HABEAS CORPUS
MANDADO DE DETENÇÃO
CUMPRIMENTO DE PENA
EFEITO DO RECURSO
EFEITO DEVOLUTIVO
CÚMULO JURÍDICO
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
INADMISSIBILIDADE
Sumário

I. A providência de habeas corpus enquanto meio extraordinário e expedito não visa a sindicância de decisões proferidas no processo objecto da condenação e só a ilegalidade da prisão que seja manifesta, grosseira, inequívoca, a pode justificar;

II. O despacho que indeferiu a sustação do cumprimento de mandados de detenção para cumprimento da pena e que atribuiu ao recurso interposto efeito devolutivo é matéria cuja apreciação não cabe na providência, antes à relação quanto ao recurso e seu presidente quanto à impugnação do efeito fixado;

III. O facto de a pena de prisão vir integrar uma pena única conjunta resultante de um concurso de crimes de conhecimento superveniente e, daí, não ser uma pena que possa ser executada por ser ilíquida, na expressão do requerente, nada obsta à execução em curso, que desde logo deixa marcado o início do seu cumprimento, essa sendo, de resto, a situação normal dos casos de conhecimento superveniente do concurso, sendo certo também que o eventual cumprimento da pena parcelar não deixará de ser descontado no cumprimento da pena única que eventualmente vier a ser aplicada (art.º 78.º, n.º 1, do CP).

Texto Integral


Proc. n.º 49/13.3IDFUN-C.S1

Habeas corpus

Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA, veio requerer, através de advogada,  a concessão da providência de habeas corpus, com fundamento em prisão ilegal , nos termos das alíneas b) e c) do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, alegando o seguinte, que se transcreve:

(I)

1. Por ordem do Juiz 2 do Juízo Local Criminal ..., do Tribunal Judicial de Comarca ..., no Proc. n.º 49/13.3IDFUN, foi contra o requerente emitido MANDADO DE DETENÇÃO para cumprimento de pena (de prisão efectiva).

2. O requerente, actualmente preso e em quarentena (isolamento) no Estabelecimento Prisional ..., desde o dia 19.10.2020, entende, s.m.o., que tal ordem foi claramente prematura.

3. Porquanto, a sua execução acarreta directa violação de direitos, liberdades e garantias do arguido legalmente protegidos e com consagração expressa pela Constituição da República Portuguesa.

4. Pelo que, requer a providência de habeas corpus, nos termos dos artigos 222.º e 223.º do Código de Processo Penal (CPP) e do artigo 20.º, n.º 1, 4 e 5, do artigo 27.º, n.º 1 e 4, dos artigos 31º e 32º, n.º 1, 2 e 9, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

5. Tendo em conta, antes de mais:

(i) que ao requerente foi aplicada uma pena de prisão não superior a dois anos e

(ii) haver lei penal nova mais favorável a este,

(iii) sendo esta a lei aplicável por imposição constitucional do artigo 29.º n.º 4 da Lei

Fundamental, acolhida pelo artigo 2.º n.º 4 do Código Penal,

(iv) e para que se pudesse e possa proceder ao acerto dos pressupostos, porventura em falta (consentimento do arguido e verificação das condições de instalação na habitação dele mesmo dos meios técnicos de controlo à distância),

(v) logo de seguida a conferência, quanto ao caso, do novo regime de permanência na habitação,

(vi) que tinha e tem de dar lugar à elaboração de nova decisão em conformidade,

(vii) o arguido, por requerimento de 15-05-2020, requereu a abertura de Audiência de discussão e julgamento,

(vii) bem como, solicitou que fosse ordenada a devolução, de imediato, sem cumprimento, do expediente respeitante ao Mandado de detenção para cumprimento da pena (de prisão efectiva).

