I- Na medida em que a interposição do recurso contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida (artigo 446.º n.º 1, do CPP) configura um dos pressupostos formais de admissibilidade do mesmo recurso, é inadmissível, por intempestividade da respectiva interposição, o recurso interposto antes de iniciado aquele prazo, devendo ser rejeitado, nos termos conjugadamente previstos nos artigos 414.º n.º 2, 420.º n.º 1 alínea b), 446.º, 441.º n.º 1 e 448.º, do CPP;
II- Sem embargo, o presente recurso de decisão contra jurisprudência fixada sempre deveria ser rejeitado por inadmissibilidade legal, do passo em que se não verifica, no acórdão recorrido qualquer posição expressa que traduza uma solução jurídica de situação de facto idêntica ou assimilável à tratada no acórdão de uniformização de jurisprudência e que ali tenha sido decidida de forma dissonante da jurisprudência fixada, e assim, nos termos conjugadamente previstos nos artigos 414.º, n.º 2, 420.º, n.º 1, al. b), 446.º, 441.º, n.º 1, e 448.º, do CPP.
Processo n.º 441/11.8JDLSB.P1-B.S1
(Recurso de fixação de jurisprudência)
Recurso contra jurisprudência fixada
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. No Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 10 de Julho de 2019, decidiu-se confirmar a decisão da 1.ª instância que condenou o arguido, AA, pela prática de crime de detenção/venda de dispositivos ilícitos, previsto e punível (p. e p.) nos termos do disposto no artigo 104.º, n.ºs 1, alíneas a) e b) e 3 da Lei n.º 5/2004 [absorvendo, por consunção, o crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo 6.º, n.ºs. 1 e b2), da Lei n.º 109/2009], na pena de 200 dias de multa à razão diária de €8,00.
2. O arguido reclamou de tal decisão, por requerimento de 12 de Setembro de 2019, arguindo a nulidade por omissão de pronúncia da impugnação que havia feito da decisão sobre a matéria de facto com invocação de prova gravada, na medida em que o Tribunal da Relação não se havia debruçado sobre a mesma, bem como, não havia analisado criticamente o seu teor “[…] ausentando-se, por completo, do «dever de fundar o seu próprio juízo» relativamente ao direito e aos factos que foram objecto de impugnação em sede de recurso […]”.
3. Tal reclamação foi indeferida por acórdão do Tribunal da Relação de 25 de Setembro de 2019, em síntese, por “[…] as questões levantadas na sua motivação de recurso terem sido devidamente examinadas e objecto de ponderação/decisão expressa no acórdão – quer as de facto, quer as de Direito […]”.
4. O arguido recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, em 01-10-2019 (e não em 07-11-2019 conforme consta da certidão junta aos autos, que padece de lapso, pois confunde a data da apresentação da reclamação para o STJ com a data da apresentação do recurso – cf. certidão junta ao Apenso A de reclamação para o STJ), alegando, em síntese:
(i) nulidade por omissão de pronúncia das questões suscitadas em recurso, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP ex vi arts. 425.º, n.º 4, 428.º; 431.º, do CPP;
(ii) oposição de julgados com o decidido nos seguintes acórdãos: ACSTJ, de 08-11-2006, Proc. n.º 1269/03, 1º Juízo Criminal de Oeiras, publicado na CJ/STJ de 2006, Tomo III, pg. 222 e ss e, entre muitos outros, ACSTJ, de 19-12-2018 – 3.ª Secção, Proc. nº 129/16.3GILRS.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt, ACSTJ de 26-06-2019, Proc. n.º 174/17.1PXLSB.L1.S1 - 3ª Secção, publicado em www.dgsi.pt;
(iii) violação de jurisprudência fixada no AUJ n.º 10/2005, publicado do DR, I Série A, n.º 234, de 07-12-2005;
(iv) inconstitucionalidade da norma interpretativa criada no acórdão recorrido ‘que arranca da sua leitura do disposto no art. 127.º e 428.º, do CPP, e na qual estriba a sua decisão de não conhecer do recurso respeitante à matéria de facto’, em violação dos princípios constitucionais que garantem o direito ao recurso e ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto, previstos nos arts. 2.º, 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, todos da CRP;
(v) erro de julgamento e mau uso dos poderes do Tribunal quando qualifica como nulidade relativa em vez de proibição absoluta de prova a valoração da prova efectuada.
5. O Tribunal da Relação rejeitou tal recurso, por decisão de 19-10-2019, com fundamento no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP.
6. O arguido reclamou daquela decisão de não admissão do recurso, em 07-11-2019, nos termos do disposto no art. 405.º do CPP, para o Supremo Tribunal de Justiça, alegando, em síntese, que tal recurso é admissível, porquanto tal acórdão do Tribunal da Relação está em oposição com as decisões mencionadas e, bem assim, decidiu contra o AUJ n.º 10/2005, invocando o art. 446.º, do CPP.
7. Por decisão da Senhora Conselheira Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-12-2019, tal reclamação foi deferida.
Nos seguintes termos:
“[…] Assim sendo, o acórdão da Relação aplicou pena não privativa da liberdade (multa), cabendo assim na previsão do artigo 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, com a consequente inadmissibilidade do recurso interposto. O acórdão da Relação não admite, assim, recurso ordinário. Por outro lado, o reclamante invoca que o acórdão da relação admite recurso ao abrigo do artigo 446.º do CPP e no requerimento de interposição de recurso bem como na motivação para o Supremo Tribunal de Justiça e ainda na reclamação indica o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 10/2005 com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição. Mas, sendo assim, conhece-se, deste modo, da reclamação partindo também da interpretação de que o recurso foi apresentado ao abrigo da referida disposição legal. […] 6. Assim sendo, face ao disposto na parte final desta norma, o recurso previsto no art. 446.º, do CPP, deve seguir os termos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência previsto no art. 437.º, do CPP […] 7. Nestes termos, deve o processo baixar ao Tribunal da Relação do Porto, a fim de ser dado cumprimento ao disposto no art. 439.º, n.º 2, do CPP, para que neste Tribunal se sigam os procedimentos determinados no art. 440.º, n.ºs 1 e 3 do CPP […]”.
8. Os autos baixaram ao Tribunal da Relação, tendo o recurso sido autuado e distribuído como recurso para fixação de jurisprudência (cf. art. 437.º, do CPP).
9. O Ministério Público junto da Tribunal Recorrido, em resposta, defendeu a rejeição do recurso alegando, em suma, que (i) o facto de o arguido ter vindo no mesmo recurso alegar, por um lado, oposição de julgados, e, por outro, violação de jurisprudência fixada, inviabiliza a sua admissão, pois ‘não se podem misturar ambas as formas de processo’ – recurso para fixação de jurisprudência e recurso de decisão contra jurisprudência fixada; (ii) a admitir-se que se trata de um recurso para fixação de jurisprudência seria o mesmo de rejeitar, uma vez que o arguido indica, não um, mas três acórdãos em oposição com o acórdão recorrido; (iii) a admitir-se que se trata de um recurso contra jurisprudência fixada, como parece ter sido o entendimento vertido na decisão que deferiu a reclamação, o mesmo será de rejeitar uma vez que não existe oposição de julgado com o AUJ em referência, pois não se trata da mesma questão de direito (o AUJ n.º 10/2005 firmou jurisprudência no sentido de que ‘após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, em matéria de recursos, é admissível o recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo Tribunal Colectivo’ e a decisão recorrida foi proferida na sequência da admissão do recurso interposto pelo arguido da decisão da matéria de facto que ali impugnou, pelo que o Tribunal conheceu dessa impugnação, não se tendo recusado a fazê-lo, ainda que tenha concluído pela inexistência de prova que determinasse a alteração da decisão proferida).
10. Colhidos os vistos, em cumprimento do disposto no art. 440.º, n.º 1, 1.ª parte aplicável ex vi art. 446.º, n.º 1, parte final, ambos do CPP, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da rejeição do recurso.
