Não existe fundamento para a admissibilidade do recurso de revista excecional, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, quanto o substrato factual apurado nos Acórdãos recorrido e fundamento, dada a sua diferença, não permite equacionar a contradição invocada pela recorrente, suscetível de fundamentar o pedido de revista excecional.
Chambel Mourisco
CM/LD/JG
Acordam na formação a que se refere o n.º 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:
1. AA(A.), intentou, mediante o formulário a que aludem os arts 98º-C e 98º-D, do Código de Processo do Trabalho, a presente ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, contra Coresa – Conserveiros Reunidos, S.A. N(R.), requerendo que seja declarada a ilicitude ou irregularidade do despedimento, com as legais consequências.
2. Realizada a audiência de julgamento foi proferida sentença, que julgou ilícito o despedimento do A. promovido pela R., tendo esta sido condenada em diversas quantias.
3. Inconformada, a R. interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação decidido julgar o recurso improcedente e confirmar a decisão recorrida.
4. A R. veio interpor recurso de revista excecional, invocando o disposto no art.º 672.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil, tendo formulado as seguintes conclusões:
«A – A montante do presente recurso existe, a priori, a chamada “dupla conforme”, que funciona como instrumento de filtragem das situações que permitem a revista, fundado na opção legislativa de que se duas instâncias e quatro juízes decidiram todos no mesmo essencial sentido, então deverá ter ocorrido o chamado “bom julgamento”.
B - Vem a Empregadora solicitar a apreciação do presente recurso de revista excecional, com o seguinte fundamento: da existência de contradição na mesma questão fundamental de direito entre o Acórdão recorrido e o Acórdão desse mesmo Tribunal da Relação do Porto, de 05/12/2016, proc. N.º 3809/15.7T8BRG.P1 (JERÓNIMO FREITAS), que aqui funcionará como acórdão-fundamento;
C- E o recurso a este tipo excecional de revista justifica-se porque, para além da ponderação de algumas especificidades recursais características da natureza do Direito do Trabalho, quer ao nível substantivo, quer ao nível adjetivo, estão preenchidos os seus requisitos fundamentais. A saber:
1º - Ambos os acórdãos recaem sobre a mesma questão fundamental de direito que é a da densificação e preenchimento do conceito legal de justa causa de despedimento do trabalhador previsto no art.º 351.º/1 do CT, tendo em conta o disposto no n.º 3 desse mesmo dispositivo, quando estão em causa a violação de especiais deveres de confiança e lealdade característicos de determinadas funções laborais, que se encontram genericamente previstos nas alíneas c), e) e f) do art.º 128.º do CT, isto é, dos deveres de realizar o trabalho com zelo e diligência, de cumprir ordens ou instruções do empregador respeitantes à execução ou disciplina no trabalho e de guardar lealdade ao empregador. “In casu” estamos em presença das funções comerciais de vendedor, fundamentais para a Recorrente (e para a empregadora no acórdão-fundamento) porque é uma empresa de natureza comercial, atividade que é exercida no terreno através dos seus vendedores, contratando diretamente com os clientes, a quem cabe em primeira mão realizar o ato comercial de venda, sem qualquer controlo direto da sua hierarquia;
2º- Existe contradição entre a resposta dada pelo acórdão recorrido e pelo acórdão-fundamento, este último já transitado em julgado. No primeiro, não obstante se ter assumido que foram praticados comportamentos suscetíveis de corroer o dever de lealdade, entende-se não estar preenchido o conceito de justa causa de despedimento, considerando que é exigível a prova de factualidade em termos análogos à exigida para o preenchimento dos tipos criminais também decorrentes desses comportamentos, e, concomitantemente, exigindo à entidade empregadora a manutenção do contrato de trabalho do trabalhador, e o segundo invoca, identifica e aplica o direito face a esse mesmo especial dever de lealdade e confiança, fator determinante para a consideração do preenchimento conceito de justa causa de despedimento, no segmento da inexigibilidade da manutenção da relação de trabalho, sem que se torne necessário o preenchimento de factualidade em moldes análogos à que é exigida no foro criminal;
3º - Oposição entre os referidos Acórdãos, uma vez que o sentido das decisões foi diametralmente oposto, num considerando-se o despedimento lícito, e no outro o despedimento ilícito;
4.º - A questão de direito sobre a qual se verifica esta oposição, acima melhor identificada, é a questão essencial em ambos os processos e determinante e decisiva para o seu resultado;
5º - A divergência verifica-se relativamente à aplicação mesmo quadro normativo, “in casu” a subsunção jurídica da mesma materialidade essencial ao conceito de justa causa de despedimento previsto n art.º 351.º do Código do Trabalho ponderados os circunstancialismos referidos no n.º 3 desse mesmo normativo, quando é violado o dever de lealdade e confiança previstos nas alíneas c), e) e f) do art.º 128.º do CT, isto é, dos deveres de realizar o trabalho com zelo e diligência, de cumprir ordens ou instruções do empregador respeitantes à execução ou disciplina no trabalho e de guardar lealdade ao empregador;
6º- Não existe acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a questão jurídica em causa.
