REABERTURA DA AUDIÊNCIA
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Sumário


Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).

1- Assentando a reabertura da audiência final e a realização de diligências instrutórias que, nessa sequência, foram determinadas oficiosamente pelo tribunal, em despachos judiciais, o meio de reação contra esses despachos, não é a arguição ou a reclamação por nulidade, mas a impugnação desses despachos por meio de recurso.
2- Não se inserindo esses despachos interlocutórios no elenco taxativo das decisões imediatamente recorríveis do art. 644º, n.º 2 do CPC, a interposição de recurso dos mesmos processasse com o recurso da sentença (n.º 3 do art. 644º do CPC)
3- Terminada a instrução da causa, quando na elaboração da sentença o juiz não se julgue suficientemente esclarecido quanto à prova produzida em relação a factos essenciais integrativos da causa de pedir ou de exceções invocadas pelas partes, aquele pode ordenar a reabertura da audiência final e determinar oficiosamente a realização de diligências instrutórias, que entenda necessárias para completar a prova antes produzida quanto a esses factos essenciais, de modo a esclarecer essas suas dúvidas.
4- Esse poder inquisitorial que assiste ao juiz e que consubstancia um poder/dever, carece de ser conjugado com os princípios do dispositivo, do contraditório, da autorresponsabilidade e da igualdade das partes, da preclusão dos direitos processuais que assistem às partes e, bem assim com o dever de imparcialidade do juiz, resultando dessa conjugação que a prova a ser determinada oficiosamente pelo tribunal apenas poderá assumir natureza complementar relativamente ao ónus de iniciativa da prova que impende sobre as partes.
5- Consequentemente, a reabertura da audiência final apenas deverá ser determinada quando o juiz, sem sede de elaboração da sentença, se depare com dúvidas sérias sobre a prova produzida quanto a factos essenciais (alegados) integrativos da causa de pedir invocada pelo autor na petição inicial ou das exceções invocadas pelas partes, e quando se lhe prefigure que essa situação de dúvida quanto a esses factos essenciais é suscetível de ser superada mediante a produção de prova suplementar.
6- Beneficiando o autor da presunção registral emergente do art. 7º do CRP de que é proprietário pleno do prédio objeto de ação de impugnação de escritura de justificação notarial e de reivindicação, e alegando os réus, em sede de contestação, que aquele é apenas titular de 2/3 indivisos sobre esse prédio, procurando, assim, os réus, mediante essa alegação, ilidir aquela presunção de propriedade plena que assiste ao autor, o despacho proferido pelo tribunal, determinando a reabertura da audiência final e que se oficiasse à Conservatória do Registo Predial para enviar certidão completa da descrição predial desse prédio, com todas as inscrições (histórico) que sobre ele incidiram e, bem assim, para que se indagasse onde foi celebrada a escritura de transmissão de 1/3 indivisos desse prédio ao anteproprietário deste, e após se oficiasse a esse cartório notarial para que enviasse certidão dessa escritura de transmissão, com fundamento de que analisada a certidão da Conservatória do Registo Predial junta aos autos referente a esse prédio (onde não constavam todas as inscrições que incidiram sobre o mesmo), se avolumaram dúvidas sobre a titularidade desse prédio, não configura qualquer decisão surpresa, sequer viola os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do tribunal.

Texto Integral


Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. RELATÓRIO.

Caixa ..., CRL, com sede na Praça … Viana do Castelo, instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra J. P., residente no Lugar …, freguesia de ..., …, P. P., residente a Rua …, Quinta do ..., freguesia do … Almada, Terras ... – Agroturismo, Lda., com sede no Lugar ..., freguesia de ..., Monção, M. S., residente no Lugar ... freguesia de ..., Monção, J. E., residente na Rua …, Quinta do ..., freguesia de … Almada, C. M., residente na Estrada … Monção, A. B., residente no Lugar ..., freguesia de ..., Monção, e M. J., residente no Lugar …, freguesia de ..., Monção, pedindo que se:

a- declare nulas e de nenhum efeito as declarações objeto da escritura de justificação notarial de 05 de setembro de 2016, transcrita no ponto 29º da petição inicial;
b- determine o cancelamento do registo da aquisição a que se refere a Ap. 59, de 2016/10/28, sobre o prédio descrito no registo predial sob o n.º ..., freguesia de ..., Monção;
c- declare que a Autora é legítima proprietária do prédio urbano identificado no ponto 1º da petição inicial, prédio esse que integra o imóvel objeto da escritura de justificação;
d- condene os Réus P. P., J. P. e M. S. e a Ré sociedade a entregarem à Autora o “imóvel” objeto da justificação;
e- condene todos os Réus a pagar à Autora a indemnização já calculada de 65.000,00 euros, acrescida de indemnização no valor diário de 70,00 euros, que se vencer a partir dessa data e até à tomada de posse efetiva do imóvel objeto da justificação.

Para tanto alega, em síntese, que o Réu J. P., por escritura de partilha celebrada em 26/04/2000, por óbito de M. E., e por escritura e partilha subsequente a divórcio celebrada com a sua ex-mulher, M. C., adquiriu a propriedade plena sob a totalidade do prédio inscrito na matriz sob o art. ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...;
Em 26/1/2007, o Réu J. P. anexou a esse prédio um prédio contíguo, destinado a armazém, inscrito na matriz predial sob o art. ...º;
Em 28/04/2008, o Réu J. P. solicitou à Autora um financiamento para a reconstrução e ampliação do referido prédio já com o art. ...º anexado, tendo, nessa sequência, a Autora procedido à avaliação deste, no conjunto e no estado em que este se encontrava, e em 28/08/2008 concedeu-lhe um primeiro empréstimo de 150.000,00 euros, destinado a obras de reconstrução e ampliação do prédio;
Para garantia do pagamento das obrigações emergentes desse empréstimo, o Réu J. P. constituiu a favor da Autora hipoteca sobre o conjunto desse prédio, integrado já pelos prédios inscritos na matriz sob os arts. ... e ...;
Em 07/05/2009, a Autora concedeu ao Réu J. P. um segundo empréstimo, no montante de 150.000,00 euros, destinado à continuação das obras e para garantia das obrigações emergentes deste, tendo aquele Réu constituído a favor da Autora sobre o conjunto desse prédio uma segunda hipoteca;
Por sentença de 02/09/2014, o Réu J. P. foi declarado insolvente;
No âmbito desse processo de insolvência, a Autora comprou o conjunto desse prédio pelo preço de 253.000,00 euros e inscreveu essa aquisição, no registo, em seu nome;
Acontece que quando se apresentou para tomar a posse efetiva do prédio, os Réus J. P. e M. S. invocaram a existência de um contrato de arrendamento a favor da Ré sociedade;
A Ré intentou em 08/01/2016, ação contra os Réus J. P., M. S. e a sociedade Ré pedindo a declaração da nulidade e/ou a caducidade desse arrendamento, ação essa que ainda se encontra em curso;
Por efeito da perícia que se realizou nesse último processo, a Autora tomou conhecimento que em 05/09/216, os Réus celebraram uma escritura de justificação em que o Réu P. P. arroga-se dono e legítimo possuidor de um prédio urbano, sito na freguesia de ..., Monção, inscrito na matriz sob o art. ..., por lhe ter sido doado verbalmente pela avó em 1995, pretendendo ter adquirido o direito de propriedade sobre esse prédio por usucapião;
Com base no título assim adquirido, o Réu P. P. logrou inscrever o direito de propriedade sobre o identificado pretenso prédio em seu nome;
Acontece que as declarações constantes da referida escritura de justificação são falsas, constituindo o pretenso prédio objeto dessa escritura a parte sul do prédio dado de hipoteca pelo Réu J. P. à Autora no âmbito daqueles dois financiamentos e que esta comprou no âmbito do processo de insolvência do Réu J. P.;
Os Réus J. P. e P. P. outorgaram aquela escritura de justificação, conluiados com os restantes Réus, com o intuito de subtrair ao prédio urbano da Autora toda a parte sul deste;
As declarações constantes da escritura de justificação são falsas, uma vez que o Réu P. P. nunca foi dono do prédio objeto da escritura de justificação, este nunca lhe foi doado verbalmente pela avó, que nem sequer o possuía, sequer nunca o Réu P. P. entrou na posse desse pretenso prédio;
É a Autora que por si e antecessores, está na posse pública, pacífica, de boa fé e à vista de todos do conjunto do prédio que lhe foi dado em hipoteca pelo Réu J. P. no âmbito dos dois financiamentos e que esta adquiriu, por compra, no âmbito do processo de insolvência deste, há mais de 25 e mais anos, na convicção de que este lhe pertence e que adquiriu o respetivo direito de propriedade por usucapião;
Ao atuarem conluiados da forma descrita, todos os Réus causaram à Autora prejuízos, cuja indemnização reclama.

Em 04/04/2018, a Autora juntou aos autos transação celebrada entre aquela e os Réus A. B. e M. J. em que os últimos declaram que “depois de citados nesta ação e melhor informados, designadamente, face aos documentos que instruem a petição inicial, verificam que incorreram em lapso nas declarações prestadas na escritura de justificação impugnada, as quais não correspondem com a realidade” e “reconhecem que assiste razão à Autora quanto aos fundamentos da impugnação que formula na ação. Em consequência, aceitam, reconhecem e confessam os três primeiros pedidos formulados pela Autora na petição”, declarando por sua vez a Autora que “desiste do pedido de indemnização formulado contra estes réus na quinta posição do seu pedido final, formulada na petição”.

Essa transação foi homologada por sentença proferida em 05/04/2018, entretanto transitada em julgado.

Os Réus P. P. e J. E. contestaram, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Invocaram a exceção dilatória da sua ilegitimidade passiva para a presente ação, alegando que nunca souberam, tomaram conhecimento ou parte, negociaram ou subscreveram os dois contratos de mútuo alegados pela Autora, sequer nas hipotecas de garantia para esses contratos de mútuo, desconhecendo qual o destino do dinheiro alegadamente emprestado pela Autora ao Réu J. P.;
Impugnaram parte da factualidade alegada pela Autora, sustentando que o prédio objeto da escritura de justificação fosse propriedade ou estivesse na posse do Réu J. P., alegando que o prédio objeto dessa escritura de justificação já tinha sido desanexado, em vida de M. E., do prédio inscrito na matriz urbana sob o art. ..., que o doou verbalmente ao Réu J. P., seu neto, e reafirmando o teor das declarações constantes da escritura de justificação.
Concluem pedindo que a ação seja julgada improcedente e aqueles absolvidos do pedido.

A Ré M. S. contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Invocou a exceção dilatória da ilegitimidade passiva sustentando que na petição inicial nenhum facto lhe é associado a título singular, mas exclusivamente na qualidade de legal representante da sociedade Ré. Mais alega que nenhuma participação teve na escritura de justificação notarial, nos contratos de mútuo, escrituras de habilitação de herdeiro, partilhas, sequer ocupou o prédio, teve acesso ao mesmo ou impediu a Autora de o ocupar.
Conclui pedindo que seja absolvida da instância e, subsidiariamente, do pedido.

O Réu J. P. contestou impugnando parte da facticidade alegada pela Autora sustentando que apenas é proprietário de 2/3 indivisos do prédio urbano inscrito na matriz sob o art. ... e do armazém, este inscrito na matriz urbana sob o art. ..., tendo sido este direito indiviso que foi dado em garantia à Autora no âmbito dos contratos de mútuo que com aquela celebrou;
Mais alegou ter conhecimento que a sua mãe, M. E., antes de falecer, doou o prédio inscrito na matriz sob o art. ...º, objeto da escritura de justificação, ao sobrinho do contestante, o Réu P. P., que para tanto o desanexou do prédio inscrito na matriz sob o art. ..., sendo que, desde essa doação, foi o Réu P. P. que sempre foi considerado dono desse prédio objeto da escritura de justificação, onde não foram efetuadas quaisquer obras, mediante recurso aos financiamentos que lhe foram concedidos pela Autora, sequer esse prédio foi objeto das hipotecas que constituiu a favor da última, nunca tendo esse concreto prédio estado na sua posse.
Conclui pedindo que seja absolvido do pedido.

Realizou-se audiência prévia em que a Autora se pronunciou quanto às exceções dilatórias da ilegitimidade passiva invocadas pelos Réus P. P., J. E. e M. S., pugnando pela improcedência destas, fixou-se o valor da presente ação em 50.001,00 euros, proferiu-se despacho saneador, em que se julgou improcedente as mencionadas exceções dilatórias da ilegitimidade passiva dos Réus P. P., J. E. e M. S., fixou-se o objeto do litígio e os temas da prova, que não foram alvo de reclamação, e conheceu-se dos requerimento de prova apresentados pelas partes.
Realizada a perícia requerida pela Autora, teve lugar audiência final, a qual foi reaberta com os seguintes fundamentos:
“Durante a elaboração, em curso, da sentença dos presentes autos avolumaram-se as dúvidas que já tinham surgido no decurso da audiência de discussão e julgamento relativamente à titularidade dominial do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ..., da freguesia de ..., concelho de Monção. Como se sabe, o Tribunal ordenou, oficiosamente, que se oficiasse à respetiva Conservatória a junção aos autos de certidão da ficha referente ao prédio em questão com todas as inscrições e averbamentos.
No entanto, e tendo o ora subscritor procedido a uma análise mais pausada e analítica da referida certidão, constatou que, apesar de a relação de bens apresentada pelo Réu J. P., aquando do seu divórcio, descrever o prédio em causa na verba dois recorrendo às inscrições G1 e G2 da mencionada descrição predial, a “cota G2” não aparece enunciada na certidão requisitada pelo Tribunal, parecendo haver, pois, entre a inscrição extratada G1 e a apresentação 4 de 2007/11/23 uma omissão.
Pode ter sucedido que, na transição informática dos registos, tenha havido um lapso na transcrição das fichas manuais para as fichas informáticas/digitais e que a suposta inscrição a que corresponde a “cota G2” tenha sido omitida.
Esta questão deve ser cabalmente elucidada.
Nos termos do disposto no artigo 607º do Código de Processo Civil, o juiz pode ordenar a reabertura da audiência, ouvindo as pessoas que entender e ordenar as diligências necessárias.
Deste modo, e ao abrigo do disposto no artigo 607º do Código de Processo Civil, ordeno a reabertura da audiência e ordeno que se notifique a Conservatória do Registo Predial ..., em missiva confidencial dirigida à Sra. Conservadora, para, em 3 dias, juntar aos autos a ficha original do prédio aí descrito sob o número 00.../120500, freguesia de ..., existente antes da informatização dos registos, com todas as inscrições e averbamentos.
Junte cópia do presente despacho”.