Alegou, em suma, (i) que não consta dos autos informação sobre a data da notificação do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação no dia 25-09-2019, não sendo por isso possível apurar se o recurso é tempestivo; (ii) que sem prejuízo, o mesmo será sempre de rejeitar porquanto afigura-se inconciliável a cumulação de dois recursos extraordinários (para fixação de jurisprudência e contra jurisprudência fixada), pois que, partindo de pressupostos diversos, servem objectivos diferentes; (iii) que deverá ser rejeitado por violação dos arts. 437.º, e 438.º, n.º 2, do CPP, pois como fundamento do recurso para fixação de jurisprudência, o recorrente apenas pode invocar um único acórdão e não três como fez, não havendo lugar a convite ao aperfeiçoamento.
11. Notificado do parecer apresentado pelo Ministério Público junto deste Tribunal, veio o recorrente, por requerimento, esclarecer que a certidão junta aos autos de recurso padece de lapsos, designadamente, quanto à data do trânsito em julgado do acórdão recorrido, à data da apresentação das alegações de recurso, bem como, padece de falta de peças processuais, a saber, da reclamação deduzida contra o acórdão de 10-07-2019, das alegações de recurso apresentadas em 01-10-2019 (e não em 07-11-2019, data em que foi apresentada reclamação contra o acórdão de 25-09-2019 - peça processual que se mostra junta, certamente, por lapso, como sendo as alegações).
Referiu, ainda, que o acórdão fundamento da oposição com o acórdão recorrido é o ASTJ de 26-06-2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, no que diz respeito à questão da omissão no acórdão recorrido da formulação da sua própria convicção e juízo relativamente à apreciação da prova produzida, quer documental, quer testemunhal, e que, além disso, existe também violação da jurisprudência fixada no AUJ n.º 10/2005 de 20-10-2005, supra mencionado. Pede a declaração da oposição de julgados com o acórdão agora indicado, ou, em alternativa, da violação da jurisprudência fixada no AUJ n.º 10/2005.
Juntou 3 documentos (cópia das alegações de recurso apresentadas em 13-03-2019, reclamação apresentada em 12-09-2019, e alegações de recurso apresentadas em 01-10-2019).
12. Foram os autos à conferência após os vistos legais e exame preliminar, nos termos do art. 440.º, aplicável ex vi art. 446.º, n. º1, parte final do CPP.
II
Questão prévia
13. Antes de abordar o regime jurídico aplicável, impõe-se esclarecer que assumimos, em face do teor do despacho proferido pela Senhora Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 04-12-2019, que estaremos, exclusivamente, em presença de um recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, a que alude o art. 446.º, do CPP, ou que, pelo menos, apenas foi admitida sua subida enquanto tal.
14. Por essa razão, foi sugerida, a dado passo, a prolação de despacho no sentido de corrigir a distribuição, uma vez que, certamente, por lapso, foi o presente recurso autuado e distribuído como recurso para fixação de jurisprudência (cf. art. 437.º, do CPP) em vez de recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada (cf. art. 446.º, do CPP).
15. De facto, fazendo-se expressa menção naquele despacho de que a reclamação foi apreciada partindo, também, da interpretação de que o recurso foi apresentado ao abrigo da referida disposição legal, leia-se art. 446.º, do CPP, afigura-se-nos que, ao deferir a reclamação admitindo a subida do recurso apenas e tão só contra jurisprudência fixada, determinando que seguisse os seus termos, tal decisão dirimiu a questão referente à admissibilidade da subida do recurso nos termos em que foi formulado (visando, por um lado, a verificação da oposição de julgados e, em consequência, a fixação de jurisprudência e, por outro, a verificação de decisão em violação de jurisprudência fixada).
16. Ademais, não tendo sido aquela decisão sindicada pelos sujeitos processuais, a mesma reveste-se de força obrigatória dentro do processo, pois resolveu em definitivo, ainda que - em contexto meramente processual - aquela questão.
17. Ou seja, sendo aquela decisão insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que foi proferida, mostrando-se esgotado o poder jurisdicional, a questão decidida não poderá ser novamente apreciada nesta sede de recurso, sob pena de violação do caso julgado formal assente na prévia decisão (cfr. art. 620.º, do CPC ex vi art. art. 4.º, do CPP).
18. Como se salienta no acórdão, do STJ, de 20-10-2010 (processo 3554/02.3TDLSB.S2, disponível, como os mais citandos, na base de dados do IGFEJ), “[…] Em processo penal o caso julgado formal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade - a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo- ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação material da decisão. No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual […]”.
19. Assim, aquela decisão constitui caso julgado formal nos sobreditos termos e preclude a apreciação da mesma matéria que se impõe agora como definitiva, em nome da segurança e da paz jurídica, bem como, de imperativos de economia processual, dando-se concretização ao princípio da protecção da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático (arts. 2.º e 9.º, al. b), 266, n.º 1, da CRP), que implica um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado.
20. Deste modo, pese embora cientes da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça que considera ser incompatível a cumulação, na mesma peça processual, de dois recursos extraordinários (um para fixação de jurisprudência ao abrigo do disposto nos arts. 437.º, n.ºs 2 a 4 e 438.º, do CPP e outro de decisão proferida contra jurisprudência fixada, nos termos do art. 446.º, do CPP), pois os recursos, não só têm pressupostos distintos, como almejam fins diversos - veja-se, neste sentido, de entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2019 (processo 2701/11.9T3SNT.L1-A.S1): “[…] O presente caso tem a especificidade de o recorrente interpor recurso extraordinário de fixação de jurisprudência ao abrigo do disposto nos arts. 437.º, n.ºs 2 a 4 e 438.º, do CPP, mas depois, intromete um outro recurso extraordinário, nos termos do art. 446.º, do CPP (Recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ), o que é visível do texto das conclusões N) e O), nesta referindo expressamente a violação do Acórdão do STJ n.º 3/2012, sendo que já antes na conclusão G), mencionara estar o acórdão recorrido “em nítida contradição com a jurisprudência já firmada pelo STJ, em sede uniformizadora, e, também com outras decisões de Relações distintas”, ou seja, o recorrente coloca “em pé de igualdade” um acórdão uniformizador com decisões de Relações. A convocação dos dois recursos extraordinários é feita em jeito subsidiário, como resulta da expressão “Caso assim não se entenda”, colocada entre as conclusões O) e P), mas no final, pedindo o recorrente apenas a admissão do “Recurso Extraordinário de Fixação de Jurisprudência, ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 437.º e 438.º, do Código de Processo Penal”. Cremos ser inconciliável a cumulação dos dois recursos extraordinários, pois que os recursos em causa, partindo de pressupostos diversos, servem objectivos diferentes. […]” - a questão em referência ficou prejudicada pelo teor da decisão acima editada.
Cfr. Acórdão do STJ proferido no Proc. n.º 2701/11.9T3SNT.L1-A.S1, e, no mesmo sentido, os Acórdãos do STJ de 11-04-2018, Proc. n.º 45/14.3T9FLG.P1-A.S1: “[…] Interpondo o recorrente um recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, considerando que inexiste jurisprudência fixada, está-lhe vedado, lógica e necessariamente, interpor em simultâneo, por via de pedido subsidiário, recurso de decisão contra jurisprudência fixada, obstando tal circunstância, a que este STJ se pronuncie sobre o recurso subsidiário. Existindo jurisprudência fixada no AUJ 9/2013, de 14-03, sobre a questão objecto do presente recurso para fixação de jurisprudência é evidente que o mesmo terá de ser rejeitado […]”, com sumário disponível em www.stj.pt/Jurisprudencia/ Acórdãos/Sumários de acórdãos/ Criminal – Ano de 2018; de 26-09-2013, Proc. n.º 454/06.1PASTB.P1-B.S1: “[…] Não é admissível ao recorrente socorrer-se do recurso previsto no art. 446.º do CPP e, para a hipótese de insucesso, lançar mão, enquanto pedido subsidiário, do recurso para fixação de jurisprudência a que alude o art. 437.º do mesmo Código. […]”, com sumário disponível em www.stj.pt/Jurisprudencia/ Acórdãos/Sumários de acórdãos/ Criminal – Ano de 2013.