D- Também estão preenchidos os pressupostos de recurso de revista “normal”, previstos no art.º 629.º/1 do CPC, designadamente os respeitantes:
(i) à natureza ou conteúdo da decisão, uma vez que se trata de um Acórdão de uma Relação proferido sobre uma decisão da 1ª instância, que conhece do mérito da causa (art.º 671.º/1 do CPC);
(II) ao valor do processo ou da sucumbência, uma vez que o processo é de valor superior à alçada da Relação (€ 141.682,60) e a Recorrente sucumbiu no valor de € 27.201,24 (sem prejuízo da ulterior atualização do valor da pensão em razão da data do trânsito da decisão final), bem como no valor de € 2.352,63 a título de férias não gozadas e de proporcionais de férias e de subsídios de férias e de Natal, e ainda das quantias correspondente às retribuições que o trabalhador deixou de auferir desde trinta dias antes da data da instauração da ação até ao trânsito da decisão final, deduzida das quantias que o autor recebeu e/ou venha a receber a título de subsídio de desemprego, importância essa a liquidar através do competente incidente; finalmente, sem prejuízo de quantias a pagar a título de trabalho suplementar, a apurar em execução de sentença e juros de mora;
(iii) – à legitimidade, uma vez que a Recorrente é a parte principal na causa que ficou vencida (art.º 631.º do CPC).
E- Existem, como é sabido, atividades profissionais subordinadas que são caracterizadas pela necessidade de existência de um especial dever de confiança e lealdade, num grau superior ao legalmente exigido para os contratos de trabalho em que esse dever existe em grau, digamos, “normal”. A jurisprudência e a doutrina têm identificado múltiplas situações em que esse fator é determinante para a subsunção jurídica do conceito de justa causa de despedimento, ao caso concreto, nomeadamente no segmento da “inexigibilidade”, para o empregador, da manutenção da relação de trabalho.
F - Na categoria de contratos de trabalho onde é exigido um especial dever de confiança também se devem inscrever aqueles em que o os trabalhadores desenvolvem funções comerciais de vendedor, por serem fundamentais para as entidades patronais que sejam empresas de natureza comercial e que exercem a sua atividade no terreno através dos seus vendedores, trabalhadores que contratam diretamente com os clientes, a quem cabe em primeira mão representar a sua entidade empregadora e realizar o ato comercial de venda, sem qualquer controlo direto da sua hierarquia.
G - E esta tipologia de situações, de origem e natureza, como se vê, muito diversa, tem em comum aquela que é a questão fundamental de direito que, na opinião da Recorrente, merece uma maior clarificação, nomeadamente porque existem dos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto que estão em contradição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito: o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento acima referido.
H - O acórdão recorrido, na sua fundamentação da sua decisão, considera que a factualidade provada, não obstante apta para corroer a confiança necessária à manutenção do contrato de trabalho do trabalhador despedido, entende que não o é para justificar o seu despedimento, porque não se provou, concretamente, ter o trabalhador carregado para a sua viatura a mercadoria “desaparecida”.
I - E este tipo de interpretação normativa, na opinião da Recorrente, tem, desde logo, duas consequências, que impõem a intervenção do STJ, porque contraditórias com as constantes do acórdão fundamento:
a)- Não pondera com a devida profundidade a existência, nestas relações laborais, de um especial dever de lealdade e confiança;
b)- Impõe às empregadoras, ao nível da imputação objetiva dos factos ao agente, que só considerem estar preenchido o conceito de justa causa de despedimento, na medida em que, no foro criminal, também o esteja o tipo criminal que também seja suscetível de preencher (“in casu” o crime de abuso de confiança).
J - O trabalhador Recorrido está acusado, em sede criminal, pelo DIAP da Secção de Santo Tirso, de um crime de abuso de confiança, p.p. pelo art.º 205.º/1 e 4-a) e 202.º/a), ambos do Código Penal, com julgamento marcado para o próximo dia 18 de fevereiro de 2021.
K - Para o esclarecimento da questão fundamental de direito levantada, caberá responder à seguinte questão: qual é a influência que a reconhecida especial relação de lealdade e confiança característica de determinadas atividades profissionais subordinadas tem no preenchimento do conceito de justa causa de despedimento, e que poderão ditar o despedimento destes trabalhadores, mesmo quando, ao nível da imputação objetiva, não se provou toda a factualidade que é exigida para o preenchimento dos tipos criminais que também possam decorrer desses comportamentos.
L - E esta é a questão fundamental de direito que, salvo melhor opinião e sempre com o devido respeito, merece a intervenção esclarecedora e normalizadora do Supremo Tribunal de Justiça.
