência final, foi proferida a sentença de fls. 276-287/v.º, datada de 26/11/2019, a julgar procedente a exceção da caducidade invocada e, por tal via, improcedente a ação com a consequente absolvição do R. do pedido.
4. Inconformada, a A. recorreu para o Tribunal da Relação …, sendo proferido o acórdão de fls. 342-363, datado de 28/04/2020, nos termos do qual se considerou não verificada a exceção caducidade, revogando-se a sentença recorrida e julgando-se a ação procedente com a declaração de que a A. filha do R..
5. Desta feita, vem o R. pedir revista, para o que formulou seguintes conclusões:
1.ª – Está dado como provado que a A. sabia, desde antes de 1991, que o R. era seu pai e que a pessoa que aparecia como seu progenitor e marido da mãe não o era.
2.ª - Impõe o artigo 1817.º, n.ºs 1 e 3, alínea c), do CC que o prazo para intentar a ação caduca ao fim de dez anos, o que aconteceu relativamente ao direito da A. para intentar a presente ação de investigação de paternidade e que deve ser declarado.
3.ª - Por outro lado, desde antes de 1991 até 2017, jamais a A. questionou tais factos, que foram dados como provados.
4.ª - Em 2017, intentou ações de impugnação e de investigação praticamente em simultâneo.
5.ª - A motivação para tal prende-se com a idade avançada do R. e da fortuna pessoal a que ela se quer apropriar na sua parte.
6.ª - O comportamento da A. não está eivado pela boa-fé e muito menos tem cobertura legal, por via do instituto do abuso de direito (334.º CC) que impede este tipo de comportamentos que se querem servir da lei para interesses materiais egoísticos.
7.ª - Aceitar-se que não está prescrito ou que não está ferido de invalidade, por abuso de direito, um tal entendimento é altamente perturbador do status quo estabelecido.
8.ª - Se a filha tem o direito de ver a sua identidade reconhecida, terá de o fazer num prazo razoável, como emerge da boa fé, porque se ela é "inocente", a família do pai também o é; logo, o prazo de prescrição também serve para não “absolutizar” o direito da filha, esmagando tudo à sua passagem.
9.ª - Quem estiver de boa fé em querer saber quem é o seu progenitor age imediatamente ou logo que o puder fazer. Não é só pela segurança jurídica; é principalmente pela estabilidade pessoal e familiar de todos os envolvidos.
10.ª - E não se venha dizer, como fez o Tribunal da Relação, referindo-se ao dicotomia “acção de impugnação vs. acção de investigação” que, em relação à primeira, “até ao trânsito em julgado desta acção não era legalmente possível estabelecer a paternidade, é manifesto que a presente acção foi intentada dentro do prazo legal consagrado no indicado art. 1817.º, n.º 2, do Código Civil”;
11.ª - O prazo para propor a ação de investigação nada tem a ver com o prazo de propor ação de impugnação; são ações autónomas, com prazos próprios.
12.ª - É pressuposto para propor qualquer ação judicial que o interessado reúna as condições para a instruir ou para que a mesma tenha validade processual. Não é por ter demorado mais de 25 anos a propor a ação de impugnação que o prazo para a ação subsequente de investigação começa a contar.
13.ª - Por esta ordem de ideias, tinha-se encontrado um alçapão legal que permitiria esvaziar de sentido qualquer prazo de prescrição ou de caducidade.
14.ª – O direito à identidade, que inclui o direito de conhecer e ter sua ancestralidade reconhecida, é parte integrante do conceito de privacidade. Mas os prazos de prescrição das ações para contestar a paternidade, que permitem um período de tempo razoável para que a criança atue após atingir a maioridade ou conhecimento, constituem medidas necessárias e adequadas para alcançar o objetivo legal perseguido.