21. Pela mesma ordem de razões, fica prejudicada a apreciação da admissibilidade do recurso para fixação de jurisprudência nos termos em que foi formulado, ou seja, com a indicação de três acórdãos fundamento ao invés de um único.
22. Sem embargo, importa salientar que o Supremo Tribunal de Justiça tem defendido, no quadro da excepcionalidade que este recurso extraordinário comporta, a necessidade de se indicar um único acórdão fundamento, sendo maioritária a posição de que há que dar cabal cumprimento a este requisito formal, sob pena de rejeição do recurso, sem possibilidade de convite à correcção.
Como se salienta no acórdão, do STJ, de 21-06-2016 (processo 1460/11.0GBLLE.E1-A.S1) “[…] É de rejeitar o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência se o recorrente indica, não um, mas sim dois acórdãos, como fundamento da oposição, violando o disposto no art. 437.º, n.º 1, do CPP, inviabilizando a análise, em concreto, da oposição de julgados. Nestes casos, não cabe ao tribunal a “escolha” de um dos acórdãos indicados, não estando obrigado a “convidar” o recorrente a “corrigir” ou “aperfeiçoar” a sua petição de recurso, na medida em que, a lei, prevê apenas a possibilidade de tal “convite” no caso de a petição de recurso não conter conclusões ou não fazer as indicações referidas nos n.ºs 2 a 5 do art. 412.º do CPP, a significar que o recurso assim interposto terá de ser liminarmente rejeitado, solução que tem plena conformidade constitucional, não violando o princípio do acesso ao Direito e à Justiça plasmado no art. 20.º, da CRP - acórdão do TC 502/96, de 20-03, publicado no DR II série, de 27-02-97. […].”
23. Assim sendo e apesar de o recorrente ter vindo aos autos, espontaneamente, por via de requerimento, após ter sido notificado do parecer apresentado pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto, esclarecer que o acórdão fundamento é o ACSTJ de 26-06-2019, Proc. n.º 174/17.1PXLSB.L1.S1 - 3ª Secção e não os demais indicados, o que poderia ser equacionado como um aperfeiçoamento ou correcção das suas alegações de recurso, o que, em face da posição maioritária da jurisprudência não seria admissível, tal situação não será objecto de apreciação, pois ficou também prejudicada com a admissão da subida do recurso, exclusivamente, para apreciação da violação de jurisprudência fixada.
24. Importa ainda salientar que, por identidade de razões, tendo sido considerado inadmissível o recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça no referido despacho por se tratar de decisão proferida, em recurso, pela Relação, que aplicou pena não privativa da liberdade (arts. 400.º, n.º 1, al. e) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP), não cabe apreciação da invocada nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP ex vi arts. 425.º, n.º 4, 428.º; 431.º, do CPP, nem da alegada inconstitucionalidade da norma interpretativa criada no acórdão recorrido ‘que arranca da sua leitura do disposto no art. 127.º e 428.º, do CPP, e na qual estriba a sua decisão de não conhecer do recurso respeitante à matéria de facto’, em violação dos princípios constitucionais que garantem o direito ao recurso e ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto, previstos nos arts. 2.º, 20.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1, todos da CRP, tão-pouco do alegado erro de julgamento e mau uso dos poderes do Tribunal quando qualifica como nulidade relativa em vez de proibição absoluta de prova a valoração da prova efectuada.
25. Com efeito, o recurso extraordinário de decisão contra jurisprudência fixada não é o meio processual adequado para a arguição de nulidades, conhecimento de vício de erro de julgamento ou de inconstitucionalidades, anomias estas cuja via própria de arguição é, no caso das nulidades, a reclamação para o próprio Tribunal da Relação ou o recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, quando admissível e, no caso das inconstitucionalidades, o recurso para o Tribunal Constitucional (cf. art. 75.º, n.° 1, da Lei n.° 28/82, de 15 de Setembro).
26. Vejamos agora, quanto ao recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada.
27. A admissibilidade de recurso directo, para o Supremo Tribunal de Justiça, de decisões proferidas contra jurisprudência que por ele se mostra fixada, está directamente relacionada com a necessidade de garantir o controle difuso dos fundamentos das decisões das instâncias, que, eventualmente, não acatem tal jurisprudência, por via do reexame do tribunal superior. Visa, pois, a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando eventuais conflitos existentes entre uma decisão com outra que fixou jurisprudência sobre a mesma questão de direito no domínio da mesma legislação.
28. A este propósito, dispõe o art. 446.º, n.º 1, do CPP que: “[…] É admissível recurso directo para o STJ de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo. […]”.
29. Nos termos do n.º 2 do art. 446.º do CPP, têm legitimidade para interpor este recurso extraordinário, o arguido, o assistente e as partes civis, sendo o mesmo obrigatório para o Ministério Público, prevendo-se, ainda, no n.º 3, que o Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada.
30. Por outro lado, esta disposição liga-se com o n.º 3 do art. 445.º do CPP que prevê que “[…] A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão. […]”. Entende-se que incumbe ao tribunal que não acate tal jurisprudência, um particular dever de fundamentação de modo a convencer da razoabilidade dos fundamentos que sustentam essa divergência, havendo recurso nos termos do art. 446.º, do CPP, para permitir uma reponderação que atenda aos novos argumentos.
31. Decorre, pois, da conjugação dos arts. 445.º, n.º 3 e 446.º, n.º 1, ambos do CPP, que apenas haverá fundamento para recurso contra jurisprudência fixada quando a decisão que divirja da fixação não a aceite, expressamente a contestando, o que é diverso da desaplicação da jurisprudência fixada por desconhecimento ou errada interpretação, devendo quanto a esta o meio de impugnação ser o de recurso ordinário.
“[…] Uma outra interpretação do n.º 1 do art. 446.º conferiria uma maior protecção à efectiva aplicação da jurisprudência fixada do que aquela que se encontra estabelecida para a cabal aplicação da lei. A não aplicação de uma determinada norma legal ou a sua interpretação incorrecta apenas permite aos sujeitos processuais o direito a interpor um recurso ordinário, estando-lhes vedada a interposição de qualquer recurso extraordinário. […]” (acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-05-2019, processo 74/15.0T9ABF.E1.S1)
32. Quanto ao regime de interposição, efeito e processamento do recurso, face ao que dispõe a parte final do n.º 1 do art. 446.º do CPP, este deve seguir os termos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência previsto no capítulo "Da fixação de jurisprudência" (Capítulo II, do Título II "Dos recursos extraordinários", do Livro IX "Dos recursos") - cf. art. 437.º e ss, do CPP, com as devidas adaptações.
33. E, sendo assim, tem assumido a jurisprudência que para a admissibilidade deste recurso extraordinário, impõe-se a verificação de determinados requisitos de natureza formal e substancial (cf. art. 446.º do CPP).
34. Como se sublinha no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 31-10-2019 (processo 285/11.7TAEPS.G1-A.S1), “[…] Ao recurso contra jurisprudência fixada são "correspondentemente aplicáveis" as disposições do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, o que significa que terão de verificar-se os respectivos pressupostos, formais e substanciais, - artigo 446.º.
Entre os requisitos de ordem formal contam-se a legitimidade do recorrente - que é restrita ao arguido, ao assistente, às partes civis e ao Ministério Público - e a interposição do referido recurso no prazo de 30 dias, contados a partir do trânsito da decisão de que se pretende recorrer. É ainda exigível a existência de prévio trânsito em julgado, por esgotada a possibilidade de recurso ordinário.
