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ACÇÃO EXECUTIVA
OBRIGAÇÃO CARTULAR
PRESCRIÇÃO
RELAÇÃO SUBJACENTE
AVALISTA
Sumário
I- A letra que se encontre prescrita perde a natureza cambiária, para passar a constituir mero documento particular, quirógrafo da dívida causal ou relação substantiva que está na base da sua emissão, constituindo meio próprio para o reconhecimento dessa dívida pré-existente. II- Como resulta do disposto no artº. 703º, nº. 1, al. c) do NCPC, a letra prescrita pode, enquanto quirógrafo, constituir título executivo contra os avalistas do aceitante, desde que os factos constitutivos da relação subjacente, não constando da própria letra, sejam alegados no requerimento executivo. III - Nos casos em que a letra não saiu das mãos do inicial portador (o seu sacador) – ou voltou às suas mãos –, não existindo a necessidade de salvaguardar direitos de terceiros de boa fé, tal qual o avalista do aceitante pode invocar perante o sacador/portador, prevalecendo-se delas, excepções de direito material, também este sacador poderá invocar relação extra-cartular havida aquando da subscrição do título, ou seja, invocar a verdadeira situação, fazendo-a prevalecer sobre a que consta do título. IV- Extinta a obrigação cartular resultante do aval, por efeito da prescrição, terá o portador do título de alegar factos demonstrativos de que os avalistas se constituíram como sujeitos passivos em relação jurídica (relação subjacente) da qual resulte o direito à prestação (v. g., que se quiseram assumir como fiadores ou até que se verificou uma adjunção à dívida, causa de aposição dos avales) – se o não fizer, não poderá o título valer, enquanto quirógrafo, como título executivo. V- O aval é uma garantia cambiária que não garante a relação subjacente e por isso tal relação subjacente não pode concluir-se da simples prestação do aval - a aposição de assinatura em título cambiário é somente constitutiva da respectiva obrigação cambiária, nos termos da lei aplicável. VI- A simples menção, no requerimento executivo, ao facto da letra ter sido emitida na sequência da celebração de uma transacção comercial, cujo valor da dívida foi avalizado pelos executados, através da aposição da sua assinatura no verso da letra, que se vincularam solidariamente com a sociedade aceitante no pagamento da mesma, pretendendo-se efectivamente obrigar no pagamento da quantia em causa, e asseguraram ao exequente que o valor em dívida seria pago, tem de concluir-se estar alegada a relação subjacente em que funda, quanto a eles, o direito à prestação.
Texto Integral
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
Os executados F. R. e mulher M. R. deduziram oposição, mediante embargos, à execução para pagamento de quantia em que é exequente J. C. e executados A. P. e mulher D. P. e os ora embargantes, invocando, em síntese, as excepções de pagamento do crédito exequendo pelo embargante F. R., existência de (eventual) caso julgado em relação à acção executiva intentada pelo exequente, que correu termos na então Vara Mista do Tribunal Judicial de Braga sob o nº. 14638/02.8TBBRG, compensação de créditos e prescrição dos juros de mora liquidados para além dos últimos 5 anos.
Mais alegam a falta de título executivo válido, uma vez que a letra de câmbio dada à execução tem como data de vencimento 31/12/1999, estando a mesma, enquanto título cambiário, prescrita já há muito, pelo que só tem a força de mero quirógrafo e só constitui título executivo válido desde que os factos constitutivos da relação subjacente, não constando da própria letra, sejam alegados no requerimento executivo.
Acrescentam que o exequente não poderia demandar os embargantes, porquanto a figura do aval é exclusiva dos títulos cambiários e não sendo a letra dada à execução um título cambiário, mas antes um mero quirógrafo, a força do aval prestado se esgotou pelo decurso da extinção da obrigação cartular, nomeadamente através da prescrição invocada.
Referem, ainda, que o exequente não cumpriu o ónus de alegação dos factos constitutivos da relação subjacente, nos termos impostos pelo artº. 703º, n.º 1, al. c) do Novo Código de Processo Civil (doravante designado NCPC), não sendo suficiente uma mera referência a uma transacção comercial, razão pela qual a letra apresentada não poderá ser considerada título executivo válido.
Para além da defesa por excepção, os embargantes impugnaram os factos alegados no requerimento executivo, apenas aceitando o facto do exequente ser portador da letra dada à execução, nos termos em que se encontra preenchida.
Concluem, pedindo a procedência dos presentes embargos, com a consequente extinção da execução, bem como a condenação do exequente como litigante de má-fé em multa e indemnização não inferior € 28.400,00.
O exequente apresentou contestação, na qual pugna pela improcedência das excepções arguidas pelos executados/embargantes, invocando, em síntese, quanto à falta de título executivo, que no requerimento executivo foram alegados os factos constitutivos da relação subjacente à emissão da letra prescrita dada à execução enquanto documento particular e a relação jurídica existente entre exequente e executados, tendo referido que a letra foi emitida para garantia do pagamento de uma transacção comercial, na qual os executados se constituíram como garantes, e que estes efectivamente se pretenderam obrigar solidariamente no pagamento da obrigação em causa e, inclusive, asseguraram pessoalmente ao exequente que o respectivo valor seria pago, sendo o título executivo válido.
O exequente impugna, ainda, os factos alegados pelos embargantes, bem como o pedido de condenação como litigante de má fé por eles formulado.
Termina, pugnando pela improcedência dos embargos deduzidos e que seja ordenado o prosseguimento da execução, seguindo-se os ulteriores termos até final.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador no qual foi verificada a regularidade e a validade da instância e decidido o seguinte:
- julgar improcedente a excepção dilatória do caso julgado invocada pelos embargantes; - julgar os presentes embargos de executado procedentes, por prescrição da obrigação cambiária e, em consequência, determino a extinção da instância executiva contra os executados/embargantes F. R. e mulher M. R.; - em face do acima exposto, ficaprejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pelos embargantes.
Inconformado com tal decisão, o exequente/embargado dela interpôs recurso, extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões [transcrição]:
I – Por sentença proferida pelo Tribunal recorrido foi decidido: “Julgar os presentes embargos de executado procedentes (prescrição da obrigação cambiária) e, em consequência, determino a extinção da instância executiva contra os executados/embargantes F. R. e mulher, M. R.”.