M - Do cotejo e análise da materialidade apurada em cada um dos processos judiciais relativos ao acórdão recorrido e ao acórdão-fundamento, resulta que, em ambos os acórdãos:
a)- Os empregadores são empresas que comercializam produtos alimentares;
b)- Os empregadores desenvolvem a sua atividade de forma direta através da sua força de vendas, dividindo em regiões as zonas do território nacional em que o negócio é prosseguido pela sua força de vendas;
c)- Os trabalhadores despedidos, em ambos os Acórdãos, exercem a função de vendedor.
d)- Os trabalhadores despedidos adotaram comportamentos para os quais não estavam autorizados pelas suas chefias, desobedecendo a regras básicas da atividade desenvolvida pelos respetivos empregadores, que deles eram bem conhecidas: no caso do acórdão recorrido o trabalhador solicitou a um cliente a devolução de mercadoria “para desenrascar outros clientes”, assinando uma das respetivas (3) notas de devolução, decisão para a qual necessitava de autorização da sua chefia, não se sabendo do paradeiro dessa mercadoria; no caso do acórdão-fundamento o trabalhador ofereceu produto sem solicitar autorização à sua chefia, e vendeu produto a entidades que já não desenvolviam atividade comercial ou vendeu produto sem promover a respetiva faturação, não se sabendo, ao certo, onde está a maioria da mercadoria ou quem com ela ficou;
e)- Os trabalhadores tinham conhecimento de que esses comportamentos só poderiam ser por eles assumidos após obtenção de autorização das respetivas hierarquias;
f)- Os trabalhadores não têm qualquer passado disciplinar;
g)- Ainda hoje se desconhece o destino da mercadoria que “desapareceu”;
h)- As entidades empregadoras ficaram prejudicadas patrimonialmente no valor das referidas mercadorias cujo paradeiro se desconhece;
i)- Os trabalhadores também estavam acusados de outras infrações de pequeno valor patrimonial, mas também elas suscetíveis de abalar a relação de confiança que deve existir entre as partes;
j)- Os trabalhadores adotaram comportamentos que são também suscetíveis de configurar responsabilidade criminal;
k)- Os trabalhadores defendem-se alegando que estão, de alguma forma, a ser objeto de uma “tramoia” (acórdão-recorrido) ou ”confabulação” (acórdão-fundamento) por parte de clientes ou colegas de trabalho;
l)- Os clientes da empregadora, e outros trabalhadores da empregadora encarregues de esclarecer o sucedido, imputam ao trabalhador a prática desses comportamentos violadores das regras internas da empresa;
m)- Em ambos os acórdãos os trabalhadores confessam ter assinado ou emitido os documentos que materialmente os ligam aos atos de que foram acusados, ainda que lhes pretendam dar explicações que consideram inócuas para efeitos disciplinares;
n)- Em ambos os acórdãos o preenchimento (ou não) do conceito de justa causa passa necessariamente por uma especial ponderação, no quadro de gestão da empresa, do tipo de funções que estes trabalhadores desempenham, do grau de lesão dos interesse do empregador, ao caráter da relação entre a partes, ou entre o trabalhador e os seus companheiros e a outras circunstâncias que foram consideradas relevantes, tudo nos termos do art.º 351.º/3 do CT;
N - Em ambos os Acórdãos a questão fundamental de direito é a mesma: da densificação e preenchimento do conceito legal de justa causa de despedimento do trabalhador previsto no art.º 351.º/1 do CT, tendo em conta o disposto no n.º 3 desse mesmo dispositivo, quando está em causa a violação de especiais deveres de confiança e lealdade característicos de determinadas funções laborais, que se encontram genericamente previstos nas alíneas c), e) e f) do art.º 128.º do CT, isto é, dos deveres de realizar o trabalho com zelo e diligência, de cumprir ordens ou instruções do empregador respeitantes à execução ou disciplina no trabalho e de guardar lealdade ao empregador. “In casu” estamos em presença das funções comerciais de vendedor, fundamentais para os empregadores porque são empresas de natureza comercial, atividade que é exercida no terreno através dos seus vendedores, contratando diretamente com os clientes, a quem cabe em primeira mão realizar o ato comercial de venda, sem qualquer controlo direto da sua hierarquia.
O - Estão em causa comportamentos que, indiciariamente, para além configurarem violações de obrigações de natureza laboral, são suscetíveis de poderem configurar crime (no caso sub judice, crime de abuso de confiança), que já foi objeto de acusação por parte do Procuradoria da República da Comarca do Porto, DIAP – Secção de Santo Tirso, processo n.º 480/18.8T9STS, junto aos autos em ambas as instâncias), e altamente suscetível de criar no espírito da entidade empregadora a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do trabalhador, e tornar inexigível a manutenção da relação laboral.
P - Nestes casos, o segmento da “inexigibilidade” da manutenção do contrato de trabalho é muito mais sensível, deixando de existir, com mais facilidade e naturalidade, o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento dessa relação laboral.
Q - E dessa especialidade só o acórdão-fundamento retira como consequência a consideração de que se deve considerar preenchido o conceito de justa causa de despedimento, criando uma contradição entre as duas decisões que merece, no nosso ponto de vista, uma ação uniformizadora do Colendo Supremo Tribunal de Justiça.