Notificado o mencionado despacho a todas as partes, tendo a Conservatória do Registo Predial ... junto aos autos certidão do prédio nela descrito sob o n.º 00.../120500 e o Cartório Notarial ... a certidão da escritura de compra e venda outorgada em 13/04/2004, entre M. E. e os Réus J. P. e J. E., a 1ª Instância proferiu o despacho que se segue:
Certidões que antecedem (referências nºs. 2648808 e 2653660).
Dê conhecimento às partes dos respetivos teores.
Notifique-as que poderão pronunciar-se sobre os mesmos, ou requererem o que tiverem por conveniente, no prazo de 10 dias.
Notifique os Réus J. E. e J. P. para, no prazo de 10 dias, se pronunciarem sobre a sua eventual condenação como litigantes de má fé, ao abrigo do disposto no artigo 542º do Código de Processo Civil, atento o seu posicionamento relativamente aos factos controvertidos.
Notifique as partes para, no prazo de 15 dias, virem aos presentes autos esclarecer, uma vez que a audiência foi reaberta para esclarecimento dos factos já enunciados e que as certidões que antecedem dão resposta satisfatória às dúvidas do Tribunal, se prescindem da produção de alegações (cfr. artigo 604º, nº 2, alínea e), do Código de Processo Civil), considerando o Tribunal que prescindem das mesmas se nada for dito ou referido quanto a esta matéria”.

Cumprido com o determinado, o Réu J. P. pronunciou-se quanto à condenação como litigante de má fé, opondo-se a essa condenação, alegando, em síntese, não poder “negar a existência da escritura de compra e venda”, mas esclarecer que esta “foi um negócio de conveniência com a sua irmã M. E. e com o J. E.” que, na altura, “eram sócios gerentes de uma empresa”, que “devido a graves problemas económicos, a empresa ficou insolvente. Ora para salvaguardar a herança da sua mãe M. E., a M. E. outorgou com o seu irmão J. P., a sobredita escritura de compra e venda relativamente a quota-parte de um terço do prédio urbano inscrito no registo predial sob o número ...º” (…) “Acontece que esse negócio foi de conveniência, como se pode provar com o valor atribuído à venda, nomeadamente, dois mil e quinhentos euros. Sublinhando o facto de que em 2004, a M. E. já tinha efetuado todas as obras de reconstrução naquela parte do prédio urbano, (…). Assim, o valor de dois mil e quinhentos euros atribuídos à compra e venda da quota parte de um terço do prédio urbano, é consideravelmente inferior ao preço do mercado imobiliário no ano de 2004. Sendo verdade, que apesar de ter outorgado tal escritura de compra e venda, o Réu J. P. sempre considerou que o terço do prédio urbano era propriedade exclusiva da sua irmã M. E.. Tendo, a mesma realizado todos os atos de posse, nomeadamente obras, sobre o sobredito prédio urbano, usufruindo do mesmo como dona e legítima proprietária de um terço do prédio urbano inscrito no registo predial sob o n.º ..., de forma pacífica, sem qualquer oposição do Réu J. P.. Tanto é que, aquando da elaboração da escritura de justificação outorgada em 28 de outubro de 2016, e ora impugnada nestes autos, o Réu J. P. não teve qualquer intervenção”.
Não juntou, sequer requereu qualquer prova.

Também o Réu J. E. pronunciou-se, concluindo não ter litigado de má fé, sustentando contar 71 anos de idade, estar acometido de demência depressiva, que se acentuou a partir do momento em que as empresas que tinha constituído com o irmão entraram em dificuldade económico-financeira e tiveram que ser apresentadas à insolvência, tendo sido em plena crise daquelas empresas que foi outorgada a escritura de compra e venda, reiterando a posição anteriormente assumida pelo Réu J. P. no requerimento em que se opõe à sua condenação como litigante de má fé.
Não juntou, sequer requereu qualquer prova.

Ainda por requerimento entrado em juízo em 14/02/2020, os Réus J. E. e P. P. vieram declarar não aceitarem os novos factos, alegando, em suma, a impossibilidade de se defenderem, uma vez que as certidões juntas aos autos respeitam a factos que não fazem parte do objeto do processo; que a decisão do juiz do processo constitui uma decisão surpresa; que o juiz do processo violou o dever de imparcialidade; e que a proprietária do 1/3 indiviso viu-se impossibilitada de se defender o que constituiria uma nulidade insanável.
Sobre as questões assim suscitadas pelos Réus J. E. e P. P., pronunciou-se a 1ª Instância na própria sentença recorrida, nos termos que se seguem:
“Ainda que perfunctoriamente, prevenindo uma eventual e implícita irregularidade, pronunciar-nos-emos sobre estas alegações.
a) Em primeiro lugar, importa sublinhar que na discussão sobre a titularidade dominial de um prédio, que está necessariamente em causa quando se impugna uma escritura pública de justificação notarial e que constitui parte do objeto do presente processo, assume particular importância a factualidade de onde se possa retirar alguma das presunções de que o ordenamento jurídico faz depender a afirmação daquela titularidade. Para além desta, assume também particular importância, quando a questão da posse está em causa, a existência, ou não de título. Esta factualidade surge, na maioria dos casos, interligada, conexionada, sendo, pois, importante para uma correta, fundamentada e justa decisão que todos os factos relevantes sejam indagados. E, por fim, o princípio do trato sucessivo assumia também uma particular importância, tanto mais que a situação registal do prédio, com os elementos ao dispor do Tribunal, não era clara. Esta questão sempre fez parte do objeto do processo e foi considerada e assumida pelas partes. Os Réus J. E. e P. P., na sua contestação, no artigo 32º, alegaram que 1/3 indiviso teria sido adjudicado à irmã do Réu J. P., M. E., e, no artigo 33º, alegaram que os bens acabaram por ser todos adjudicados ao referido J. P., por força do divórcio deste, não explicando, e omitindo, a explicação da transmissão do 1/3 indiviso da referida irmã M. E. para o referido J. P. (sendo certo que o referido J. P. não podia estar a divorciar-se da sua própria irmã…). Mas também o Réu J. P., na sua contestação, nos artigos 11º e 13º, alegou que nunca foi proprietário da totalidade do prédio inscrito no artigo ... da matriz predial urbana, que o outro 1/3 indiviso foi adjudicado à sua irmã e dando a entender, agora no artigo 17º, que teria havido uma divisão material entre os prédios, sendo certo que 1/3 indiviso não passa de uma quota ideal. De qualquer modo, e ainda que assim não fosse, quer em audiência de julgamento, nos despachos que aí foram proferidos, nos requerimentos deduzidos, que nos despachos posteriores a questão da transmissão desse 1/3 indiviso (“desaparecida” da primeira certidão da Conservatória do Registo Predial) foi sempre discutida e sempre esteve em discussão;
b) Um tribunal profere uma decisão surpresa quando as partes não tiveram oportunidade de se pronunciarem sobre as questões pressupostas e quando essa decisão é, de todo em todo, imprevisível (cfr. artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil). Não se descortina a que decisão se referem os Réus no seu requerimento. A reabertura da audiência de discussão e julgamento foi ordenada nos termos do artigo 607º, nº 1, segunda parte, do Código de Processo Civil. E antes da prolação da presente sentença foi dada oportunidade às partes para se pronunciarem e requererem o que tiverem por conveniente sobre as diligências determinadas em prazo alargado. Não há, pois, qualquer decisão surpresa;
c) A parte tem o ónus de alegar e provar os factos que fundamentam a sua pretensão e o juiz de o dever de os esclarecer, determinando as diligências necessárias, aproveitem tais diligências a uma ou a outra parte, não podendo o juiz adivinhar qual o resultado das diligências que determina, pelo que o que os Réus alegam quanto à violação do dever de imparcialidade afigura-se despropositado;
d) Por fim, não pode haver qualquer irregularidade em não se dar o contraditório a pessoa que não é, nem devia ser, do ponto de vista do artigo 33º, do Código de Processo Civil, parte no presente processo, pelo que a invocação de nulidade insanável com este fundamento é totalmente improcedente, pelo que se indefere a arguição por falta de fundamento legal – cfr. artigos 195º, nº 1, do Código de Processo Civil”.

Julgou-se a ação parcialmente procedente e condenou-se o Réu J. P. como litigante de má fé, constando a sentença da seguinte parte dispositiva:

“Em face do exposto, julgo a ação interposta por Caixa ..., Crl. contra J. P., P. P., Terras ... – Agroturismo, Lda., M. S., J. E. e C. M., parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, consequentemente:
- Declaro inexistir o direito justificado notarialmente pelo Réu, P. P., na escritura pública celebrada em 5 de setembro de 2016, no Cartório Notarial da Notária C. C., sito em Monção, e incidente sobre prédio urbano sito no lugar ..., freguesia de ..., concelho de Monção, composto de casa com dois pavimentos e rossios, com a área coberta de cento e oitenta vírgula quarenta e oito metros quadrados e a área descoberta de quatrocentos e quarenta e nove vírgula cinquenta e dois metros quadrados, a confrontar a norte e poente com J. P., a sul com caminho e a nascente com M. N., não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na matriz sob o artigo ...º, a favor do justificante, com o valor patrimonial tributário de vinte e três mil trezentos e sessenta euros, igual ao atribuído;
- Tendo por referência o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o .../20161028, da freguesia de ..., ordeno o cancelamento da inscrição a favor do Réu, P. P., da propriedade do referido prédio, realizada na referida Conservatória através da apresentação 59 de 2016/10/28;
- Declaro a Autora legítima proprietária do prédio descrito na alínea c), do ponto II.1.;
- Condeno os Réus J. P. e P. P. a entregarem à Autora o prédio descrito na alínea c), do ponto II.1.;
- Absolvo os Réus do demais peticionado;
- Julgo o Réu, J. P., como litigante de má fé e, consequentemente, condeno-o no pagamento de uma multa no valor de 8 UC’s.
Custas pela Autora e pelos Réus, na proporção de 1/5 para a Autora, 1/5 para o Réu, J. P., e 3/5 para o Réu, P. P..
Registe e notifique”.

Inconformado com o assim decidido, o Réu J. P. interpôs o presente recurso de apelação, em que formula as seguintes conclusões.

– A decisão recorrida resulta, em primeiro lugar, da atuação do Tribunal “A quo” que extravasou os seus poderes ao ter proferido a decisão surpresa.
– Em segundo lugar, a decisão recorrida resulta de vários erros de apreciação e interpretação da prova e das declarações do Recorrente, nomeadamente na condenação como litigante de má-fé.
I – Da decisão surpresa do Tribunal “A Quo”.

I.A. Quanto a escritura outorgada em 13/04/2004 no Cartório Notarial ....

- Em parte alguma da sua p.i., entrada em juízo a 14/03/2018 e nos articulados subsequentes, foi alegado pela parte Autora e ora Recorrida a existência dessa escritura, que veio a determinar o desfecho do julgamento e que por esta via se põe em crise.
- O ora Recorrente, e todos os demais Réus, agiram e comportaram-se no processo sob a completa ausência desta escritura até ao último dia em que o julgamento foi dado por encerrado.
- A parte Autora não a alegou pelo que, nem o Recorrente, nem os demais Co-Réus na ação, dela tiveram conhecimento durante todo o julgamento.
- Não puderam pronunciar-se, nem impugná-la se fosse o caso, no curso normal da fase processual escrita, nem no decurso da produção da prova.
- Pelos factos alegados pela A./Recorrida e pela certidão predial que juntou, não se tornou possível ao Réu, ora Recorrente, inferi-la ou deduzi-la durante a fase de produção de prova testemunhal nas sessões de audiência e julgamento a que houve lugar.
- Foi uma omissão/lacuna grave por parte de quem alegou um direito que não provou e o procedimento do senhor Juiz, depois de ter dado por concluída e encerrada a produção da prova e produzidas as alegações pelos mandatários, devia prolatar a sentença em conformidade com os documentos carreados para os autos e foram muitos e com os depoimentos das testemunhas.
- Não o fez e decidiu ele próprio substituir-se à Autora e pesquisar documentação não alegada e subtraída às partes Rés.
10º- Da já mencionada certidão predial datada de 15-02-2018 junta aos autos pela Recorrida como documento nº 1, não resulta o entendimento de que essa escritura existia e nem era possível inferi-lo ou deduzi-lo.
11º- Por esse facto, o Recorrente e os demais Co-Réus agiram e comportaram-se no processo com total desconhecimento da existência dessa escritura.
12º- Do teor do ponto 7.º da p. i., da A./Recorrida, referente à partilha realizada subsequente ao divórcio decretado entre o Recorrente, J. P. e a sua ex-mulher, M. C., partilha que é feita posteriormente a 13 de abril de 2004, data da celebração da mencionada escritura.
13º- Só pode inferir-se que ficou cada um com 1/3 dos 2/3 que o Réu J. P., havia herdado da mãe. Nada fazia concluir que o Recorrente fosse dono do prédio todo, pois se assim fosse algum deles havia de ficar com 2 e o outro com 1 terço e não cada um com 1/3 como ali se partilhou.
14º- Entendimento esse, melhor justificado ainda pelo documento nº 5 também junto pela Recorrida, quando os membros do ex-casal foram retificar aquela escritura de partilha outorgada entre ambos, e nada alteraram quanto à totalidade do imóvel em causa, tendo-se mantido 1/3 para cada um.
15º- Foi com base nos factos alegados e nos documentos juntos pela Autora/Recorrida que a parte Ré elaborou e se defendeu nas contestações que apresentaram em juízo.
I.B. O Tribunal “a quo” extravasou os seus poderes ao ter proferido a decisão surpresa, que por esta via se censura.