II - Com o devido respeito, que é muito, o Recorrente não se pode conformar com a sentença proferida, considerando, salvo melhor opinião que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento.
III - Senão vejamos, o título executivo que deu origem aos presentes autos é uma livrança, já que é um documento particular, assinado pelos devedores, que evidencia o reconhecimento unilateral de uma dívida.
IV - Conforme o artigo 703º, n.º 1, alínea c) do CPC a execução pode ter por base “os títulos de créditos, ainda que meros quirógrafos”. A ratio da admissibilidade do título de crédito prescrito como título executivo enquanto mero quirógrafo consiste no facto de o documento constituir um reconhecimento de dívida, assinado pelo devedor/executado o que efetivamente aconteceu no presente caso.
V - A livrança/documento particular encontra-se assinada pelos Executados (com letra legível), conforme se comprova pela leitura do mesmo, constando do mesmo que estes lá declararam (com letra legível) “dou o meu aval à subscritora aceitante”, tendo-se efetivamente reconhecido devedores da quantia exequente mediante a aposição da sua assinatura após a referida declaração efetuada pelo seu punho.
VI – Face a uma declaração de cumprimento ou a uma declaração de reconhecimento da dívida, resulta do n.º 1 do artigo 458º, n.º 1 do Código Civil o seguinte: “se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”. Daí resulta a presunção da existência de uma relação negocial ou extra negocial – à qual se aplica a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental, conforme decorre do artigo 344º do Código Civil.
VII – Refira-se ainda que, por via da subscrição da letra de câmbio e, mais, por terem garantido ao Exequente o recebimento da quantia, os Executados vincularam-se ao pagamento ao Exequente do valor em divida, constituindo a relação subjacente ao aval efetivamente uma fiança relativamente à obrigação que advinha para o avalizado, ou seja, a vontade dos Executados de se obrigarem como fiadores, o que se verificou in casu, estendendo-se a obrigação destes à obrigação extracartular.
VIII – Do requerimento executivo resulta que o Exequente indicou a causa da obrigação exequenda, referindo inclusive que a livrança foi emitida para garantia do pagamento de uma transação comercial, na qual os Executados se constituíram como garantes, mais tendo alegado que estes efetivamente se pretenderam obrigar solidariamente no pagamento da obrigação em causa e, inclusive, que estes, pessoalmente, asseguraram ao Exequente que o valor seria pago.
IX – Através da aposição da sua assinatura no título executivo e do facto dos Executados terem garantido ao Exequente que o valor seria pago os Executados confessaram-se devedores da dívida ao Exequente.
X – Isto é, a relação subjacente ao aval constitui efetivamente uma fiança relativamente à obrigação que advinha para o avalizado, ou seja, a vontade dos Executados de se obrigarem como fiadores, o que se verificou in casu, estendendo-se a obrigação destes à obrigação extracartular.
XI - Ora, a “(…) A prestação de um aval ao aceitante de uma letra pode ter subjacente uma fiança que visa garantir o cumprimento da obrigação que emerge para o aceitante da letra do negócio jurídico subjacente ao aceite (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 49/16.1T8MDL-B - G1, de 04-04-2017, em: www.dgsi.pt).
XII – A simples menção ao facto da letra ter sido emitida na sequência da celebração de uma transação comercial, cujo valor da divida foi avalizado pelos Executados, os quais assinaram a letra, se vincularam solidariamente ao pagamento da mesma, efetivamente se pretendiam obrigar no pagamento da quantia em causa e os próprios asseguraram ao Exequente que o valor em divida seria pago, é suficiente para concluir que o Exequente alegou os factos constitutivos da relação subjacente no seu requerimento executivo, porque da mesma alegação decorre a obrigação dos Executados procederem ao pagamento do montante de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos) o que corresponde a € 149.639,37 (cento e quarenta e nove mil, seiscentos e trinta e nove euros e trinta e sete cêntimos).
XIII - Doutrinou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 125/16.0T8VLF-A.C1.S1, de 12-09-2019, em: www.dgsi.pt: que: “I. Como resulta do disposto na alínea c) do artigo 703º do Código de Processo Civil, a letra prescrita pode, enquanto quirógrafo, constituir título executivo contra os avalistas do aceitante, desde que os factos constitutivos da relação subjacente, não constando da própria letra, sejam alegados no requerimento executivo”.
XIV – No mesmo sentido veja-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 7917/19.7T8VNF.G1, de 04-06-2020, em: www.dgsi.pt:
I- Prescrita a obrigação cartular constante de um título de crédito, pode ele continuar a valer como título executivo, enquanto escrito particular consubstanciando obrigação subjacente, invocada no requerimento executivo – entendimento prevalecente (ainda que não unânime) na vigência do CPC de 1961, agora expressamente consagrado no art. 703º, nº 1, c) do CPC/2013. (…) III- Extinta a obrigação cartular resultante do aval (por efeito da prescrição), terá o portador do título de alegar factos demonstrativos de que os avalistas se constituíram como sujeitos passivos em relação jurídica (relação subjacente) da qual resulte o direito à prestação (v. g., que se quiseram assumir como fiadores ou até que se verificou uma adjunção à dívida, causa de aposição dos avales) – se o não fizer, não poderá o título valer, enquanto quirógrafo, como título executivo. (…) V- Alegando o apelante/exequente que os apelados/executados subscreveram o aval tendo efectivamente pretendido obrigar-se ao pagamento da quantia em questão, tendo-lhe pessoalmente assegurado esse pagamento, tem de concluir-se estar alegada a relação subjacente em que funda, quanto a eles, o direito à prestação”.
XV - Apesar de ser ter operado a extinção da obrigação cartular o Executado alegou factos concretos demonstrativos de que os Executados se assumiram como fiadores pelo cumprimento das obrigações da avalizada, motivo pelo qual a letra prescrita mostra-se suficiente para figurar como título executivo, nos termos do artigo 703, nº 1, al. c) do CPC.
XVI - Nestes termos, entende-se que a prescrição da obrigação cambiária não impede que o Exequente exija dos Executados o pagamento da quantia em divida, ora titulada por um “mero quirógrafo”, nos termos dos artigos 703, n.º 1, b) do Código de Processo Civil.