A nível substancial, exige-se a oposição entre a decisão recorrida e um acórdão de fixação de jurisprudência. Exige-se, nos termos do disposto no artigo 445. °, n ° 3, que "a decisão recorrida tenha decidido em sentido divergente ao do acórdão uniformizador, por não acatamento da sua doutrina, caso em que o tribunal que assim decida terá de fundamentar a sua divergência". Para além destes requisitos e, apesar de a lei processual penal não o referir expressamente, tem entendido a jurisprudência do STJ, que "o critério para aferir da existência de oposição de julgados entre decisão recorrida e jurisprudência fixada é o mesmo, do recurso de uniformização de jurisprudência, que de acordo com o disposto no artigo 437° do Código de Processo Penal, há-de aplicar-se também nesta espécie de recurso extraordinário, por via do estatuído no n.º 1 do art.446.º do mesmo diploma. Nessa apreciação releva a identidade de facto quanto à mesma questão de direito que é, justamente, a tratada no acórdão uniformizador.” Neste sentido vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo. n.º 73/16.4PHLRS.L1. S1, em 06-02-2019. O recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada está, assim, sujeito aos mesmos requisitos substanciais exigidos para o recurso de fixação de jurisprudência, isto é, necessário é que a oposição respeite à própria decisão e não aos fundamentos, bem como que se verifique identidade de facto quanto à mesma questão de direito. […]”.
35. Assim, contam-se como requisitos de natureza formal:
(i) a interposição de recurso no prazo de 30 dias após o trânsito da decisão recorrida;
(ii) o trânsito em julgado, pois deverá estar esgotada a possibilidade de recurso ordinário;
(iii) a legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis), devendo existir, ainda, interesse em agir destes últimos, pois para o Ministério Público o recurso é obrigatório.
36. O prazo para interposição do recurso encontra-se previsto no art. 446.º, n.º 1 do CPP, sendo que a sua violação, ou seja, a interposição de recurso fora de tempo, implica, nos termos do art. 414.°, n.° 2, do CPP, subsidiariamente aplicável ao recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada, por força do art. 448.° do CPP, a sua não admissão.
37. Como elucida o acórdão deste Tribunal de 31-01-2012 (processo 272/11.5TBLGS.E1-A.S1), o tempo do recurso é o definido naquele artigo que não se limita a prescrever a duração do respectivo prazo (30 dias), mas define igualmente o facto que determina o início da contagem desse prazo, que é o trânsito em julgado do acórdão recorrido. Antes desse trânsito em julgado não começa a correr o prazo, pelo que é intempestivo o requerimento de interposição de recurso extraordinário de revisão que seja entretanto apresentado.
38. O trânsito em julgado, por seu turno, encontra-se definido no art. 628.º, do CPC, aplicável ex vi art. 4.º do CPP, e conta-se a partir da notificação da decisão, sendo que no caso da sentença, tal prazo é contado a partir da data do seu depósito na secretaria. Deste modo, a decisão estará transitada em julgado quando já não for susceptível de recurso ordinário ou de reclamação.
39. Assim, apenas será de admitir o recurso extraordinário quando se mostre esgotada a via ordinária. Isto significa que, sendo a decisão recorrível na instância ordinária, ela pode ser impugnada pelos sujeitos processuais com fundamento na contradição da decisão recorrida com um acórdão uniformizador, para além de quaisquer outros fundamentos que o recorrente entenda ser de alegar.
40. Só depois de esgotados todos os meios ordinários ao dispor, poderá tal decisão ser objecto de recurso extraordinário nos termos do disposto no art. 446.º, do CPP: “[…] Com efeito, só se justifica o recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, regulado nos arts. 446.º e 448.º do CPP, quando a decisão já não é susceptível de recurso ordinário, visando o recurso obrigatório para o MP, previsto no art. 446.º do CPP, garantir o controle do respeito pela jurisprudência fixada, por via do reexame pelos Tribunais Superiores, pois que, com revogação do carácter obrigatório daquela jurisprudência, não se pretendeu desautorizar o STJ na sua função uniformizadora da aplicação da lei, mas sim aumentar a margem de iniciativa dos tribunais de instância, no provocar seu eventual reexame. Nesta lógica de controlar a aplicação da jurisprudência fixada pelos Tribunais Superiores, através do recurso, não faz sentido o recurso directo da 1.ª instância para o STJ, antes de esgotada a possibilidade da 2.ª instância repor o “respeito” pela jurisprudência fixada pelo STJ. […]” – acórdão, do STJ, de 21-06-2007, processo 2259/07.
41. A tal respeito, refere o Senhor Conselheiro Pereira Madeira:
“[…] Obviamente que a possibilidade de recurso extraordinário não afasta possibilidade de esgotamento dos recursos ordinários, seja porque a eles se lançou mão sem êxito, seja porque não importa o motivo, se deixou precludir o direito a recorrer, mormente por trânsito em julgado da decisão recorrida. Porém, se o recurso é interposto antes do trânsito em julgado da decisão, ele deverá seguir o rumo do recurso ordinário, já que, por essa via bem pode acontecer que seja posto termo à impugnada violação de jurisprudência, não se justificando, por isso, o recurso ao meio extraordinário, que justamente porque o é, só deve ser usado quando [já] não seja possível lançar mão dos meios ordinários de solução do litígio. […]” – Código de Processo Penal, Comentado, Almedina, 2014, pág. 1599.
42. Quanto à legitimidade, requisito previsto no art. 446.º, n.º2, do CPP, impõe-se dizer que não poderá interpor recurso o sujeito processual que não seja prejudicado pela decisão que contraria a jurisprudência fixada, pois não tem interesse em agir. Como refere o Professor Paulo Pinto de Albuquerque (Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 1192, “[…] O propósito do legislador não foi o de incumbir os sujeitos processuais numa função de defesa institucional da legalidade, o que de todo não lhes competia. Antes foi o de alargar os meios de defesa das respectivas posições processuais para além do prazo do trânsito da decisão, quando a decisão tenha contrariado um acórdão uniformizador. Assim, o arguido, o assistente e as partes civis só podem recorrer nos termos do artigo 446.º, n.º3, se tiverem legitimidade e interesse em agir. […]”.
43. Por seu lado, configuram requisitos de natureza substancial:
(i) a existência de dois acórdãos (o recorrido e o fundamento – acórdão uniformizador) que respeitem à mesma questão de direito e a justificação da oposição entre os mesmos que motiva o conflito de jurisprudência (deve resultar explícita os termos em que a contradição se verifica);
(ii) a identidade de legislação do domínio da qual foram proferidas as decisões, ou seja, que, no período compreendido entre a prolação das decisões conflituantes, não exista alteração ou modificação do texto da lei que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão controvertida;
(iii) a existência de soluções opostas, que assentem em decisões de sinal contrário, ou seja, que a questão seja decidida em termos expressamente contraditórios, relevando uma patente posição divergente sobre a mesma questão de direito;
(iv) a identidade das situações de facto, i. e., a identidade de facto respeitante à mesma questão de direito que é, justamente, a tratada no acórdão uniformizador.
44. Ou seja, tal como no recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, é necessária a existência de decisões contraditórias sobre a mesma questão de direito, proferidas no domínio da mesma legislação, que assentem em julgados explícitos ou expressos (e não apenas implícitos ou tácitos).
45. Com efeito, exige-se que a questão de direito seja examinada nos acórdãos em confronto, com soluções antagónicas e manifestamente opostas, no sentido de revelar, em face da tomada de posição explícita e divergente, uma nítida contradição entre a decisão recorrida e a jurisprudência fixada.
46. Por outro lado, os preceitos legais em causa num e noutro processo, devem ser os mesmos e devem ter sido interpretados e aplicados de forma dissonante a factos idênticos em ambos os acórdãos.
47. Quanto ao último requisito, a identidade de situações de facto, não se mostrando expressamente previsto na lei, foi aditado pelo Supremo Tribunal de Justiça, na medida em que se passou a considerar incontornável a necessidade de identidade de factos, não sendo suficiente apenas a oposição entre as soluções de direito.