16º- O Processo civil sempre foi norteado pelo princípio do dispositivo das partes, em preterição do princípio do inquisitório próprio do direito penal.
17º- Cabe às partes alegar os factos em que estribam a aplicação do direito que alegam e prová-los documentalmente quando seja essa a forma que a lei exige. É o que dispõe o artigo 342º do C.C., esse alegar e essa prova incumbia à A. ora Recorrida fazê-lo.
18º- Sendo certo que, o novo Código do Processo Civil veio conferir ao juiz, enquanto Presidente do Tribunal, um poder mais amplo com o aditamento do n.º 3 ao seu art. 3.º;
19º- Entendemos, com todo o respeito, que tal poder não lhe permite substituir-se a qualquer das partes em juízo quanto aos deveres e às obrigações que a lei lhes impõe. Não lho permite, nem para favorecer, nem para prejudicar.
20º- O Juiz deve observar e fazer cumprir todo o processo, não lhe sendo lícito decidir questões de direito ou de facto mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem (nº 3 do artº 3º do CPC).
21º- No presente caso o Tribunal foi longe de mais ao substituir-se à Recorrida em matéria de facto que desde o início da propositura da ação estava ao seu total e completo alcance conhecê-la e documentalmente prová-la. Não podia ignorá-la e para fazer valer o direito de que se arrogava tinha obrigação substantiva e adjetiva de a alegar “ab initio”.
22º- Muito antes de intentar a ação, a Recorrida dispunha de todos os meios ao seu alcance para, junto da Conservatória do Registo Predial ..., obter e juntar aos autos a certidão completa do direito que pretendia fazer valer e não juntar uma certidão incompleta sem registos que induziram a defesa em erro e não lhe permitiu determinar livremente a vontade de se poder defender dessa lacuna séria e grave.
23º- Nunca o fez, nem no princípio, nem no meio, nem no fim e se o Tribunal não se lhe tivesse substituído e tomado esse impulso probatório é por demais evidente que o direito invocado sucumbia.
24º- A parte não fez essa alegação, não juntou essa prova documental dentro do prazo e foi o meritíssimo Juiz, quem no “terminus” do julgamento, que decidiu subrogar-se à parte faltosa e investigar ele próprio esse meio de prova que se tornou determinante para o desfecho da ação.
25º- Para o efeito, o senhor Juiz socorreu-se de um, admitido apenas por ele, “alegado ou possível lapso/omissão na transcrição das fichas manuais para as fichas informáticas/digitais …… ” etc. etc.. Partindo desse seu pressuposto decidiu pela pesquisa da escritura que a Recorrida tinha feito omitir e ocultado.
26º- Acresce que, de todo o processado resulta que, a A/Recorrida, para além de não ter junto qualquer certidão onde constasse a inscrição G – 2, também não alegou esse alegado ou possível lapso/omissão nem a existência de quaisquer “fichas manuais” ou “fichas informáticas/ digitais” que motivaram e que levaram o meritíssimo Juiz a tomar ele a iniciativa de promover essa diligência de prova documental quando o julgamento já estava encerrado.
27º- Com o muito respeito que se tem por quem tem o dever de julgar, o senhor Juiz da causa nestas circunstâncias, extravasou os seus poderes judicatórios ao decidir ele próprio ir pesquisar um documento não alegado nem constante dos autos e decidir sobre matéria não peticionada pela parte.

A decisão assim proferida não pode deixar de ser uma decisão proferida “ultra petitum” e por isso anulável.
I.C. O dever de gestão processual
28º- A lei processual (artigo 6º do CPC) atribui ao senhor Juiz um dever de gestão. Porém, estão limitados e condicionados ao respeito pelos princípios da igualdade das partes, do contraditório e da imparcialidade e não lhe conferem poderes inquisitórios e de pesquisa da prova que é da competência das partes.
29º- No caso “sub judice”, nada anteriormente tendo sido alegado pela A/Recorrida., no que à escritura e à falta de registo do imóvel dizia respeito e não o tendo feito durante o decurso do julgamento como lhe competia, o seu direito achava-se “confinado” à prova dos factos alegados e aos documentos por ela juntos e não a outros, que não constavam do processo.
30º- O “poder investigatório” do Meritíssimo Juiz ocorreu já na fase da elaboração da sentença, após ter sido produzida toda a prova e feitas as respetivas alegações. A defesa foi norteada e orientada sempre pelo fundamento e pela causa de pedir que não assentavam nem decorriam da escritura que foi pesquisada pelo Tribunal e trazida ao processo.
31º- A procura desse novo facto/escritura pelo Meritíssimo Juiz e a sua apreciação, contende manifestamente com os princípios da igualdade das partes, do contraditório e da imparcialidade que a mui nobre atividade do julgador exige.

I.D. Impossibilidade de exercer o Contraditório:

32º- Nas circunstâncias retro alegadas à parte Ré e ao ora Recorrente não foi permitido pronunciarem-se, nem exercer o princípio do contraditório no processo, quanto a esta escritura não alegada pela parte autora e desconhecida durante a fase escrita e a fase da produção da prova.

33º- Pela prova documental junta ao processo e testemunhal produzida, o Tribunal não podia deixar de considerar provado que:
- As obras nessa parte do imóvel foram realizadas sob o processo de construção diferente do alegado e identificado pela A./Caixa nos autos;
- Foram realizadas nos anos entre 2000 a 2002 e acabadas de pagar em 2003, muito antes da celebração dos contratos de mútuo negociados pelo Réu e ora Recorrente J. P. o que só aconteceu em 2008 e 2009;
- Os técnicos da A./Caixa na avaliação que fizeram, nunca tiveram entrada por essa parte da casa já anteriormente reconstruída, como declararam;
- As obras nesse terço do imóvel foram exclusivamente financiadas e custeados pelo casal constituído pela irmã M. E. e pelo seu marido;
- Sempre esse casal teve a posse pública pacífica e de boa-fé desse 1/3 do imóvel já reconstruido, embora ainda não dividido;
- O Recorrente J. P. confessa que sempre considerou que esse terço do prédio urbano era propriedade exclusiva de sua irmã, M. E. pessoa que não foi parte do processo para poder defender-se;
- Sempre foi esta e a sua família quem o usufruiu como dona e legítima proprietária;
- Foi ela e o marido quem tudo diligenciou para a separação e constituição de duas frações autónomas e independentes cada qual com o seu artigo matricial e descrição prediais separados e independentes, como veio a suceder e hoje acontece;
34º- A escritura outorgada em 13 de abril de 2004 entre o Recorrente e a sua irmã, nada mais foi senão uma escritura de conveniência para desta forma resguardar o património do casal constituído pela sua irmã e o marido.
35º- É o que resulta do seu próprio texto ao verificar-se o insignificante preço ali fixado para a venda.
36º- As verbas que a Recorrida mutuou ao ora Recorrente não se destinaram à realização de quaisquer obras nessa parte do imóvel pelo que ao decidir-se como decidiu a 1ª Instância, fez a Recorrida locupletar-se à custa do património alheio.
37º- O Recorrente e a sua irmã quiseram legalizar e formalizar a partilha do imóvel mediante a constituição de duas frações autónomas.
38º- Foi esse o objetivo da escritura de justificação.
39º- Logo que a irmã conseguiu um artigo próprio para o seu 1/3, marcou a segunda escritura, também objeto deste processo, e ela própria quis que a fração assim autonomiza-se ficasse logo formalizada e registada em nome do seu filho e Co-Réu nestes autos, P. P. por ser a vontade conhecida da avó materna.
40º- O Reu/Recorrente J. P. foi alheio a estes atos e procedimentos da sua irmã M. E. mas sabia e tinha plena consciência de que essa parte do imóvel era dela e que ele nunca a teve como sua nem sequer em algum momento desde a partilha dos bens da falecida mãe em 2000, teve a posse desse 1/3 da irmã.
41º- Por seu lado, a Recorrida somente após ter sido decretada a insolvência do Réu/Recorrente J. P. e quando já lhe tinha adquirido a parte dos 2/3 do imóvel dele, é que se apercebeu de que havia ali mais 1/3 e se apressou a vir reivindicá-lo através da presente ação.
42º- Tanto assim que, a Recorrida não litigou contra a verdadeira dona do outro terço do imóvel, a irmã do Recorrente, M. E., uma vez que a não constituiu parte no processo e nem, no decurso do mesmo, a chamou à lide tendo obrigação de o fazer quando alega a partilha pelo falecimento da mãe e reconhece que ficou a caber-lhe 1/3 do imóvel, facto que pura e simplesmente ignorou até ao termo do julgamento.
43º- A Recorrida sabia bem e sabe que a M. E. e o seu agregado familiar, tem um forte valor estimativo sobre aquela parte da casa que havia herdado de sua mãe, que nunca deixou de estar na sua posse.

I.E. A violação ou a impossibilidade de poder exercer o princípio do contraditório.
44º- Tendo os seus técnicos avaliadores, quando se deslocaram ao local, verificado que aquela parte do prédio não pertencia ao Recorrente tanto que afirmaram nunca por ali terem entrado, competia à Recorrida chamar a irmã do Recorrente, M. E., à lide.
45º- O senhor Juiz, após a obtenção da escritura, notificou as partes para se pronunciarem, todavia a principal interessada na parte do 1/3 indiviso era a irmã do Recorrente e esta, não sendo parte no processo nem tendo sido chamada a intervir, viu-se impossibilitada de se defender e impedida de poder exercer qualquer contraditório nos autos.
46º- O Recorrente respondeu e manifestou a sua não aceitação deste facto novo relativo à pesquisa da escritura trazida ao processo e não pode conformar-se com a decisão surpresa proferida porque a mesma não fazia parte dos articulados.
47º- Não obstante os deveres de gestão processual e de adequação formal reconhecidos ao Meritíssimo Juiz “a quo”, o que é facto é que esses poderes/deveres de modo algum podem contender com os princípios da igualdade das partes, do exercício do contraditório e da imparcialidade que a sentença violou.

II. Da litigância de má-fé.
48º- O Tribunal “a quo” notificou, através da sua Patrona, o Réu J. P., em audiência de julgamento, para juntar aos autos a escritura pública relativa à aquisição à sua irmã M. E. de 1/3 do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ..., ....
49º- Em resposta, o Réu J. P. respondeu que “o réu J. P. vem, em resposta ao solicitado pela autora relativamente à junção de um documento, informar que o documento não existe pelo que não o poderá juntar no prazo concedido pelo Tribunal”.
50º- Sucede, que o documento, efetivamente, existe.
51º- Sendo certo que, o requerido em ata pela Patrona foi transmitido à mesma “ipsis verbis” em conversa telefónica com o Réu.
52º- O Réu J. P. disse-o? Certamente que sim!
53º- Mas o Tribunal “A Quo” não percebeu o que o Réu J. P. quis dizer, julgando que aí o Réu defendeu não existir “fisicamente” tal documento.
54º- Nada mais errado: o que quis dizer é que esta escritura pública não existia no processo e nem ele a tinha na sua posse, daí não o poder juntar aos autos no prazo estipulado pelo Tribunal “A Quo”.
55º- E mesmo que isso verdade não fosse (hipótese académica) não será apenas por isso que se lhe possa ser infligida uma penosa e perigosa consequência como esta, sempre lembrando que não é pela mera negação ou não confirmação de um direito que se possa automaticamente concluir com uma litigância de má-fé!
56º- E isso porque sempre defende o Réu J. P. que parte da casa objeto da presente ação era e é da sua irmã M. E..
57º- Sendo certo que, o Réu/Recorrente se pronunciou sobre a sua eventual condenação como litigante de má-fé.
58º- Alegando, em suma, que a escritura de Compra e venda referida existia, que foi um negócio de conveniência com a sua irmã M. E., considerando, todavia que as obras e a propriedade do terço do imóvel eram, exclusivamente, da mesma.
59º- Não vemos como possa o Réu J. P. ter sido condenado como litigante de má-fé, apenas isso se explicando por um evidente erro de interpretação do Tribunal.

NESTES TERMOS, NOS MELHORES DE DIREITO E COM O DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVERÃO SER ACOLHIDAS AS TESES DO RECORRENTE, EXPOSTAS NAS PRESENTES ALEGAÇÕES, E, EM CONSEQUÊNCIA, DECIDIR-SE PELA REVOGAÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA, SUBSTITUINDO-A POR OUTRA QUE, PELOS VÁRIOS MOTIVOS SUPRA, ABSOLVA O RÉU DE TODOS OS PEDIDOS FORMULADOS PELA AUTORA, ASSIM COMO, DA CONDENAÇÃO COMO LITIGANTE DE MÁ-FÉ.