Termina entendendo que o presente recurso deve ser julgado procedente e a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que admita o prosseguimento da instância executiva contra todos os executados/embargantes F. R. e mulher M. R., com as demais consequências daí advenientes.
Os executados/embargantes apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido por despacho de 21/10/2020 (refª. 170121084).
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, tendo por base as disposições conjugadas dos artºs 608º, nº. 2, 635º, nº. 4 e 639º, nº. 1 todos do NCPC, aprovado pela Lei nº. 41/2013 de 26/6.
Nos presentes autos, o objecto do recurso interposto pelo exequente/embargado, delimitado pelo teor das suas conclusões, circunscreve-se à questão de saber se, estando prescrita a letra dada à execução, pode a mesma, enquanto quirógrafo, constituir título executivo contra os avalistas do aceitante, aqui executados/embargantes.
Com relevância para a apreciação e decisão da questão suscitada no presente recurso, importa ter presente a seguinte factualidade que resulta dos elementos constantes do processo de execução disponível na plataforma Citius:
1. Na execução ordinária para pagamento de quantia certa, à qual os presentes autos se encontram apensos, instaurada pelo exequente contra os executados/embargantes e outros, foi dada à execução uma letra de câmbio no valor de 30.000.000$00 (correspondente a € 149.639,37), com data de emissão de 23/03/1999 e de vencimento de 31/12/1999, onde consta como sacador o exequente, como sacado e aceitante a Sociedade de Construções A. P., Lda. e como avalistas os executados F. R., M. R., A. P. e D. P. (cfr. doc. 1 junto com o requerimento executivo).
2. Na face da mencionada letra, no local destinado à assinatura do sacador, está aposta a assinatura do exequente J. C., bem como no local destinado ao “aceite”, está colocado um carimbo com o nome da Sociedade de Construções A. P., Lda. e encontra-se aposta a assinatura do executado A. P., em representação daquela (cfr. doc. 1 junto com o requerimento executivo).
3. No verso da referida letra, sob a menção manuscrita “Por mim e por procuração de M. R., dou o meu aval à subscritora aceitante”, encontra-se aposta a assinatura do executado F. R. e sob a menção manuscrita “Por mim e por procuração de D. P., dou o meu aval à subscritora aceitante”, está aposta a assinatura do executado A. P. (cfr. doc. 1 junto com o requerimento executivo).
4. No requerimento executivo o exequente alegou o seguinte [transcrição]: “1 - O Exequente é legítimo portador da letra de câmbio no valor de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos) o que corresponde a €149.639,37 (cento e quarenta e nove mil, seiscentos e trinta e nove euros e trinta e sete cêntimos), emitida em 23/03/1999 e vencida no dia 31/12/1999, que se junta como doc. n.º 1 e se dá por integralmente reproduzida para todos os devidos efeitos legais. 2 - A referida letra, no montante de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos), foi sacada pelo Exequente e aceite pela Sociedade de Construções A. P., Lda., Número de Identificação de Pessoa Coletiva ………. 3 – Tendo sido aposta como data de vencimento o dia 31 de dezembro de 1999. 4 – Foi avalizada pelos Executados, através da aposição, no verso da mesma da seguinte declaração “dou o meu aval à subscritora aceitante”, vinculando-se estes solidariamente com a Sociedade de Construções A. P., Lda. no pagamento do referido valor de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos) correspondente a €149.639,37 (cento e quarenta e nove mil, seiscentos e trinta e nove euros e trinta e sete cêntimos). 5 - Ora, a referida letra foi emitida na sequência da celebração de uma transação comercial entre o Exequente e a Sociedade de Construções A. P., Lda., no valor de 30.000.000 $00 (trinta milhões de escudos). 6 – Tendo sido prestado o aval pelos Executados de forma de garantir o cumprimento da obrigação de pagamento do montante de 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos), querendo-se os Executados efetivamente obrigar solidariamente no pagamento da referida obrigação, emergente da transação comercial celebrada entre a Sociedade de Construções A. P., Lda. e o Exequente. 7 – Assim, os Executados, asseguraram ao Exequente que, na referida data de vencimento da letra, o valor em causa seria pago. 8 – Sucede que, apresentada a letra a pagamento na data do seu vencimento perante a devedora, esta não a liquidou, nem tanto a liquidaram os Executados. 9 – Sendo certo que, até ao presente, nenhum dos Executados procedeu ao pagamento do valor da livrança apesar de instados para o efeito, tendo o Exequente, por via disso, o direito de exigir o seu pagamento. 10 - Ora, a letra cambiária é pagável à vista, isto é, com a sua apresentação perante o devedor, conforme o disposto nos artigos 33º e 34º da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças. 11 – Sendo certo que, a letra cambiária dada à execução é título executivo nos termos do disposto na alínea c) do artigo 703º do Código de Processo Civil, sendo a dívida dela constante certa, líquida e exigível. 12 – Neste sentido doutrina o Supremo Tribunal de Justiça que: “II – Encontrando-se prescrita, a letra perde a natureza cambiária e deixa, por conseguinte, de ser título constitutivo da relação cambiária, para passar a valer como título certificativo da relação obrigacional subjacente, constituindo meio próprio para o reconhecimento dessa dívida pré-existente” (vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 268/12. 0TBMGD-A.P1.S1, em: www.dgsi.pt). 13 - Assim, os Executados devem ao Exequente a quantia de € 149.639,37 (cento e quarenta e nove mil, seiscentos e trinta e nove euros e trinta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos à taxa legal até efetivo e integral pagamento, que na presente data se cifram no montante de € 134.572,94 (cento e trinta e quatro mil, quinhentos e setenta e dois euros e noventa e quatro cêntimos), (cfr, artigo 703º, n.º 2 do Código de Processo Civil). 14 - Pelo que, os Executados devem ao Exequente, na presente data, a quantia global de € 284.212,31 (duzentos, oitenta e quatro mil, duzentos e doze euros e trinta e um cêntimos), acrescida dos juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento, e ainda das custas judiciais” (cfr. requerimento executivo junto aos autos).