48. Tal identidade factual de ambos os processos, a do acórdão recorrido e a do acórdão fundamento, não é absoluta, contudo entende-se que, para que a oposição releve, tais factos terão de ter sentido equivalente ou ser idênticos nos dois processos. Pretende-se, pois, evitar que a falta de identidade dos factos, quando não seja inócua, possa interferir com o aspecto jurídico do caso e seja justificação para a prolação de decisões jurídicas opostas.
49. Como se esclarece no acórdão deste Supremo de 04-04-2019 (processo 310/11.1PASTS.P1-B.S1) “[…] A estes requisitos legais, o STJ, de forma pacífica, aditou a, incontornável necessidade de identidade de factos, não se restringindo à oposição entre as soluções de direito entendida esta, contudo, não como uma identidade absoluta entre dois acontecimentos históricos mas que eles se equivalham para efeitos de subsunção jurídica a ponto de se poder dizer que, pese embora a solução jurídica encontrada num dos processos assente numa factualidade que não coincide exactamente com a do outro processo, esta solução jurídica continuaria a impor-se para o subscritor mesmo que a factualidade fosse a do outro processo. A respeito desde último requisito é abundante e uniforme a jurisprudência deste STJ salientando que o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência - rectius, contra jurisprudência fixada - tem de assentar em julgados explícitos ou expressos que abordem de modo oposto a mesma questão de direito. […].”
50. Se ocorrer motivo de inadmissibilidade ou o tribunal concluir pela não oposição de julgados, o recurso é rejeitado; se concluir pela oposição, o recurso prossegue (cf. art. 441.º, n.º 1, do CPP).
51. No caso, vejamos.
52. Verifica-se no caso em apreciação, que o recorrente AA tem legitimidade, nos termos do n.° 2 do art. 446.°, do CPP, para interpor o presente recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, na medida em que o acórdão recorrido condenou-o pela prática de crime, tendo assim interesse em agir.
53. O requerimento de interposição do presente recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada deu entrada no Tribunal da Relação em 01-10-2019, conforme certidão junta aos autos de Apenso A (e não em 07-11-2019 conforme consta da certidão junta aos autos, que padece de lapso, pois, s.m.o., confunde a data da apresentação da reclamação para o STJ com a data da apresentação do recurso).
O acórdão recorrido foi proferido pelo Tribunal da Relação em 10-07-2019 (cf. certidão junta aos autos).
Não admitindo este acórdão recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, conforme o disposto nos arts. 400.º, n.º 1, al. e) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, na medida em que se trata de um acórdão proferido, em recurso, pela Relação que aplicou pena não privativa da liberdade (cf. despacho proferido pela Senhora Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça no mesmo sentido), poderia o recorrente arguir nulidade, ou pedir esclarecimento ou correcção de erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade que não importasse modificação essencial da decisão (ao abrigo do disposto nos arts. 379.º e 380.º, n.º 1, al. b), aplicável por força do disposto no art. 425.º. n.º 4), todos do CPP), ou recorrer para o Tribunal Constitucional, para o que teria o prazo geral de 10 dias – art. 75.°, n.° 1, da Lei n.° 28/82, de 15 de Setembro.
O recorrente reclamou da decisão arguindo nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do disposto nos arts. 379.º, n.º1, al. c) e art. 425.º. n.º 4), ambos do CPP, por requerimento de 12-09-2019.
A reclamação veio a ser indeferida por acórdão do Tribunal da Relação de 25-09-2019.
E, porque, tal arguição de nulidade poderia implicar, em caso de procedência, a modificação essencial da decisão impugnada, a data do trânsito em julgado a ter em conta será, pois, a deste acórdão que estabiliza a decisão, por força do que dispõe o art. 628.º, do CPC aplicável ex vi art. 4.º do CPP, no sentido de que a decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação.
Veja-se, neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-09-2018 (processo 833/03.6TAVFR.P4.S1-B): “[…] As situações sobre que incidiram os acórdãos em confronto são diferentes. No acórdão recorrido, pese embora tenha sido referido o art. 380.º, do CPP, a verdade é que, factualmente, a recorrente arguiu nulidades que foram apreciadas pela relação. A nulidade pode importar modificação essencial da decisão impugnada. A nulidade pode ser suprida conforme o art. 379.º, n.º 2, do CPP, a exemplo do que se passa no processo civil, conforme o n.º 2 do art. 617.º do CPC. Sendo suprida pode modificar-se o espectro do acervo a impugnar. A recorrente antes de conhecer a decisão da relação sobre a arguição de nulidade interpôs recurso para o STJ. Nessa altura, em 03-01-2017, o acórdão de 23-11-2016 ainda poderia ser alterado em função de eventual procedência de arguição das nulidades suscitadas pela recorrente. A decisão não estava estabilizada. Apenas ocorrendo a estabilização com o acórdão de 11-01-2017, que indeferiu as nulidades arguidas. Recorreu prematuramente. […]”.
54. Desconhece-se a data em que o referido acórdão de 25-09-2019 foi notificado aos sujeitos processuais. Por essa razão, assumiremos que, na melhor das hipóteses, terá sido notificado no próprio dia em que foi proferido, ou seja, em 25-09-2019.
55. Desconhece-se também o meio utilizado para a sua realização. no entanto, atento o disposto no art. 113.º, n.º 11, do CPP, damos por assente que a notificação foi realizada, ao Ilustre Mandatário do recorrente, por via electrónica, como ali se prescreve.
As notificações, em processo penal, por transmissão electrónica de dados aos mandatários/defensores dos sujeitos processuais e ao Ministério Público são realizadas pelos funcionários de justiça, através do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais, que assegura automaticamente a sua disponibilização e consulta no endereço electrónico http://citius.tribunaisnet.mj.pt, nos termos previstos nos arts. 1.º, n.º 6, al. i), 21.º e 25.º, da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto (cuja versão actualizada reflecte a alteração introduzida pela Portaria n.º 267/2018, de 20 de Setembro).
Estas notificações a advogado ou a defensor nomeado, por via electrónica, nos termos definidos por Portaria mostram-se, como supra mencionámos, expressamente previstas no art. 113.º, n.º 11, do CPP, quando outra forma não resultar da lei.
Por outro lado, de acordo com art. 113.º, n.º 12 do CPP, as notificações efectuadas por via electrónica, presumem-se feitas no terceiro dia posterior ao do seu envio, quando seja útil, ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando o não seja.
56. Ora, em face do regime vigente, uma vez que o acórdão que indeferiu a reclamação apresentada ao precedente acórdão (acórdão recorrido) terá sido notificado, na melhor das hipóteses, pela Secção do Tribunal, aos sujeitos processuais, por via electrónica, em 25-09-2019, tal notificação presume-se feita em 28-09-2019, ou seja, no terceiro dia posterior, mas dado que este terceiro dia posterior coincidiu com um Sábado (dia não útil), presumem-se regularmente notificados do acórdão recorrido no primeiro dia útil seguinte a esse, ou seja, segunda-feira - dia 30-09-2019.
