I - Nos termos do art. 446.º, do CPP, o recurso contra jurisprudência fixada apenas pode ser interposto após o trânsito em julgado da decisão; o acórdão do TC transitou em julgado a 09-07-2020, e os prazos para interposição de recurso ordinário foram interrompidos, nos termos do art. 75.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15-11; assim sendo, a partir do dia 09-07-2020, começaram a correr novamente os prazos para interposição de recurso ordinário da decisão do Tribunal de Execução de Penas; tendo em conta o disposto no art. 446.º, do CPP, o recurso foi extemporaneamente interposto, porque interposto (a 28-07-2020) antes de transitada em julgado a decisão recorrida.
II - O art. 242.º, n.º 4, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), determina que o recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias após a “prolação da decisão”, mas deve considerar-se que este apenas se refere aos recursos interpostos nos termos do art. 242.º, n.º 1, al. b), do CEPMPL; isto porque, por força do disposto no art. 244.º, do CEPMPL, as regras relativas, nomeadamente, à interposição desta espécie de recurso devem seguir o disposto no art. 446.º, do CPP, ou seja, apenas deverá ser interposto recurso contra jurisprudência fixada quando a decisão recorrida já tenha transitado em julgado e após o seu trânsito (no prazo de 30 dias).
III - No caso dos presentes autos ainda era admissível recurso ordinário, dado que os prazos para a sua interposição recomeçaram após o trânsito em julgado da decisão do TC (a 09-07-2020). E tendo recomeçado quando o recurso (aqui em análise) foi interposto, não tinha ainda a decisão transitado em julgado, devendo apenas recorrer-se a um recurso especial como o de contra jurisprudência fixada apenas somente estando esgotadas as possibilidades de recurso ordinário, isto é, as possibilidades de as instâncias poderem (ou não) alterar a decisão recorrida.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I Relatório
1. O Ministério Público, junto do Tribunal de Execução de Penas ..., considerando que a decisão deste Tribunal (Juízo de Execução das Penas ..., Juiz 3), de 11.03.2020, contraria o Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2019 (Diário da República, de 29.11.2019), veio interpor recurso contra fixação de jurisprudência, ao abrigo do disposto no art. 242.º, n.º 1, al. a), do CEPMPL (Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12.10 e alterações posteriores), nos seguintes termos:
«Porque é total a nossa concordância com os pontos expendidos pela Mmª Juiza na decisão de que ora se recorre, abstemo-nos de tecer quaisquer considerações sobre a matéria, que sempre seriam descabidas.»
2. O recurso foi admitido por despacho de 13.07.2020.
3. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, o processo foi concluso à Senhora Procuradora-Geral Adjunta que considerou não estarem verificados “os pressupostos de admissibilidade do recurso extraordinário contra jurisprudência fixada” concluindo pela sua rejeição.
4. No exame preliminar a que se refere o art. 440.º, n.º 1, do CPP ex vi art. 446.º, n.º 2, do CPP, e art. 244.º, do CEPMPL, considerou-se que que o recurso fora extemporaneamente interposto por quem tinha legitimidade.
5. Colhidos os “vistos” e vindo o processo a conferência, nos termos do art. 440.º, n.º 4, do CPP, ex vi art. 446.º, n.º 1, do CPP, e art. 244.º, do CEPMPL, cabe agora decidir.
II Fundamentação
1. Por decisão do Tribunal de Execução de Penas ..., de 11.03.2020, decidiu-se que “o meio das penas em cumprimento ocorrerá em 23/12/2020, os 2/3 em 16/11/2022, os 5/6 em 19/10/2025 (...) verificando-se o fim das penas em 04/09/2026”, num caso em que o condenado se encontra a cumprir 9 anos e 9 meses de prisão pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, e “em consequência do trânsito em julgado da decisão de revogação da liberdade condicional o condenado tem agora para cumprir um remanescente de um ano, sete meses e vinte e três dias de prisão à ordem do processo n.º 106/07.5PCPRT.”
