I.Permitiria a declaração de dupla conformidade a existência de uma declaração de voto em que o Juiz adjunto expressasse tão só as razões por que votou o acórdão, alguma desinência lateral na sua posição, ou o seu entendimento discordante quanto a algum aspeto que não colidisse nem com os fundamentos essenciais, nem com o resultado que o Acórdão encerra.
II.Um voto de vencido não apenas quanto à admissibilidade do recurso da Recorrente, mas também quanto à extinção do mandato, por se entender que este subsistiu após a consecução da sua finalidade - a constituição da propriedade horizontal - «no que toca a um conjunto de aspectos acessórios», já não pode concorrer para a verificação de dupla conformidade. Na verdade, se para o início do prazo de prescrição relevar, como parece, o termo do mandato, a posição do vencido quanto a esse aspeto colidirá com o resultado do acórdão e os seus fundamentos essenciais.
III.Importa apurar se foi convencionado que a obrigação de prestação de contas a cargo do mandatário era periódica e anual, sendo-lhe por isso aplicável o prazo de prescrição mais curto, previsto no art. 310, al. g) do CC, ou se o conteúdo dos contratos não afastou a regra prevista no art. 1161, al. d) do CC, que prevê a obrigação de prestar contas no fim do mandato ou quando o mandante as exigir, aplicando-se, por isso, o prazo de prescrição ordinário de 20 anos, como entendiam, no caso, os Recorrentes.
IV.O Acórdão deste STJ (Revista n.º 1465/07 - 6.ª Secção, 05-07-2007) considera que  “A norma constante da alínea d) do art. 1161.º do Código Civil que estipula a obrigação do mandatário prestar contas do mandato ao mandante pode ser afastada por convenção entre as partes, não tendo, assim, natureza imperativa.”.
A Relação no fundo aderiu à fundamentação da 1.ª Instância, a qual, por sua vez, quanto ao início do prazo da prescrição, parece assentar na demonstração que as partes haviam convencionado: ou seja, (1) a obrigação de prestar contas anualmente – daí a aplicabilidade do art. 310 alínea g) do CC – e (2) que a execução do mandato conferido à R. se extinguiria (por cumprimento) quando fossem celebradas as escrituras de constituição de propriedade horizontal e fosse realizada a divisão das frações com atribuição das mesmas aos (a partir daí) condóminos.
Resulta dos autos que o dever de prestação da Ré, por auto vinculação, era de natureza anual. O que faz cair a situação prescricional sob a alçada da alínea g) do art. 310 do Código Civil. Sendo a prescrição de cinco anos, nessa consequência. É aliás o que o Tribunal da Relação considera, subscrevendo e confirmando a decisão da 1.ª Instância.
Termos em que se confirma o Acórdão da Relação de Lisboa na sua integralidade.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I
1.Os Autores, AA, “MEDIOSPITAL - EQUIPAMENTOS E PRODUTOS HOSPITALARES, LDA” E BB, no âmbito de um processo especial de prestação de contas, interpõem recurso de revista, que tem como objeto um Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o qual julgou totalmente improcedentes as apelações de ambas as partes, confirmando integralmente a decisão recorrida.