R - No acórdão recorrido o Tribunal “a quo”, aderindo à fundamentação da 1ª instância, dá-se como provado que:
a)- O trabalhador, por diversas vezes (3 vezes em três meses sucessivos), solicitou ao cliente da empregadora SANER a entrega de diversa mercadoria “para desenrascar outros clientes”;
b)- Fez esse pedido, nomeadamente, em reunião presencial com o Diretor Comercial da SANER (cliente da Recorrente), diretamente ao mesmo, como consta expressamente do seu depoimento;
c)- O trabalhador assinou, facto que reconheceu em depoimento de parte, pelo menos uma das guias de devolução que foram emitidas pela SANER com a entrega dessa mercadoria;
d)- O responsável do cliente da empregadora (Pedro Portugal, Diretor Comercial da SANER) afirma, perentoriamente, que foi o trabalhador da CORESA Borges (ora Recorrido) que levantou essa mercadoria, que só ele pode levantar mercadoria e que só há memória na SANER de ter sido ele a levantar a referida mercadoria;
e)- O Diretor Comercial da CORESA, ora Recorrente, tomou diversas iniciativas para tentar esclarecer o sucedido, despistando qualquer hipótese de poder estar em transitários ou ter sido objeto de outros destinos comercias, como ações de “sell-out”, ou ter sido levantada por outros trabalhadores da Recorrente, só restando a explicação de que foi o trabalhador que levantou essas mercadorias, como perentoriamente afirma o responsável comercial da Cliente da Recorrente;
f)- O computador pessoal que estava distribuído ao Recorrido e estava à sua responsabilidade não foi devolvido à empresa;
g)- Uma pen de dados que lhe estava distribuída ao recorrido e estava à sua responsabilidade, não foi devolvida à empresa;
h)- O trabalhador era perfeitamente conhecedor que só com autorização da sua chefia é que podia levantar mercadoria dos clientes, autorização que nunca foi pedida ou existiu;
i)- O Recorrido se esquivou a responder à nota de culpa ou esclarecer o sucedido, evitando contactos com a entidade patronal e quaisquer notificações no âmbito do procedimento disciplinar.
S - É totalmente desconsiderado pelo acórdão recorrido o fator, determinante, que se trata de uma profissão sujeita a especiais deveres de lealdade e confiança, suscetíveis de corroer, com mais facilidade, o substrato de confiança que deve presidir a estes contratos de trabalho, tornando a relação de trabalho inexigível.
T - E é aqui que, salvo melhor opinião, a solução consagrada na alínea c) do n.º1 do art.º 672.º do CPC tem inteiro acolhimento, uma vez que esse dispositivo valora a mera contradição entre o acórdão da Relação de que se pretende interpor recurso e o acórdão-fundamento, “in casu” também do douto Tribunal da Relação do Porto, relativamente à mesma questão de direito que foi essencial para ambos os arestos em confronto. Não é considerada necessária a verificação de uma identidade integral entre os objetos de cada um dos processos em confronto, “bastando que seja comum a questão sobre que incidiram respostas divergentes e que se mostrou fulcral para cada um dos resultados” (neste sentido, ANTÓNIO ABRANTES GERALDES, in “Recursos em Processo Civil”, 6ª edição, Almedina, pág. 441).
U - Em concreto não é necessário que se prove factualidade de onde decorra ter‑se o trabalhador apropriado da mercadoria que “desapareceu”, que está na sua posse por a ter sido visto a carrega-la para o seu veículo, nos moldes em que essa imposição ocorre, por exemplo, para prova dos respetivos crimes no foro criminal. É unicamente necessário que adote comportamentos de onde se possa deduzir, com segurança, ainda que de factos não provados, que possa ter furtado ou abusado a confiança do empregador.
V - Salvo melhor opinião, e sempre com o devido respeito, o acórdão recorrido, sustentando a fundamentação da 1ª instância, exige que se prove factualidade necessária ao preenchimento do crime de abuso de confiança, para que se encontre preenchido o conceito de justa causa de despedimento e seja inexigível ao empregador a manutenção da prestação de trabalho. Tese que é contraditória com a defendida no acórdão-fundamento, ao bastar-se pela prova de que o comportamento provado, ainda que não abranja toda a factualidade necessária para preencher os respetivos tipos criminais, é suficiente para corroer o substrato de confiança que deve presidir ao contrato de trabalho, sobretudo nas relações laborais caracterizadas por especiais deveres de lealdade e confiança, como é o caso dos vendedores.
4. Foi proferido despacho liminar, no qual se considerou: que o recurso é tempestivo; que o recorrente tem legitimidade; que se verificam os requisitos do valor da ação e da sucumbência e ainda a existência de dupla conforme.
5. Distribuído o processo a esta formação, cumpre indagar se estão preenchidos os pressupostos para a admissibilidade da revista excecional referidos na alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.
A revista excecional é um verdadeiro recurso de revista concebido para as situações em que ocorra uma situação de dupla conforme, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
A admissão do recurso de revista, pela via da revista excecional, não tem por fim a resolução do litígio entre as partes, visando antes salvaguardar a estabilidade do sistema jurídico globalmente considerado e a normalidade do processo de aplicação do Direito.
Assim, só é possível a admissão do recurso pela via da revista excecional se estiverem preenchidos os pressupostos gerais de admissão do recurso de revista e se esta não for possível pela existência da aludida situação de dupla conforme.
Nos presentes autos, como resulta do despacho liminar estão preenchidos os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso decorrentes do artigo 629.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, sendo certo que a decisão recorrida confirmou, sem mais, a decisão proferida pela 1.ª instância, pelo que estamos perante uma situação de dupla conforme, nos termos do n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil.
Vejamos:
Como já se referiu, a recorrente invoca como fundamento da admissão do recurso o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil, que refere o seguinte:
1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:
…
c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.
Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2018, 5.ª Edição, pág. 383) refere que esta terceira exceção à regra da irrecorribilidade em situações de dupla conforme está ligada ao vetor da uniformidade jurisprudencial e da certeza na aplicação do direito.
O citado autor acrescenta que «A coerência interpretativa é promovida pela verificação de costumes jurisprudenciais ou de jurisprudência constante ou consolidada, o que determina que certos impulsos em sentido divergente sejam naturalmente atenuados pela previsível revogação em caso de interposição de recurso».
A recorrente indicou como Acórdão fundamento o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 5 de dezembro de 2016, proferido no Proc. n.º 3809/15.7T8BRG.P1.
A alegada contradição foi equacionada pela recorrente nos seguintes termos:
̶ Ambos os acórdãos recaem sobre a mesma questão fundamental de direito que é a da densificação e preenchimento do conceito legal de justa causa de despedimento do trabalhador previsto no art.º 351.º/1 do CT, tendo em conta o disposto no n.º 3 desse mesmo dispositivo, quando estão em causa a violação de especiais deveres de confiança e lealdade característicos de determinadas funções laborais, que se encontram genericamente previstos nas alíneas c), e) e f) do art.º 128.º do CT, isto é, dos deveres de realizar o trabalho com zelo e diligência, de cumprir ordens ou instruções do empregador respeitantes à execução ou disciplina no trabalho e de guardar lealdade ao empregador;
̶ No caso estamos em presença das funções comerciais de vendedor, fundamentais para a Recorrente (e para a empregadora no acórdão-fundamento) porque é uma empresa de natureza comercial, atividade que é exercida no terreno através dos seus vendedores, contratando diretamente com os clientes, a quem cabe em primeira mão realizar o ato comercial de venda, sem qualquer controlo direto da sua hierarquia;
̶ Existe contradição entre a resposta dada pelo acórdão recorrido e pelo acórdão-fundamento, este último já transitado em julgado.
̶ No primeiro, não obstante se ter assumido que foram praticados comportamentos suscetíveis de corroer o dever de lealdade, entende-se não estar preenchido o conceito de justa causa de despedimento, considerando que é exigível a prova de factualidade em termos análogos à exigida para o preenchimento dos tipos criminais também decorrentes desses comportamentos, e, concomitantemente, exigindo à entidade empregadora a manutenção do contrato de trabalho do trabalhador;
̶ O segundo invoca, identifica e aplica o direito face a esse mesmo especial dever de lealdade e confiança, fator determinante para a consideração do preenchimento conceito de justa causa de despedimento, no segmento da inexigibilidade da manutenção da relação de trabalho, sem que se torne necessário o preenchimento de factualidade em moldes análogos à que é exigida no foro criminal.
Vejamos a fundamentação do Acórdão recorrido, no qual se transcreve a fundamentação da sentença da 1.ª instância:
«Da fundamentação da sentença verifica-se que, após a enunciação teórica sobre a justa causa do despedimento e ilicitude do mesmo, não existindo aquela, apreciando o caso concreto, o Mº Juiz “a quo” fundamentou a sua decisão, nos seguintes termos que, diga-se, subscrevemos:
“Será ilícito o despedimento por inexistência de justa causa?
De harmonia com o disposto no art. 351.º, n.º 1, do CT, constitui justa causa de despedimento “o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.”
Exige-se, pois, a verificação, cumulativa, de um requisito de natureza subjetiva – traduzido num comportamento culposo do trabalhador – e um requisito de natureza objetiva – que se traduz na impossibilidade de subsistência da relação de trabalho - e, ainda, existência de nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade de subsistência da relação laboral.
Como decorre do art. 342.º, n.º 2, do C.C. e 387.º, n.º 3, do C.T., é sobre o empregador que recai o ónus de alegar e provar a factualidade que esteve na base do despedimento, a culpa do trabalhador e a impossibilidade prática de manutenção do vínculo laboral.
E nos termos do art. 351.º, n.º 3, do C.T., “Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes”.
Como tem sido reafirmado pela jurisprudência do nosso mais alto tribunal (STJ), verifica-se a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral, quando se esteja perante uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, suscetível de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura do trabalhador.
Atentemos ainda que segundo o disposto no 126.º, n.º 2, do C.T., “Na execução do contrato de trabalho, as partes devem colaborar na obtenção da maior produtividade, bem como na promoção humana, profissional e social do trabalhador”;
E o art.º 128.º do C.T. prevê deveres a que está sujeito o trabalhador, designadamente prevê no seu n.º 1, e nas diversas alíneas, os deveres a que alude a ré – a ré invoca os deveres expressamente elencados na al.s a), c), e), f), g) e h) do art. 128.º/1 do CT, mas afigura-se que não tem, ou só residualmente pode ter-se como pertinente para a análise do caso presente, a alusão às al.s a) e h) - como tendo sido violados (cumpre ao trabalhador, nomeadamente (e por mais de perto contender, pois, com a questão em análise), “realizar o trabalho com zelo e diligência”, “cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho”, “guardar lealdade ao empregador”, “velar pela conservação e boa utilização de bens relacionados com o trabalho que lhe forem confiados pelo empregador” (cf. alíneas c), e), f) e g) do n.º 1 do art. 128.º do CT).