6. Proferido nos autos o Despacho de dia 18-05-2020 que lhe indeferiu o requerido, não se conformando, o requerente veio dele interpor Recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, no dia 08-06-2020, devidamente motivado, nos termos do disposto nos artigos 411.º n.º 3 e 412.º do CPP, requerendo que o recurso fosse admitido nos precisas termos dos artigos 406.º n.º 1, 407.º n.º 2 alínea a) e 408.º n.º 3 do CPP, ou seja, com subida imediata nos próprios autos e com efeito suspensivo.

7. O Juiz a quo proferiu novo Despacho, no dia 09-06-2020 ordenando que o Recurso apresentado ficasse sustado até ser proferida decisão quanto a um incidente de recusa de juiz que havia o requerente apresentado no dia 20-05-2020.

8. Não se conformando com este entendimento de que se tratava de um acto não urgente - a admissão do recurso - o qual infringe a lei em particular e a sistémica do ordenamento jurídico - deste novo despacho o requerente interpôs novo recurso (com subida nos próprios autos, por inutilidade manifesta, quer da subida não imediata, quer do efeito devolutivo e, por conseguinte, ao qual devia ser atribuído o efeito contrário, isto é, efeito suspensivo, por se tratar de impugnação em favor da liberdade constitucional).

9. Novo Recurso este para o Tribunal da Relação de Lisboa, interposto no dia 12-06-2020, mais reforçando, em sua defesa, o que fez constar, então, nas suas conclusões desse Recurso, pronunciando-se pela aplicabilidade directa ao caso do disposto nos artigos n.º 18 n.º 1 e 27.º n.º 1 ambos da Lei Fundamental.

10. Invocou o ensino da Ilustre Professora Doutora FERNANDA PALMA, na medida em que o despacho recorrido infringia, e infringe, directamente direitos fundamentais recolhidos expressamente na Constituição, sendo, no limite, de ter em conta como inexistente, e mais alegando, para tanto, que as entidades policiais a quem os mandados são entregues para cumprimento, ficavam desprotegidas de legalidade, sequer formal quanto ao acto que o Juiz a quo lhes ordena.

11. Concluiu o recorrente dever ser reformado o despacho recorrido, no parâmetro do efeito útil do recurso em questão que era e é o de ser recebido o recurso anterior com o efeito suspensivo que lhe cabe, por ter sido interposto, no âmbito e alcance constitucional, pro libertatis.

12. Proferiu o Juiz a quo o resiliente Despacho do dia 17-06-2020 mantendo a sua posição inalterada, que, por sua vez, foi, por parte do requerente, objecto de Reclamação para a Presidente Interina do Tribunal da Relação, Exma. Senhora Juíza Desembargadora Doutora BB.

13. Na Decisão Singular proferida a 08-07-2020 clarificou não assistir razão ao juiz do tribunal reclamado, deferindo a reclamação do arguido, atenta a natureza urgente do acto a praticar - despacho relativo à admissão ou não dos recursos, uma vez que o que o arguido pretende evitar é que seja dado cumprimento aos mandados de detenção para cumprimento de uma pena de prisão, que contra si foram emitidos.

14. Ficaram, assim, revogados os citados despachos de 09-06-2020 e de 17-06-2020.

15. Todavia, proferiu o Juiz a quo novo Despacho no dia 10-09-2020 de admissão do Recurso interposto do Despacho de 18-05-2020, fixando-lhe a subida imediata em separado e com efeito devolutivo.

16. Não entendeu, nem entende, porém, o arguido qual o enquadramento acolhido pelo douto tribunal o quo no que respeita, já agora, ao regime de subida e efeitos do recurso, porquanto se o recurso visa, precisamente, a modificação da decisão e a aplicação de regime mais favorável ao arguido, só tem objectivo se o efeito do recurso for suspensivo.

17. Se tal efeito for meramente devolutivo, perde de todo interesse e p. ex. qualquer efeito (útil) de lei, logo que o recorrente venha ou, por fim, tenha já cumprido toda a eminente pena de prisão - o que in casu já começa a verificar-se!