15.ª - Deve ser o Tribunal a avaliar concretamente se a implementação dos prazos legais limita a privacidade da pessoa em questão de maneira despropor-cional, tendo em conta o objetivo legítimo perseguido, o que, no caso presente, não se verifica.
16.ª - A decisão recorrida violou o artigo 1817.º, n.ºs 1 e 3, alínea c), do CC e os artigos 20.º, n.º 1, e 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
6. A Recorrida apresentou contra-alegações a sustentar a confirmação do julgado.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Delimitação do objeto do recurso
Das conclusões do Recorrente, em função das quais se delimita o objeto da revista, resulta que as questões a apreciar são as seguintes:
i) – A questão do invocado erro na aplicação do artigo 1817.º, n.ºs 1 e 3, alínea c), do CC, no respeitante à exceção de caducidade do direito peticionado;
ii) – A questão do abuso de direito imputado à A. pela interposição da presente ação.
iii) – A questão da pretensa violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 202.º, n.º 2, da Constituição.
III – Fundamentação
1. Factualidade provada
Vem dada como provada a seguinte factualidade:
1.1. Em …… de 1971, na freguesia …, concelho …., nasceu BB, ora A., que se encontra registada em …. de 2011 como sendo filha de CC e de DD.
1.2. A mãe da A., CC, e DD contraíram casamento entre si em .. de ….. de 1966, o qual foi dissolvido por sentença que decretou o divórcio datada de .. de ……… de 1985, transitada em 10 de abril de 1985.
1.3. Em …. de 1992 DD faleceu.
1.4. Correu termos Juízo de Família e Menores de …. da Comarca …, ação declarativa de impugnação de paternidade sob o n.º 928/17.9…, intenta-da por BB contra CC, EE e FF, respetivamente ex-cônjuge e filhos do falecido DD, em que, por decisão datada de 18/06/2018, transitada em julgado em 25/06/2018, foi declarado que DD não é o seu pai biológico e ordenado o cancelamento do averbamento da paternidade até ali existente, conforme certidão de fls. 132 e seguintes.
1.5. O referido DD faleceu no estado de divorciado de CC.
1.6. BB e AA não são entre si irmãos, tio e sobrinha, avô e neto, pai e filha, nem tem qualquer outra relação sanguínea.
1.7. A mãe da A., CC, e o R., AA, mantiveram entre si relações sexuais durante os primeiros 120 dias dos 300 que precederam do nascimento da A...
1.8. A mãe CC não manteve, durante tal período referido, relações sexuais com qualquer outro homem.
1.9. Em data anterior ao nascimento da A. BB, DD e amãe da A. CC não mantinham relações sexuais entre si.
1.10. HH, II e JJ são filhas de AA e de LL, com quem contraiu matrimónio.
1.11. AA, quando internado no Hospital denominado “…” em …, em …. de 2015, afirmou declarada e expressamente à frente da sua filha II que BB, ora A., é sua filha e irmã de seus filhos concebidos pelo matrimónio com a LL, filhos estes de nome II, JJ e HH.
1.12. No âmbito dos presentes autos, foi efetuada perícia de investigação biológica de paternidade com colheitas biológicas ao R. AA e à A., tendo-se concluído, de acordo com os resultados obtidos, que o grau de probabilidade de paternidade do R. relativamente à A. é de 99,99999999999996%, considerada uma probabilidade a priori de 0,5.
1.13. A A., desde data não concretamente apurada mas anterior ao seu casamento ocorrido em .... de 1991, sabia ser filha do R., o que a mãe nunca negou e quer antes quer depois desse acontecimento, mantendo a relação com o R...
1.14. E a situação agravou-se de tal ordem entre a mãe da A. e esta, por causa dessa relação, que a primeira se recusou a estar presente no casamento da filha.
1.15. A A. casou-se catolicamente com GG, em .... de 1991, casamento esse que foi dissolvido por divórcio, por sentença datada de ... de 2011, transitada em julgado.