57. Assim, começou a correr novo prazo de 10 dias, a partir de 01-10-2019, com termo final em 10-10-2020, data em que se verificou o trânsito em julgado, de acordo com o disposto nos arts. 104.° e 105.°, do CPP. Neste sentido, o acórdão deste Tribunal, de 14-03-2019 (processo 740/12.1GELLE.E1-A.S1) a propósito do prazo de recurso para fixação de jurisprudência, que por similitude ao caso concreto, se avoca:
“[…] Se o acórdão da Relação de 25-05-2018 (que decidiu indeferir a reclamação apresentada ao precedente acórdão de 20-03-2018), em vista do disposto nos arts. 400.º, n.º 1 al. d) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, não era susceptível de recurso para o STJ, o mesmo transitou em julgado 10 dias contados da sua notificação aos arguidos, tal seja, a 11-06-2018 (e não assim a 02-07-2018, como, por lapso da Secretaria, se certificou a fls. 13 destes autos - lapso que, não pode consubstanciar-se num indevido alargamento do prazo de interposição do recurso para fixação de jurisprudência). Uma vez que o acórdão recorrido transitou em julgado a 11-06-2018, o recurso para fixação de jurisprudência haveria de ser interposto no prazo de 30 dias (art. 438.º, n.º 1, do CPP), vale dizer, até ao dia 11-07-2018, ou nos três primeiros dias úteis subsequentes (art. 139.º, n.º 5, do CPC), tanto seja, por extensão, até 03-09-2018 (último dia útil, descontado o período de férias judiciais). […]”.
58. Face ao exposto, conclui-se que o prazo de 30 dias previsto no art. 446.º, n.º 1, do CPP, para a interposição de recurso, decorreu entre o dia 11-10-2019 e o dia 09-11-2019, pelo que tendo o recorrente interposto o recurso em 01-10-2019, fê-lo antes do prazo legal previsto para o efeito.
59. Considerando-se que o prazo de 30 dias após o trânsito em julgado é um dos pressupostos formais da admissibilidade do recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada e tendo o recorrente interposto o recurso antes do início daquele prazo, conclui-se que o recurso apresentado é extemporâneo.
60. Tem sido esse o entendimento maioritário deste Supremo Tribunal de Justiça:
- acórdão 27-05-2020 (processo 881/16.6JAPRT.P1.S1-A):
“[…] I - É admissível recurso directo para o STJ, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida (art. 446.º, n.º 1, do CPP). II - São subsidiariamente aplicáveis as disposições que regulam os recursos ordinários (art. 448.º, do CPP) e as normas do processo civil (ex vi art. 4.º, do CPP). III - Tendo o requerimento de recurso sido apresentado antes da data do trânsito em julgado do acórdão recorrido, o recurso foi interposto fora de prazo, devendo, em consequência, ser rejeitado por inadmissibilidade (art. 420.º, n.º 1, do CPP), com condenação do recorrente no pagamento de sanção processual (artigo 420.º, n.º 3). […]”.
- acórdão de 22-10-2015 (processo 254/10.4GACNF.P1.S1):
“[…] I - O presente recurso foi interposto antes que a decisão tivesse transitado em julgado, pelo que não só não foi tempestivamente interposto, como foi interposto recurso, ao abrigo do art. 446.º, do CPP, de uma decisão não transitada em julgado, sendo, por isso, de rejeitar a interposição do recurso por intempestividade. […]” .
- acórdão de 19-09-2010 (processo 148/08.3ECLSB.S1):
“[…] Tendo o recurso sido interposto antes do trânsito em julgado da decisão recorrida, sempre seria de ter-se tal recurso por inadmissível, nos termos do art. 441.º, aplicável por força do art. 446.º, n.º 1, in fine, como aquele do CPP. Como se extrai do Ac. do STJ, de 08-11-2000, Proc. n.º 2006/00 - 3.ª, publicado na CJSTJ 2000, tomo 3, pág. 215; de 15-05-2002, Proc. n.º 216/02 - 3.ª, publicado na CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 198; de 22-01-2003, Proc. n.º 4502/02 - 3.ª, publicado na CJSTJ 2003, tomo 1, pág. 166, o recurso da decisão, não transitada em julgado, proferida, em 1.ª instância, pelo juiz singular, que contrarie jurisprudência fixada pelo STJ, deve ser o ordinário, para a Relação, e não o extraordinário para o STJ. Só depois do trânsito em julgado de decisão contrária a jurisprudência fixada, é que pode ter lugar o recurso previsto no art. 446.º do CPP. […]”.
61. Como se dilucida no acórdão do Proc. n.º 254/10.4GACNF.P1.S1, supra referido, citando o Senhor Conselheiro Simas Santos (acórdão do STJ de 09-10-2003, Proc. n.º 2711/03 - 5.ª Secção):
“[…] Na verdade, este Tribunal, em situação idêntica, já decidiu que:
«Dispõe o n.º 1 do art. 438.º do CPP, sobre a interposição do recurso para fixação de jurisprudência que o mesmo é interposto no prazo de trinta dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar [repare-se que também o recurso interposto ao abrigo do disposto no art. 446.º, n.2 1, do CPP, o deve ser no "prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida"].
Ou seja, não se limita este normativo a prescrever sobre a duração do prazo, antes o estabelece (30 dias), mas define igualmente qual o facto que determina o início da contagem desse prazo: o trânsito em julgado do acórdão recorrido […].
Antes desse trânsito em julgado não começa a correr o prazo, pelo que é intempestivo o requerimento de interposição que seja entretanto apresentado.
O que se compreende, pois que, no esquema traçado pelo CPP para os recursos de fixação de jurisprudência, a imposição do trânsito em julgado, como termo a quo do prazo de interposição, integra-se na disciplina pensada e que estabelece o efeito da decisão fixadora de jurisprudência em função desse trânsito (cfr. art. 445° do CPP). Antes de transitar em julgado a decisão não é definitiva a oposição de julgados, nem exequível a decisão recorrida.
Dizer-se, como o faz o recorrente, que esse prazo é «peremptório, (preclusivo do direito), o que não significa que a antecipação do prazo do recurso leve à sua não admissão, sendo certo que, se não ocorreu trânsito à data da interposição de recurso, na data da admissão deste, já tal trânsito tinha ocorrido, assim sanando desde logo a eventual falta de pressuposto do recurso, qual seja o trânsito em julgado da decisão», não é exacto nas duas dimensões que comporta.
Não é exacto, desde logo, pois que, se foi interposto recurso, a decisão não transita em julgado. Logo não se começou sequer a contar o prazo de interposição de recurso.
Depois, não é exacto pretender-se que o prazo peremptório só estabelece o seu termo ad quem (30 dias depois do trânsito em julgado), podendo ser validamente antecipada a prática do acto para antes da ocorrência do termo a quo (ocorrência do trânsito em julgado).
Com efeito, «os prazos peremptórios estabelecem o período de tempo dentro do qual o acto pode ser praticado (terminus intra quem). Se o acto não for praticado no prazo peremptório, também chamado preclusivo, não poderá já, em regra, ser praticado. Exemplos de prazo peremptório são os prazos para arguir nulidades e irregularidades, requerer a instrução ou interpor recursos.» (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, l, pág. 37, no mesmo sentido Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, III, pág. 77-8).
Esses prazos representam, pois, o período de tempo dentro do qual podem ser levados a efeito os respectivos actos, o referido terminus intra quem, e a sua fixação funciona como instrumento de que a lei se serve em ordem a levar as partes a exercer os seus poderes-ónus segundo um determinado ritmo, a adoptar um determinado comportamento processual e, consequentemente, praticar o acto dentro dos limites de tempo que lhe são assinalados (cfr. Anselmo de Castro, op. cit, pág. 78) e não do limite final [...] Ora, como se viu [...] o recurso foi interposto antes de ter transitado em julgado o acórdão recorrido, antes de se ter iniciado o respectivo prazo, pelo que, sendo intempestivo, tem de ser rejeitado.» [ac. Do STJ, de 09.10.2003, proc. n..º 03P2711, Relator: Cons. Simas Santos]. […]”.
62. Figura-se que tal ajuizamento, que cremos maioritário na jurisprudência do STJ, tanto no caso dos recursos de decisão contra jurisprudência fixada, como para os recursos para fixação de jurisprudência, é o que melhor se compagina com a ideia de que tais recursos integram uma via de carácter excepcional, extraordinária, com um regime próprio, especial e autónomo, que só pode desencadear-se quando a questão já não puder ser solucionada pela via comum, na instância ordinária, devendo subordinar-se previamente à existência de caso julgado dessa decisão.