5. O requerimento executivo foi expedido, por via electrónica, para o Tribunal de 1ª instância às 18h43 do dia 26/12/2019 e foi autuado em 27/12/2019, tendo no mesmo sido requerida a citação urgente dos executados nos termos do artº. 561º do CPC (refª. 34385499 do processo de execução).
6. Em 7/01/2020 foi proferido despacho a ordenar a citação dos executados (refª. 166573114 do processo de execução).
7. Os executados/embargantes foram citados nos autos de execução em 10/01/2020.
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Apreciando e decidindo.
Na sentença ora sob escrutínio, o Tribunal “a quo” concluiu que a obrigação cambiária decorrente da letra de câmbio dada à execução está prescrita, porquanto os executados/embargantes não foram citados antes do decurso do prazo de 3 anos previsto no artº. 70º da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças (doravante designada LULL), a contar da data de vencimento da letra, e mesmo levando em consideração o prazo de 5 dias a que alude o artº. 323º, n.º 2 do Código Civil, tal obrigação “está prescrita no momento em que os executados/embargantes são (presumidamente) citados no âmbito dos presentes autos para proceder à liquidação do valor nela inscrito e respectivos juros de mora”.
No entanto, entendeu aquele Tribunal que, apesar da obrigação cambiária fundada na letra de câmbio dada à execução estar prescrita, tal não invalida que esse mesmo documento possa subsistir como título executivo, desde que do mesmo conste a causa da obrigação subjacente ou então essa mesma causa seja invocada no requerimento executivo, referindo a este respeito o seguinte:
«Com efeito, desde a alteração do Código de Processo Civil (decorrente do DL n.º 329-A/95, de 12.12), que o nosso legislador entendeu ampliar o elenco dos títulos executivos, por forma a decisivamente contribuir para a diminuição do número das ações declarativas condenatórias, assim se evitando a desnecessária propositura de ações que tivessem por alcance o reconhecimento de um direito do credor sobre o qual não havia verdadeira controvérsia, apenas tendo como finalidade facultar ao mesmo um título executivo.
E no seguimento desse propósito, alargou o espectro dos títulos com força executiva aos documentos particulares que contenham a assinatura do devedor e importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações (cfr. artigo 703.º, n.º 1, al. c) do C.P.C.).
Desta forma, face à atual redação da al. c), do n.º 1, do artigo 703.º do C.P.C., é manifesto que o legislador deixou, propositadamente, de fazer expressa referência ao que na legislação anterior fazia relativamente às letras, livranças, cheques e outros documentos, substituindo-os pela alusão a documentos particulares nas condições e com os requisitos naquela alínea mencionados – v., a propósito, Ac. da RC, de 3.12.98, in CJ/98, tomo 5, pág. 33.
Assim, é hoje pacífico na nossa doutrina e jurisprudência que, em face da redação dada à citada al. c), do n.º 1, do art. 703.º do C.P.C., é admissível que a “letra de câmbio” mesmo não constituindo título cambiário, possa servir de título executivo, enquanto mero documento quirógrafo, desde que obedeça aos requisitos mencionados na citada alínea.
E esses requisitos passam pela verificação nesse tipo de documentos da assinatura do devedor, pela constituição ou reconhecimento de uma obrigação e que dos seus dizeres ou do alegado no requerimento executivo constem os factos constitutivos dessa obrigação de pagamento de quantia certa ou determinável por simples cálculo aritmético.
Conforme doutamente decidiu o V.T.R.G., no processo n.º 554/15.7T8CHV-A (disponível em www.dgsi.pt/jtrg), “O exequente que propõe ação executiva fundada em quirógrafo da obrigação causal subjacente à emissão do cheque tem o ónus de alegar no requerimento executivo, em obediência ao estatuído na al. c), do nº 1, do art. 703º do CPC, os factos, essenciais, constitutivos da relação causal subjacente à emissão do título, sem valor como título de crédito nos termos da Lei Uniforme Sobre Cheques, quando dele não constem, de modo a possibilitar, em termos proporcionais, ao executado, o cumprimento do acrescido ónus probatório que sobre ele recai, como consequência da dispensa de prova concedida ao credor pelo art. 458º do Código Civil, que consagra uma inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental (exceção ao regime geral de distribuição do ónus da prova consagrado no nº 1 do art. 342º deste diploma), passando o devedor a ter de provar a falta da causa da obrigação inscrita no título ou alegada no requerimento inicial para ver os embargos proceder e a execução extinta”.
No mesmo sentido vd. douto Ac. V.T.R.G, datado de 21-11-2019 (disponível em www.gde.mj.pt/jtrg), na parte em que afirma que “pretendendo-se basear a execução num cheque prescrito ao abrigo da alínea c), do nº 1, do artº 703º do CPC, tem o exequente o ónus de alegar os factos essenciais constitutivos da relação subjacente no requerimento executivo, se eles não constarem do próprio documento, de modo a beneficiar da dispensa de prova dos mesmos que resulta da presunção da existência de tal relação fundamental (artº 458º C.C.)”.
Segundo Miguel Teixeira de Sousa, in “A Acção Executiva Singular”, LEX, Lisboa 1998, pág. 68 e 69, relativamente aos fundamentos da obrigação exequenda e à suficiência do título executivo, haverá que distinguir entre as obrigações abstratas e as causais. As primeiras dispensam a alegação de qualquer causa de aquisição da prestação, pelo que, sempre que o título executivo respeite a uma prestação abstrata, o título executivo é suficiente para fundamentar a execução, mesmo que dele não conste qualquer causa debendi. Se por ex., o direito de crédito se encontra titulado por uma letra ou uma livrança, o exequente só tem o ónus de apresentar esse título de crédito, porque ele incorpora a relação cambiária que constituiu a causa de pedir do pedido executivo. Se a obrigação exequenda for causal ela exige a alegação da causa debendi, pelo que se ela não constar ou não resultar do título executivo, este deverá ser completado com essa alegação.
Assim, quando do documento particular não conste a causa da obrigação, “há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emirja ou não dum negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo (arts. 221º-1 CC e 223º-1 CC). No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art. 458º nº1 CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo da causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado” (cfr. José Lebre de Freitas in “A Acção Executiva, depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed., Coimbra Editora 2009, págs. 62 e 63).