2.A decisão de 1.ª Instância, retificada por despacho proferido em 06-02-2018, decidira o seguinte:
“a) julgou extinto em 19.01.2001, o contrato de mandato de 28.09.1996, entre os AA. Mediospital – Equipamentos e Produtos Hospitalares, Lda., e BB, e terceiros intervenientes como mandantes, e a Ré M2PR – Promoção Auto-Construção Imobiliária, Lda., como mandatária, referente ao Empreendimento do Lote B3 ao ..., com o teor do doc 5 junto ao requerimento inicial, fls 76/79;
b) julgou extinto em 27.07.2004, o contrato de mandato de 15.04.1998, entre a A. Mediospital – Equipamentos e Produtos Hospitalares, Lda., e terceiros intervenientes como mandantes, e a Ré M2PR – Promoção Auto-Construção Imobiliária, Lda., como mandatária, referente ao Empreendimento do Lote D1 ao ..., com o teor do doc 22 junto ao requerimento inicial, fls 275/279;
c) julgou extinto em 24.05.2006, o contrato de mandato de 27.05.2000, entre o A. AA e terceiros intervenientes como mandantes, e a Ré M2PR – Promoção Auto-Construção Imobiliária, Lda., como mandatária, referente ao Empreendimento em ..., com o teor do doc 33 junto ao requerimento inicial, fls 418/420;
d) julgou prescrito o direito dos AA. Mediospital, Lda e BB exigirem à Ré M2PR, Lda., a prestação de contas referente ao Empreendimento do Lote B3 ao ..., pedido de que absolveu a Ré;
f) julgou prescrito o direito da A. Mediospital, Lda., de exigir à Ré M2PR,Lda, a prestação de contas referente ao Empreendimento do lote D1 ao ..., do período anterior a 31.12.2003, e condenou a dita M2PR, Lda., na obrigação de prestação de contas referente ao mesmo Empreendimento, do período de 01.01.2004 a 27.07.2004;
h) julgou prescrito o direito do A. AA de exigir à Ré M2PR, Lda, a prestação de contas referente ao Empreendimento em ..., do período anterior a 31.12.2003, e condenou a dita M2PR, Lda., na obrigação de prestação de contas referente ao mesmo Empreendimento, do período de 01.01.2004 a 24.05.2006;
j) ordenou a notificação da Ré para em 20 dias apresentar as contas em que foi condenada, advertindo-a nos termos do artigo 942.º, n.º 5, do C. P.Civil.”
3.Os autores vieram interpor recurso do Acórdão recorrido, na parte em que este julgou improcedente o recurso de apelação interposto por esses autores, confirmando a decisão de 1.ª Instância, na parte em que esta julgou prescrito o direito dos autores de exigirem à Requerida M2PR – Promoção Auto-Construção, Lda., a prestação de contas.
Tal é o dispositivo do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de que os autores vieram interpor recurso de revista:
“5. Pelo exposto e em conclusão, com os fundamentos enunciados no ponto 4. do presente acórdão, julgam-se improcedentes as conclusões das alegações de ambos os recursos intentados pelos apelantes e, consequentemente, confirma-se integralmente a decisão recorrida.
Custas de cada uma das apelações pelos respectivos recorrentes.”.
Dá-se por reproduzido (louvando-nos também no princípio da parcimónia), brevitatis causa, o douto, erudito, extenso e documentado ponto 4 do referido Acórdão.
4.Tendo ocorrido, quanto à decisão da Relação, uma declaração de voto (de vencido em alguns aspetos), que poderia eventualmente não afetar o núcleo decisório essencial, apreciada a questão preliminarmente, foram notificadas as partes para se pronunciarem sobre a questão da existência ou não da dupla conformidade.
5.AA, “MEDIOSPITAL - EQUIPAMENTOS E PRODUTOS HOSPITALARES, LDA” e BB pronunciaram-se, começando por esclarecer não conseguirem alcançar com segurança a questão colocada pelo relator do processo, e concluindo, depois de considerações sobre o voto de vencido, pela tese da inexistência de dupla conformidade fundada na sua existência.
6.Em contrapartida, a contraparte pronunciou-se favoravelmente à declaração da dupla conformidade.
II
Fundamentação
1.O objeto do recurso de revista, limitado pelas respetivas conclusões, restringe-se à questão da exceção de prescrição julgada parcialmente verificada pela 1.ª Instância em termos que foram confirmados pela Relação.
2.Alegam os recorrentes que o acórdão recorrido confirmou a decisão proferida na 1.ª Instância, mas com declaração de voto de vencido, o que torna admissível a revista. Reiteraram a tese da inexistência da dupla conformidade, depois de interpelados a pronunciarem-se, por despacho do relator (como se disse supra).
3.Poderia, com efeito, pensar-se que não lhes assiste razão. E daí ter-se formulado a questão, para que ambas as partes se pronunciassem, em tempo, tendo antes de mais presente o disposto no n.º 3 do art. 671 do CPC.