63. Sem prejuízo nem desdouro, cabe lembrar a jurisprudência deste Supremo que tem considerado que se trata de uma mera irregularidade, cabendo ao juiz considerá-la reparada, se for o caso, uma vez que a antecipação da interposição do recurso, em si, pode não afectar o valor do acto praticado ou qualquer outro (art. 123.º, n.º 2, do CPP) – neste sentido, os acórdãos do STJ, com sumário disponível em www.stj.pt/Jurisprudencia/ Acórdãos/Sumários de acórdãos/ Criminal – Anos de 2014 e 2008, de 30-10-2014, Proc. n.º 935/02.6TASTR.E2-A.S1 e de 13-11-2008, Proc. n.º 1304/08.
64. Assim sendo, conclui-se que o presente recurso extraordinário de decisão contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça é inadmissível, sendo de rejeitar, por intempestividade, nos termos do disposto nos arts. 414.º, n.º 2, 420.º, n.º 1, al. b), 446.º, 441.º, n.º 1, e 448.º, todos do CPP.
Ex abundanti, vejamos.
65. Da decisão proferida contra jurisprudência fixada – a apreciação do recurso conclui pela rejeição por extemporaneidade.
No entanto, sempre se dirá que também não se mostram preenchidos os requisitos substanciais para a admissibilidade do recurso.
66. O recorrente considera que o acórdão recorrido violou a jurisprudência fixada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005 de 20-10-2005, publicado no DR, I Série A, de 07-12-2005. A este respeito formulou as seguintes conclusões:
“[…] Ainda sem prescindir - decisão proferida contra jurisprudência fixada no Acórdão de Uniformização de jurisprudência n.º10/2005 de 20/10/2005, publicado no Diário da República, I Série A de 7/12/2005:
28- A impossibilidade de recurso da decisão de facto, nos termos defendidos no Acórdão recorrido, traduz a violação da doutrina fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça - Acórdão n.º 10/2005 de 20 de Outubro de 2005, publicado no D.R. I Serie - A de 7 de Dezembro, em cuja fundamentação se refere que a indagação dos vícios faz-se "no uso de um poder-dever, vinculadamente, de fundar uma decisão de direito numa escorreita matéria de facto".
29- O Tribunal Constitucional deu sempre relevância aos poderes de cognição das Relações em matéria de facto, quer sindicando negativamente a inadmissibilidade deste recurso no Código de Processo Penal de 1929 e também no Código de Processo Penal de 1987 quando ainda inadmissível relativamente a decisões do tribunal colectivo e de júri, quer actualmente, nas decisões em que o tribunal superior se fica pela constatação de que os elementos de prova constantes do exame crítico da sentença resultaram da prova produzida sem proceder à avaliação crítica dessa mesma prova (TC 116/2007).
30- Não tendo apreciado o recurso nessa dimensão, o acórdão recorrido omitiu pronúncia sobre questão que era obrigado a conhecer e decidiu contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, razão por que é nulo.
31- (...) A Relação, ao não conhecer da impugnação da matéria de facto, já que não lhe deu a resposta adequada, com exame efectivo e análise crítica da prova documentada, omitiu pronúncia sobre questão de que deveria conhecer e incorreu na nulidade a que se reportam os art.ºs 379.º, n.º 1, al. c) e 425.º, n.° 4, do CPP." - "Vide gratiae" douto Acórdão deste STJ de 17-05-2007, proc. n.º 07P1397, inwww.dgsi.pt
32- E, decidiu em sentido contrário ao que decorre do citado AUJ/10/2005, o qual fixou: "após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo Tribunal Colectivo". […]”
67. Por seu lado, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005 de 20-10-2005, publicado no DR, I Série A, de 07-12-2005 fixou jurisprudência nos seguintes termos:
“[…] Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo Tribunal Colectivo […]”
68. Ora, no caso presente, o recorrente interpôs recurso ordinário para o Tribunal da Relação, da decisão da 1.ª Instância, que o condenou, como já se fez menção, pela prática de crime de detenção/venda de dispositivos ilícitos, p. e p. pelo art. 104.º, n.ºs 1, als. a) e b) e 3 da Lei n.º 5/2004, que, pela relação de consunção, absorve o crime de acesso ilegítimo, p. e p. pelo 6.º, n.ºs. 1 e al. b), da Lei n.º 109/2009, na pena de 200 dias de multa à razão diária de €8,00, perfazendo montante total de €1 600,00.
69. Nesse recurso, o recorrente impugnou, além do mais, a decisão da matéria de facto fixada, nos termos do art. 412.º, n.ºs 3 e 4 do CPP, por considerar que a prova não foi correctamente analisada pelo Tribunal de 1.ª Instância e fundamentou essa divergência indicando os elementos de prova e transcrevendo os depoimentos de testemunhas que considerou erroneamente apreciados quando conjuntamente valorados com a demais prova dos autos.
70. Pugnou, pois, pela reapreciação dessa mesma prova com o objectivo de ver alterada aquela decisão da matéria de facto, o que considera que não ocorreu porque, segundo alega, o Tribunal da Relação omitiu, deliberadamente, pronúncia sobre as concretas questões de prova que sindicou, respaldando-se no princípio da livre apreciação da prova (cfr. art. 127.º, do CPP).
71. Considera, por isso, que tal decisão inviabilizou, por essa via, o acesso a um duplo grau de jurisdição, o que considera ser violador da jurisprudência fixada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 15/2005.
72. Figura-se que sem razão.
73. De facto, com o recurso da decisão da matéria de facto, pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento para que faça um juízo substitutivo do efectuado pela 1.ª Instância.
74. Contudo, tal não significa que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto equivale a uma repetição do julgamento numa segunda instância – não se pretende um novo e integral julgamento dessa mesma matéria de facto, mas um reexame necessariamente segmentado, parcial, e conciso dos elementos de prova, exigindo-se uma apreciação crítica do mérito ou demérito dos vários meios de prova que alicerçam a convicção probatória, de forma a que o tribunal de recurso possa avaliar o acerto do juízo efectuado sobre a matéria de facto.
Veja-se, a respeito, o Acórdão do STJ de 17-12-2014, Proc. n.º 937/12.4JAPRT.P1.S1:
“[…] Como o recurso sobre a matéria de facto visa, não a prolação de uma nova decisão, mas tão-só a sindicância da decisão já proferida, ao tribunal de recurso incumbe apenas verificar se o tribunal recorrido apreciou correctamente as provas e, se entender que sim, pode limitar-se a aderir ao exame crítico das provas realizado pelo tribunal recorrido. A jurisprudência do STJ têm-se pronunciado no sentido de que o dever de fundamentação da decisão proferida, em recurso, não assume a mesma extensão que possui tratando-se de sentença ou de acórdão de um tribunal de 1.ª instância. Cumpre o dever de fundamentação, ainda que com sobriedade, o acórdão da Relação que apreciou a questão relativa à matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância, ainda que tenha procedido, de forma não pormenorizada, ao exame crítico das provas. […]” – no mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 18-12-2013, Processo nº 137/08.8SWLSB.L1.S1.
75. Assim, não se vê em que medida o Tribunal da Relação, no seu acórdão, contrariou aquele acórdão de uniformização de jurisprudência.
76. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 15/2005 supra referido surgiu na sequência da querela jurisprudencial existente, à data, relacionada com a possibilidade de se interpor recurso para o Tribunal da Relação de decisão da matéria de facto fixada pelo Tribunal Colectivo, havendo jurisprudência que defendia que tal recurso não era admissível.