Compreende-se, e concorda-se, em que, atentas as funções do autor – funções de vendedor, exercendo funções numa vasta área geográfica -, e para que possa subsistir a relação laboral, a ré tem de poder confiar no autor, nomeadamente quanto à lisura de procedimentos.
Crê-se pacífico o entendimento – a que já acima se fez referência, e que se afigura correto - que existirá impossibilidade prática de subsistência da relação laboral sempre que, nas circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações pessoais e patrimoniais, ínsitas a tal permanência, sejam de forma a ferir, de modo exagerado e violento, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal, colocada na posição do empregador – cfr António Menezes Cordeiro, Manual de Direito do Trabalho, Almedina, 1999,pág. 821 e ss e Isabel Pereira Ribeiro, A Quebra de Confiança como Critério de Concretização da Justa Causa de Despedimento, I Congresso Nacional de Direito do Trabalho, Almedina, págs 274/275.
E tais argumentos não deixam de impressionar, ainda mais quando é sabido que as partes devem agir de boa-fé, e particularmente nos contratos de execução continuada – art. 762.º n.º 2 do C.C.
Isto posto:
Os factos provados não traduzem, porém – e com o devido respeito por diverso entendimento – violação de deveres que, enquanto trabalhador da ré, impendiam sobre o autor, designadamente do dever cumprir as ordens e instruções do empregador em tudo o que respeite à execução e disciplina do trabalho e, de modo muito particular, o dever de lealdade.
Com efeito, o que resta, e quanto ao essencial das imputações feitas pela ré ao autor, não é qualquer explícita violação de deveres laborais por parte do autor, mas apenas um quadro factual que permite todo o tipo de suposições e conjeturas.
Não se olvidando que estas são já aptas a corroer a confiança da ré no autor, não o podem ser para justificar o seu despedimento.
Salvo melhor entendimento, não é qualquer desconfiança que pode alicerçar a justa causa de despedimento.
Terá de ser uma desconfiança objetivada, positivamente, num comportamento (censurável) do trabalhador.
“No tocante ao dever (geral) de lealdade (…) sobressai o seu lado subjetivo que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes, sendo necessário que a conduta do trabalhador não seja, em si mesma, suscetível de abalar ou obstruir essa confiança, criando no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura do comportamento do trabalhador.” – Ac. do STJ de 14/04/1999, Acs Dout. do Supremo Tribunal Administrativo, Ano XXXVIII, N.º 456, pág. 1653.
Ora, a nosso ver, não é, de todo, o que traduzem os factos efetivamente provados. Na realidade, não sabemos o que se passou.
Não sabemos se o autor praticou os factos graves que a ré lhe imputou, ou se, ao invés, foi vítima de alguma tramoia.
Poder-se-á objetar, é certo, que o autor assinou uma nota de devolução, que isso já é grave o bastante, já tanto o compromete que não pode deixar de se considerar justificada a perda da confiança da empregadora e aceitar a inviabilidade da relação laboral.
Não concordamos.
Também esse facto, em si mesmo, nada demonstra de censurável no comportamento do autor – cf. o que, a propósito, consignamos na motivação da matéria de facto -, e sobre ele só se podem construir, uma vez mais, situações hipotéticas.
Por outro lado, o outro facto que, na perspetiva da ré, sustenta a justa causa de despedimento, é a apropriação pelo autor do computador que lhe foi disponibilizado pela ré.
Ainda aí, note-se, não sabemos ao certo o que se passou.
Mas admitindo que o autor não devolveu o PC e que ainda o tem na sua posse, convenhamos que há toda uma envolvente que muito diminui a gravidade desse comportamento.
Apesar de lhe ter sido disponibilizado tal equipamento, o autor usava de facto o seu computador pessoal, o que era do conhecimento da ré, sem que haja notícia que tenha (então) solicitado a devolução do que lhe pertencia e o autor, ademais e quando se disse impossibilitado de o devolver (por, na sua tese, já o ter entregue), logo se aprestou a indemnizar a ré pelo valor do dito computador – cf. números 23, 25, 61 e 65 da lista dos factos provados.
Sendo, certo, realce-se, que reportando-se a sua antiguidade a 01.02.2002, o autor não tem antecedentes disciplinares – cf. n.º 3 dos factos provados.
Em suma, entendemos que não pode concluir-se, no caso, que à ré/empregadora não é exigível que mantenha o autor como seu trabalhador.
Os factos não autorizam essa inexigibilidade, não ocorrendo justa causa para o despedimento do autor, pois, repete-se, entendemos que a conduta do autor, ainda que se lhe assaque alguma censurabilidade, não reveste gravidade que seja de molde a tornar, na prática, e de forma imediata, impossível a subsistência da relação de trabalho – cf. art. 351.º, nºs 1 e 2 do CT.
Em conclusão, entendemos que o despedimento foi ilícito – cf. art. 381.º b) do CT.”
Reafirmamos que esta fundamentação, pela sua sustentação e acerto, merece o nosso inteiro acolhimento e, consequentemente, concorda-se sem dúvida com a decisão final, não nos suscitando qualquer reserva a declaração de ilicitude do despedimento de que foi alvo o A., dado não se ter apurado qualquer comportamento, do mesmo, que configure a violação de deveres laborais ou contratuais, nem dos que a recorrente lhe imputou na Nota de Culpa, supra transcrita.