4.Como se entendeu no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 15-03-2018 (Revista n.º 473/09.6TCGMR.G2.S1, Relatora: Cons.ª Fernanda Isabel Pereira), não obsta à verificação de dupla conforme e, como tal, à verificação da previsão do n.º 3 do art. 671 do CPC, a existência de um voto de vencido na Relação limitado a uma questão processual que não colide com a questão de mérito que é objeto do recurso de revista.
No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão da Formação de 10-12-2009 (Revista excecional n.º 725/08.2TVLSB.L1.S1, Relator: Cons.º Sebastião Póvoas, incluído no Boletim anual de 2009 elaborado pela Assessoria Cível, disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2017/10/revistaexcepcional2009.pdf). Nesse aresto, pode ler-se que “a dupla conforme verifica-se se a Relação confirma sem voto de vencido o julgado na 1.ª instância, sendo que este conceito de voto de vencido é tomado em sentido estrito – desacordo com o segmento decisório – não abrangendo a mera discordância, dos fundamentos vertidos em declaração apendiculada ao aresto.”
Veja-se também o Acórdão da Formação de 29-09-2009 (Revista excecional n.º 419/08.9TBPTG.E1.S1, indicado no mesmo Boletim Anual suprarreferido), no qual também se entendeu que não integra o conceito de “voto de vencido” previsto no n.º 3 do art. 671 do CPC, uma mera declaração de voto que vem a traduzir-se, a final, em concordância conclusiva.
5.Na doutrina, o Conselheiro Abrantes Geraldes (in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 2018, p. 371), defende que:
“(…) desde que o valor do processo e o da sucumbência o permita, nos termos do art. 629, n.º 1, para que se mantenha aberta a porta da revista normal, sem necessidade de procurar por outras vias a superação da “trincheira” colocada no acesso normal ao Supremo, basta a existência de voto de vencido quanto à decisão ou a algum dos fundamentos essenciais. Já será insuficiente a existência de declaração na qual o adjunto expresse tão só as razões por que votou o acórdão ou a sua posição quanto a algum aspecto que não colida nem com os fundamentos essenciais, nem com o resultado.”(sublinhado nosso).
6.No presente caso, um dos Juízes Desembargadores Adjuntos subscritores do acórdão declarou que ficou “vencido conforme declaração que segue junta”. Em anexo ao acórdão, consta uma “declaração de voto”.
7.Assim sendo, embora eventualmente prima facie possa afigurar-se que a declaração de voto não colide com o essencial da decisão, tal não é, a final, a conclusão a que se chega.
Importa interpretar e aplicar (e fazê-lo em termos hábeis, cum grano salis, não valendo a tese in claris... porque nada é, realmente, à partida “claro” para efeitos hermenêuticos – cf., v.g., Glauco Barreira Magalhães Filho, Hermenêutica Jurídica Clássica, 3a ed., Florianópolis, Conceito, 2009, máx. p. 21 ss.) a referida norma (condensada ou incorporada no art. 671, n.º 3), especificamente na parte em que na mesma se alude à inexistência de “voto de vencido” e apreciar se, no caso concreto, foi emitido um voto de vencido que realmente seja apto a obstar à verificação de dupla conforme. Quamvis sit manifestissimum edictum praetoris, attamen non est negligenda interpretativo eius (D. 25, 4, 1, 11). Cf. ainda, v.g., Savigny, Tr. Dt. Romano, 32 e 50).
Ora, na verdade, o presente voto de vencido manifestado e junto ao Acórdão recorrido é realmente apto a obstar à verificação da dupla conformidade.
8.Colocando a questão objetiva e sinteticamente:
É na verdade insuficiente (e permitiria a declaração de dupla conformidade) a existência de uma declaração de voto em que o Juiz adjunto expressasse tão só as razões por que votou o acórdão, com alguma desinência lateral na sua posição, ou o seu entendimento discordante quanto a algum aspeto que não colidisse nem com os fundamentos essenciais, nem com o resultado que o Acórdão encerra.
Porém, o Desembargador signatário da referida declaração votou vencido, não apenas quanto à admissibilidade do recurso da Recorrente, mas também quanto à extinção do mandato, por entender que este subsistiu após a consecução da sua finalidade - a constituição da propriedade horizontal - «no que toca a um conjunto de aspectos acessórios».