18. Em suma, ao requerente (mas não apenas ao recorrente, também à lógica estrutural do ordenamento) só lhes serve o efeito do recurso suspensivo, nos termos do artigo 408.º n.º 2 alínea c) do CPP.

19. Esta disposição legal refere-se aparentemente ao despacho que ordena a execução da prisão, em caso do não cumprimento de inaugural pena não privativa de liberdade (o que não se desconhece), contudo, indica, de maneira muito clara, que qualquer despacho que ordene o cumprimento de pena de prisão deverá merecer efeito suspensivo do recurso, mesmo noutros casos - porquanto, se assim não se entender, o efeito útil do recurso que sobre ele recair fica claramente comprometido.

20. Por conseguinte, patenteava-se e estava, sem dúvida, presente a necessidade de recolha ou sustação imediata, sem cumprimento, do expediente respeitante ao Mandado de Detenção para cumprimento da pena de prisão que impendia sobre o arguido, prevenindo serem-lhe coarctados e violados, directamente direitos, liberdades e garantias legalmente protegidos pelo sistema da admissão e efeito suspensivo do recurso, no âmbito e alcance do due process of law, com consagração expressa pela Lei Fundamental, no seu artigo 20.º n.º 4.

21. Prejuízo que já se verifica in casu!

22. Entretanto, indiferente à controvérsia sobre o efeito do recurso interposto do indeferimento da reabertura legal do (bom) julgamento da causa, face a uma lei contemporânea mais favorável ao arguido, prolatou o Juiz a quo novo Despacho, no dia 17-09-2020 nos termos do qual, continuando e persistindo na exequibilidade da sentença, indeferiu a recolha dos Mandados de captura.

23. E novo Despacho, no dia 22-09-2020. do Mmo juiz o quo indeferiu a solicitação que o requerente lhe apresentou de esclarecimento sobre o contexto e termos do Despacho de dia 10-09-2020 de admissão do Recurso interposto do Despacho de 18-05-2020.

24. E, ainda, evidenciando a resiliência controversa do pensamento jurídico, proferiu o Juiz a quo novo Despacho, no rápido dia 25-09-2020, ordenando desta feita a passagem de MANDADO DE BUSCA DOMICILIÁRIA para captura do requerente e cumprimento, ponto por ponto, dos mandados de condução à cadeia emitidos com referência à condenação em prisão efectiva dos autos e de antes da reformulação "contenciosa" da sentença.

25. Os três referidos despachos foram objecto de Recursos para o Tribunal da Relação de Lisboa, todos interpostos no dia 30-09-2020, com expresso desígnio de evitar o vício de uma perda da presença livre e respeitosa em comunidade do requerente, esperançoso de Justiça, segundo a lei expressa.

26. O que in casu já não se verifica!

27. E que o Mmo juiz a quo lhe negou, e lhe nega, por puro alvedrio.

28. Alvedrio contra legal no caso sub judice - porquanto, para além de, explicitamente, o requerente associar ao objecto dos recursos, a petição (de lógica necessária) do efeito suspensivo dos recursos (sob lei expressa - artigo 408.º n.º 2 alínea c) do CPP) deve ser interpretado extensivamente pro libertatis, nos termos do artigo 18.º n.º 3 da CRP, superada a limitação do último segmento do preceito), tem dado continuidade a um pensamento, que para si é inequívoco e objectivo sobre a iliquidez e, por isso, inexequibilidade da pena de prisão a que foi condenado - insiste, face à lei nova, de reconsideração do caso!

[II]

29. E ilegal no caso sub judice, para além do argumento dito, por mor do incontornável motivo seguinte:

- tem defendido a ilegitimidade dos Mandados de condução à cadeia, contra si ordenados, por corresponderem à ordem de execução de uma pena ilíquida e inexequível, sobretudo por ter de ser englobada numa pena unitária.