A apelada (Autora) contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação, concluindo as suas contra-alegações nos termos seguintes:

1.ª - O recorrente não impugnou, como lhe incumbia, a matéria de facto provada, pelo que aceitou especificamente todos os pontos de facto dados como provados na sentença recorrida - vd. n.º 1, art.º 640.º CPC
2.ª - Ao juiz devem ser facultados todos os meios tidos por necessários para produzir uma decisão de mérito que atinja o ideal de justiça, cabendo às partes o ónus de alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir - vd. n.º 1, art.º 5.º CPC
3.ª - Para além dos factos articulados pelas partes, o juiz deve também considerar os factos instrumentais, complementares, notórios e os factos que o tribunal tem conhecimento em virtude do exercício das suas funções - vd. n.º 2, art.º 5.º CPC
4.ª - O fim último de qualquer processo é a justa composição do litígio e a busca da verdade material, e o dever de gestão processual tem como limites inultrapassáveis o respeito pelo princípio da igualdade, do contraditório, e da admissibilidade dos meios de prova que sustentam as posições das partes - vd. n.º 1, art.º 6.º CPC
5.ª - Em caso algum pode ser posto em causa o princípio supremo da busca/descoberta da verdade material e da justa composição do litígio - vd. ABÍLIO NETO, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2.ª Edição Revista e Ampliada, Ediforum, Lisboa, págs. 29 a 32
6.ª - O princípio do contraditório visa evitar a denominada “decisão-surpresa”, constituindo uma manifestação do direito fundamental de acesso aos tribunais e da tutela jurisdicional efetiva - vd. art.º 3.º do CPC
- vd. Ac. TR Lisboa de 10.05.2018, proc. n.º 16173/17.0T8LSB.L1 - vd. art.º 20.º CRP
7.ª - Ao longo de todo o processo, o juiz deve observar e fazer cumprir o contraditório, não lhe sendo lícito decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem, o que foi cumprido pelo tribunal “a quo” - vd. n.º 3, art.º 3.º CPC
- cfr. despacho de 06 de janeiro de 2020
- cfr. despacho de 27 de janeiro de 2020
- cfr. ref.ª Citius 44971781
8.ª - O recorrente foi notificado e pronunciou-se sobre a junção aos autos da escritura pública de 13.04.2004, tendo tido a possibilidade de impugnar essa escritura pública - cfr. requerimento do recorrente de 05.02.2020 - cfr. ref.ª Citius 44971781
9.ª - O recorrente sabia que tinha outorgado essa escritura pública e que a mesma era apta a comprovar o alegado pela recorrida na petição inicial, no entanto, decidiu ocultar ilegitimamente tal documento do conhecimento do tribunal e da recorrida, comportando-se nos autos de forma dissimulada e ilegal
10.ª - Mesmo aquando da elaboração da sentença, se o tribunal não se julgar suficientemente esclarecido, o juiz pode ordenar a reabertura da audiência, ouvindo as pessoas que entender e ordenando as diligências necessárias ao apuramento da verdade, pelo que o tribunal recorrido atuou conforme à lei e ao direito - vd. n.º 1, art.º 607.º CPC
11.ª - O tribunal “a quo”, oficiosamente, tomou conhecimento de prova capaz de elucidar as dúvidas sobre a titularidade do prédio descrito na CRP de Monção, sob o n.º .../...
12.ª - A prova tem a função de demonstrar a realidade dos factos, que se inicia desde a entrada da petição inicial até à elaboração da sentença, e o juiz tem o poder-dever de indagação oficiosa da realidade dos factos, realizando ou ordenando todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio - vd. art.º 341.º CC - vd. art.º 20.º CRP
- vd. art.º 411.º CPC
13.ª - A conduta do tribunal “a quo” foi sempre pautada pela transparência, cooperação e participação igualitária das partes, pelo que, a sentença recorrida não constitui uma decisão surpresa, nem o tribunal “a quo” violou os princípios da igualdade das partes, do exercício do contraditório ou da imparcialidade
14.ª - O prazo para a interposição de recurso das decisões proferidas em 1.ª instância que condenem em multa é de apenas 15 dias, pelo que, o recurso a que ora se responde é, nesta sede, extemporâneo, não devendo ser de admitir o mesmo - vd. 2.ª parte, n.º 1, art.º 638.º e al. e), n.º 2, art.º 644.º CPC
15.ª - O recorrente:
- deduziu pretensão cuja falta de fundamento não poderia ignorar
- alterou a verdade dos factos
- omitiu factos relevantes para a decisão da causa - praticou omissão grave do dever de cooperação
- usou de forma reprovável o processo e os meios processuais, com o objetivo de impedir a descoberta da verdade material e protelar injustificadamente o trânsito em julgado da sentença recorrida - vd. al. n.º 2, art.º 542.º CPC
- cfr. 5.º parágrafo, pág. 20 da sentença recorrida - cfr. al. k) dos factos provados
- vd. Ac. STJ de 18.02.2015, proc. n.º 1120/11.1TBPFR.P1.S1
16.ª - A má fé do recorrente verifica-se desde o início dos autos à margem identificados e perpetua-se mesmo em sede de recurso, pelo que, deve manter-se a sentença recorrida - cfr. 53.ª e 54.ª conclusões do recurso a que ora se responde.
EM CONFORMIDADE COM AS RAZÕES EXPOSTAS DEVE NEGAR-SE PROVIMENTO À APELAÇÃO CONFIRMANDO-SE A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA

*
No despacho de admissão do recurso a 1ª Instância pronunciou-se quanto às invocadas nulidades suscitadas pelo apelante, concluindo pela improcedência destas com os fundamentos explanados na sentença recorrida.
*
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
*
A- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.

No seguimento desta orientação, as questões que se encontram submetidas à apreciação desta Relação resumem-se às seguintes:

a- se o tribunal a quo ao reabrir a audiência final, por despacho proferido em 06/01/2020, e ao determinar ex officio que se oficiasse à Conservatório do Registo Predial ... para juntar aos autos a ficha original do prédio aí descrito sob o n.º 00.../120500, freguesia de ..., existente antes da informatização dos registos, com todas as inscrições em vigor, e ao determinar, também oficiosamente, por despacho proferido em 17/01/2020, para que a secção indagasse o Cartório Notarial em que se encontra arquivada a escritura celebrada a 13/04/2002, no Cartório Notarial ..., lavrada a fls. 31, do livro 184 E, em que foi outorgante J. P., e que após se oficiasse a esse Cartório Notarial para que juntasse aos autos a certidão dessa escritura e, bem assim, ao admitir a junção desses documentos aos autos e ao considerá-los na sentença recorrida em sede de julgamento da matéria de facto, proferiu uma decisão surpresa e violou os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdades das partes e da imparcialidade e se esses vícios determinam a nulidade daqueles despachos;
b- se por via desses vícios, a sentença recorrida padece do vício da nulidade por condenação “ultra petitum”; e
c- se a sentença recorrida padece de erro de direito ao ter condenado o apelante como litigante de má fé.

Note-se que apesar de no ponto 4º da motivação de recurso e na conclusão 33ª o apelante sustentar que “pela prova documental junta ao processo e testemunhal produzida, o tribunal não podia deixar de considerar provado que: “ As obras nessa parte do imóvel foram realizadas sob o processo de construção diferente do alegado e identificado pela A./Caixa nos autos; Foram realizadas nos anos entre 2000 a 2002 e acabadas de pagar em 2003, muito antes da celebração dos contratos de mútuo negociados pelo Réu e ora Recorrente J. P. o que só aconteceu em 2008 e 2009; Os técnicos da A./Caixa na avaliação que fizeram, nunca tiveram entrada por essa parte da casa já anteriormente reconstruída, como declararam; As obras nesse terço do imóvel foram exclusivamente financiadas e custeados pelo casal constituído pela irmã M. E. e pelo seu marido; Sempre esse casal teve a posse pública pacífica e de boa-fé desse 1/3 do imóvel já reconstruido, embora ainda não dividido; O Recorrente J. P. confessa que sempre considerou que esse terço do prédio urbano era propriedade exclusiva de sua irmã, M. E., pessoa que não foi parte do processo para poder defender-se; Sempre foi esta e a sua família quem o usufruiu como dona e legítima proprietária; Foi ela e o marido quem tudo diligenciou para a separação e constituição de duas frações autónomas e independentes cada qual com o seu artigo matricial e descrição prediais separados e independentes, como veio a suceder e hoje acontece”, do objeto do presente recurso não faz parte a impugnação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância.
Com efeito, no ponto I das alegações de recurso, que tem por epígrafe “Objeto do Recurso”, o apelante não indica a impugnação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância como fazendo parte desse objeto.
Acresce que com exceção daqueles singelas afirmações que faz no ponto 4º das motivações de recurso e na conclusão 33ª, o apelante não deixa de forma evidente explanado nas conclusões de recurso, sequer nas antecedentes motivações, pretender impugnar o julgamento da matéria de facto operado pela 1ª Instância e, muito menos, o faz mediante o cumprimento dos ónus impugnatórios enunciados no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, pelo que caso seja seu efetivo ensejo impugnar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, sempre se impõe rejeitar essa impugnação por incumprimento dos mencionados ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto.
Vejamos. Na sequência das alterações legislativas introduzidas ao CPC pelos Decretos-Leis n.ºs 39/95, de 15/02 e 329-A/95, de 12/12, o legislador introduziu o registo da audiência final, com a gravação integral da prova produzida, e conferiu às partes o duplo grau de jurisdição em sede de julgamento da matéria de facto, de modo que a alteração da matéria de facto, que no anterior regime processual era excecional, passou a ser uma função normal da Relação.
Nessa operação foi propósito do legislador que o tribunal da Relação realize um novo julgamento em relação à matéria de facto impugnada pelo recorrente, assegurando um efetivo duplo grau de jurisdição, sendo isto que resulta expressamente do estabelecido no art. 662º, n.º 1 do CPC, na redação introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, quando estabelece que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa(1).
Deste modo é que perante as regras positivas vigentes na atual lei processual civil, tendo o recurso por objeto a impugnação do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, o Tribunal da Relação deve proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada pelo recorrente, procedendo à efetiva reapreciação da prova produzida, devendo, nessa tarefa, considerar os meios de prova indicados no recurso, assim como, ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda pertinentes, tudo da mesma forma como faz o juiz da primeira instância, embora, nessa tarefa, esteja naturalmente limitada pelos princípios da imediação e da oralidade.
Nesse novo julgamento, como verdadeiro tribunal de substituição, a Relação aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão (art. 607º, n.º 5 do Cód. Proc. Civil) e que, por isso, se encontra subtraída ao princípio da livre apreciação da prova, mas antes sujeita a prova tarifada, em que o tribunal tem de julgar a matéria de facto de acordo com as regras de direito probatório material aplicáveis, sem qualquer margem de subjetivismo conferida ao julgador.
Precise-se que nessa sua livre apreciação em relação aos factos sujeitos ao principio da livre apreciação da prova, o tribunal da Relação não está condicionado pela apreciação e fundamentação do tribunal recorrido, uma vez que o objeto da apreciação em 2ª instância é a prova produzida, tal como na 1ª instância, e não a apreciação que esta fez dessa mesma prova, podendo na formação dessa sua convicção autónoma, a Relação recorrer a presunções judiciais ou naturais nos mesmos termos em que o faz o juiz da primeira instância (2).
No entanto, incumbe precisar que apesar da Relação dever efetuar um novo julgamento em relação aos factos sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova cujo julgamento de facto realizado pela 1ª Instância venha impugnado pelo recorrente, não foi propósito do legislador que o julgamento a realizar pela Relação se transforme na repetição do efetuado na 1ª Instância, uma vez que conforme se escreve no Preâmbulo do D.L. n.º 329-A/95, de 12/12, a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto “nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência”, mas apenas “detetar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento”.
Daí que o legislador tenha rodeado o recurso da impugnação do julgamento da matéria de facto à imposição ao recorrente de determinados ónus que enuncia no art. 640º do CPC, com vista a obstar que o julgamento a realizar pela Relação se transforme na repetição do antes efetuado em 1ª Instância e evitar recursos genéricos.
É assim que com vista a atingir esses desideratos, o legislador optou “por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de factos controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente”, pelo que se mantém o entendimento que, como tribunal de 2ª Instância que é, este deverá ter competência residual em sede de reponderação ou reapreciação da matéria de facto (3), estando subtraída ao seu campo de cognição a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo que não seja alvo de impugnação.
Depois, tal como se impõe ao juiz a obrigação de fundamentar as suas decisões, também ao recorrente é imposto, como correlativo do princípio da autorresponsabilidade e dos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais, a obrigação de fundamentar o seu recurso, demonstrando o desacerto em que incorreu o tribunal a quo em decidir a matéria de facto impugnada, sujeita à livre apreciação da prova, em determinado sentido, quando se impunha decisão diversa, devendo no cumprimento desses ónus, indicar não só a matéria de facto que impugna, como a concreta solução que, na sua perspetiva, reclama que tivesse sido proferida, os concretos meios de prova que ancoram esse julgamento diverso que postula, com a respetiva análise crítica, isto é, com a indicação do porquê dessa prova impor decisão diversa daquela que foi julgada pelo tribunal a quo.
Na verdade, “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para delimitar o objeto do recurso”, conforme o determina o princípio do dispositivo (4), e como decorrência desse princípio, mas também do contraditório, terá o recorrente de indicar qual a concreta decisão fáctica que se impõe extrair da prova produzida em relação à matéria de facto que impugna, as concretas provas que alicerçam esse julgamento diverso que propugna e as concretas razões pelas quais essa prova em que funda o recurso afasta os fundamentos probatórios invocados pelo tribunal a quo para motivar o julgamento de facto que realizou, mas antes impõe o propugnado pelo recorrente.
Deste modo é que o art. 640º, n.º 1 do CPC, estabelece que “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Depois, caso os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (al. a), do n.º 2 do art. 640º).
Precise-se que cumprindo a exigência de conclusões nas alegações a missão essencial de delimitação do objeto do recurso, fixando o âmbito de cognição do tribunal ad quem, é entendimento jurisprudencial uniforme que, nas conclusões, o recorrente tem de delimitar o objeto da impugnação de forma rigorosa, indicando os concretos pontos da matéria de facto que impugna.
E é entendimento jurisprudencial maioritário que, nas conclusões, o recorrente tem, também, de indicar a concreta resposta que, na sua perspetiva, deve ser dada à matéria de facto que impugna.
Já quanto aos demais ónus, os mesmos, porque não têm aquela função delimitadora do objeto do recurso, mas se destinam a fundamentar o último, não têm de constar das conclusões, mas sim das motivações.
Sintetizando, à luz deste regime, seguindo a lição de Abrantes Geraldes (5), sempre que o recurso de apelação envolva matéria de facto, terá o recorrente: a) em quaisquer circunstâncias indicar sempre os concretos factos que considere incorretamente julgados, com a enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; d)…; e) o recorrente deixará expressa, na motivação (segundo a posição, que nos prefigura ser ainda atualmente maioritária do STJ, nas conclusões), a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus da alegação, por forma a obviar à interposição de recurso de pendor genérico ou inconsequente.
O cumprimento dos referidos ónus, conforme adverte Abrantes Geraldes, tem a justificá-lo a enorme pressão, geradora da correspondente responsabilidade de quem, ao longo de décadas, pugnou pela modificação do regime da impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliasse os poderes da Relação, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitia corrigir; a consideração que a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida; a ponderação de que quem não se conforma com a decisão da matéria de facto realizada pelo tribunal de 1ª instância e se dirige a um tribunal superior, que nem sequer intermediou a produção da prova, reclamando a modificação do decidido, terá de fundamentar e justificar essa sua irresignação, sendo-lhe, consequentemente, imposto uma maior exigência na impugnação da matéria de facto, mediante a observância de regras muito precisas, sem possibilidade de paliativos, sob pena de rejeição da sua pretensão e, bem assim o princípio do contraditório, habilitando a parte contrária de todos os elementos para organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações, uma vez que só na medida em que se conhece especificamente o que se encontra impugnado e qual a lógica de raciocínio expandido pelo recorrente na valoração e conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita o recorrido de todos os elementos que lhe permitam contrariar essa impugnação em sede de contra-alegações.
A apreciação do cumprimento das exigências legalmente prescritas em sede de impugnação do julgamento da matéria de facto deve ser feita à luz de um “critério de rigor” como decorrência dos referidos princípios de autorresponsabilização, de cooperação, lealdade e boa fé processuais e salvaguarda cabal do princípio do contraditório a que o recorrente se encontra adstrito, sob pena da impugnação da decisão da matéria de facto se transformar numa “mera manifestação de inconsequente inconformismo” (6).
Como consequência, impõe-se a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto quando ocorra: “a) falta de conclusões sobre a impugnação da matéria de facto (art. 635º, n.º 4 e 6411º, n.º 2, al. b) do CPC); b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a) do CPC); c) falta de especificação na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e e) falta de posição expressa, na motivação (segundo a posição maioritária do STJ, nas conclusões), sobre o resultado pretendido a cada segmento da impugnação” (7).
Esta posição tem sido a que tem sido seguida, de forma praticamente uniforme, pela jurisprudência do STJ, que, como referido, tem sustentado, de forma maioritária, que a decisão que, na perspetiva do apelante, deve ser proferida quanto à concreta matéria de facto que impugna, deve, também, constar das conclusões (8).
Assente nas mencionadas premissas, dir-se-á que o apelante, caso pretenda efetivamente impugnar o julgamento da matéria de facto, conforme parece ser seu ensejo a partir daquilo que escreve no ponto 4º da motivação de recurso e da conclusão 35ª das suas alegações de recurso, mas está em total contradição com aquilo que escreve no ponto I, que tem por epígrafe “Objeto do Recurso”, impera concluir que o mesmo não cumpriu com nenhum dos ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto prescritos no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, pelo que inexoravelmente se impõe a rejeição do recurso da matéria de facto que eventualmente opera (n.º 1 do art. 640º).
Na verdade, ao sustentar que “pela prova documental junta ao processo e testemunhal produzida” se impõe concluir pela prova da facticidade que indica, uma vez que essa facticidade que o apelante pretende que seja julgada provada contende com a que a que foi julgada provada pela 1ª Instância, designadamente, nas alíneas o), p) e n) dos factos provados na sentença sob sindicância, impunha-se que o apelante tivesse, em simultâneo, impugnado a referida facticidade das alíneas o), p) e n), sob pena de inevitável contradição, o que não fez, pelo que a facticidade julgada provada pela 1ª Instância na sentença, porque não foi impugnada, se encontra transitada em julgado e, por isso, impede que se julgue provada a matéria de facto que o apelante pretende agora ver julgada como provada que esteja em contradição com aquela outra, em definitivo, julgada provada na sentença recorrida.
Acresce que em obediência ao ónus da impugnação primário do julgamento da matéria de facto enunciado na al. b) do n.º 1 do art. 640º do CPC, impunha-se que o apelante, em relação a cada um dos pontos da matéria de facto que pretende que seja julgada provado, indicasse os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham esse julgamento de provado que propugna, sabendo-se que não cumpre com esse ónus impugnatório primário a indicação genérica, como faz o aqui apelante, de que a “prova documental junta ao processo e testemunhal produzida” impõe que se conclua pela prova de determinada facticidade, sem que cuide em concretizar quais são esses concretos documentos e qual a concreta prova testemunhal que impõe esse julgamento de facto diverso que propugna em relação a cada um dos pontos da matéria de facto que pretende ver julgado como provado.
Acresce que o cumprimento do enunciado ónus impugnatório primário da al. b) do n.º 1 do art. 640º do CPC também não se basta com a indicação, em bloco, dos concretos meios probatórios, que alegadamente imporão o julgamento de provado da totalidade da facticidade que o apelante entende dever ser julgada provada, como igualmente é feito pelo apelante, que não só não concretizou quais os concretos documentos e depoimentos testemunhais que impõem o julgamento de facto de provado em relação a cada um dos pontos da matéria de facto que pretende ver julgados provados, como se limita a indicar essa prova documental e testemunhal inconcretizada e genérica, em bloco, em relação à totalidade da facticidade que pretende ver julgada provada.
Acontece que conforme é entendimento pacífico na jurisprudência, semelhante sindicância, em bloco, da matéria julgada provada e não provada pelo tribunal a quo, com a menção, em bloco, dos meios de prova em relação a toda aquela matéria que o apelante impugna, pretendendo-a ver como provada, não cumpre o ónus impugnatório previsto na al. b) do n.º 1 do art. 640º do CPC, por consubstanciar clara impugnação genérica do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância.