1.16. O R. sempre teve uma relação pessoal com a mãe da A., o que era do conhecimento público.
1.17. Facto que, por altura de 1981, chegou ao conhecimento da mulher do R..
1.18. Apesar de o R. manter a relação extraconjugal com a mãe da A., como ainda hoje acontece, sempre negou essa imputação de paternidade, quer em família quer em público, o que a A...
1.19. Conhecedora dessa situação, sabendo que o R. sempre negou a paternidade, ao ponto de em idade não inferior aos 14 anos, ela ter perguntado se o R. era seu pai, ouviu como resposta que “o teu pai é o que está no Bilhete de Identidade”.
1.20. A presente ação foi instaurada em 28/10/2017.
Ainda ao abrigo do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável por via remissiva dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC, adita-se o seguinte facto:
1.21. O cancelamento do registo a que se refere o ponto 1.4 foi registado mediante o averbamento n.º 4, de 13/09/2018, ao assento de nascimento da A. BB, conforme fls. 193.
2. Factos dados como não provados
Vem dado como não provado o seguinte:
a) – A A., em meados de dezembro de 2015, foi informada pelas filhas de AA mencionadas em 1.10 que é filha de AA e irmã das mesmas;
b) -Nas circunstâncias referidas sob o ponto 1.11, a A., BB, tomou conhecimento de que o AA era o seu pai biológico, facto que até ali desconhecia;
c) -O divórcio mencionado em 1.2. teve como causa o facto de o então pai registal da A. acusar a mãe de o ter enganado, pois toda a gente de .... e …. imputava a paternidade da A. ao R...
d) - A partir do seu nascimento, toda a gente atribuía a paternidade da A. ao R.;
e) - A A., desde os seus 10 anos, sempre soube que o R. era seu pai;
f) - O relatado em 1.17 chegasse nessa altura ao conhecimento dos filhos do R...
3. Do mérito do recurso
3.1. Dos contornos evolutivos do litígio
Estamos no âmbito de uma pretensão com vista ao reconhecimento da paternidade biológica de BB como filha de AA, em que, aqui chegados, a discussão se situa em torno da invocada exceção de caducidade.
Na primeira instância, foi entendido que, tendo decorrido, em 00/00/1987, 10 anos sobre a data em que a A. atingiu a maioridade e tendo a presenta ação sido instaurada em 28/10/2017, se verificava a caducidade do direito peticionado nos termos do artigo 1817.º, n.ºs 1, e 3, alínea c), do CC, concluindo-se, nessa base, pela improcedência da ação.
Porém, no âmbito da apelação interposta pela A., o Tribunal da Relação considerou que, não obstante isso, tendo sido instaurada ação de impugnação da paternidade da A. constante do registo como sendo filha de DD, na qual não fora sequer suscitada a caducidade dessa ação e acabando esta ação por ser julgada procedente mediante sentença de 18/06/2018, transitada em julgado, se impunha ter como não verificada a caducidade da presente ação ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 1817.º, aplicável por via do artigo 1873.º do CC.
Em face disso, e tidos por provados os factos constitutivos do direito invocado, foi a ação julgada procedente com a consequente declaração do pretendido reconhecimento de paternidade.
Todavia, inconformado, vem o R. pedir revista a sustentar que o acórdão recorrido viola o disposto no artigo 1817.º, n.ºs 1 e 3, alínea c), do CC, segundo o qual se verifica a caducidade da ação pelo decurso do prazo de 10 anos e que, se assim não for entendido, se considere ocorrer abuso de direito, por parte da A., bem como violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 202.º, n.º 2, da Constituição.
Vejamos cada uma dessas questões.
3.2. Quanto ao prazo de caducidade em causa
Desde já, convém referir que, para a resolução da questão em apreço, não se mostra necessário convocar a persistente controvérsia doutrinária e jurisprudencial em sede de (in)constitucionalidade dos prazos de caducidade legalmente estabelecidos para as ações de investigação da paternidade, bastando, por ora, ater-nos ao respetivo quadro normativo.
