RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
RECLAMAÇÃO
NULIDADE
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Sumário


I - O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra era irrecorrível, por força do disposto nos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. c), ambos do CPP. Aquele acórdão apenas admitia, eventualmente, recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 75.º, n,º 1, da Lei n.º 28/82, de 15.11 (e alterações posteriores); sabendo que não era admissível recurso ordinário do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no prazo de 30 dias após o seu trânsito poderia ter sido interposto o recurso para fixação de jurisprudência.
II - Os factos relevantes foram elencados, foi apresentada a fundamentação de direito, e de forma clara expôs-se a decisão, pelo que improcede a arguição de nulidade nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. a), ex vi art. 425.º n.º 4, ambos do CPP.
III - Havendo legislação específica no Código de Processo Penal quanto aos recursos para fixação de jurisprudência não há lugar à integração de uma lacuna (inexistente) nos termos do art. 4.º, do CPP, pelo que não há fundamento para aplicação das regras do Código de Processo Civil.

Texto Integral




Proc. n. º 775/18.0T9LRA.C1-B.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I

Relatório

1. AA, assistente neste processo e identificado nos autos, veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo do disposto no art. 437.º do Código de Processo Penal (CPP), do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.10.2019, que negou provimento ao recurso interposto do despacho que rejeitou a abertura de instrução que havia sido requerida.

Apresentou como acórdão fundamento o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.04.2017, prolatado no âmbito do processo n.º.684/14.2T9SXL.L1.

2. O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 10.09.2020, decidiu “em rejeitar, por extemporâneo, o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência interposto pelo assistente”.

3. É deste último acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que o assistente vem arguir, ao abrigo do disposto no art. 379.º, n.º 2, ex vi art. 425.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal (CPP), a sua nulidade com fundamento no disposto no art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP. Para tanto apresentou as seguintes conclusões:

«III – CONCLUSÃO

37º O entendimento professado pelo acórdão do STJ (que um acórdão irrecorrível, nos termos das alíneas do art. 400 CPP, é equivalente a um acórdão não suscetível de recurso previsto no art. 628 CPC ex-vi art. 4 CPP) não encontra respaldo nem na lei, nem na jurisprudência, nem no próprio entendimento do acórdão, uma vez que este vem admitir que o recurso de um acórdão irrecorrível é “excecionalmente admissível”, não havendo hipóteses do interessado previamente saber a decisão que recairá sobre a matéria controversa.

38º Uma vez que um “acórdão irrecorrível” não deixou de estar “suscetível de recurso ordinário” ainda que “excecionalmente admissível”, o prazo para o trânsito em julgado é o de 30 dias estipulado no art. 411 n° 1 CPP.

39º Portanto, não poderá um acórdão transitar em julgado enquanto se aguarda a decisão sobre a matéria controversa suscitada por via da impugnação a que foi submetido por interposição de recurso ordinário, por força do art. 627 n° 1 CPC ex-vi art. 4 CPP.

40º A reclamação prevista no art. 405 CPP, sendo parte integrante do conceito de recurso ordinário, tendo sido admitida, continua a impugnar o trânsito em julgado da decisão em crise.

41º Ao querer dar como provado um acórdão irrecorrível ser da mesma natureza que um acórdão não suscetível de recurso, o acórdão em crise acaba por dar este facto como não provado ao admitir que o recurso de acórdão irrecorrível poderá ser “excecionalmente admissível”, tal implicando em contradição na fundamentação, tornando a sentença pouco clara, resultando em nulidade da sentença ao abrigo do art. 374 n° 2 ex-vi art. 379 n° 1 al. a) CPP.

42º A certidão de certificação de trânsito em julgado, emitida pelo Tribunal de ..., por atestar como tendo sido objeto da percepção da autoridade ou  oficial público um facto que na realidade não se verificou, pode ser ilidida em conformidade ao previsto no art. 372 n° 2 do Código Civil, retirando o valor probatório do documento conforme previsto no art. 169 CPP.

43º Uma vez que o facto que na realidade não se verificou foi o trânsito em julgado do acórdão do Tribunal de Coimbra em 31.10.2019, por estar a ser impugnado por recurso ordinário por força do art. 627 n° 1 CPC ex-vi art. 4 CPP, encontra-se o acórdão recorrido em falta de fundamentação e de exame crítico da prova principal, o que importa a nulidade da sentença.