Neste sentido pronuncia-se o STJ, nos seguintes arestos que aqui se indicam a título exemplificativo, todos publicados na base de dados da DGSI, e cujos sumários constam do seguinte:
- acórdão de 06/11/2019, Proc. 1092/08.0TTBRG.G1.S1:

I. As coordenadas estabelecidas pelo Supremo Tribunal de Justiça no que concerne à interpretação do disposto no artigo 690.º do Código de Processo Civil, referente ao ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, visam evitar soluções que possam conduzir a uma repetição total do julgamento, em virtude de recursos genéricos contra uma decisão da matéria de facto alegadamente errada, observando-se assim a opção do legislador de viabilizar apenas uma reapreciação de questões concretas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente, permitindo deste modo um efetivo exercício do contraditório por parte do recorrido.
II. A verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, no que respeita aos aspetos de ordem formal, deve ser norteada pelo princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
III. Não cumprem o ónus imposto pelo art.º 640.º, n.º 1, alíneas b) e c) e n.º 2, alínea a), do Código de Processo Civil os recorrentes que não concretizaram, por referência a cada um dos mencionados factos que impugnaram, quais os meios probatórios que, no seu entender, imporiam decisão diversa daquela que foi dada pelo Tribunal de 1.ª Instância, não indicando também a decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre a matéria de facto, relativamente a determinados factos impugnados;

- acórdão de 08/10/2019, Proc. 3138/10.2TJVNF.G1.S2:
“I- Os recorrentes que pedem na apelação a reapreciação da matéria de facto e não indicam os meios de prova e as passagens das gravações dos depoimentos que, no seu entender, impõem decisão diversa da proferida, não cumprem os ónus de alegação previstos no art. 640º, n.º 1 do CPC”, e onde se concretiza este juízo nos seguintes termos: “Segundo o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, a impugnação da decisão de facto não tem por fim uma reapreciação global, pelo Tribunal da Relação, da prova valorada no Tribunal de 1.ª Instância. Incumbe, por isso, ao Recorrente um especial ónus de alegação no que toca à delimitação do objeto do recurso e à sua fundamentação. Não observa, por conseguinte, esse ónus o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a elencar documentos, omitindo a referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado”;

- acórdão de 05/09/2018, Proc. 15787/15.8T8PRT.P1.S1:
I- A alínea b), do n.º 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.
II- Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações, divide a matéria de facto impugnada em vários blocos e indica os meios de prova relativamente a cada um desse blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna;

- acórdão de 16/05/2018, Proc. 2833/16.7T8VFX.L1.S1:
I - Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, aqueles cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração.
II - Por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do nº 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso.
III - Tendo o recorrente nas conclusões se limitado a consignar a globalidade da matéria de facto que entende provada mas sem indicar, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença e que impugna, os que pretende que sejam alterados, eliminados ou acrescentados à factualidade provada, não cumpriu o estabelecido no art. 640º, nº 1, als. a) e c) do CPC, devendo o recurso ser liminarmente rejeitado nessa parte;

- acórdão de 20/12/2017, Proc. 299/13.2TTVRL.G1.S2:
I - A alínea b), do nº 1, do art. 640º do CPC, ao exigir que o recorrente especifique “[o]s concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”, impõe que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos.
II - Não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto impugnada em três “blocos distintos de factos” e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna.

No mesmo sentido aponta-se ainda, entre outros, os arestos do STJ de 20/02/2019, Proc. 1338/15.8T8PNF.P1.S1; de 18/10/2018, Proc. 668/15.3FAR.E1.S2; RG. de 28/06/2018, Proc. 123/11.0TBCBT.G1; de 21/03/2019, Proc. 61/17.3T8VRL.G1 e RP. de 10/12/2019, Proc. 11709/18.2T8PRT.P1, na mesma base de dados, cujos sumários nos abstemos de transcrever.

Destarte, para além de ter de impugnar a matéria de facto julgada provada e não provada pela 1ª Instância na sentença recorrida, que entra em colisão, por estar em contradição, com aquela que o apelante pretende ver julgada como provada (o que não fez), e de ter de indicar, em relação a cada um dos pontos da matéria de facto que pretende ver julgada provada, quais os concretos meios de prova que impõem esse julgamento de facto de provado que propugna (o que igualmente não fez, na medida em que não concretiza qual a concreta prova documental e testemunhal que impõe esse julgamento de facto positivo, limitando-se a aludir à “prova documental junta ao processo e testemunhal produzida”, não cuidando, pois, em indicar que concretos documentos são esses e quais as concretas testemunhas são essas entre a panóplia documental junta aos autos e à múltipla prova testemunhal neles produzida que impõe esse julgamento de facto de provado, além de que indica essa prova documental e testemunhal inconcretizada e genérica, em bloco, em relação à totalidade da materialidade fáctica que pretende ver julgada como provada), quanto à prova testemunhal, impunha-se que o apelante, nos termos da al. a) do n.º 2 do art. 640º do CPC, identificasse, por referência a cada um dos pontos da matéria de facto que pretende ver julgada como provada, as testemunhas e indicasse com exatidão as passagens da gravação dos excertos dos depoimentos de cada uma dessas testemunhas em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição desses excertos, o que também o aqui apelante não fez, com o que incumpriu com o ónus de impugnação secundário enunciado na al. b) do n.º 2 do art. 640º do CPC.
O incumprimento pelo apelante dos enunciados ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, nos termos do n.º 1 do art. 640ºdo CPC, impõe a rejeição do recurso quanto à matéria de facto que “impugna”, dado tratar-se de uma impugnação indiscutivelmente genérica.
Resulta do exposto que ainda que se entenda que o apelante pretendeu efetivamente impugnar o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância (o que, pelas razões já expostas, não é de todo evidente) e que, consequentemente, essa impugnação do julgamento da matéria de facto faz parte do objeto do presente recurso, sempre se impõe rejeitar essa impugnação do julgamento da matéria de facto, por incumprimento pelo apelante dos ónus impugnatórios previstos no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC.
Nesta conformidade, seja porque a impugnação do julgamento da matéria de facto não faz parte do objeto do presente recurso, seja porque caso o faça, o apelante não cumpriu com os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto previstos no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, rejeita-se o recurso da matéria de facto operada pelo apelante.
*
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância julgou provados os seguintes factos, os quais, atentas as razões acabadas de explanar, se têm por definitivamente provados:

a) Por escritura pública de justificação notarial lavrada no Cartório Notarial da Notária C. C., sito em …, em 5 de setembro de 2016, J. E., na qualidade de procurador, em representação de P. P., veio declarar que este último, seu representado, é dono e legítimo possuidor do “prédio urbano sito no lugar ..., freguesia de ..., concelho de Monção, composto de casa com dois pavimentos e rossios, com a área coberta de cento e oitenta vírgula quarenta e oito metros quadrados e a área descoberta de quatrocentos e quarenta e nove vírgula cinquenta e dois metros quadrados, a confrontar a norte e poente com J. P., a sul com caminho e a nascente com M. N., não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na matriz sob o artigo ...º, a favor do justificante, com o valor patrimonial tributário de vinte e três mil trezentos e sessenta euros, igual ao atribuído”, nos termos constantes da escritura pública cuja certidão se encontra junta aos autos de fls. 60v a 62 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
b) Na referida escritura, o Réu, P. P., declarou, através do seu representante, que é “dono e legítimo possuidor do seguinte bem imóvel: (…) Prédio urbano sito no lugar ..., freguesia de ..., concelho de Monção, composto de casa com dois pavimentos e rossios, com a área coberta de cento e oitenta vírgula quarenta e oito metros quadrados e a área descoberta de quatrocentos e quarenta e nove vírgula cinquenta e dois metros quadrados, a confrontar a norte e poente com J. P., a sul com caminho e a nascente com M. N., não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., inscrito na matriz sob o artigo ...º, a favor do justificante” e que “este prédio veio à posse e fruição do seu representado no ano de mil novecentos e noventa e cinco, por doação verbal, que nunca foi devidamente formalizada, que lhe foi efetuada por sua avó, M. E., viúva, já falecida” e ainda que “desde aquela data, (…) entrou na posse e fruição do referido prédio, ocupando-o e habitando-o, nele fazendo obras de manutenção quando necessárias, aproveitando as suas utilidades, pagando as contribuições fiscais e suportando os demais encargos e despesas de fruição, ostensivamente e à vista de todos, em nome próprio, que reiteradamente tem exercido, até à presente data, com reconhecimento como seu dono por toda a gente, sem violência e sem oposição de quem quer que seja, agindo assim com o ânimo e a forma correspondentes ao pleno exercício do direito de propriedade”, da escritura pública cuja certidão se encontra junta aos autos de fls. 60v a 62 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
c) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº .../20000512, da freguesia de ..., um prédio urbano, com área de 5189 m2, com a área coberta de 558 m2 e com a área descoberta de 4631 m2, descrito na respetiva matriz predial sob os artigos ... e ...º, composto de casa com dois pavimentos e rossios e armazém com um pavimento e rossios, conforme se retira das certidões da referida Conservatória juntas aos autos de fls. 445 a 448 e sob a referência 2648808 e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos;
d) A aquisição de 2/3 do direito de propriedade incidente sobre o referido prédio esteve inscrita a favor de J. P., por partilha de herança, mediante a Ap. 1 de 2000/05/12 (cota G-1), conforme se retira das certidões da referida Conservatória juntas aos autos de fls. 445 a 448 e sob a referência 2648808 e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos;
e) A aquisição de 1/3 do direito de propriedade incidente sobre o referido prédio esteve inscrita a favor de M. E., por partilha de herança, mediante a Ap. 1 de 2000/05/12 (cota G-1), conforme se retira das certidões da referida Conservatória juntas aos autos de fls. 445 a 448 e sob a referência 2648808 e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos;
f) A aquisição de 1/3 do direito de propriedade incidente sobre o referido prédio esteve inscrita a favor de J. P., por compra, mediante a Ap. 06/190504 (cota G-2), conforme se retira das certidões da referida Conservatória juntas aos autos de fls. 445 a 448 e sob a referência 2648808 e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos;
g) Pela Ap. 8 de 2008/08/05 e sobre o prédio descrito em c) foi registada provisoriamente uma hipoteca voluntária, depois convertida em definitiva pela Ap. 13 de 2008/08/25, a favor da Caixa …, Crl., para garantia do capital de € 300.000,00 e pelo montante máximo assegurado de € 420.000,00, conforme se retira das certidões da referida Conservatória juntas aos autos de fls. 445 a 448 e sob a referência 2648808 e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos;
h) Pela Ap. 2208 de 2009/05/12 e sobre o prédio descrito em c) foi registada uma hipoteca voluntária a favor da Caixa ..., Crl., para garantia do capital de € 150.000,00 e pelo montante máximo assegurado de € 210.000,00, conforme se retira das certidões da referida Conservatória juntas aos autos de fls. 445 a 448 e sob a referência 2648808 e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos;
i) Pela Ap. 2459 de 2014/10/22 foi registada na referida Conservatória, na ficha do prédio descrito em c), a declaração de insolvência de J. P., conforme se retira das certidões da referida Conservatória juntas aos autos de fls. 445 a 448 e sob a referência 2648808 e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos;
j) A aquisição da propriedade do prédio descrito em c) foi inscrita a favor de Caixa …, Crl., por compra em processo de insolvência, pela Ap. 2577 de 2015/08/20, conforme se retira das certidões da referida Conservatória juntas aos autos de fls. 445 a 448 e sob a referência 2648808 e cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos;
k) Em escritura pública de compra e venda, outorgada em 13 de abril de 2004, no Cartório Notarial ..., M. E., na qualidade de primeira outorgante, declarou vender a J. P., na qualidade de segundo outorgante, que declarou comprar, pelo preço de € 2.500,00, um terço indiviso do prédio urbano, sito no lugar …, composto de casa de morada com dois pavimentos e rossios, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ..., daquela freguesia, onde se mostra registado, na aludida proporção, em seu nome e na proporção de dois terços, a favor do segundo outorgante, conforme inscrição G-1, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., conforme se retira da certidão junta aos autos sob a referência 2653660 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
l) Nessa mesma escritura, J. E., casado com a primeira outorgante, M. E., no regime patrimonial da comunhão de adquiridos, declarou autorizar a sua mulher a praticar o ato de venda, conforme se retira da certidão junta aos autos sob a referência 2653660 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
m) Em 22 de julho de 2013, o Réu P. P., declarou ao serviço de finanças a existência de um prédio omisso na matriz predial urbana do concelho de Monção, freguesia de ..., a que coube o artigo …º, descrito na referida matriz como prédio urbano em propriedade total, com dois pisos, para habitação, com tipologia T3, a confrontar de norte com J. P., de sul com caminho, de nascente com M. N. e de poente com J. P.;
n) O prédio descrito em c) tem uma configuração aproximadamente trapezoidal e tem uma frente urbana para o arruamento municipal (Travessa ..), com uma extensão de cerca de 85 metros;
o) O Réu J. P. e M. E. depois de herdarem o prédio descrito em c) ali fizeram obras;
p) As primeiras obras executadas no imóvel em causa foram-no ao abrigo do processo de obras nº 343/2000 da Câmara Municipal de …, cujos requerentes foram J. P. e M. E. e tiveram por objeto a edificação que na altura existia no prédio não coincidindo com a parte da edificação que é objeto da escritura pública referida na alínea a), antes englobando, igualmente, a parte a poente da mesma;
q) As segundas obras executadas no imóvel em causa foram-no ao abrigo do processo de obras particulares nº 201/2007, da Câmara Municipal de …, cujo requerente foi J. P., tiveram por objeto a parte do edifício mais a poente e foi pressuposta uma área total igual à mencionada na descrição constante da alínea c);
r) Atualmente, não há ligação entre a parte poente e a parte nascente da edificação, dispondo ambas de entradas autónomas a partir da Travessa ..;
s) A fachada virada à Travessa .. da edificação do prédio descrito em c) não apresenta soluções de descontinuidade estética;
t) A parte não edificada/área descoberta do prédio descrito em c) não apresenta sinais de divisão material;
u) M. E. pagou algumas das obras referidas na alínea p);
v) Os avisos de pagamento do IMI do declarado artigo matricial ...º foram enviados para o Réu P. P. a partir de novembro de 2013;
w) A parte da edificação objeto da escritura pública de justificação mencionada na alínea a), coincide, na segunda imagem aérea reproduzida a fl. 357 (p. 35 do relatório pericial) com a parte capeada/sombreada a azul;
x) O Réu P. P. nasceu no dia 9 de dezembro de 1978, conforme cópia da sua certidão do assento de nascimento junta aos autos a fl. 68 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido;
y) O Réu J. P. encontra-se a ocupar parte do prédio descrito na alínea c).
*
Por sua vez, a 1ª Instância julgou não provados os seguintes factos:

Factos não provados (com exclusão dos enunciados fácticos já provados por acordo, dos enunciados fácticos que apenas podem ser provados por documentos, dos enunciados de carácter conclusivo, dos enunciados fácticos irrelevantes e dos enunciados descritores de matéria de direito)
Da petição inicial: artigos 25º, 34º a 36º, 39º a 42º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea m), 50º a 53º e 83º a 84º-C.
Da contestação dos Réus P. P. e J. E.: artigos 25º, 26º, 30º, 34º, 35º, 37º, 38º, 39º, 46º, 64º, 65º, 66º, até “pelo que”, 68º a 70º, 74º a 75º, sem prejuízo do que consta na alínea a), 83º, 84º, 85º, 95º, 99º e 109º.
Da contestação da Ré M. S.: nada há para responder.
Da contestação do Réu J. P.: artigos 24º, 26º, 33º, 38º, 39º, 46º, 47º, 53º a 55º, 57º a 59º.
*
B-FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

B.1- Decisão surpresa, violação dos princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdades das partes e da imparcialidade.

Sustenta o apelante que a 1ª Instância, ao reabrir a audiência final e ao decidir pesquisar documentação pretensamente “não alegada e subtraída às partes”, violou os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade, porquanto em parte alguma da petição inicial e nos articulados subsequentes, a Autora alegou a existência da escritura de compra e venda outorgada em 13 de abril de 2004, entre o apelante e a irmã deste, comportando-se o apelante e os demais Réus no processo “sob a completa ausência desta escritura, até ao último dia em que o julgamento foi dado por encerrado, por terem esgotado os meios de prova e produzido as alegações finais”; o apelante e os restantes Réus não puderam pronunciar-se, sequer impugnar essa escritura, “no curso normal da fase processual escrita, sequer no decurso da produção da prova, por a mesma não constar do processo para ser escrutinada, apreciada, valorada e decidida”; da escritura de partilha subsequente ao divórcio celebrado entre o apelante J. P. e a sua ex-mulher M. C. “apenas é possível inferir-se que cada um ficou com 1/3 indiviso do prédio dos 2/3 que o Réu J. P. havia herdado da mãe, não permitindo concluir que J. P. fosse dono de todo o prédio”; ao decidir pesquisar aquela documentação sem que aquela compra e venda celebrada entre o Réu J. P. e a irmã tivesse sido alegada pela Autora, cujo ónus da prova também incumbia à última, o tribunal a quo violou o princípio do dispositivo, substituindo-se à Autora em matéria de facto.
Mais alega que aquele tribunal violou o princípio da imparcialidade ao diligenciar pela obtenção de meios de prova que a Autora podia ter junto aos autos, obtendo e juntando a certidão completa do documento que pretendia fazer valer em juízo, emanado pela Conservatória do Registo Predial ..., e ao juntar uma certidão incompleta, sem registos, como fez, o que induziu “a defesa em erro e não lhe permitiu determinar livremente a vontade de se poder defender dessa lacuna séria e grave, extravasando o juiz os seus poderes judicatórios ao decidir ele próprio ir pesquisar um documento não alegado, nem constante dos autos, e ao decidir sobre matéria não peticionada pela parte.
Mais sustenta que o tribunal a quo violou o princípio do contraditório, uma vez que “nas circunstâncias em que o juiz decidiu procurar oficiosamente novo facto/escritura, não foi permitido às partes pronunciarem-se, nem exercer o contraditório quanto a essa escritura não alegada pela Autora e desconhecida, durante a fase escrita e a fase da produção de prova” e quando a recorrida “não litigou contra a verdadeira dona de 1/3 do imóvel, a M. E., uma vez que a não constitui parte no processo e nem, no decurso do mesmo, a chamou à lide, quando tinha a obrigação de o fazer, e quando alega a partilha pelo falecimento da mãe e reconhece que ficou a caber-lhe 1/3 do imóvel” e quando, após a obtenção da escritura, notificou as partes para se pronunciarem, “mas não a principal interessada na parte do 1/3 indiviso, que era a irmã do apelante, que se viu impedida de se defender e de poder exercer qualquer contraditório nos autos”.
Analisados os enunciados fundamentos de recurso, diremos que os mesmos se dirigem ao despacho proferido pela 1ª Instância em 06/01/2020, em que esta determinou a reabertura da audiência final e determinou oficiosamente que se oficiasse à Conservatória do Registo Predial ... para juntar aos autos a ficha original do prédio aí descrito sob o n.º 00.../120500, freguesia de ..., existente antes da informatização do registo, com todos as inscrições e, bem assim ao despacho proferido em 17/01/2020, em que a 1ª Instância determinou oficiosamente que a Secção indagasse o Cartório Notarial em que se encontra arquivada a escritura celebrada a 13/04/2004, no Cartório Notarial ..., lavrada a fls. 31, do livro 184 E, em que foi outorgante J. P., e para após oficiar a esse Cartório Notarial para que enviasse certidão dessa escritura.
Com efeito, na perspetiva do apelante, ao determinar a reabertura da audiência final e a realização daquelas diligências instrutórias, a 1ª Instância praticou atos que não lhe eram consentidos por lei, com o que proferiu decisões surpresa, violou os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade a que o tribunal se encontra adstrito.
Acontece que assentando essa reabertura da audiência final e a realização das identificadas diligências instrutórias em despachos judiciais, o meio processual para reagir contra a ilegalidade pretensamente assim cometida pela 1ª Instância, não é a arguição ou reclamação por nulidade (como erroneamente fizeram os Réus P. P. e J. E., ao reagirem contra aquelas decisões judiciais, por requerimento entrado em juízo em 14/02/2000, apresentado junto da 1ª Instância), mas antes a impugnação desses despachos mediante a interposição do competente recurso (9).
Por outro lado, não se subsumindo esses despachos proferidos em 06/01/2020 e 17/01/2020 no elenco taxativo do n.º 2 do art. 644º do CPC das decisões interlocutórias que são imediata e autonomamente recorríveis, essas decisões proferida pela 1ª Instância tinham de ser impugnadas, como o foram, pelo apelante com o recurso que interpôs da sentença (n.º 3 do art. 644º do CPC).
Posto isto, impõe-se verificar se ao determinar a reabertura da audiência final e a realização das enunciadas diligências instrutórias, as decisões proferidas em 06/01/2020 e 17/01/2020 consubstanciam decisões surpresa e se, ao proferi-las, a 1ª Instância violou os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade a que se encontra adstrito, sendo, por isso nulas, conforme pretende o apelante acontecer.

B.1.1- Reabertura da audiência final.

Estabelece o art. 607º, n.º 1 do CPC, que encerrada a audiência final, o processo é concluso ao juiz, para ser proferida sentença no prazo de 30 dias; se não se julgar suficientemente esclarecido, o juiz pode ordenar a reabertura da audiência, ouvindo as pessoas que entender e ordenando as demais diligências necessárias.

Refira-se que no domínio do CPC de 1961, admitia-se que depois de encerrada a discussão sobre a matéria de facto, o tribunal voltasse à sala da audiência final para obter algum esclarecimento ou novas provas (art. 653º, n.º 1 do CPC de 1961).

Acontece que com a revisão operada pela Lei n.º 41/2013 ao CPC, que integrou o julgamento da matéria de facto na própria sentença (cfr. n.ºs 3 a 5 do art. 607º do CPC atualmente vigente), compreende-se que tendo deixado de existir a cisão antes verificada entre julgamento da matéria de facto e sentença propriamente dita, a qual, no anterior direito adjetivo, apenas versava sobre matéria de direito, passando agora, na sequência daquela revisão, a sentença a incluir quer o julgamento da matéria de facto, quer o de direito, a reabertura da audiência final ocorra atualmente na fase da sentença, o que implica que essa reabertura e a consequente aplicabilidade do disposto nos n.ºs 3 a 8 do art. 604º e, bem assim dos arts. 605º e 606º, todos do CPC, tenha lugar já na fase da sentença.

Deste modo, não obstante a fase da instrução da causa termine com o início das alegações orais (art. 604º, n.º 3, al. e) do CPC), se, aquando da elaboração da sentença, o juiz não se julgar suficientemente esclarecido quanto à matéria de facto que lhe incumbe julgar, assiste-lhe o poder de determinar oficiosamente a reabertura da audiência final e determinar as diligências instrutórias que entenda necessárias para completar a prova antes produzida e assim, afastar essas suas dúvidas, fazendo com que o processo retroaja à fase da instrução, sem que daqui decorra qualquer prejuízo para as partes, uma vez que reaberta a audiência, o processo retorna à fase instrutória, onde a prova suplementar que venha a ser produzida se encontra sujeita a audiência contraditória, com a produção de novas alegações orais, salvo se as partes prescindirem deste seu direito de produzir novas alegações orais, como foi o caso dos autos.

Consente assim expressamente a lei adjetiva nacional atualmente, e desde 01/09/2013, em vigor, que terminada a fase de instrução, o juiz, por sua iniciativa, já na fase da sentença, reabra oficiosamente a audiência final, sempre que tenha dúvidas quanto à matéria de facto que tenha de julgar, com vista a completar a prova antes produzida, ouvindo quem entender e ordenando as demais diligências necessárias ao seu esclarecimento, incluindo a realização de novas diligências probatórias.