No que aqui releva, segundo o disposto no n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil (CC), na redação dada pela Lei n.º 14/2009, de 01/04, respeitante aos prazos para proposição da ação de investigação da maternidade, mas aplicável com as necessárias adaptações à ação de investigação da paternidade por força do artigo 1873.º do mesmo Código, esta espécie de ação só pode ser proposta, em regra, durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação, sem prejuízo das hipóteses especialmente contempladas nos n.ºs 2 e 3 daquele artigo 1817.º.
Porém, o artigo 1848.º, n.º 1, do referido diploma prescreve que o reconhecimento da paternidade em contrário à filiação constante do registo de nascimento do investigante não é admitido enquanto não for retificado, declarado nulo ou cancelado esse registo.
Assim, para se obter o reconhecimento judicial da paternidade, terá de se remover o referido obstáculo da filiação em contrário constante do registo mediante ação de estado para impugnação da paternidade registal, se for o caso[1], também ela sujeita aos prazos de caducidade estabelecidos no artigo 1842.º, n.º 1, do CC. E, nos termos da alínea c) deste normativo, a ação de impugnação pode ser proposta pelo filho investigante até 10 anos depois de atingir a maioridade ou de ter sido emancipado, ou posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe.
Segundo o entendimento mais corrente, a sobredita ação de impugnação tanto pode ser instaurada, em simultâneo, sob a forma de pretensão cumulada, com a ação para o reconhecimento da paternidade, como poderá ser intentada autonomamente, sem prejuízo dos prazos de caducidade estabelecidos para a ação de investigação, o que tem levado, neste caso, à instauração desta ação de modo a prevenir o decurso dos respetivos prazos de caducidade, mas cuja instância terá de ficar suspensa até ser decidida a causa prejudicial de impugnação, nos termos conjugados dos artigos 269.º, n.º 1, alínea c), 272.º, n.º 1, 1.ª parte, e 276.º, n.º 1, alínea c), do CPC.
A procedência da ação de impugnação da filiação registal implica o cancelamento do registo desta filiação nos termos do artigo 91.º, n.º 1, alínea b), do Código de Registo Civil, com o que ficará eliminado o registo inibitório do reconhecimento de outra filiação de paternidade.
Em sintonia com isto, o n.º 2 do artigo 1817.º, na redação dada pela Lei n.º 14/2009, de 01/04, aplicável à ação de investigação da paternidade por via do artigo 1873.º do CC, prescreve que, se não for possível estabelecer a paternidade, aqui em consequência do disposto no n.º 1 do artigo 1848.º do mesmo Código, a ação de investigação da paternidade pode ser proposta nos três anos seguintes à retificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório.
Convém notar que o referido n.º 2 do artigo 1817.º, na redação anterior à Lei n.º 14/2009, na sua parte final, condicionava a remoção do obstáculo do registo inibitório a que fosse requerida até ao termo do prazo estabelecido no n.º 1 do mesmo artigo, se para tal o investigante tivesse legitimidade, o que se podia traduzir numa limitação temporal, de certo modo, dificilmente conciliável com a imprescritibilidade da impugnação da maternidade consagrada no artigo 1807.º do CC.
Contudo, a eliminação daquela parte final do n.º 2 do artigo 1817.º por via da Lei n.º 14/2009 não dispensa a conjugação do referido normativo, na sua atual redação, quando aplicável à ação de impugnação da paternidade, com o artigo 1842.º, n.º 1, do CC que estabelece, por sua vez, prazos de caducidade para esta ação, nomeadamente o prazo de 10 anos previsto na alínea c) deste normativo, para o filho investigante intentar essa ação.