44º Tendo que esgotar todos os recurso ordinários antes de intentar a reversão da decisão em crise por via de recurso extraordinário, o trânsito em julgado, no prazo de reclamação, de acórdão irrecorrível mas ainda “suscetível de recurso ordinário” ainda que “excecionalmente admissível” configura, independentemente do sujeito processual, uma clara violação do direito constitucional de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva prevista no art. 20 da Constituição.

45º Como agravante da inconstitucionalidade, tendo o sujeito processual interposto recurso ordinário ao abrigo do, entre outros, art. 629 nº 2 al. c) e d) CPC ex-vi art. 4 CPP, em matéria que versa sobre a oposição verificada entre dois diferentes acórdãos de Relação, matéria idêntica à submetida posteriormente à apreciação do tribunal no recurso extraordinário interposto ao abrigo do art. 437 nº 2 CPP, considerar o trânsito em julgado, nos termos do artigo anterior, retira ao interessado a garantia constitucional de ver a sua causa ser objeto de decisão, como comanda o nº 4 do mesmo preceito constitucional.

46º Mutatis mutandis, e uma vez que não pode o tribunal aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados, por força do art. 204 CRP, deverá o trânsito em julgado da reclamação apresentada contra o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, ser considerado como termo inicial de contagem de prazo, ou seja, 02.03.2020, e, em consequência da tempestividade já constatada nas instâncias a quo, devendo ainda, ser prolatado despacho a admitir o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência interposto pelo assistente, ora recorrente,

Nestes Termos e nos mais de Direito, V. Exas, doutamente suprirão, deve ser conhecida a nulidade ao douto acórdão, a que se recorre, e proferida nova decisão que se coadune com a pretensão exposta,

Assim se fazendo a verdadeira JUSTIÇA!»

4. Colhidos os vistos em simultâneo, o processo foi presente à conferência para decisão.

II

Fundamentação

1. Na reclamação agora apresentada, o recorrente começa por elencar os factos que entende como relevantes para a decisão:

«Relevante, para o presente recurso de arguição de nulidade, descrever a ordem cronológica das intervenções e decisões processuais ocorridas nos autos do processo. Assim:

a) O acórdão do TRC foi prolatado a 16.10.2019;

b) O assistente foi notificado deste acórdão em 16.10.2019 por via postal registada e expedida nesta data, presumindo-se feita em 21.10.2019;

c) O assistente impugnou o acórdão via interposição de recurso ordinário para o STJ em 15.11.2019;

d) O TRC prolatou despacho de não admissibilidade do recurso por força do disposto no art. 400 nº 1 al. c) CPP em 03.12.2019, sendo o mandatário judicial notificado em 04.12.2019, presumindo-se feita em 09.12.2019;

e) O assistente interpôs reclamação ao tribunal ad quem ao abrigo do art. 405 CPP em 19.12.2019, que foi admitida por despacho do TRC em 08.01.2020;

f) O indeferimento da reclamação foi notificado ao mandatário judicial em 03.02.2020, presumindo-se feita 06.02.2020;

g) O assistente arguiu irregularidade da decisão do indeferimento em 10.02.2020;

h) A irregularidade foi indeferida e notificada ao mandatário judicial em 17.02.2020, presumindo-se feita em 20.02.2020;

i) O assistente não interpôs reclamação nem recurso ao Tribunal Constitucional no prazo legal;

j) A decisão sobre a reclamação transitou em julgado em 02.03.2020;

k) O assistente interpôs recurso extraordinário de fixação de jurisprudência em 30.04.2020 na sequência da suspensão dos prazos judiciais decretada pela Lei nº 1-A/2020;

l) O recurso foi admitido na Relação de Coimbra por despacho em 20.06.2020, por tempestividade e legitimidade, na sequência de parecer, no mesmo sentido, do MP junto à Relação em 22.05.2020;

m) O Tribunal Judicial da Comarca de ... encaminhou aos presentes autos, em 07.09.2020, certidão a certificar o trânsito em julgado do acórdão do TRC em 31.10.2019;

n) O assistente ora recorrente é notificado da rejeição, por extemporaneidade, do recurso de fixação de jurisprudência em 17.09.2020, presumindo-se feita em 21.09.2020.» (ponto 3.º da motivação).