30. Pena de cúmulo jurídico, com pelo menos duas outras penas de sentenças transitadas, anteriores, proferidas, por prática por ele próprio de crimes em acumulação.

31. Insiste: a lei penal é muito clara ao impor um novo julgamento e uma nova pena nas circunstâncias de acumulação de crimes que tenham - e esta tem - de dar lugar a um cúmulo jurídico das penas parcelares e para achamento de uma pena única, na expressiva formulação do artigo 77° do Código Penal.

32. Ora bem! Esta pena única é o resultado de uma Audiência e Julgamento do requerente, reponderada a culpa dos factos - de todos os factos assentes quanto aos diversos crimes cometidos - e a personalidade nesses factos revelada globalmente, num quadro, por fim, de uma nova pena abstracta.

33. Pode o Mmo juiz o quo defender-se e acobertar-se no argumento infeliz e de menor elevação acerca de lhe ser lícito, sem discussão ou espera, ter recusado a reabertura do julgamento do caso, no foco da lei nova, mais favorável ao arguido.

34. Não pode é passar por de cima do que a lei penal lhe prescreve quanto à pena, essa definitiva, de um necessário cúmulo jurídico.

35. Ao impor a prisão efectiva do requerente, como conseguiu e está presente, sem respaldo na pena de cúmulo exigida segundo as circunstâncias documentadas no processo, o Mmo juiz a quo não cometeu um simples erro de direito, colocou-se, por mera subjectividade, fora da lei.

36. Pois, que no dia 19-10-2020, pelas 17:30 horas, alcançaram o triunfo as ordens ínsitas nos Mandados do Juiz a quo: em virtude de ter o arguido sido capturado, algemado por cinco agentes da PSP e conduzido à cadeia.

37. É, pois, que está, perante a panóplia de constrangimentos e profanação da natureza urgente do caso, copiosamente visível o dano da ilegalidade da captura e condução à cadeia do arguido.

38. Reitera-se: assim, através da não fixação do efeito suspensivo, o retardamento da admissão dos recursos e da subida e conhecimento desses mesmos recursos, tudo em prejuízo da defesa, na e com a qual o arguido pretende evitar é que seja dado cumprimento aos mandados de detenção para cumprimento de uma peno de prisão, que contra si foram emitidos - cf. Decisão Singular de 08-07-2020 da Presidente do TRL -, indexados a uma condenação que tem de ser reformulada por lei expressa e expressiva em dois momentos legísticos, bem definidos.

39. Aqui, onde nos ressalta o protelar, de manifesta imprudência, da liquidação da pena única - a única a dar à execução - o que, contra a lei, já não se verifica in casu!

40. Razão pela qual vai a juízo a presente providência de habeas corpus que tem a natureza de remédio excepcional de protecção da liberdade individuai, mesmo contra titulares do poder judicial, revestindo carácter extraordinário e urgente, «medida expedita» com a finalidade de rapidamente pôr termo a uma situação de privação de liberdade, decorrente de prisão ilegal.

41. Prisão ilegal esta que o requerente trás ao conhecimento de Vossas Excelências Senhores doutores juízes Conselheiros do Supremo Tribunal, com espanto e mágoa, face a uma teimosia trasvertída de opinião jurídica, taxativamente enunciada e crítica na alínea b) e c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, proveniente de situações reiteradas de erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito.

42. É a prisão efectiva e actual que é a do recorrente - que se encontra ilegalmente preso - o pressuposto de facto da providência de habeas corpus e a ilegalidade da prisão o seu fundamento jurídico.

43. Ou seja, a providência de habeas corpus não constitui um recurso das decisões dos autos em que foi ordenada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo de tais recursos, refere-se antes sim, o fundamento da petição, à situação processual do requerente.