Embora tal conjugação do artigo 1817.º, n.º 2, com o artigo 1842.º, n.º 1, do CC faça supor a instauração tempestiva da ação de impugnação da paternidade contrária constante do registo, o certo é que o prazo de três anos para a subsequente instauração da ação de investigação da paternidade, em detrimento do prazo previsto no n.º 1 do artigo 1817.º, depende, nesse particular, tão só da procedência da ação de impugnação e do consequente cancelamento do registo inibitório, obstando a que, na própria ação de investigação, se possa apreciar a questão da exceção da caducidade da anterior ação de impugnação.
Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que foi proposta ação de impugnação da paternidade presumida da ora A. BB como sendo filha de DD, que correu termos no processo n.º 928/17.9…, no âmbito da qual foi proferida a sentença reproduzida a fls. 133-141, em 18/06/2018, transitada em julgado em 25/06/2018 (certidão de fls. 132), a julgar procedente essa ação, declarando que a A. não era filha de DD e determinando o cancelamento do respetivo registo – facto provado constante do ponto 1.4.
Muito embora a referida ação de impugnação tenha sido proposta em 2017, não foi ali suscitada a exceção de caducidade.
Com efeito, tendo a ação de impugnação sido julgada procedente sem que nela tenha sido suscitada a respetiva caducidade, tudo se passa como se esta exceção perentória não existisse, ficando precludida pelo caso julgado material da decisão que julgou procedente aquela ação.
Ou seja, o caso julgado material formado sobre aquela decisão, com o alcance objetivo e subjetivo decorrente do preceituado nos artigos 621.º e 622.º do CPC, consolidou, na ordem jurídica, o efeito extintivo da precedente paternidade presumida da filiação da A., constante do registo, como sendo filha de DD, provocando a preclusão da eventual caducidade daquela ação de impugnação.
Por virtude disso, abriu-se o prazo de caducidade de três anos subsequentes ao cancelamento do registo daquela paternidade presumida, estabelecido no n.º 2 do artigo 1817.º, aplicável por via do artigo 1873.º do CC, impedindo agora que sobre ele opere o prazo de caducidade de 10 anos estabelecido no n.º 1 do mesmo artigo 1817.º.
Não ocorre assim a alegada violação do disposto no artigo 1817.º, n.º 1 e n.º 3, alínea c), do CC.
Consequentemente, tendo a presente ação sido instaurada em 28/10/2017, portanto antes mesmo de se iniciar o referido prazo de três anos a contar do cancelamento do registo da paternidade presumida de DD, averbado em 13/09/2018 (fls. 193), impõe-se considerar não verificada a caducidade da presente ação, tal como foi decidido no acórdão recorrido.
Termos em que improcedem, nesta parte, as razões do Recorrente.
3.3. Quanto ao invocado abuso de direito
Vem ainda a Recorrente invocar o abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do CC, por parte da A., por ter demorado mais de 25 anos para propor a presente ação e depois de ter intentado uma ação de impugnação de paternidade que não teve oposição de ninguém, como já ela sabia, agindo, desse modo, com má fé, pondo em crise a estabilidade pessoal e familiar de todos os envolvidos.
Para além de não se colher da factualidade provada elementos que permitam concluir por uma motivação da A. passível de ser caracterizada como sendo de má fé, o que é certo é que estamos perante o exercício de um direito de personalidade respeitante à identidade pessoal e genética e ao conhecimento da paternidade biológica, por parte da A., garantido como direito fundamental pelo artigo 26.º da Constituição da República, que só é passível das restrições previstas na lei.
Em contraponto existem também as exigências de segurança e certeza jurídica garantidas, nomeadamente pelo instituto da caducidade dos direitos subjetivos, mesmos os que sejam de natureza indisponível, como sucede no domínio dos prazos de caducidade legalmente estabelecidos para as ações de investigação da paternidade.