77. Pode ler-se, no referido aresto que: “[…] Nas suas conclusões de recurso, enunciam os recorrentes os respectivos fundamentos pela seguinte forma: De acordo com o acórdão (recorrido) proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 6 de Março de 2002, das decisões dos tribunais colectivos não há recurso da matéria de facto, pelo que, nessa parte, se entendeu não dever aquele Tribunal pronunciar-se. Essa decisão encontra-se em manifesta oposição com o Acórdão (fundamento) deste STJ de 30 de Maio de 2001, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano IX, t. II, a pp. 213-215. Aqui se sintetizou, no seu sumário, que: «1—Com a nova regulamentação dos recursos dos acórdãos finais do tribunal colectivo possibilita-se o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, podendo, então, haver duplo grau de jurisdição em matéria de facto e duplo grau de recurso. 2—Daí que, se o recorrente pretender impugnar a decisão de facto fixada pelo tribunal colectivo, pode recorrer para o Tribunal da Relação.» […]”
78. Discutia-se, pois, a possibilidade de interpor recurso para o Tribunal da Relação de decisões da matéria de facto do Tribunal Colectivo, tendo aquele acórdão uniformizador fixado jurisprudência no sentido da sua admissão, considerando que o Tribunal da Relação deveria, pois funcionar, como verdadeiro segundo grau de jurisdição, impondo-se extrair a conclusão de que no sistema actual de estruturação dos recursos o CPP faz questão de erigir, em duas linhas de força, um equilibrado travejamento dos recursos das decisões do tribunal colectivo, quais duas faces de uma mesma medalha, em vista de imprimir ao processo penal a natureza de um processo justo e leal (a due process of law), a saber: Se vocacionados ao exclusivo reexame da matéria de direito, a competência para os decidir radica-se no STJ, ao qual escapa, por força de lei - artigos 434.º e 432.º, alínea d), do CPP -, o conhecimento da matéria de facto, salvo se do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, resultar qualquer dos vícios enumerados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP; em paralelo, se endereçados ao reexame da matéria de facto, desta e de direito, com base nos elementos constantes da prova oralmente produzida em audiência de discussão e de julgamento, então impera a competência da Relação, à qual se lhe fornecem legal e amplamente os indispensáveis meios de controlo. – cf. aresto citado.
79. Ora, o acórdão recorrido não se recusou a apreciar o recurso interposto pelo recorrente da decisão da matéria de facto fixada.
Pelo contrário, proferiu despacho de admissão do mesmo e apreciou-o em acórdão de que agora se recorre.
80. É certo que o recorrente discorda do julgamento da matéria de facto, insurgindo-se contra o reexame e reapreciação da prova que foi feita pelo Tribunal da Relação, mas não é pelo facto de considerar que o Tribunal julgou erradamente a matéria de facto - pois não analisou a prova que indicou, escalpelizando cada depoimento ou cada documento sindicado e extraindo daí as consequências pretendidas no recurso - que se pode afirmar que não se pronunciou sobre tal matéria e, muito menos, que rejeitou o recurso nessa parte por considerar que o mesmo não era admissível.
81. Ao invés, o vício que agora invoca no recurso interposto da decisão do Tribunal da Relação, só é susceptível de sindicância pelo recorrente, precisamente porque o recurso da decisão da matéria de facto fixada foi admitido e sobre o mesmo foi proferida uma decisão.
82. Acontece que o erro de julgamento da matéria de facto apontado ao acórdão recorrido (seja por incorrecto reexame da prova, seja por omissão dessa reapreciação), é questão jurídica totalmente distinta do direito ao recurso, enquanto garantia de defesa no processo penal (cf. art. 32.º, da CRP), para o Tribunal da Relação, de decisões da matéria de facto fixada pelo Tribunal Colectivo.
83. Da mesma forma, não se vislumbra a existência de soluções opostas, pois esta pressupõe que é idêntica a situação de facto nos dois acórdãos, havendo em ambos uma expressa resolução de direito, sobre situações semelhantes.
84. No caso concreto, tal não ocorre, pois, no acórdão recorrido o recurso da decisão da matéria de facto foi admitido e apreciado pelo Tribunal da Relação tendo sido julgado improcedente. Assim, não se verificou qualquer impedimento ou bloqueio ao direito ao recurso do recorrente relativamente a decisão daquele tribunal de 1.ª Instância (Tribunal Colectivo) que fixou matéria de facto.
85. O acórdão uniformizador, por seu lado, fixou jurisprudência precisamente no sentido da admissibilidade do recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo Tribunal Colectivo, quando se discutia, em duas decisões opostas, essa possibilidade.
86. Assim, ainda que nos dois acórdãos em causa, a questão suscitada se reporte ao recurso de decisão da matéria de facto fixada pelo Tribunal Colectivo, inexiste qualquer identidade das situações de facto, pois no acórdão recorrido não está em causa a admissão do recurso ou o exercício desse direito.
87. De resto, tendo sido admitido e apreciado o recurso interposto pelo recorrente relativamente a decisão da matéria de facto, conforme plasmado no acórdão recorrido, conclui-se que este está em linha com a jurisprudência fixada, inexistindo qualquer solução antagónica, de sentido divergente do acórdão uniformizador por não acatamento da sua doutrina.
88. Tanto assim é que o acórdão recorrido, em momento algum desaplicou a jurisprudência fixada, seja por errada interpretação, seja por desconhecimento, divergiu da mesma ou fundamentou o seu desacordo para a sua não aplicação.
89. No caso, trata-se de duas realidades fácticas distintas, o que impede que se considere que possa existir no acórdão recorrido uma solução jurídica, expressamente proferida, em oposição com o acórdão uniformizador.
90. Dito por outra palavras, inexiste, no acórdão recorrido, qualquer oposição expressa ou explícita, traduzida numa solução jurídica de situação de facto idêntica à tratada no referido acórdão de uniformização, que tenha sido ali decidida de forma dissonante da jurisprudência fixada.
91. O facto de o recorrente não concordar com a forma como foi apreciada pelo Tribunal da Relação aquela prova sindicada e com a decisão que veio a ser proferida quanto à matéria de facto fixada, significa tão só que não se conformou com o decidido no acórdão recorrido, todavia esta realidade em nada se confunde com uma oposição expressa, em decisão divergente, à jurisprudência fixada, designadamente, entre o acórdão recorrido e o acórdão uniformizador.
92. Assim, o decidido no acórdão recorrido, para além de não ter identidade da situação de facto com o circunstancialismo do acórdão uniformizador, também não apresenta para a mesma questão de direito uma solução jurídica oposta ao decidido no acórdão fundamento.
93. Em face destes considerandos, é de concluir que não se verifica oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão uniformizador, inexistindo qualquer violação da jurisprudência fixada, pelo que sempre seria de rejeitar o presente recurso, também por falência dos pressupostos substanciais da sua admissibilidade.
94. Em vista da rejeição do recurso, cumpre condenar o recorrente nas custas.
95. Em conclusão e síntese:
(i) na medida em que a interposição do recurso contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida (artigo 446.º n.º 1, do CPP) configura um dos pressupostos formais de admissibilidade do mesmo recurso, é inadmissível, por intempestividade da respectiva interposição, o recurso interposto antes de iniciado aquele prazo, devendo ser rejeitado, nos termos conjugadamente previstos nos artigos 414.º n.º 2, 420.º n.º 1 alínea b), 446.º, 441.º n.º 1 e 448.º, do CPP;
(ii) sem embargo, o presente recurso de decisão contra jurisprudência fixada sempre deveria ser rejeitado por inadmissibilidade legal, do passo em que se não verifica, no acórdão recorrido qualquer posição expressa que traduza uma solução jurídica de situação de facto idêntica ou assimilável à tratada no acórdão de uniformização de jurisprudência e que ali tenha sido decidida de forma dissonante da jurisprudência fixada, e assim, nos termos conjugadamente previstos nos artigos 414.º, n.º 2, 420.º, n.º 1, al. b), 446.º, 441.º, n.º 1, e 448.º, do CPP.
III
96. Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
a) rejeitar o recurso, por inadmissibilidade;
b) condenar o recorrente nas custas, com a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta.
Lisboa, 29 de Outubro de 2020
António Clemente Lima (Relator)
Margarida Blasco (Adjunta)