No caso, não podemos deixar de registar que o exequente até invocou muito sumariamente a relação subjacente à emissão dessa letra de câmbio.»
Não obstante a posição expendida pelo Tribunal “a quo” nos termos supra transcritos, o mesmo entendeu que, «independentemente desta questão meramente processual no que diz respeito a esse dever processual do exequente em descrever no requerimento executivo a “relação causal”, o endosso ou o aval é uma figura exclusiva das relações cartulares que apenas transfere os direitos cambiários e não os direitos fundados na relação causal (cfr. nesse sentido Ac. TRP de 24-10-2011, no processo n.º JTR000 [pretendendo referir-se ao proc. nº. 1528/10.0TJVNF-A], in www.dgsi.pt).
Neste sentido, decidiu igualmente o V.T.R. do Porto no Ac. datado de 20-03-2012, no processo n.º 2590/09.3TBVLG-A, in www.dgsi.pt, nos termos do qual “o avalista não é, por conseguinte, sujeito da relação jurídica existente entre o portador e o aceitante de uma letra. O avalista é apenas sujeito da relação subjacente ou fundamental à obrigação cambiária do aval, relação essa constituída entre ele e o avalizado e que só é invocável no confronto entre ambos”; o V.T.R.L., no Ac. datado de 29-09-2011, no proc. 2161/06.6TCSNT-A.L1-8, disponível in www.dgsi.pt, nos termos do qual entendeu-se que “[o aval] negócio jurídico cambiário, enquanto a fiança é um negócio jurídico extra cambiário, aquele, doutrinariamente, podendo ser definido como “o negócio cambiário unilateral e abstrato que tem por conteúdo uma promessa de pagar a letra e por função a garantia desse pagamento”. O aval é, nos termos do art. 30º da LULL, o ato pelo qual um terceiro ou um signatário da letra (ou livrança) garante o pagamento desse título, por parte de um dos respetivos obrigados. No caso da fiança, garantia pessoal, a mera descrição exemplificada de algumas fontes das obrigações garantidas e a remissão genérica para todas as operações permitidas em direito pode vir a traduzir-se numa obrigação ilimitada deixando o fiador à inteira mercê do afiançado e do beneficiário da fiança, já o mesmo se não passa certamente no aval, garantia cambiária, cuja responsabilidade é determinada, antes de mais, pelo próprio título e, se tal for o caso, pelo pacto de preenchimento acordado pelas partes”.
Também o V.T.R. de Coimbra, no Ac. datado de 21-05-2013, no proc. 4052/10.7TJCBR-B.C1, in www.dgsi.pt, se decidiu que “o aval é um tipo de vinculação que se esgota no título cambiário, não sobrevivendo a este se a obrigação do avalista estiver ferida de morte, como é o caso de ter sido declarada prescrita nos termos dos art.ºs 71 e 77 da LULL. Com efeito, o aval é uma forma de obrigação única ou específica do título cambiário, a ele não se sobrepondo uma qualquer fiança do respetivo dador, como relação jurídica subjacente.[…], não há nenhuma relação fundamental ou causal do aval. Este tem a sua razão de ser no título cambiário e cessa quando este título desaparece do mundo jurídico”».
Para finalmente concluir que «neste contexto, considerando que os executados/embargantes eram avalistas da obrigação cambiária decorrente do seu aval inscrito na dita letra de câmbio e que agora esta “letra de câmbio” apenas “vale” como um mero “documento quirógrafo”, na sequência da sua notória prescrição, é manifesto que os presentes embargos merecem vencimento porquanto a obrigação cambiária que poderia responsabilizar os embargantes/avalistas pelo pagamento do valor inscrito na letra de câmbio está manifestamente prescrita.»
O exequente, ora recorrente, discorda deste entendimento, defendendo que, no requerimento executivo, indicou a causa da obrigação exequenda, referindo inclusive que a letra [certamente, por lapso, é feita menção a uma “livrança”, quando resulta dos autos de que o título dado à execução se trata efectivamente de uma “letra de câmbio”] foi emitida para garantia do pagamento de uma transacção comercial, na qual os executados se constituíram como garantes, mais tendo alegado que estes efectivamente se pretenderam obrigar solidariamente no pagamento da obrigação em causa e que pessoalmente asseguraram ao exequente que o valor seria pago.
Mais alega o recorrente que, mediante a aposição da sua assinatura na letra de câmbio após terem escrito (com letra legível) a declaração “dou o meu aval à subscritora aceitante”, e por terem garantido pessoalmente ao exequente o pagamento da quantia em causa, reconhecendo a dívida exequenda como sua, nos precisos e exactos termos da sociedade avalizada, conforme alegado no requerimento executivo, os executados vincularam-se ao pagamento ao exequente, na data do seu vencimento, do valor inscrito na letra, constituindo a relação subjacente ao aval efectivamente uma fiança relativamente à obrigação que advinha para o avalizado, ou seja, a vontade dos executados de se obrigarem como fiadores, o que se verificou “in casu”, estendendo-se a obrigação destes à obrigação extra-cartular.
Em conclusão, o recorrente defende que:
- no seu requerimento executivo, alegou os factos constitutivos da relação subjacente que esteve na base da emissão da letra prescrita dada à execução, bem como a relação jurídica existente entre exequente e executados, e que a letra prescrita, enquanto documento particular, se mostra suficiente para figurar como título executivo quanto aos executados, nos termos do artº. 703º, nº. 1, al. c) do NCPC;
- apesar de ser ter operado a extinção da obrigação cartular, por prescrição, o exequente alegou factos concretos demonstrativos de que os executados se assumiram como fiadores pelo cumprimento das obrigações da avalizada, motivo pelo qual a letra prescrita pode constituir título executivo, como documento particular, contra os avalistas da mesma, podendo ser exigido coercivamente a estes o pagamento da quantia em dívida, ora titulada por um “mero quirógrafo”, nos termos da supra citada disposição legal.
Vejamos se lhe assiste razão.
Nos termos do disposto no artº. 10º, nº. 5 do NCPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.