A 23.04.2020, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, pelo Ministério Público. Por decisão sumária, de 29.05.2020, o Tribunal Constitucional não conheceu do objeto de recurso interposto, considerando que a admissibilidade do recurso está dependente da instauração de um outro recurso, tendo entendido que não devia decidir sem que fosse interposto o recurso contra jurisprudência fixada, nos termos do art. 446.º, do CPP. E determinou: “Devem os autos ser remetidos ao tribunal recorrido imediatamente após o trânsito em julgado da presente decisão, por ser o momento a partir do qual renascerá o prazo para a interposição de recurso previsto no artigo 242. °, n.º 1, alínea a), do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, interrompido por efeito do artigo 75. °, n.º 1, da LTC.”
Ou seja, o Tribunal Constitucional considerou expressamente que a decisão do Tribunal de Execução de Penas ainda não tinha transitado em julgado, considerando que renasceu o prazo para interposição do recurso.
Foi neste seguimento que o Ministério Público, após trânsito em julgado do acórdão do Tribunal Constitucional a 15.06.2020, interpôs, a 12.07.2020, o recurso contra jurisprudência fixada.
Ponto é saber se o recurso contra jurisprudência fixada pode ser interposto antes de esgotados os recursos ordinários e antes de transitada em julgado a decisão.
Na verdade, nos termos do art. 446.º, do CPP, o recurso contra jurisprudência fixada apenas pode ser interposto após o trânsito em julgado da decisão. Todavia, pese embora o acórdão do Tribunal Constitucional tenha transitado em julgado a 09.07.2020, os prazos para interposição de recurso ordinário são interrompidos, nos termos do art. 75.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15.11. Assim sendo, a partir do dia 09.07.2020, começaram a correr novamente os prazos para interposição de recurso ordinário da decisão do Tribunal de Execução de Penas. Pelo que, tendo em conta o disposto no art. 446.º, do CPP, o recurso foi extemporaneamente interposto, porque interposto (a 28.07.2020) antes de transitada em julgado a decisão recorrida.
E apesar, de o art. 242.º, n.º 4, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL), determinar que o recurso deve ser interposto no prazo de 30 dias após a “prolação da decisão”, deve considerar-se que este apenas se refere aos recursos interpostos nos termos do art. 242.º, n.º 1, al. b), do CEPMPL[1]. Isto porque, por força do disposto no art. 244.º, do CEPMPL, as regras relativas, nomeadamente, à interposição desta espécie de recurso devem seguir o disposto no art. 446.º, do CPP, ou seja, apenas deverá ser interposto recurso contra jurisprudência fixada quando a decisão recorrida já tenha transitado em julgado e após o seu trânsito (no prazo de 30 dias).
Aliás, como é jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, um recurso contra jurisprudência fixada não pode ser interposto quando a decisão recorrida ainda possa ser modificada em sede de recurso ordinário. Na verdade, tendo havido interrupção dos prazos aquando da interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, ainda poderia o Ministério Público ter interposto recurso ordinário dando assim possibilidade às instâncias de rever a decisão recorrida. Como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 06.07.2011[2], a “justificação para o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada (...) só cobra verdadeira razão de ser quando já não é possível corrigir, através de recurso ordinário, a jurisprudência que se desviou da que se declarou, nos termos do Código, obrigatória.” E prossegue:
““(…) a redacção dada ao nº 1 do art. 446º, pela revisão de 2007, vem prescrever, diversamente, que “é admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, de qualquer decisão proferida contra jurisprudência põe ele fixada”, donde que não seja obrigatório o esgotamento prévio dos recursos ordinários.
Não significa isso, no entanto, que não possam, e a nosso ver devam, ser interpostos previamente aqueles recursos, designadamente pelo Ministério Público (…) Na verdade, quando o legislador da revisão de 2007 quis que o recurso directo fosse obrigatório, disse-o expressamente, como é o caso do nº 2 do artº 432º, o que não acontece com o artº 446º” (in “Recursos…” pág. 196).
O recurso poderá ser directo para o S T J, não tanto porque esteja na mão do recorrente optar entre o recurso ordinário da decisão, ou o recurso extraordinário para o S T J, mas porque se configuram situações em que a decisão já não é “recorrível pelos meios ordinários” (cf. P. P. Albuquerque loc. cit.).