Porém, a ocorrência destes prazos de caducidade tem de ser judicialmente verificada, só assim podendo produzir o efeito extintivo daqueles direitos. Não o sendo, não se mostra lícito arvorar, sem mais, a segurança jurídica pressuposta por tais prazos em causa restritiva, mais ou menos difusa, para mais perante um direito fundamental como é o direito à identidade pessoal e genética de alguém.
Nessa linha, o exercício de um tal direito fundamental colimado como está à salvaguarda do reduto inalienável da dignidade da pessoa humana, essencial para a afirmação e sustentação da identidade de cada pessoa, não pode ser considerado como manifestamente excessivo dos limites impostos pelos bons costumes nem disfuncional do seu fim social, nos termos e para os efeitos do artigo 334.º do CC.
E, pelas mesmas razões e nas mesmas circunstâncias, não se vê que um tal direito deva ser constrangido, no seu exercício, por limites impostos pela boa fé no mero quadro casuístico das relações do seu titular perante terceiros. O direito à identidade pessoal e genética de qualquer cidadão é, por natureza, de cariz tendencialmente absoluto, não devendo o seu reconhecimento, em princípio, ficar dependente das expetativas de outrem, salvo quando estas se encontrem asseguradas no âmbito das restrições legais ao exercício daquele direito, como sucede por via dos respetivos prazos legais de caducidade.
Por outro lado, no presente caso, não existem sequer elementos de facto que permitem concluir que a A. se tenha servido da ação de impugnação da paternidade presumida de DD, então já falecido, em conluio com os ali demandados – CC, mãe da A. e ex-cônjuge daquele, e EE e FF, filhos do falecido – para praticar ato simulado ou para conseguir um fim proibido por lei, que possam ser tidos como uso anormal do processo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 612.º do CPC.
Bem pelo contrário, dos factos provados constantes dos pontos 1.7, 1.8, 1.9, 1.11, 1.13, 1.14 e 1.16 resulta que DD, não seria tido como pai biológico da A...
Além de tudo isso, com a referida ação de impugnação da paternidade presumida de DD, a A. deixou de ter a sua paternidade estabelecida, situação que justificava inteiramente que procurasse obter a verdadeira paternidade biológica como acaba por conseguir com a presente ação.
A solução propugnada pelo Recorrido é que representaria um obstáculo ilegítimo ao direito da A. à sua identidade pessoal e genética.
Termos em que também aqui improcedem as razões do Recorrente.
3.4. Relativamente à pretensa violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 202.º, n.º 2, da Constituição
Neste capítulo, não se descortinam sequer argumentos que militem a favor do R., no sentido de determinar a improcedência da ação.
Com efeito, por tudo o que acima se deixou exposto, a tutela pretendida pela A. com a presente ação foi exercida dentro dos parâmetros legais e com as devidas garantias do direito do R. à sua defesa, no quadro da função jurisdicional que incumbe aos tribunais em sede da administração da justiça, nos termos dos artigos 20.º e 202.º da Constituição.
IV - Decisão
Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
As custas do recurso são da responsabilidade do R./Recorrente.
Lisboa, 26 de novembro de 2020
Manuel Tomé Soares Gomes
Maria da Graça Trigo
Maria Rosa Tching
Nos termos do artigo 15.º-A do Dec.-Lei n.º 10-A/2020, de 13-03, aditado pelo Dec.-Lei n.º 20/20, de 01-05, para os efeitos do disposto no artigo 153.º, n.º 1, do CPC, atesto que o presente acórdão foi aprovado com o voto de conformidade das Exm.ªs Juízas-Adjuntas Maria da Graça Trigo e Maria Rosa Tching, que não assinam pelo facto de a sessão de julgamento (virtual) ter decorrido mediante teleconferência.
Lisboa, 26 de novembro de 2020
O Juiz Relator
Manuel Tomé Soares Gomes
______
[1] Diversos são os casos de retificação ou declaração da nulidade do registo previstos nos artigos 87.º, 90.º, 93.º e 233.º a 244.º do Código de Registo Civil.