Ora, se para o início do prazo de prescrição relevar, como parece, o termo do mandato, a posição do vencido quanto a esse aspeto colidirá frontalmente com o resultado do acórdão e os seus fundamentos essenciais.
9.Nesse sentido, nada obsta ao conhecimento por este Supremo Tribunal, do thema decidendum, pois não se verifica dupla conforme.
O recurso é admissível nos termos do disposto no art. 671, n.º 1, tendo este Supremo Tribunal de Justiça decidido em Acórdão proferido em 13-11-2003 (Revista n.º 2826/03 - 2.ª Secção, Relator: Conselheiro Santos Bernardino, publicado em www.dgsi.pt) que o art. 1014-A, n.º 4, do anterior CPC, ao qual corresponde, sem alterações relevantes, ao atual artigo 942, n.º 4, do atual CPC, não pode interpretar-se no sentido de que da decisão proferida em processo especial de prestação de contas, sobre a existência ou inexistência da obrigação de prestar contas, apenas cabe recurso de apelação, mas sim com o sentido de que de tal decisão cabe sempre, independentemente do valor da causa, recurso de apelação.
10.Atentas as conclusões do recurso de revista, importa apreciar a interpretação do teor dos contratos de mandato celebrados pelas partes, no sentido de apurar se foi convencionado que a obrigação de prestação de contas a cargo do mandatário era periódica e anual, sendo-lhe por isso aplicável o prazo de prescrição mais curto previsto no art. 310, al. g) do CC, ou se o conteúdo dos contratos não afastou a regra prevista no art. 1161, al. d) do CC, que prevê a obrigação de prestar contas no fim do mandato ou quando o mandante as exigir, aplicando-se, por isso, o prazo de prescrição ordinário de 20 anos, como entendem os Recorrentes.
11.Sobre a questão especifica em causa nesta ação, não abundará a jurisprudência. Sobre o carácter supletivo da norma contida na alínea d) do art. 1161 do Código Civil, existe, e acessível. Admitindo-se que as partes possam convencionar que a obrigação de prestação de contas a cargo do mandatário possa ser periódica e anual. Nesse sentido, foi proferido o seguinte acórdão, tendo igualmente relevância a doutrina nele citada sobre a matéria em apreço:
A norma constante da alínea d) do art. 1161.º do Código Civil que estipula a obrigação do mandatário prestar contas do mandato ao mandante pode ser afastada por convenção entre as partes, não tendo, assim, natureza imperativa.
Revista n.º 1465/07 - 6.ª Secção, 05-07-2007. Relator: Conselheiro João Camilo – cf.
Para além do contrato de mandato, no sentido de existir liberdade contratual em outros contratos no que respeita à obrigação de prestação de contas, relembre-se o seguinte acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, a propósito da associação em participação:
I - A norma do art.º 31 do DL n.º 231/81, de 28 de Julho (que regula os contratos de consórcio e de associação em participação), não pode ser vista como algo que contem um comando imperativo que não pode ser alterado ou eliminado por acordo das partes.
II - Na verdade, estamos perante a esfera meramente contratual onde o princípio da liberdade negocial tem a sua mais vasta aplicação (art.º 405 do CC), a menos que estejam em causa princípios conformadores de interesse e ordem pública; vale isto por dizer que é perfeitamente possível às partes contratantes acordarem - quanto ao aspecto específico de um dever contratual de prestação de contas - que esse dever seja cumprido por uma delas ou pela outra já que são elas quem melhor conhece o condicionalismo negocial que melhor permite a execução do contrato.
III - Por “assento” de 02-02-84, o STJ fixou jurisprudência quanto a norma inserta no CCom no sentido de que "no contrato de conta em participação o associante é obrigado a prestar contas ao associado, salvo havendo convenção em contrário" (DR, l.ª série, de 15-03-88); tal “assento” tem como pressuposto basilar o funcionamento da regra da liberdade contratual, ou seja, as partes podem alterar por convenção o ditame legal porque não há norma imperativa que impeça o acordo das partes.