Ora, verifica-se desta decisão que a razão, da procedência do pedido do A., para que o contrato fosse considerado findo, por despedimento ilícito, foi o não se ter demonstrado ter sido o A. a levantar dos armazéns da Saner e que não deu entrada em nenhum dos estabelecimentos da Coresa a mercadoria identificada nas guias de devolução, constantes dos autos, nem se o computador e a pen, em causa, se encontram na posse daquele.
Ao contrário, do que defende a recorrente, não foi por se ter considerado que o A. “tenha sido alvo de qualquer “tramoia” que aquela defende “não existe qualquer indício factual na prova que aponte sequer para essa possibilidade”, que se julgou o A. despedido ilicitamente.
Tal aconteceu, porque não se sabe o que se passou, em concreto, no que respeita aos comportamentos imputados pela R. ao A. (na nota de culpa) e como a recorrente bem sabe, a ela competia demonstrar (art. 342º, nº 1, do CC).
Era aquela factualidade, alegadamente, imputada ao A., que tinha de ser demonstrada para que, a seguir, se analisasse se a mesma constituía justa causa do despedimento de que o mesmo foi alvo.
E, sendo desse modo, anteriores ou posteriores vicissitudes ocorridas, eventualmente, relacionadas com as diligências efetuadas pela Ré para recolher informações com vista à imputação daqueles comportamentos ao A. e das diligências efetuadas com vista à notificação da Nota de Culpa ao A. e o saber se a mercadoria identificada nas guias de devolução, não deu entrada nos armazéns da Coresa, ou se essas mercadorias foram ou não objeto de qualquer ação de “sell out”, são totalmente irrelevantes na apreciação a fazer sobre os comportamentos imputados ao A., na nota de culpa, alegadamente, violadores dos seus deveres e susetíveis de constituírem justa causa do seu despedimento, por iniciativa da ré.
Aqueles sim, importava que se tivessem demonstrado, mas tal não aconteceu. Não se sabe o que se passou.
Assim, sem dúvida, concordamos com a decisão recorrida e, por isso, além das constantes naquela, não se justificariam outras considerações nossas. No entanto, tentando não incorrer numa repetição inútil da fundamentação do Tribunal “a quo”, além do já referido, deixaremos, apenas, as seguintes considerações para justificar a nossa concordância.
Refere o art. 381º, do CT, sob a epígrafe, “Fundamentos gerais de ilicitude de despedimento”, que o despedimento por iniciativa do empregador é ilícito:
“(...)
b)Se o motivo justificativo do despedimento for declarado improcedente; (...).”.
Por sua vez, o art. 389º, do mesmo código, quanto aos “Efeitos da ilicitude de despedimento”, dispõe:
“1 – Sendo o despedimento declarado ilícito, o empregador é condenado:
a) A indemnizar o trabalhador por todos os danos causados, patrimoniais e não patrimoniais; (...).”
Assim, pese embora, não nos merecer censura a decisão recorrida, ao decidir ser ilícito o despedimento do A., importa que regressemos à questão da impugnação da decisão de facto, cuja análise interrompemos.
…
Atento o exposto, indefere-se a impugnação da decisão da matéria de facto requerida pela recorrente, mantendo-se nos seus precisos termos a matéria de facto dada como assente pelo Tribunal “a quo”, apenas, com a alteração determinada, nesta sede, através do aditamento do facto supra referido.
…
Por fim, vejamos, a última questão de saber - se ocorre justa causa de despedimento e foi lícito o despedimento do A., como defende a recorrente, ou tal não acontece como se considerou na decisão recorrida.
Ora, mantendo-se inalterada a matéria de facto, nenhuma censura merece a sentença recorrida, cuja subsunção jurídica dos factos se mostra corretamente efetuada, em concreto, quanto à declarada ilicitude do despedimento do A. e à condenação da Ré, nas quantias em que foi, enquanto decorrência legal daquela.
Pelo que, aquela questão colocada no recurso, de saber se ocorre justa causa de despedimento e foi lícito o despedimento do A., como defende a recorrente, improcede totalmente, sem necessidade de outras considerações quanto a ela, face ao antes exposto.
Dizendo-se, apenas, que não se tendo apurado a infração de qualquer dever laboral e contratual, por parte do A., aquela questão da apreciação da justa causa, com vista a ver declarada a licitude do despedimento, mostra-se prejudicada face a tudo o que deixámos exposto.» (fim da transcrição parcial do acórdão recorrido)
Por seu turno, no acórdão fundamento, pode ler-se a seguinte passagem:
«Como se disse, o autor violou os deveres de diligência e obediência e, com particular gravidade, o dever de lealdade. Acresce que a prática destes ilícitos disciplinares foi intencional, estando-se, pois num quadro de culpa grave.
Neste contexto, crê-se ser forçoso concluir pela impossibilidade prática e imediata da relação de trabalho em concreto, reconduzida à ideia de “inexigibilidade da manutenção vinculística”, no sentido de comprometer, desde logo, e sem mais o futuro do contrato [AC STJ de 29.4.2009, Conselheiro Sousa Grandão, acima citado].