“Tratando-se de um recurso extraordinário, em nosso entendimento não pode ser interposto se for admissível recurso ordinário” (cf. Maia Gonçalves in “Código de Processo Penal Anotado” pág. 1048).
Ou seja, segundo estes autores, a posição correcta será sempre a de esgotar os recursos ordinários. Mas no caso de tal não ter tido lugar e se ter deixado transitar em julgado a decisão de primeira instância, então subsistirá sempre, desde que tempestivo, o recurso extraordinário, directo para o S T J e obrigatório para o Mº Pº.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sufragado o ponto de vista apontado: “(…) o recurso deste teor cobra enquadramento ao nível dos recursos extraordinários, de adoptar, por definição, quando o jogo dos recursos normais já não funciona, ou seja, quando o lançar mão do expediente normal de impugnação enfrenta o trânsito do julgado” (cf. Ac. de 2/4/2008, Pº 408/08-3ª Secção. Em consonância, v. g. Ac.s de 16/1/2008, Pº 4270/07-3ª Secção, de 12/3/2009, Pº 478/09-3ª Secção, de 12/11/2009, Pº 1133/08.0PAVNF.S1, ainda da 3ª Secção, ou a nossa decisão sumária de 25/1/2011, Pº 224/09.5 ECLSB.L1.S1, da 5ª Secção, para além do atrás referido). “
Ora, no caso dos presentes autos ainda era admissível recurso ordinário, dado que os prazos para a sua interposição recomeçaram após o trânsito em julgado da decisão do Tribunal Constitucional (a 09.07.2020). E tendo recomeçado quando o recurso (aqui em análise) foi interposto, não tinha ainda a decisão transitado em julgado, devendo apenas recorrer-se a um recurso especial como o de contra jurisprudência fixada apenas somente estando esgotadas as possibilidades de recurso ordinário, isto é, as possibilidades de as instâncias poderem (ou não) alterar a decisão recorrida.
Assim sendo, e porque o prazo para interpor recurso ordinário só começou a correr a 15.06.2020, e o recurso foi interposto a 12.07.2020, a sua interposição é extemporânea porque ocorreu antes do trânsito em julgado.
Tanto mais que a decisão recorrida, ao considerar que “o meio das penas em cumprimento ocorrerá em 23/12/2020, os 2/3 em 16/11/2022, os 5/6 em 19/10/2025” e o fim a 04.09.2026, entendendo que pode haver concessão de liberdade condicional relativamente à soma da pena a cumprir e do remanescente da pena que vier a ser cumprida após revogação da liberdade condicional, decidiu com base no disposto no art. 64.º, n.º 3, do CP. Ora, a jurisprudência fixada determinou o cumprimento do remanescente nos termos do art. 63.º, n.º 4, do CP, que não foi o dispositivo aplicado.
Assim, ainda que o recurso tenha sido interposto extemporaneamente, porque deveriam ter sido esgotados os recursos ordinários, deverão os autos ser convertidos em recurso ordinário, ao abrigo do princípio do aproveitamento dos atos processuais.
III Conclusão
Termos em que, pelo exposto, acordam os juízes da secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em não admitir o recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal, e em decidir convolar o recurso interposto em recurso ordinário para o Tribunal da Relação de Coimbra, para onde os autos serão enviados oportunamente.
Não são devidas custas.
Supremo Tribunal de Justiça, 12 de novembro de 2020
Os Juízes Conselheiros,
Helena Moniz (Relatora)
Francisco Caetano
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[1] Por outro lado, no caso de oposição entre decisões do Tribunal de Execução de Penas [art. 242.º, n.º 1, al. b)], o recurso é interposto para o Tribunal da Relação nos termos dos n.ºs 4 e 5, do mesmo dispositivo. E havendo oposição entre acórdãos de Tribunais da Relação o recurso é interposto nos termos do art. 240.º, do CEPMPL, para o pleno das seções criminais do Supremo Tribunal de Justiça (cf. art. 243.º, do CEPMPL) e segue os termos do CPP, por força do disposto no art. 244.º.
[2] Proc. n.º 4044/09.9TAMTS.S1, Relator: Cons Souto de Moura, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4aa9050bce1787e28025790b004d3448?OpenDocument