IV - Se estas podem isentar o contraente obrigado a deixar de prestar contas, por maioria podem os contraentes acordar no sentido de que esse dever seja prestado por outro que não por aquele que supletivamente a lei nomina.
Revista n.º 2602/05 - 2.ª Secção - 26-01-2006. Relator: Conselheiro Noronha do Nascimento (Relator). (Não se encontra publicado na dgsi).
E o Assento n.º 5/88 de 2-02-88 fixou a seguinte jurisprudência:
“No contrato de conta em participação, regulado pelos artigos 224.º a 229.º do Código Comercial, o associante (sócio ostensivo) é obrigado a prestar contas ao associado (sócio oculto), salvo havendo convenção em contrário.”
(Relator: Conselheiro Meneres Pimentel. Publicado no DR, Série I de 15-02-1988, tendo sido parcialmente republicado, a partir do ponto n.º 8, no DR, Série I de 1988-07-13, não tendo havido, contudo, qualquer alteração do indicado texto do Assento.
Texto Integral online:
Ainda sobre a obrigação de prestação de contas, refira-se a doutrina do seguinte acórdão:
I - A prestação de contas não está dependente da declaração judicial de nulidade da sociedade irregular.
II - Se uma sociedade é nula por vício de forma, por não se ter constituído por escritura pública, a própria nulidade do ente social faz deflagrar a obrigação de prestar contas sem ter que haver a chancela prévia da declaração judicial daquela nulidade.
III - A obrigação de prestar contas nunca está dependente do termo da administração de bens ou negócios alheios, sob pena de o credor poder ficar à mercê de quem a deve; a obrigação de prestar contas é exigível durante o período em que a gestão de negócios de outrem é feita.
IV - Neste particular o sistema legal é claro: o credor pode exigir em qualquer momento a prestação de contas, a menos que a lei imponha prazos ciclicamente renováveis em que elas possam ser exigidas; é, aliás, o que se passa no contrato de mandato (art.º 1161 al. d), do CC).
V - Na administração da herança as contas podem ser exigidas (devem ser prestadas) anualmente (art.º 2093 do mesmo código) independentemente da partilha daquela, sistema que é perfeitamente lógico: se a partilha ocorrer vinte anos depois, não faz sentido que o cabeça-de-casal fique indefinidamente desonerado de uma obrigação que, à data da partilha, poderá originar problemas sérios de cumprimento.
Revista n.º 494/99 - 2.ª Secção - 07-10-1999. Relator: Noronha Nascimento. (Texto integral: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0c76643bce2c20bf80256c0800537c71?OpenDocument).
12.Sublinhe-se, portanto, desde logo, que, como consta do Sumário de citado aresto:
IV - Neste particular o sistema legal é claro: o credor pode exigir em qualquer momento a prestação de contas, a menos que a lei imponha prazos ciclicamente renováveis em que elas possam ser exigidas; é, aliás, o que se passa no contrato de mandato (art.º 1161 al. d), do CC).
Por uma simples interpretação literal, declarativa, se diria que no caso específico do contrato de mandato valeria a regra geral da exigibilidade da prestação de contas a qualquer momento. Não se necessitando sequer de acordo entre as partes. Pelo art. 1161, al. d):
“O mandatário é obrigado:
(...)
d) A prestar contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir;”
13.Porém, há que proceder a uma interpretação desde logo integrada no conjunto das fontes, nomeadamente jurisprudenciais, que esclarecem e iluminam as legais – designadamente à luz dos desafios dos casos concretos: ao ponto de haver uma tradição britânica, relatada designadamente pelo comparatista Eric Agostini, segundo a qual uma lei nessa ordem jurídica só seria “verdadeiramente lei” depois de aplicada por um tribunal. Aliás, coisa semelhante afirma o Juiz do Supremo Tribunal dos EUA Benjamin N. Cardozo (The Nature of Judicial Process, Londres, Yale Univ. Press, 1960, trad. port. de Silvana Vieira, A natureza do processo judicial, São Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 93): “O Direito nunca é; está sempre prestes a ser. Só se torna real quando encarnado numa decisão judicial (...)”.