44. Neste sentido o Acórdão do STJ de 0200.04.02, proc. n.º 1114/08, in www.pgdlisboa.pt):

V - Na providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira a uma dada situação processual do requerente, se os actos de um determinado processo, valendo os efeitos que em cada momento nele produzam, e independentemente da discussão que aí possam suscitar e a decidir segundo o regime normal dos recursos, produzem alguma consequência que se possa acolher aos fundamentos da petição referidos no art.º 222.º, n.º 2, do CPP, destinada a pôr termo, em muito curto espaço de tempo, a uma situação de ilegal privação de liberdade,

VI - A providência em causa assume, assim, uma natureza excepcional, a ser utilizada quando falham as demais garantias defensivas do direito de liberdade, para pôr termo a situações de detenção ou de prisão ilegais. Por isso a medida não pode ser utilizada para impugnar irregularidades processuais ou para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o recurso como sede própria para a sua reapreciação.

45. "A petição de habeas corpus contra detenção ou prisão ilegal, inscrita no art.º 31.º da CRP, tem tratamento processual nos art.ºs 220.º e 222.º do CPP, que concretizam a injunção e a garantia constitucional." (cf. Acórdão do STJ de 16.03.2015, proc. n.º 122/13.TEL5B-LS1, in www.dgsipt).

46. Clama, assim, o requerente por um juízo prudencial sobre a verificação dos pressupostos de facto da privação da sua liberdade.

47. Neste sentido, também, o Acórdão do STJ de 03.12.2014, proc. n.º 122/13.TELSB-A.S1, in www.dgsi.pt):

VI - O STJ tem entendido que o habeas corpus é uma providência extraordinária e expedita destinada a assegurar de forma especial o direito à liberdade constitucionalmente garantido, que não um recurso, mas antes um remédio excepcional que não pode ser utilizado para impugnar irregularidades ou para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o recurso como sede própria para a sua reapreciação.

VII - Ainda que não pressuponha o prévio esgotamento dos recursos que possam caber da decisão de onde promana a prisão dita ilegal, só se admite a providência de habeas corpus em casos extremos de claro abuso de poder ou de erro grosseiro na aplicação do direito, de modo a pôr imediatamente cobro a uma situação de patente ilegalidade.

VIII - Da factualidade trazida à apreciação do STJ não se surpreende um patente abuso de poder, um erro grosseiro na aplicação da lei ou uma manifesta e evidente violação da lei que inquine de ilegalidade a prisão preventiva imposta.

48. Em suma, atentas a circunstâncias e evidências concretas do caso, pelas razões invocadas, encontra-se cometido erro grosseiro, indesculpável e palmar, no qual incorre o Mmo juiz a quo ao ter ordenado e reiterado as ordens de condução à cadeia do arguido, acto temerário com evidente risco de provocação de resultado injusto (cf. Acórdão do STJ de 28.01.2003, in CJ, XXVIII, 1, 52).

Termos em que requer a Vossa Excelência Senhor Doutor Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal, ao abrigo do n.º 1 do artigo 222.º do CPP, a concessão de provimento à providência de HABEAS CORPUS, sendo declarada ilegal a prisão do requerente e ordenada a sua restituição imediata à liberdade, pelo menos até;

1) ao trânsito da decisão do recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa do Despacho de 18-05-2020 visando a aplicação de regime mais favorável ao arguido (no parâmetro do efeito útil do recurso);

ii) ao trânsito da futura sentença de cúmulo jurídico das penas em acumulação, mas  ainda   não  sujeitas  ao  julgamento   unitário   (no parâmetro da liquidação da pena única, líquida e exequível, a dar à execução)”.

*

2. De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 223.º do CPP o Exmo. Juiz do processo prestou a seguinte informação:

Nos autos de processo comum singular n° 49/13.3IDFUN, do Juiz 2 do Juízo Local … com competência criminal, o ora requerente de habeas corpus foi condenado, por sentença transitada em julgado, na pena de um ano e seis meses de prisão, pela autoria de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art.º 105°, n° 1 do RGIT.