O título executivo pode ser definido como o documento donde resulta a exequibilidade de uma pretensão e, por conseguinte, a possibilidade da realização coactiva da correspondente prestação através de medidas coactivas impostas ao executado pelo Tribunal.
A acção executiva visa, pois, a realização coactiva de uma prestação ou de um seu equivalente pecuniário.
A exequibilidade da pretensão, na qual se contém a faculdade de exigir a prestação e, portanto, a possibilidade de realização coactiva desta prestação, deve resultar do título, devendo esta incorporar o direito do credor de obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação.
Nos casos em que o documento que serve de suporte ao accionamento executivo não incorpora a faculdade de exigir o cumprimento de uma prestação, o título correspondente é extrinsecamente inexequível.
Por outro lado, a exequibilidade intrínseca diz respeito à obrigação exequenda e às suas características materiais. Esta obrigação tem, desde logo, de subsistir no momento da execução: se tiver sido atingida por qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo que possa ser alegado pelo executado, a sua exequibilidade intrínseca tem-se por excluída.
A inexequibilidade extrínseca (do título) e intrínseca (da obrigação exequenda) constituem fundamento idóneo de oposição à execução.
Estabelece o artº. 703º do NCPC (aqui aplicável porque a execução foi instaurada após a entrada em vigor da Lei nº. 41/2013 de 26/6) a regra da tipicidade, ao dispor que à execução apenas podem servir de base os títulos ali enumerados.
De entre os vários títulos previstos no citado normativo, interessa para o caso em análise o mencionado na alínea c) do nº. 1, ou seja, “os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo”, sob pena de não puderem servir de fundamento à execução (artº. 729º, al. a) do NCPC) – cfr. acórdão da RG de 4/04/2017, proc. nº. 49/16.1T8MDL-B, disponível em www.dgsi.pt).
No caso vertente, estamos perante uma letra de câmbio que foi dada à execução como título executivo.
Na definição de Ferrer Correia (in Lições de Direito Comercial, Vol. III, pág. 75 e segtes), letra de câmbio é o título de crédito que enuncia uma ordem de pagamento, que é dada por determinada pessoa (o sacador) a outra (o sacado) em favor de uma terceira pessoa (tomador) ou à sua ordem.
Na letra supra referida, o exequente é o sacador e portador da mesma e nela os executados (entre eles os ora embargantes/recorrentes) apuseram o respectivo aval.
Não se questiona nos autos que a obrigação cartular que a letra dada à execução comportava está há muito prescrita, atentas as datas de vencimento da letra (31/12/1999) e de interposição da acção executiva (26/12/2019) e tendo em consideração o disposto no artº. 70º da LULL.
Tal significa que a letra dada à execução perdeu a sua natureza cambiária.
Como refere Antunes Varela (in Manual de Processo Civil, pág. 74), a prescrição da obrigação cambiária não implica a prescrição da obrigação fundamental subjacente à emissão da letra prescrita, pelo que esta deixa de ser título constitutivo da relação cambiária para passar a valer como título certificativo da relação obrigacional subjacente.
Ou seja, a letra prescrita perde a natureza de título de crédito cambiário, passando a constituir mero documento particular, quirógrafo da dívida causal ou relação substantiva que está na base da sua emissão, constituindo meio próprio para o reconhecimento dessa dívida pré-existente.
Tem sido entendimento da jurisprudência do STJ, no seguimento da doutrina, que reconhecida essa dívida, o credor fica dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário, nos termos do artº. 458º, nº. 1 do Código Civil, que estabelece a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental subjacente à emissão do título.
Assim, se o declarante alegar e provar que esta relação não existe, “a obrigação cai, não lhe servindo de suporte bastante nem a promessa de cumprimento nem o reconhecimento da dívida” (cfr. acórdãos do STJ de 27/05/2014, relator Cons. Pinto de Almeida, proc. nº. 268/12.0TBMGD-A e de 12/09/2019, relatora Cons. Rosa Tching, proc. nº. 125/16.0T8VLF-A, ambos disponíveis em www.dgsi.pt; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 440; Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, Vol. I, pág. 226; Pais de Vasconcelos, Garantias extracambiárias do cheque e negócios unilaterais, in Estudos de Direito Bancário, pág. 292 e Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, pág. 253; Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, Vol. I, pág. 565).
De salientar, como nos dá conta o acórdão do STJ de 27/09/2001 (proc. nº. 01B2089, disponível em www.dgsi.pt) que, na acção executiva, a causa de pedir é “o facto jurídico fonte da obrigação accionada, não sendo o título (executivo) ou documento mais do que especial condição (probatória, necessária e suficiente) da possibilidade de recurso imediato a esta espécie de acção, enquanto base da presunção da existência do correspondente direito”.
Dito de outro modo e na expressão do acórdão do STJ de 27/05/2014 acima referido, “a causa de pedir não é, assim, o documento que corporiza o título executivo, mas antes a relação substantiva que está na base da sua emissão”.
E, segundo a doutrina e a jurisprudência dominantes, é precisamente a autonomia do título executivo relativamente à obrigação exequenda e a consideração do regime de reconhecimento de dívida (artº. 458º, nº. 1 do Código Civil) que leva a admitir que as letras prescritas, enquanto meros quirógrafos da obrigação causal ou subjacente, possam valer como título executivo, desde que, tal como impõe o artº. 703º, nº. 1, al. c) do NCPC, o exequente alegue no requerimento executivo os factos constitutivos da relação subjacente à sua emissão (cfr. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª ed., pág. 77; Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, 1998, Lex, pág. 69; Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 11ª ed., pág. 46; entre outros, acórdãos do STJ de 27/05/2014 e 12/09/2019 acima referidos).
Assim, estando prescrita a obrigação cartular constante de um título de crédito, poderá (e podia, nos termos do artº. 46º, nº. 1, al. c) do CPC de 1961, desde a redacção emergente do DL 329-A/95 de 12/12) ele continuar a valer como título executivo, enquanto escrito particular consubstanciando a obrigação subjacente, invocada no requerimento executivo – entendimento este prevalecente (ainda que não unânime) na vigência do CPC de 1961, agora expressamente consagrado no artº. 703º, nº. 1, al. c) do CPC de 2013 (cfr. José Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 75 e 76; Rui Pinto, A Acção Executiva, 2018, pág. 197 e segtes).