O único pressuposto para que o juiz possa determinar essa reabertura é que se depare com dúvidas quanto à facticidade submetida a julgamento.
Por outro lado, uma vez reaberta a audiência final, o juiz pode realizar todas as diligências instrutórias que se mostram necessárias ao esclarecimento das dúvidas com que se deparou e que o princípio do inquisitório lhe consente, nomeadamente, pode “tomar o depoimento de terceiros que não tenham sido ouvidos como testemunhas (art. 526º), ordenar acareações (art. 523º), fazer às testemunhas ouvidas, aos peritos ou às próprias partes as perguntas necessárias ao apuramento da verdade (arts. 452º-1, 486º e 516-4), mas também requisitar informações, pareceres ou documentos (art. 426º), ordenar primeira ou segunda perícia (arts. 467º-1 e 487-2) e, duma maneira geral, tomar a iniciativa da produção de novos meios de prova ou do complemento de atos de produção realizados, com a amplitude que lhe é consentida pelo art. 411º. Pode também o juiz mandar repetir atos do procedimento para garantir a observância do princípio da audiência contraditória, relativamente à produção de qualquer prova (v.g., a junção de documento por alguma das partes) em que o princípio não tenha sido devidamente respeitado” (10).

B.1.2- Princípio do Dispositivo versus princípio do inquisitório

Uma vez reaberta a audiência final, conforme referido, o juiz pode fazer uso dos poderes inquisitoriais que lhe são reconhecidos pelo art. 411º do CPC.
No entanto, o poder do inquisitório que é reconhecido ao juiz não é um poder discricionário, que o mesmo pode ou não exercer discricionariamente, mas antes um poder dever, um ónus que lhe cabe exercer conjugadamente com os princípios do dispositivo, da autorresponsabilidade e da igualdade das partes, da preclusão dos direitos processuais destas e da imparcialidade a que o juiz vê subordinada toda a sua atuação, pelo que, reaberta a audiência final, o juiz não é livre de exercer ou não esse poder inquisitorial, sequer de ao abrigo desse princípio determinar toda e qualquer diligência instrutória que entenda pertinente para esclarecer todo e qualquer facto, como arredando aqueles outros princípios que se mantêm vigorantes no CPC vigente.
Com efeito, o princípio do dispositivo, segundo o qual as partes dispõem do processo, cabendo ao juiz controlar a observância das normais processuais e, por fim, proferir a decisão acerca do conflito de interesses que determinou a proposição da ação e, portanto, é aos litigantes que pertence a iniciativa da ação e o impulso necessário ao seu prosseguimento, sendo-lhes igualmente permitido fazê-la terminar (11), continua a ser um dos princípios estruturantes e basilares da lei adjetiva nacional.
Em função desse princípio, o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que essa resolução lhe seja pedida por uma das partes (art. 3º, n.º 1) e impende sobre o autor o ónus de, na petição inicial, delimitar subjetiva (mediante a identificação das partes) e objetivamente (mediante a identificação do pedido e da causa de pedir) a relação jurídica material que submete à apreciação do tribunal (arts. 552º, n.º 1, als. d) e e)), sendo essa relação material e as exceções que venham a ser alegadas pelo réu na contestação, com vista a impedir, extinguir ou modificar o direito que o autor vem exercer contra aquele na petição inicial (arts. 572º, al. c) e 573º) e as eventuais contraexceções que o autor contraponha a essas exceções invocadas pelo réu na contestação (art. 587º, n.º 2 ex vi art. 572º, al. c) do CPC) que constituem o thema decidendum, a que o tribunal e as partes vêem toda a sua atividade instrutória e decisória circunscrita e delimitada (arts. 5º, n.º 1, 607º, n.º s 2, 3 e 4,608º, n.º 2, 609º, n.º 1 e 615º, n.º1, als. d) e e)).
Note-se que o princípio do dispositivo desde há muito que se encontra temperado no ordenamento processual civil nacional pelo princípio do inquisitório, que é precisamente o princípio inverso, e que atribui ao juiz um papel mais ativo na condução do processo, tendo com a revisão operada ao CPC pela Lei n.º 41/2013, sido dado passos decisivos no sentido de libertar as partes das amarras decorrentes da consideração tradicional do princípio do dispositivo e na incrementação da mitigação entre esse princípio e o do inquisitório, tudo com vista a fomentar a prolação de decisões materialmente justas em detrimento das decisões de forma.
Deste modo é que na vigência do atual CPC, sobre o autor apenas impende o ónus de, na petição inicial, alegar os factos essenciais constitutivos da causa de pedir que elegeu para suportar o pedido (arts. 5º, n.º 1 e 552º, al. d)); sobre o réu apenas impende o ónus de, na contestação, alegar os factos essenciais integrativos das exceções que invoque (art. 5º, n.º 1 e 572º, al. c)) e sobre o autor apenas impende o ónus de, na réplica, na ausência desta, na audiência prévia e, não havendo lugar a ela, no início da audiência final, alegar os factos essenciais integrativos das contraexceções que oponha às exceções invocadas pelo réu na contestação (arts. 5º, n.º 1, 584º, n.º 1, 587º, n.º 2 e 3º, n.º 4), estando, assim, as partes libertas do ónus da alegação dos factos complementares e instrumentais.
Não obstante isso, ou seja, apesar das partes já não terem o ónus da alegação dos factos complementares e dos instrumentais, na sentença, o juiz deve considerar os factos instrumentais (em sede de motivação do julgamento da matéria de facto), desde que o apuramento destes resulte da instrução da causa (al. a), do n.º2 do art. 5º), e deve julgar provados os factos complementares desde que a prova destes resulte da instrução da causa e adicionalmente o juiz cumpra quanto aos mesmos o princípio do contraditório (al. b), do n.º 1 do art. 5º do CPC).
Deste modo, o princípio do inquisitório que impende sobre o juiz assume particular importância em sede de apuramento de factos complementares e instrumentais.
No entanto, o princípio do inquisitório, que se encontra consagrado no art. 411º do CPC, onde se estabelece que “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”, conforme decorre desse preceito, assume plena eficácia na fase da instrução do processo.
Destarte, apesar do objeto do processo se encontrar, em geral, submetido à disponibilidade das partes e de sobre o autor impender o ónus da alegação dos factos essenciais integrativos da causa de pedir e sobre as partes o ónus da alegação dos factos essenciais integrativos das exceções e contraexceções que invoquem, sem prejuízo dos relevantes poderes inquisitoriais que assistem ao tribunal no apuramento dos factos instrumentais e dos complementares daqueles factos essenciais (estes alegados), é na fase da instrução do processo que esse princípio assume plena eficácia, ao impor ao tribunal o ónus de realizar ou ordenar, ainda que oficiosamente, todas as diligências probatórias que entenda necessárias ao apuramento do factos essenciais, complementares e instrumentais e que se justifiquem pela necessidade de evitar que, pela falta de prova, a decisão da causa seja imposta pelo non liquet probatório e não pela realidade das coisas averiguadas em juízo (12).
No cumprimento desse princípio, em sede de instrução da causa, assiste ao tribunal o poder/dever de, por sua iniciativa, determinar a prestação de informações pelas partes ou por terceiros necessários à descoberta da verdade material, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados (art. 417º, n.º 1); assiste ainda ao tribunal o poder/dever de requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objetos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade (art. 436º); determinar a comparência pessoal de qualquer das partes para a prestação de depoimento, informações ou esclarecimentos sobre factos que interessem à decisão da causa (art. 452º, n.º 1); ordenar a realização da perícia por mais de um perito (art. 468º, n.º 1, al. a)); ou uma segunda perícia (art. 487º, n.º 2); inspecionar coisas ou pessoas (art. 490º, n.º 1); inquirir testemunhas no local da questão (art. 501º); mandar notificar para depor uma pessoa que não tenha sido oferecida como testemunha, quando no decurso da ação, se venha a apurar que esta tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa (art. 526º, n.º 1); determinar a comparência dos peritos na audiência final, a fim de prestarem os esclarecimentos que lhes sejam solicitados (art. 486º) e, ainda, quando a matéria de facto suscite dificuldades de natureza técnica, cuja solução dependa de conhecimentos especiais que o tribunal não possua, designar técnico para assistir à audiência final e para aí prestar esclarecimentos que se venham a mostrar necessários, podendo o tribunal ouvir esse técnico, em qualquer momento, antes das alegações orais, durantes estas ou depois de findas e, bem assim requisitar, em qualquer estado da causa, os pareceres técnicos que se mostrem indispensáveis ao apuramento da verdade dos factos (arts. 601º, n.º 1 e 604º, n.º 7).
O cumprimento do princípio do inquisitório que impende sobre o juiz em sede de instrução da causa, não é um poder discricionário do juiz, mas um autêntico poder/dever que lhe é legalmente imposto, com vista ao apuramento da verdade material e à justa composição do litígio, pretendendo-se que “nenhum facto relevante para a decisão da causa fique por esclarecer” (13).
Na verdade, se quanto aos factos integrativos da causa de pedir invocada pelo autor na petição inicial e às exceções invocadas pelas partes, o tribunal vê o seu campo de cognição limitado aos factos essenciais que tenham sido alegados pela partes (o mesmo já não se afirmando em relação aos factos complementares e aos instrumentais – art. 5º, n.º 2, als. a) e b) do CPC), já quanto à indagação dos factos essenciais (alegados) e aos complementares e instrumentais, o tribunal não tem de limitar a sua análise aos meios de prova indicados pelas partes, dispondo de amplos poderes inquisitoriais, a que deve recorrer quando percecione que determinada dúvida pode ser superada mediante a realização de diligências probatórias suplementares (14).
Note-se que apesar do princípio do inquisitório consubstanciar um poder/dever que impende sobre o tribunal em sede de instrução da causa, o mesmo não configura a concessão de um direito substantivo de natureza processual que seja conferido às partes e a que o tribunal tenha de corresponder, sequer consente que o tribunal possa realizar, ao abrigo desse princípio, toda e qualquer diligência instrutória.
Na verdade, o princípio do inquisitório tem de ser impreterivelmente avaliado, delimitado e aplicado tendo em consideração os restantes princípios que continuam vigorantes no CPC e ao qual o tribunal vê a sua atividade instrutória e decisória submetida, como sejam os princípios do dispositivo, da autorresponsabilidade e da igualdade das partes e da preclusão dos direitos processuais que assistem às partes, sem esquecer o dever da imparcialidade do juiz (15), pelo que o cumprimento do princípio do inquisitório tem de ser necessariamente conjugado com aqueles outros princípios norteadores da lei processual civil.
Dir-se-á que da conjugação de todos esses princípios resulta que o juiz tem de exercitar os seus poderes inquisitoriais (que, reafirma-se, são poderes vinculados e nunca discricionários), em sede de instrução da causa, preservando sempre o necessário equilíbrio de interesses que ação pressupõe, critérios de objetividade e uma relação de imparcialidade.
Desse equilíbrio decorre que “a intervenção oficiosa do juiz” em sede de princípio do inquisitório apenas pode assumir “uma natureza complementar relativamente ao ónus da iniciativa da prova que impende sobre cada uma das partes, não podendo aquele servir para superar, de forma automática, falhas processuais reveladas, designadamente, através da omissão da apresentação do requerimento probatório em devido tempo ou sequer da alteração do rol de testemunhas até ao limite definido pelo art. 598º, n.º 2” (16).
Neste sentido pronuncia-se Lopes do Rego, ao ponderar que “o exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicar tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste – não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseiros ou indesculpavelmente negligentes das partes” (17).
No mesmo sentido postula Abrantes Geraldes, referindo-se aos poderes inquisitoriais conferidos pelo art. 662º do CPC à Relação, mas cujos argumentos são integralmente transponíveis para a 1ª Instância em sede de cumprimento do princípio do inquisitório a que se encontra adstrita em sede de instrução da causa, sustentando que: “Trata-se de uma diligência que não está circunscrita a depoimentos, podendo incidir sobre quaisquer meios de prova, desde que se revele a existência de dúvida fundada sobre a prova realizada que seja suscetível de sanação mediante a produção de novos meios de prova. (…) não estamos perante um direito potestativo de natureza processual que seja conferido às partes e que à Relação apenas cumpra corresponder, antes deve ser encarado como um poder/dever atribuído à Relação e que esta usará de acordo com critérios de objetividade, quando percecione que determinadas dúvidas sobre a prova ou falta de prova de factos essenciais poderão ser superados mediante a realização de diligências probatórias suplementares. Afinal, a alteração legislativa não modificou as regras de distribuição do ónus da prova que se colhem do direito material, nem aboliu os efeitos que emanam de um sistema em que ainda predomina o princípio do dispositivo (e também o da aquisição processual, nos termos do art. 413º). Igualmente não poderá deixar de ser ponderado que o ónus de proposição de meios de prova se deve materializar também através da sua apresentação em momentos processualmente ajustados, com previsão de efeitos preclusivos que não podem ser ultrapassados só pela livre iniciativa da parte. (…), como critério orientador, pode servir a apreciação critica da atuação que o juiz de 1ª instância teve ou deveria ter tido aquando da realização da audiência final, ponderando casuisticamente a amplitude dos poderes de averiguação que a lei lhe confere (art. 411º) e que podem ser transpostos naqueles circunstâncias para a Relação quando esta se depare com as aludidas dúvidas sérias suscetíveis de serem dirimidas”, trata-se de “uma medida paliativa destinada a resolver situações patológicas que emergem simplesmente de uma nebulosa que envolva a prova que foi produzida e que não foi convenientemente resolvida (devendo sê-lo) segundo o juízo crítico da Relação” (18).
Decorre do que se vem dizendo que em sede de reabertura da audiência final, o juiz apenas pode determinar essa reabertura quando, na elaboração da sentença, se depare com fundadas/sérias dúvidas quanto a factos essenciais que tenham sido alegados e que, por isso, lhe incumbe julgar como provados ou não provados e quando se lhe afigure que essas suas dúvidas são suscetíveis de serem superadas mediante a produção de prova suplementar, tendo, no entanto, sempre presente o necessário equilíbrio que tem de existir entre os princípios do inquisitório, do dispositivo, do contraditório, da autorresponsabiliade e da igualdade das partes, da preclusão dos direitos processuais das partes e o princípio da imparcialidade que tem de nortear a sua atividade instrutória, equilíbrio esse do qual decorre que, em sede instrutória, o seu papel é sempre complementar em relação ao das partes.
O tribunal não pode determinar a reabertura da audiência para o apuramento de factos essenciais integrativos da causa de pedir ou das exceções invocadas que não tenham sido alegados pelas partes, até porque nunca poderá dar esses factos essenciais, não alegados, como provados ou não provados (art. 5º, n.º 1 do CPC).
O tribunal não deve determinar a reabertura da audiência para superar eventuais dúvidas quanto a factos complementares ou instrumentais, até porque, nos termos das als. a) e b) do n.º 2 do art. 5º do CPC, esses factos complementares e instrumentais apenas devem ser considerados provados quando a prova de tais factos resulte da instrução da causa e, adicionalmente, quanto aos complementares, o juiz cumpra quanto aos mesmos o princípio do contraditório.
Logo, se produzida a prova e encerrada a audiência final, o tribunal tem dúvidas sobre a prova ou não prova de factos complementares ou instrumentais, a conclusão a extrair é que a respetiva prova não resultou da instrução da causa, não se justificando, por isso, a reabertura da audiência final com vista ao respetivo apuramento, sem prejuízo de uma vez reaberta ao audiência final para superação de dúvidas quanto a factos essenciais que tenham sido alegados, caso a prova que venha a ser entretanto produzida (na sequência dessa reabertura) supere as eventuais dúvidas do juiz até aí existentes quanto à prova ou não prova de factos complementares ou instrumentais ou leve, inclusivamente, ao apuramento de novos factos complementares ou instrumentais, o tribunal deva considerá-los provados na sentença, desde que, relembra-se, quanto aos complementares, cumpra o dever do contraditório.