Em cumprimento de mandados de detenção, emitidos pelo titular do mencionado juízo criminal, foi o arguido detido, no pretérito dia 19 de Outubro de 2020, tendo sido conduzido ao EP …, onde presentemente se encontra, em início de cumprimento da referida pena.

Constata-se, do requerimento de habeas corpus apresentado que, em momento algum, é colocado em causa, pelo arguido, o facto de a decisão que o condenou em pena de prisão, neste processo, estar transitada em julgado.

Por seu requerimento de 15/05/20, já após o trânsito em julgado da condenação e dois dias após a emissão dos mandados de detenção, foi requerida, pelo arguido, a reabertura da audiência de julgamento, para aplicação de lei penal mais favorável, ao abrigo do art.º 371°-A do C. P. Penal, sendo a lei mais favorável invocada o art.º 43° do C. Penal, na redacção dada pela Lei n° 94/17, de 23/08 que, designadamente, aumentou para dois anos o limite máximo das penas de prisão que podem ser cumpridas no domicílio do arguido. Em suma, o arguido pretendia que o Tribunal decidisse que a pena de prisão em que foi condenado nestes autos passasse a ser cumprida em regime domiciliário. Este Tribunal, por despacho de 18/05/20 indeferiu essa pretensão, com o seguinte fundamento, e cita-se "A nova redacção do artigo 43° do C. Penal, dada pela Lei n° 94/17, de 23/08, já estava em vigor, inclusivamente, quando o Tribunal da Relação de Lisboa apreciou essa possibilidade (de substituição da pena de prisão carcerária pelo seu cumprimento em regime domiciliário) tendo-a expressamente rejeitado, com o fundamento de que tal opção não realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão). Nesse mesmo despacho de 18/05/20, foi igualmente indeferida a também requerida sustação do cumprimento dos mandados de detenção do arguido. Dessa decisão foi interposto recurso que, após alguns incidentes processuais (designadamente o de "recusa de Juiz", deduzido pelo arguido), viria a ser recebido, por despacho de 10/09/20, que determinou a sua subida imediata, em separado e com efeito devolutivo. O arguido não se conformou com o efeito devolutivo atribuído a esse recurso, argumentando (como também resulta deste seu requerimento de habeas corpus), que apenas o efeito suspensivo do recurso lhe interessa, por associar esse efeito à sustação dos mandados de detenção emitidos para cumprimento da pena de prisão em que foi condenado nos autos.

Após esse recurso, o arguido já interpôs mais três outros recursos, de outras decisões interlocutórias do Tribunal (a maior parte suscitadas por ele) pugnando sempre que lhes deve ser atribuído efeito suspensivo.

Está em curso nos autos, por outro lado, a recolha de elementos de diversos processos em que o arguido já foi condenado, por crimes de abuso de confiança fiscal, para efeito de ser ponderada e, eventualmente, marcada, uma audiência para efectivação de cúmulo jurídico entre a pena que o arguido foi condenado nestes autos e alguma ou algumas das penas em que foi condenado nesses outros processos. É entendimento do arguido que não pode nem deve ser cumprida a pena de prisão em que foi condenado nestes autos, enquanto não transitar em julgado a sentença que lhe fixe a pena única desse cúmulo jurídico. Note-se bem que não é enquanto não for efectuado esse cúmulo, mas enquanto não transitar em julgado a sentença que o efectue.

Em suma, como resulta do requerimento de habeas corpus apresentado, o arguido entende que a pena de prisão que cumpre é ilegal (ou "prematura"), na medida em que os mandados de detenção que estiveram na sua base deveriam ter sido sustados

a) até que seja decidido o recurso que interpôs do despacho que indeferiu o seu requerimento para reabertura da audiência, para eventual aplicação de lei penal mais favorável,

b) até que sejam decididos todos os outros recursos que interpôs e (está subentendido) os que, no futuro, venha a interpor,

c) até que transite em julgado a decisão que (eventualmente) faça o cúmulo jurídico da pena em que foi condenado nestes autos com outra(s) em que foi também condenado.