Assim, o douto Acórdão da Relação, de forma que também deseja sintética (o princípio da parcimónia tem aqui pleno cabimento), recorda o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça (Revista n.º 1465/07 - 6.ª Secção, 05-07-2007. Relator: Conselheiro João Camilo, já citado supra) que considera que
“A norma constante da alínea d) do art. 1161.º do Código Civil que estipula a obrigação do mandatário prestar contas do mandato ao mandante pode ser afastada por convenção entre as partes, não tendo, assim, natureza imperativa.”.
É que o magno princípio da liberdade de celebração e de estipulação de contratos (ou seja, o princípio da liberdade negocial) prevalece sobre as normas pontuais de natureza supletiva, ou, em geral, que podem ser afastadas pelo explícito exercício desse princípio. Há, na verdade, mesmo que se não remeta para a pirâmide normativa do positivismo lógico de Hans Kelsen (na sua Reine Rechtslehre, trad. port. de João Baptista Machado, Teoria Pura do Direito, 4.ª ed., Coimbra, Arménio Amado, 1976), uma evidente prevalência de princípios sobre normas, e em especial sobre normas que têm apenas como ratio o não deixar o regime de uma dada situação social no vazio.
14. Importa ainda sublinhar que a Relação no fundo adere à fundamentação da 1.ª Instância a qual, por sua vez, quanto ao início do prazo da prescrição, parece assentar na demonstração que as partes haviam convencionado: ou seja, (1) a obrigação de prestar contas anualmente – daí a aplicabilidade do art. 310 alínea g) do CC – e (2) que a execução do mandato conferido à R. se extinguiria (por cumprimento) quando fossem celebradas as escrituras de constituição de propriedade horizontal e fosse realizada a divisão das frações com atribuição das mesmas aos (a partir daí) condóminos.
Nesta pressuposição, remete-se, igualmente em atenção aos princípios da parcimónia e da economia processual, para a fundamentação da decisão da 1ª Instância, designadamente quanto às datas nela referenciadas como sendo as do aludido cumprimento.
15.Finalizando: como resulta dos autos, o dever de prestação da Ré, por auto vinculação, era de natureza anual. O que faz cair a situação prescricional sob a alçada da alínea g) do art. 310 do Código Civil. Sendo a prescrição de cinco anos, nessa consequência. É aliás o que o Tribunal da Relação considera, subscrevendo e confirmando a decisão da 1.ª Instância, nomeadamente quando diz:
“E porque assim é e tendo em conta a factualidade que se encontra provada na acção inscrita na decisão recorrida, impõe-se forçosamente sufragar, sustentar e manter neste acórdão a posição assumida em 1ª instância quanto à natureza anual do dever de prestação de contas a que a Ré estava contratualmente auto-vinculada, tornando assim aplicável ao caso (e à resolução do litígio) o disposto no art.º 310º g) do Código Civil, e, consequentemente, justificando que se entenda que o prazo de prescrição a considerar relativamente à situação material controvertida que deu origem à presente acção é o de 5 (cinco) anos.
Em suma, com estes exactos fundamentos e sem que, novamente por aplicação do supra referenciado “Princípio da Parcimónia”, haja necessidade de apresentar qualquer outra motivação justificativa, impõe-se julgar igualmente improcedente a apelação apresentada pelos Autores e confirmar também esse segmento da decisão recorrida criticado por esses intervenientes processuais.”
III
Dispositivo
Termos em que, em conferência, a 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça confirma o Acórdão da Relação de Lisboa na sua integralidade.
Custas pelos recorrentes.
Supremo Tribunal de Justiça, 21 de outubro de 2020
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Paulo Ferreira da Cunha (Relator)
(Atesto o voto de conformidade da Ex.ma Sr.ª Juíza Conselheira Dr.ª Maria Clara Sottomayor – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada
pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4.º do CPP)
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Maria Clara Sottomayor
(Atesto o voto de conformidade do Ex.mo Sr.ª Juiz Conselheiro Dr. António Alexandre Reis – art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020 de 13 de março na redação dada
pelo DL n.º 20/2020 de 1/05 aplicável ex vi do art.º 4.º do CPP)
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Alexandre Reis