É certo que o despedimento, face à tutela constitucional do princípio da segurança no emprego, só é juridicamente aceitável quando nenhuma outra medida se mostre adequada a salvaguardar a preservação e o equilíbrio da relação contratual. Porém, tudo ponderado no quadro dos factos apurados, não cremos estar perante um caso suscetível de ser sanado através da aplicação de uma medida sancionatória não expulsiva, mas antes perante uma crise contratual irremediável.
Numa perspetiva subjetiva, os deveres violados estão intrinsecamente relacionados com a necessidade de existir uma relação de confiança entre as partes, exigindo do trabalhador que paute a sua conduta de modo a não comprometer essa confiança. E, numa perspetiva objetiva, reconduzem-se à necessidade do ajustamento do comportamento do trabalhador ao princípio da boa-fé no cumprimento das suas obrigações.
Ora, atento o quadro factual na sua globalidade, a conduta do recorrente não só pôs em causa a necessária relação de confiança, como a comprometeu definitivamente. Não é de todo exigível à R., como não o seria a qualquer outra entidade empregadora colocada perante o mesmo circunstancialismo, que creia na idoneidade futura do comportamento do A.
Por conseguinte, não merece acolhimento a posição do A., ou seja, no confronto dos interesses antagónicos das partes, não vemos fundamento bastante para dar prevalência ao seu interesse na conservação do contrato de trabalho, em detrimento do interesse da R., considerando-se como razoável e justificada, a alegada perda de confiança da R. no seu comportamento futuro, de tal modo que torna inexigível a manutenção daquele ao seu serviço.»
*
Tanto no acórdão recorrido como no acórdão fundamento discute-se a existência de justa causa dos despedimentos efetuados.
O conceito de justa causa integra, segundo o entendimento generalizado tanto na doutrina, como na jurisprudência, três elementos: a) um elemento subjetivo, traduzido num comportamento culposo do trabalhador, por ação ou omissão; b) um elemento objetivo, traduzido na impossibilidade da subsistência da relação de trabalho; c) o nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade.
O referido conceito carece, em concreto, de ser preenchido com valorações. Esses valores derivam da própria norma e da ordem jurídica em geral. O legislador, no n.º 2, do art.º 351.º, do Código do Trabalho, complementou o conceito com uma enumeração de comportamentos suscetíveis de integrarem justa causa de despedimento.
De qualquer forma, verificado qualquer desses comportamentos, que constam na enumeração exemplificativa, haverá sempre que apreciá-los à luz do conceito de justa causa, para determinar se a sua gravidade e consequências são de molde a inviabilizar a continuação da relação laboral.
Portanto, logo à partida, temos de ter um comportamento culposo do trabalhador, que tem de ser alegado e provado pelo empregador.
Ora, confrontando o acórdão recorrido com o acórdão fundamento logo se constata a diversidade das situações concretas apreciadas e julgados em cada um dos processos.
O acórdão fundamento é claro ao afirmar que o autor violou os deveres de diligência e obediência e, com particular gravidade, o dever de lealdade, acrescentando que a prática destes ilícitos disciplinares foi intencional, estando-se, pois num quadro de culpa grave, daí se ter concluído existir justa causa para o despedimento.
No acórdão recorrido, com grande limpidez, afirma-se «concorda-se sem dúvida com a decisão final, não nos suscitando qualquer reserva a declaração de ilicitude do despedimento de que foi alvo o A., dado não se ter apurado qualquer comportamento, do mesmo, que configure a violação de deveres laborais ou contratuais, nem dos que a recorrente lhe imputou na Nota de Culpa, supra transcrita».
A sentença da 1.ª instância também é elucidativa quanto a este aspeto ao afirmar «Os factos provados não traduzem porém – e com o devido respeito por diverso entendimento – violação de deveres que, enquanto trabalhador da ré, impendiam sobre o autor, designadamente do dever cumprir as ordens e instruções do empregador em tudo o que respeite à execução e disciplina do trabalho e, de modo muito particular, o dever de lealdade».
Temos assim, que na situação apreciada e julgada no acórdão recorrido o empregador não logrou provar a factualidade suscetível de integrar justa causa para o despedimento, ao contrário do que aconteceu na situação apreciada e julgada no acórdão fundamento em que essa prova foi feita.
O substrato factual apurado nos dois Acórdãos em causa (recorrido e fundamento), dada a sua diferença, não permite equacionar a contradição invocada pela recorrente, suscetível de fundamentar o pedido de revista excecional ao abrigo do disposto no art.º 672.º n.º 1, alínea c) do CPC.
Pelo exposto, acorda-se em indeferir a admissão da revista excecional interposta pela recorrente do acórdão do Tribunal da Relação
Custas pela recorrente.
Transitado em julgado remeta ao Exmo. Juiz Relator para apreciação da questão suscitada nas conclusões da recorrente de X a KK.
Lisboa, 28 de outubro de 2020.
Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 20/2020, de 1 de maio, declaro que os Exmos. Juízes Conselheiros adjuntos António Leones Dantas e Júlio Manuel Vieira Gomes votaram em conformidade.
Chambel Mourisco (relator)