Retornando ao caso “sub judice”, a questão que se coloca é a de saber se, perante o que foi alegado no requerimento executivo, pode o título cambiário prescrito valer como título executivo, enquanto mero quirógrafo da obrigação, relativamente aos avalistas, aqui recorrentes, importando, desde logo, apurar se a relação subjacente foi pelo exequente/recorrente invocada no requerimento executivo.
Ora, tendo em conta a similitude da presente situação com a que foi apreciada no acórdão desta Relação, relatado pelo Sr. Desembargador Ramos Lopes, no processo nº. 7917/19.7T8VNF-A, (disponível em www.dgsi.pt), que se acompanha, dir-se-á que importa ponderar, «por tal ser relevante na situação da presente apelação, que a possibilidade de usar o título cambiário como mero quirógrafo (ou seja, executar a obrigação subjacente usando aquele documento, enquanto simples reconhecimento particular de dívida, nos termos do art. 458º do CC) tem, entre outros requisitos, um “pressuposto material subjectivo”, pois que o “valor de reconhecimento de dívida só pode valer nas relações imediatas, no caso dos títulos de crédito, já que o putativo reconhecimento teria sido entre sacador e beneficiário” (cfr. Rui Pinto, ob. cit., pág. 197 e 198; acórdão do STJ de 12/09/2019 supra citado, no qual se refere expressamente que a possibilidade de usar o título prescrito como quirógrafo fica circunscrita às relações imediatas). No caso dos autos, os executados figuram no documento enquanto avalistas da aceitante (assinaram a letra no verso após aporem a declaração de que davam o seu aval à subscritora aceitante). Porque o título não entrou em circulação (e a autonomia cambiária tem por propósito a protecção da segurança da circulação do título e a posição de terceiros de boa fé (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Vol. III, Títulos de Crédito, pág. 168), sempre se poderiam desconsiderar as características da abstracção, literalidade e autonomia – a obrigação cambiária muda de natureza, nas relações imediatas ou equiparadas, deixando de ser literal e abstracta, facilmente se alcançando a razão prática de tal diversidade de regimes tendo “presente que a disciplina jurídica especial da letra é destinada a assegurar a sua fácil circulação, através da protecção da boa fé de terceiros”, sendo assim natural que “o regime cambiário normal não funcione enquanto o título não ultrapassar o círculo das relações imediatas” (cfr. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. III, 1975, pág. 92 e 93). Assim, nos casos em que a letra não saiu das mãos do inicial portador (o seu sacador) – ou voltou às suas mãos –, não existindo a necessidade de salvaguardar direitos de terceiros de boa fé, tal qual o avalista do aceitante pode invocar perante o sacador/portador, prevalecendo-se delas, excepções de direito material, também este sacador poderá invocar relação extra-cartular havida aquando da subscrição do título, ou seja, invocar a verdadeira situação, fazendo-a prevalecer sobre a que consta do título (cfr. acórdão do STJ de 12/09/2019 supra citado). Por isso, extinta a obrigação cartular resultante do aval (por efeito da prescrição), terá o portador do título de alegar factos demonstrativos de que os avalistas se constituíram como sujeitos passivos em relação jurídica (relação subjacente) da qual resulte o direito à prestação (v. g., que se quiseram assumir como fiadores ou até que se verificou uma adjunção à dívida, causa de aposição dos avales – sendo certo que tal relação subjacente não pode concluir-se da simples prestação do aval (cfr. Oliveira Ascensão, ob. cit., pág. 175) – se o não fizer, não poderá o título valer, enquanto quirógrafo, como título executivo. Aqui reside a discordância do apelante com a decisão recorrida – nesta entendeu-se que o apelante não invocou, para lá da prestação do aval, qualquer relação subjacente na qual fizesse assentar o seu direito à prestação; já o apelante sustenta que a matéria invocada no requerimento executivo (ter sido a letra emitida na sequência da celebração de uma transacção comercial, avalizada pelos executados, os quais assinaram a letra e se vincularam solidariamente ao pagamento da mesma, tendo pretendido efectivamente obrigar-se no pagamento da quantia em causa, assegurando ao executado que o valor em questão seria pago) constitui a alegação dos factos constitutivos de relação subjacente relativamente aos executados. O aval é uma garantia cambiária que não garante a relação subjacente (cfr. Pinto Furtado, Títulos de Crédito, pág. 155) e por isso tal relação subjacente não pode concluir-se (como parece entender o apelante) da simples prestação do aval - a aposição de assinatura em título cambiário é somente constitutiva da respectiva obrigação cambiária, nos termos da lei aplicável – atribuir-se “uma vontade negocial ao subscritor de reconhecer a dívida que deu causa ao ato, equivale de facto a ultrapassar os limites objectivos inerentes ao título de crédito”, nada no título permitindo a “afirmação expressa de uma vontade negocial de reconhecimento da obrigação subjacente” (cfr. Rui Pinto, ob. cit. pág, 200). Certo, porém, que o apelante exequente alega que os executados subscreveram o aval, tendo efectivamente pretendido obrigar-se ao pagamento da quantia em questão (que o apelante podia exigir à aceitante do título em razão de transacção comercial), tendo-lhe pessoalmente assegurado esse pagamento. Assim (e a qualificação jurídica dependerá de interpretação da concreta matéria que vier a ser efectivamente apurada, dado que a distinção entre as duas figuras é difícil) que se poderá concluir de tal matéria que os executados (ao assegurarem pessoalmente o pagamento ao credor exequente/apelante) ou assumiram como sua dívida de terceiro (caso em que a figura jurídica a operar será a da assunção de dívida – art. 595º do CC) ou antes se responsabilizaram acessória e subsidiariamente pelo seu cumprimento (caso em que a figura jurídica a operar será a da fiança – art. 627º do CC). Seja qualificando-se (de acordo com as regras da hermenêutica negocial) tal factualidade como adjunção à dívida (operação pela qual um terceiro – assuntor – se obriga perante o credor a efectuar a prestação devida por outrem, assumindo-a como dívida própria – o assuntorcoloca-se ao lado do primitivo devedor, sem exonerar este, dando ao credor não o direito a uma dupla prestação, mas o direito de obter a prestação devida através de dois vínculos, à semelhança das obrigações com devedores solidários), ou como fiança (pela fiança o terceiro garante a satisfação de dívida alheia) - cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 4ª ed., pág. 350 e 354 -, certo é que se terá de reconhecer que mostra-se alegada pelo exequente/apelante, quanto aos executados/apelados, a relação subjacente em que funda, quanto a eles, o direito à prestação – naquela alegada declaração dos executados, distinta e autónoma da subscrição do aval, em que asseguraram ao exequente que o valor em questão lhe seria pago.»