Entende o recorrente que a partir da noção de trânsito em julgado prevista no art. 628.º, do Código de Processo Civil (CPC) (ex vi art. 4.º, do CPP) este trânsito da decisão não ocorre enquanto for possível a interposição de recurso ordinário ou de reclamação. Neste seguimento entende que a reclamação que apresentou, do despacho de não admissibilidade do recurso ordinário do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.10.2019, “integra o procedimento de recurso previsto na primeira parte” do art. 628.º, do CPC (ponto 11.º da motivação). Por isso, considera “admitida a reclamação prevista no art. 405 CPP, e sendo esta uma forma de impugnação enquadrada no âmbito, conceito e procedimento do recurso ordinário previsto na primeira parte do art. 628 CPC, a decisão impugnada não transita em julgado enquanto não houver decisão sobre a matéria controversa por força do art. 627 nº 1 CPC ex-vi art. 4 CPP” (ponto 12.º da motivação).

E assim sendo, entende que o acórdão (do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.10.2019) só transita em julgado quando a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, que decidiu aquela reclamação do despacho de não admissibilidade do recurso ordinário, transitar — “ou seja, enquanto não tem aquela decisão sobre a reclamação, o interessado tem a garantia legal que o acórdão impugnado não transitou em julgado” (ponto 14.º da motivação). Considera que “não poderia jamais o ora recorrente, em um exercício de futurologia, prever a decisão que recairia sobre o seu recurso ordinário” (ponto 18.º da motivação), isto porque, no seu entendimento “independentemente da decisão ser irrecorrível, a decisão pode ser susceptível de recurso ordinário” (ponto 19.º da motivação); “Ou seja, a notificação do acórdão, presumida feita em 21.10.2019, implicaria no trânsito em julgado do acórdão do TRC em 20.11.2019, jamais em 31.10.2019, por ainda ser suscetível de recurso ordinário previsto no art. 628 CPC ex-vi art. 4 CPP, que por sua vez foi interposto em 15.11.2019 conforme a cronologia apresentada acima no art. 3° al. c).” (ponto 26.º da motivação).

Quer com isto o recorrente dizer que sendo o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.10.2019 a interposição de recurso ordinário a 15.11.2019 (ainda dentro do prazo estabelecido o art. 411.º, n.º 1, do CPP, e portanto em um momento em que ainda era possível de acordo com aquele prazo) impede que se considere já ter havido trânsito em julgado, porque ainda “susceptível de recurso ordinário” (art. 628.º, do CPC).

Esquece-se o recorrente que os pressupostos de admissibilidade do recurso não se resumem à sua tempestividade. Na verdade, constituem pressupostos de admissibilidade de recurso a sua interposição em tempo, mas também a sua admissibilidade legal tendo em conta outros pressupostos — no âmbito do processo penal, e no caso do recurso a interpor de uma decisão de um Tribunal da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, os pressupostos previstos nos arts. 432.º e 400.º, do CPP, e desde que o objeto se integre nos poderes de cognição deste Tribunal, nos termos do art. 434.º, do CPP.

Assim sendo, a suscetibilidade de recurso ordinário não decorre do facto de ainda estar a decorrer o prazo para a interposição de recurso.

Não pode, no entanto, deixar de se referir o entendimento alargado da noção de recurso ordinário quando

- no ponto 11.º da sua motivação afirma “a reclamação a que se alude no art. 405 CPP não se enquadra no âmbito, conceito e procedimento de reclamação a que se refere o art. 628 CPC ex-vi art. 4 CPP, mas integra o procedimento de recurso previsto na  primeira parte deste preceito civil” (sublinhados no original, negrito nosso) e

- no ponto 27.º da sua motivação afirma “Tendo a reclamação prevista no art. 405 CPP, incluída no conceito de recurso ordinário previsto no art. 628 CPC, transitado em julgado em 02-03¬2020, é nesta data que se verifica também o trânsito em julgado do acórdão do TRC.”