O prazo de prescrição da pena em que o arguido foi condenado nestes autos é curto, já ia, no momento da sua detenção, bastante avançado (com o forte contributo do facto de o arguido se eximir, sistematicamente, ao seu cumprimento) e o resultado que o arguido anseia alcançar (com a sua pretensão de que aos recursos que interpõe seja atribuído efeito suspensivo da execução da pena de prisão em que está condenado e que a mesma não seja cumprida enquanto não for efectuado um eventual cúmulo jurídico que a integra) é - salvo o devido respeito por opinião contrária -, única e exclusivamente, a prescrição da pena”.

*

3. Convocada a Secção Criminal e notificado o M.º P.º e a I. Defensora teve lugar a audiência, nos termos dos art.ºs 223.º, n.º 2 e 435.º, do CPP.

*

II. Fundamentação

O circunstancialismo factual relevante para julgamento da presente providência é o que resulta quer da petição, quer da informação prestada pelo Exmo. Juiz do processo, bem como da certidão solicitada ao tribunal da condenação quanto ao trânsito em julgado da sentença e da data do acórdão da Relação de Lisboa e do seu teor.

A providência de habeas corpus tem tutela constitucional no art.º 31.º da Constituição da República Portuguesa, quando dispõe que haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

Na expressão de Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa, Anotada, I, pág. 508) essa medida “consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos art.ºs 27.º e 28.º (…). Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”.

Como providência excepcional, o habeas corpus, constitui um mecanismo expedito que visa pôr termo imediatamente às situações de prisão manifestamente ilegais, tendo a ilegalidade da prisão que ser manifesta, ostensiva, grosseira, inequívoca e ser directamente verificável a partir dos factos documentados no respectivo processo.

Nesse contexto não é um recurso de uma decisão processual. Enquanto garantia fundamental de tutela da liberdade destina-se exclusivamente a salvaguardar o direito à liberdade e não a reapreciar vicissitudes processuais ocorridas no processo da condenação.

O habeas corpus não é, pois, o meio adequado para impugnar as decisões processuais ou arguir nulidades ou irregularidades processuais, não lhe cabendo revogar ou modificar decisões proferidas no processo, como se se tratasse de um recurso ordinário, que não é.

Tão-somente lhe compete apreciar se há privação ilegal da liberdade e, em consequência, ordenar, ou não, a libertação do preso (sobre toda esta temática, v. Maia Costa, Cód. Proc. Penal Comentado, Almedina, 2016, pp. 847 e 853).

No respeitante à ilegalidade da prisão, o seu tratamento processual decorre do art.º 222.º do CPP, cujo elenco taxativo o n.º 2 faz derivar do facto de: (a)ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; (b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; (c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

O requerente encontra-se preso desde o dia 19.10.2020 em cumprimento de uma pena de 1 ano e 6 meses de prisão, cuja condenação, imposta no Proc. n.º 49/13.3IDFUN do Juiz 2 do Juízo Local Criminal ..., oportunamente transitou em julgado, concretamente em 18.10.2018.

Fundou o pedido no constante das alíneas b) e c), ou seja, de a situação de prisão ser motivada por facto pelo qual a lei a não admite e manter-se para lá do prazo máximo legalmente fixado, em duas ordens de razões:

a) – Ilegal não sustação do cumprimento dos mandados de detenção até realização da audiência aludida no art.º 371.º-A do CPP com vista à aplicação da lei penal mais favorável, do art.º 43.º, n.º 1, alín. a) do CP, na redacção da Lei n.º 94/17, de 23.08, que aumentou de 1 para 2 anos o limite máximo das penas de prisão susceptíveis de serem executadas em regime de permanência na habitação;

b) – Iliquidez da pena de prisão, insusceptível de execução até ser integrada numa pena única a resultar de cúmulo jurídico a efectuar “com pelo menos” (sic) outras duas penas.