Nesta conformidade, assiste razão ao exequente/recorrente ao concluir que, no requerimento executivo, alegou os factos constitutivos da relação subjacente relativamente à letra prescrita dada à execução enquanto documento particular e que a letra prescrita se mostra suficiente para figurar como título executivo em relação aos executados, nos termos do artº. 703º, nº. 1, al. c) do NCPC.
A simples menção, no requerimento executivo, ao facto da letra ter sido emitida na sequência da celebração de uma transacção comercial, cujo valor da dívida foi avalizado pelos executados, através da aposição da sua assinatura no verso da letra, que se vincularam solidariamente com a sociedade aceitante no pagamento da mesma, pretendendo-se efectivamente obrigar no pagamento da quantia em causa, e asseguraram ao exequente que o valor em dívida seria pago, é suficiente para esse efeito, porque da mesma decorre a obrigação dos executados procederem ao pagamento do montante de 30.000.000$00, correspondente a € 149.639,37.
Refere-se no sumário do acórdão do STJ de 12/09/2019 (proc. n.º 125/16.0T8VLF-A) supra citado, cuja doutrina sufragamos, que:
I. Como resulta do disposto na alínea c) do nº. 1 do artigo 703º do Código de Processo Civil, a letra prescrita pode, enquanto quirógrafo, constituir título executivo contra os avalistas do aceitante, desde que os factos constitutivos da relação subjacente, não constando da própria letra, sejam alegados no requerimento executivo. II. O aval, como os outros negócios cambiários, tem uma relação subjacente que pode ser de natureza e configuração variável. A circunstância de, as mais das vezes, tal relação se configurar como uma fiança, não permite que assim se entenda na falta da referida alegação, na medida em que aval e fiança são figuras de natureza distinta.
Com efeito, apesar de ser ter operado a extinção da obrigação cartular resultante do aval, por efeito da prescrição, o exequente/recorrente, no requerimento executivo, alegou factos concretos constitutivos da relação subjacente, susceptíveis de demonstrarem que os executados/avalistas se responsabilizaram ou assumiram como fiadores pelo cumprimento das obrigações da sociedade avalizada, e assim se poder concluir que a letra prescrita se mostra suficiente para figurar como título executivo, nos termos do artº. 703º, nº. 1, al. c) do NCPC. No entanto, tais factos foram impugnados pelos executados/embargantes na sua oposição à execução, devendo, por isso, ser objecto de discussão e prova, o que implica o prosseguimento dos presentes autos para o efeito.
Nestes termos, terá de proceder o recurso interposto pelo exequente, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, com as demais consequências daí advenientes, seguindo-se os ulteriores termos processuais.
* SUMÁRIO:
I) - A letra que se encontre prescrita perde a natureza cambiária, para passar a constituir mero documento particular, quirógrafo da dívida causal ou relação substantiva que está na base da sua emissão, constituindo meio próprio para o reconhecimento dessa dívida pré-existente.
II) - Como resulta do disposto no artº. 703º, nº. 1, al. c) do NCPC, a letra prescrita pode, enquanto quirógrafo, constituir título executivo contra os avalistas do aceitante, desde que os factos constitutivos da relação subjacente, não constando da própria letra, sejam alegados no requerimento executivo.
III) - Nos casos em que a letra não saiu das mãos do inicial portador (o seu sacador) – ou voltou às suas mãos –, não existindo a necessidade de salvaguardar direitos de terceiros de boa fé, tal qual o avalista do aceitante pode invocar perante o sacador/portador, prevalecendo-se delas, excepções de direito material, também este sacador poderá invocar relação extra-cartular havida aquando da subscrição do título, ou seja, invocar a verdadeira situação, fazendo-a prevalecer sobre a que consta do título.
IV) - Extinta a obrigação cartular resultante do aval, por efeito da prescrição, terá o portador do título de alegar factos demonstrativos de que os avalistas se constituíram como sujeitos passivos em relação jurídica (relação subjacente) da qual resulte o direito à prestação (v. g., que se quiseram assumir como fiadores ou até que se verificou uma adjunção à dívida, causa de aposição dos avales) – se o não fizer, não poderá o título valer, enquanto quirógrafo, como título executivo.
V) - O aval é uma garantia cambiária que não garante a relação subjacente e por isso tal relação subjacente não pode concluir-se da simples prestação do aval - a aposição de assinatura em título cambiário é somente constitutiva da respectiva obrigação cambiária, nos termos da lei aplicável.
VI) - A simples menção, no requerimento executivo, ao facto da letra ter sido emitida na sequência da celebração de uma transacção comercial, cujo valor da dívida foi avalizado pelos executados, através da aposição da sua assinatura no verso da letra, que se vincularam solidariamente com a sociedade aceitante no pagamento da mesma, pretendendo-se efectivamente obrigar no pagamento da quantia em causa, e asseguraram ao exequente que o valor em dívida seria pago, tem de concluir-se estar alegada a relação subjacente em que funda, quanto a eles, o direito à prestação.
III. DECISÃO
Em face do exposto e concluindo, acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo exequente J. C. e, consequência, decide-se revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que determine o prosseguimento dos autos com as demais consequências daí advenientes, seguindo-se os ulteriores termos processuais.
Custas pelos recorridos.
Notifique.
Guimarães, 26 de Novembro de 2020
(processado em computador e revisto, antes de assinado, pela relatora)
Maria Cristina Cerdeira (Relatora)
Raquel Baptista Tavares (1ª Adjunta)
Margarida Almeida Fernandes (2ª Adjunta)