Afinal, uma reclamação de uma decisão de não admissibilidade de recurso segundo o recorrente integra a noção de recurso ordinário. Ora, sabendo que o recurso é uma impugnação de uma decisão final sobre o objeto do processo, a reclamação de uma decisão de não admissibilidade (de um recurso) é a impugnação de uma outra decisão. E todo o processado subsequente àquela reclamação não integra o recurso da decisão final sobre o objeto do processo. Na verdade, “do despacho que não admitir ou retiver o recurso, o recorrente pode reclamar” (art. 405.º, do CPP) assim se evidenciando que o recurso ficou retido, e com a reclamação um outro procedimento se iniciou.

Uma coisa é o recurso de uma decisão final que conhece do objeto do processo, e processado distinto o que se gera a partir de uma outra decisão — um despacho — de admissibilidade (ou não) do recurso interposto.

Entende ainda existir contradição no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça agora recorrido — «a conclusão “é por demais evidente que o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra já não admitia recurso”, proferida no acórdão recorrido, está viciada por contradição: independentemente da decisão ser irrecorrível, ela podia ser susceptível de recurso ordinário “excecionalmente admissível”.» (ponto 22.º) — quando afirmou que “é por demais evidente que o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra já não admitia recurso — uma vez que só excecionalmente se admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e tratava-se de decisão enquadrável no âmbito do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP].” (p. 5 do acórdão em referência).

Comecemos por salientar que subjacente à frase transcrita estão três ideias:

1)  é evidente a irrecorribilidade da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra porque

2) as situações de admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça são excecionais, no sentido de que os pressupostos de admissibilidade de recurso para este Supremo Tribunal limitam a regra geral da recorribilidade das decisões (art. 399.º, do CPP) e

3) o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra constitui uma decisão enquadrável na previsão normativa do art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP, ou seja, uma das situações onde o recurso não é admissível [por força do disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP].

Não há, pois, qualquer contradição na frase citada, improcedendo a alegação.

Ora, sem que seja necessário qualquer outro exercício para além da aplicação da lei, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra era irrecorrível, por força do disposto nos arts. 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. c), ambos do CPP. Aquele acórdão apenas admitia, eventualmente, recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 75.º, n,º 1, da Lei n.º 28/82, de 15.11 (e alterações posteriores). E porque assim é, a certidão junta aos autos considerou o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra transitado a 31.10.2019.

Ora, sabendo que não era admissível recurso ordinário do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no prazo de 30 dias após o seu trânsito poderia ter sido interposto o recurso para fixação de jurisprudência.

Outro qualquer entendimento determinaria que se considerasse que um certo acórdão só seria insuscetível de recurso ordinário quando houvesse uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a reclamação do despacho de não admissibilidade, ou que tivesse passado o prazo de reclamação da decisão de não admissibilidade do recurso. Assim se conseguindo acrescentar ao prazo de interposição do recurso de 30 dias sobre a notificação da decisão, um outro “prazo incerto”, não legalmente previsto, que decorreria do tempo que mediasse entre a interposição do recurso, o despacho de não admissibilidade e o prazo de reclamação quando não houvesse reclamação, ou o tempo até à decisão sobre a reclamação do Supremo Tribunal de Justiça (quando esta reclamação tivesse ocorrido).

Tudo isto foi devidamente explicado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.09.2010, não ocorrendo nenhuma nulidade de acordo com o disposto no art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, tal como vem alegado.

Na verdade, no acórdão foi apresentada a cronologia relevante dos factos:

«O presente recurso vem interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, prolatado a 16.10.2019.

Este acórdão foi notificado ao assistente por via postal registada expedida a 16.10.2019, e transitou em julgado a 31.10.2019 (cf. certidão junta a estes autos).

É certo que o assistente havia interposto recurso (daquele acórdão) a 15.11.2019, tendo sido prolatado despacho de não admissibilidade a 03.12.2019 [com fundamento em inadmissibilidade do recurso, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP — cf. decisão junta a estes autos]; desta decisão de rejeição reclamou a 19.12.2019 (cf. informação junta aos autos, e enviada a 07.09.2020, pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo de Instrução Criminal de ..., Juiz 1) , tendo o Supremo Tribunal de Justiça confirmado o indeferimento por decisão transitada em julgado a 02.03.2020 (cf. certidão junta aos autos) ­ — por decisão de 16.01.2020 do Supremo Tribunal de Justiça, foi indeferida a reclamação e tendo o recorrente arguido a irregularidade desta decisão, com fundamento no art. 123.º, n.º 1, do CPP, por decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.02.2020 foi indeferido este requerimento, tendo, pois, a decisão de indeferimento da reclamação transitado a 02.03.2020.»