Apreciando o 1.º fundamento e reiterando que a providência de habeas corpus enquanto meio extraordinário e expedito não visa a sindicância de decisões proferidas no processo objecto da condenação e que só a ilegalidade da prisão que seja manifesta, grosseira, inequívoca, a pode justificar, o despacho que indeferiu a realização daquela diligência (18.05.2020), que indeferiu a sustação do cumprimento dos mandados de detenção para cumprimento da pena e que atribuiu ao recurso interposto efeito devolutivo (em vez de suspensivo) é matéria cuja apreciação aqui não cabe, antes à Relação quanto ao recurso e seu presidente quanto à impugnação do efeito fixado.

Refere o requerente que esse despacho está ainda pendente de recurso.

Informa, todavia, o Exmo. Juiz que acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa rejeitou já, expressamente, a possibilidade de substituição da pena de prisão carcerária pelo regime domiciliário.

E assim é, conforme resulta da certidão junta e que incorpora cópia desse acórdão, de 11.01.2018, dele resultando que, “no caso e circunstâncias concretas, o elevado desvalor ético-social da conduta perpetrada pelo arguido AA, com enorme prejuízo para o Estado no desempenho das funções sociais que lhe incumbem, a par dos seus antecedentes criminais, não nos permite concluir que (…) a prisão domiciliária (…) realize) de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão”.

Ainda assim, cumpre referir quanto ao efeito devolutivo fixado, desse modo não suspendendo o cumprimento dos mandados de detenção, tal não encerra nenhuma ilegalidade, muito menos grosseira e indiscutível que pudesse justificar a providência, e isto porque a situação em apreço manifestamente desde logo não cabe na letra da lei, adrede invocada pelo requerente (alín. c) do n.º 2 do art.º 408.º do CPP), que rege somente para os casos de execução de pena não privativa de liberdade.

Em suma, quanto ao 1.º grande fundamento invocado, o que temos é uma situação de cumprimento de uma pena de 1 ano e 6 meses, com início reportado a 19.10.2020 e, portanto, com termo previsto para 19.04.2022 e a que são irrelevantes as decisões e incidentes processuais acima descritos.

Quanto à questão de a pena em cumprimento vir a integrar uma pena única conjunta resultante de um concurso de crimes de conhecimento superveniente e, daí, não ser uma pena que possa ser executada por ser ilíquida, na expressão do requerente, o que para já ainda não é líquido é a pertinência de realização do próprio cúmulo jurídico, para tanto estando o processo a recolher elementos para tal determinar.

Mas ainda que tal pena venha integrar uma pena única, por força do concurso de crimes, nada obsta à execução em curso, que desde logo deixa marcado o início do seu cumprimento, essa sendo, de resto, a situação normal dos casos de conhecimento superveniente do concurso, sendo certo também (ainda que pouco plausível no caso) que o eventual cumprimento da pena parcelar não deixaria de ser descontado no cumprimento da pena única que viesse a ser aplicada (art.º 78.º, n.º 1, do CP).

De todo o exposto se conclui que a situação de prisão em que o requerente se encontra foi determinada por autoridade competente, foi motivada por facto pelo qual a lei permite, o qual se traduz na execução de uma pena de prisão resultante de condenação transitada em julgado e cujo prazo de cumprimento está ainda longe de se esgotar, pelo que se não verifica nenhum dos fundamentos legais invocados, das alíneas b) e c) do n.º 2 do art.º 222.º, do CPP, razão por que se mostra infundada a pretensão.

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III. Decisão

Face ao exposto, por falta de fundamento bastante, acordam em indeferir o pedido de habeas corpus formulado pelo requerente AA.

Custas pelo requerente, com a taxa de justiça de 3 UC.

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Supremo Tribunal de Justiça, 29 de Outubro de 2020

Francisco Caetano (Relator)

António Clemente Lima

Manuel Braz