E foi apresentada a fundamentação de direito:

«é por demais evidente que o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra já não admitia recurso — uma vez que só excecionalmente se admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e tratava-se de decisão enquadrável no âmbito do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP].

Nos termos do art. 438.º, n.º 1, do CPP “O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.” Assim sendo, e sabendo que o acórdão fundamento tem que ser anterior ao acórdão recorrido (cf. art. 437.º, n.º 4, do CPP), a decisão transitada em último lugar é o acórdão recorrido.

Assim sendo, o prazo determinado no art. 438.º, n.º 1, do CPP, começou a correr no momento em que o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra transitou em julgado, isto é, a 31.10.2019. E não se diga que nesta altura o agora recorrente não sabia se aquele acórdão tinha ou não transitado em julgado. Na verdade, se os prazos fossem alargados pelo simples facto de o Recorrente interpor um recurso inadmissível estava encontrada a solução não só para alterar o prazo estabelecido na lei (em violação do princípio da legalidade), como também para “construir” um prazo em função de cada caso de acordo com o maior ou menor lapso de tempo que decorreria até à prolação de decisão sobre a reclamação da decisão de não admissibilidade de um recurso. Dir-se-á que enquanto não tem aquela decisão sobre a reclamação o interessado não sabe se o acórdão já transitou ou não em julgado. Mas, se assim é, apenas cabe ao interessado interpor no momento da reclamação também o recurso para fixação de jurisprudência que subirá (ou não) ao Tribunal de recurso, logo que a decisão sobre a reclamação transite em julgado.

Ora, tendo o recurso sido interposto a 30.04.2020 (como, aliás, o Recorrente reconhece na resposta apresentada após notificação ao abrigo do art. 417.º, n.º 2, do CPP) não foi apresentado no prazo legal, pelo que não deve ser admitido o recurso, por extemporâneo, nos termos do art. 438.º, n.º 1, do CPP.

Na verdade, o prazo de 30 dias conta-se a partir do momento em que o acórdão do Tribunal da Relação transitou em julgado, e não a partir do trânsito em julgado da reclamação, pelo que também não faz sentido considerar aplicável o disposto na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março (alegado na resposta apresentada), uma vez que aquela decisão transitou em outubro de 2019.»

E a partir desta fundamentação decidiu-se “rejeitar, por extemporâneo, o recurso extraordinário de fixação de jurisprudência interposto pelo assistente AA”.

A partir daqui verifica-se que não só os factos relevantes foram elencados, como foi apresentada a fundamentação de direito, e de forma clara se expôs a decisão, pelo que improcede a arguição de nulidade nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. a), ex vi art. 425.º n.º 4, ambos do CPP.

Por fim, cumpre salientar que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça apenas decidiu sobre a extemporaneidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência por interposição após o prazo estabelecido no art. 438.º, n.º 1, do CPP, cumprindo o estabelecido na lei. A impossibilidade de admissão do recurso interposto deve-se apenas ao recorrente que o não apresentou no prazo legal. E porque não foi interposto tempestivamente não foi apreciada a questão controvertida, nem o recurso foi interposto com base no art. 629.º, n.º 2, als. c) e d), do CPC, mas sim com base no art. 437.º, do CPP. Na verdade, havendo legislação específica no Código de Processo Penal quanto aos recursos para fixação de jurisprudência não há lugar à integração de uma lacuna (inexistente) nos termos do art. 4.º, do CPP, pelo que não há fundamento para aplicação das regras do Código de Processo Civil.

III

Conclusão

Nos termos expostos acordam, em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, indeferir a reclamação apresentada pelo assistente AA, junto do Supremo Tribunal de Justiça.

Custas pelo reclamante, com 3 UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 29 de outubro de 2020

Os juízes conselheiros,

     

Helena Moniz (Relatora)                                    

Francisco Caetano