B.1.5- Decisão surpresa.

Estabelece o art. 3º, n.º 3 do CPC que “o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Consagra-se neste preceito, no âmbito do processo civil, o princípio constitucional da proibição da indefesa, associada à regra do contraditório, visando-se conferir às partes uma efetiva participação no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão, proibindo-se ao juiz a prolação de qualquer decisão, ainda que interlocutória, sobre qualquer questão, processual ou substantiva, de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que, previamente, tenha sido conferido às partes, especialmente àquela contra quem é ela dirigida, a efetiva possibilidade de a discutir, contestar e valorar (19).
Nesta conceção ampla do princípio da igualdade, em que se proíbe a indefesa e, nessa medida, a prolação de decisões-surpresa, visando-se assegurar às partes o direito de influenciarem ativa e efetivamente o rumo do processo e a decisão nele a proferir, o escopo principal do princípio do contraditório, contrariamente ao que acontece na conceção tradicional desse princípio, que continua vigorante no atual CPC, onde tem acolhimento no n.º 1 do art. 3º do CPC, deixou de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à atuação alheia, para passar a ser a influência, no sentido positivo do direito das partes de influírem ativa e decididamente no desenvolvimento e no êxito do processo (20).
Deste modo, sempre que o mencionado sentido positivo do princípio do contraditório seja violado, ocorre decisão surpresa, o que determina a nulidade da decisão proferida.
No entanto, incumbe precisar que essa vertente positiva do princípio do contraditório, tal como todos os outros princípios, não tem um sentido absoluto e inuletável, uma vez que é o próprio art. 3º, n.º 3 do CPC que admite que esse princípio possa ser afastado nos casos de “manifesta desnecessidade”.
Note-se que a lei não esclarece quais são os casos em que o juiz pode afastar o princípio do contraditório por o respetivo cumprimento ser “manifestamente desnecessário”, cumprindo à doutrina e à jurisprudência preencher esse conceito indeterminado, tendo sempre presente a finalidade central por ele prosseguido no âmbito do processo.
A observância do principio do contraditório nesta dimensão positiva “tem sobretudo interesse para as questões, de direito material ou de direito processual, de que que o tribunal possa conhecer oficiosamente e que nenhuma das partes suscitou ao longo dos autos: se nenhuma das partes as tiver suscitado, com a concessão à parte contrária do direito de resposta, o juiz – ou o relator do tribunal de recurso – que nelas entenda dever basear a decisão, seja mediante o conhecimento do mérito da causa seja no plano meramente processual, deve previamente convidar as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em caso de manifesta necessidade” (21).
No entanto, se o princípio do contraditório nesta dimensão positiva de conferir às partes o direito de poderem influenciar ativamente o rumo do processo e a decisão a proferir assume especial relevância no âmbito das questões de conhecimento oficioso do tribunal, o seu campo de aplicação não se esgota nesses casos, na medida que essa dimensão positiva do princípio do contraditório é aplicável ao longo de todo o processo.
Além disso, impõe-se afinar o conceito de “manifesta desnecessidade” tendo presente que casos existem em que, não obstante se tratar de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, estas tinham obrigação de prever que o tribunal podia decidir tais questões em determinado sentido, como veio a decidir, pelo que se não as suscitaram e não cuidaram em as discutir no processo, sib imputet, não podendo razoavelmente considerar-se que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configure uma decisão-surpresa.
Deste modo é que a jurisprudência tem considerado que a decisão-surpresa a que se reporta o art. 3º, n.º 3 do CPC, pressupõe que a parte seja apanhada em falta por uma decisão que embora pudesse ser juridicamente possível, não estivesse prevista nem tivesse sido configurada por aquela (22).
Se por hipótese, numa ação para ressarcimento de um lesado com fundamento na responsabilidade civil extracontratual decorrente de acidente de viação, o autor pede, com base na culpa efetiva do demandado, o pagamento de determinada quantia, e o tribunal, na sequência da audiência de julgamento e após alegações de direitos das partes em que cada uma sustenta que a culpa deve ser atribuída à contraparte, acaba por decidir que cada uma delas contribuiu com uma quota de 50% para a produção do evento danoso e fixa em metade a indemnização da quantia peticionada pelo demandante, ou conclui que, em caso de colisão de veículos em que não logrou apurar as concretas circunstâncias em que se deu essa colisão, concluiu pela aplicação ao caso das regras do instituto da responsabilidade pelo risco, e condena o demandado a indemnizar o demandante em função dessas regras, nestes casos, não existe qualquer decisão-surpresa que exigisse a observância do princípio do contraditório a que alude o art. 3º, n.º 3 do CPC.
Com efeito, a decisão tomada pelo tribunal não só é emanação dos factos alegados e debatidos pelas partes, em que o tribunal se cingiu a esses factos, sem recurso a factos novos não alegados por aquelas, como o enquadramento jurídico feito pelo tribunal consubstancia algo que as mesmas previram ou, pelo menos, tinham a obrigação legal de prever como possível, uma vez que quem instaura uma ação de indemnização tendo em vista obter a indemnização pelos danos sofridos emergentes de acidente de viação com fundamento em responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, imputando ao demandado a culpa exclusiva pelo acidente, que nega essa culpa, antes a imputando ao demandante, não pode apartar-se da hipótese de o tribunal, em face da discussão da causa, vir a optar por uma partição de culpas ou pelo risco na produção do acidente.
Da mesma forma, instaurada uma determinada ação com fundamento no incumprimento de um contrato e imputando cada um dos pleiteantes esse incumprimento à sua contraparte, tendo cada uma delas a possibilidade de esgrimir os seus argumentos para defesa da respetiva posição processual, era previsível que o tribunal pudesse vir a enveredar por uma posição em que a atribuição da responsabilidade pelo incumprimento fosse parcial.
Deste modo, tem-se entendido que apenas ocorre uma decisão-surpresa quando a solução seguida pelo tribunal se desvincula “totalmente do alegado pelas partes na sua substancialidade ou na sua adjetividade, isto é, se a decisão não se ativer, com um mínimo de arrimo, ao que foi alegado e sufragado pelas partes durante o curso do processo. Assim, se as partes não tiveram hipótese de aportar e debater factos – novos e condizentes com a realidade jurídica prefigurada pelo tribunal antes da decisão – que poderiam trazer alguma luz sobre a “questão nova” oficiosamente assumida pelo tribunal, então as partes terão o direito de tentar refazer a atividade do tribunal de modo a encarrilar e adequar a estrutura do processo ao resultado decisório”. Nesta situação poderemos dizer que “o tribunal apartou-se do dever de cooperação, colaboração e boa-fé que deve nortear o princípio de imparcialidade e de posição super partes constitucionalmente atribuído ao julgador” (23).
Nesta perspetiva, segundo a jurisprudência, não existirá decisão-surpresa quando a decisão, rectius os seus fundamentos, estejam ínsitos ou relacionados com o pedido formulado e se situem dentro do geral e abstratamente permitido pela lei e que de antemão possa e deva ser conhecido ou perspetivado como possível e em relação ao que, consequentemente, a parte podia ter-se pronunciado, pelo que se não o fez, sib imputet.
Ao invés, estaremos perante uma decisão-surpresa para efeitos do art. 3º, n.º 3 quando ela comporte uma solução jurídica, que embora juridicamente possível, as partes não tinham obrigação de prever, isto é, quando não fosse exigível que as partes tomassem oportunamente posição sobre essa concreta questão jurídica que acabou por ser sufragada pelo tribunal ou, no mínimo, quando a decisão coloca a discussão jurídica num módulo ou plano diferente daquele em que as partes o haviam feito (24).

B.1.4- Caso concreto.

Assente nas mencionadas premissas, pretende o apelante que as decisões proferidas em 06/01/2010 e 17/01/2020, em que o tribunal determinou a reabertura da audiência final, com fundamento de que “durante a elaboração, em curso, da sentença (…) avolumaram-se as dúvidas que já tinha surgido no decurso da audiência de julgamento relativamente à titularidade dominial do prédio descrito na Conservatório do Registo Predial sob o n.º ..., da freguesia de ..., concelho de Monção” e ordenou oficiosamente a realização das supra identificadas diligências instrutórias, configura uma decisão surpresa, violadora dos princípios dos princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das parte e da imparcialidade, isto porque, a apelada (Autora), em parte alguma da petição inicial e dos articulados subsequentes, alegou a existência da escritura de compra e venda outorgada em 13/04/2004, em que M. E., autorizada pelo marido, o Réu J. P., vendeu ao Réu e apelante J. P. 1/3 indivisos do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art. ..., quando, na sua perspetiva, o ónus da alegação e da prova da existência dessa escritura impendia sobre a apelada e quando esta podia ter obtido e junto essas escritura aos autos em anexo à petição inicial, e não, conforme fez, juntando aos autos, uma certidão incompleta, de cujo teor apenas é possível inferir-se que o apelante é titular de 2/3 indivisos desse prédio e quando da escritura de partilha subsequente ao divórcio do apelante com a sua mulher, junta pela apelada aos autos em anexo à petição inicial, apenas é possível inferir-se que o apelante é titular de 1/3 indivisos desse prédio, pelo que, na sua perspetiva, ao reabrir essa audiência final e ao determinar as enunciadas diligências instrutórias, a 1ª Instância indagou factos essenciais que não tinha sido alegados pela apelada em sede de petição inicial, violando os princípios do dispositivo e do contraditório, designadamente em relação à verdadeira dona de 1/3 indivisos do imóvel, que é M. E., que não é parte nos presentes autos, sequer que não foi a ele chamada, conforme, na sua perspetiva, era ónus da apelada chamá-la, além de que violou os princípios da igualdade entre as partes e o dever de imparcialidade que deve nortear toda a atividade do tribunal.
Analisados os enunciados argumentos, antecipe-se, desde já, não assistir qualquer arrimo ao apelante.
Na verdade, a presente ação configura uma ação de impugnação da escritura de justificação notarial celebrada em 05 de setembro de 2016, em que a apelada (Autora) pede que se declare nula e de nenhum efeito essa escritura de justificação notarial e, consequentemente, se ordene o cancelamento de aquisição do direito de propriedade sobre o prédio objeto da mesma, inscrito em nome do Réu P. P., e em que cumula a esses pedidos o de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o prédio que identifica no art. 1º da petição inicial, que integra o imóvel objeto dessa escritura de justificação, e se condene os Réus P. P., J. P. (ora apelante), M. S. e a Ré sociedade e a entregarem-lhe o imóvel objeto dessa escritura de justificação e, bem assim todos os Réus a indemnizá-la pelos prejuízos que alegadamente lhe causaram com a celebração dessa escritura de justificação, com a consequente privação do terreno que integra o prédio objeto da mesma.
Para fundamentar esses pedidos, no que agora interessa, a apelada alegou, no art. 1º da p.i, que o prédio de que se arroga proprietária é composto por casa de dois pavimentos e rossios, com a área coberta de 345 m2, e descoberta de 3155 m2, e um armazém com um pavimento e rossios, com a área coberta de 213 m2 e descoberta de 1476 m2, sito no Lugar ..., freguesia de ..., Monção, estando inscrito na matriz predial urbana sob os arts. ... e ...º e descrito no registo predial de ... sob o n.º ..., e acrescenta que a propriedade sobre esse prédio lhe adveio por compra, que fez em sede de liquidação do ativo, em 19 de agosto de 2015, no âmbito dos autos de insolvência do apelante J. P. (art. 23 da p.i.) e que registou em 20 de agosto de 2015, essa aquisição em seu nome, encontrando-se esta aí inscrita pela ap. 2577, de 2015/08/20 (art. 24º da p.i.).
Para comprovar essa sua alegação, a apelante juntou aos autos a certidão predial do identificado prédio, onde se vê que este se encontra efetivamente descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º .../20000512 – freguesia de ... -, figurando como estando inscrito na matriz urbana sob os arts. ... e ..., encontrando-se a propriedade plena sobre o mesmo inscrita a favor da apelada Caixa … pela ap. 25777, de 2015/08/20, por compra efetuada no processo de insolvência n.º 615/13.7TBMCN, da Comarca de Viana do Castelo, Monção, Instância Local, Secção de Competência Genérica – Juiz 1-, em que foi declarada a insolvência do aqui apelante, J. P..
Mais alega que o prédio descrito no registo predial sob o n.º ... era originalmente constituído apenas pelo prédio inscrito na matriz sob o art. ..., sendo este propriedade do falecido P. J., por óbito deste, em 13/02/1972, aquele foi transmitido a M. E., e por óbito desta, em 18/04/1995, na sequência das partilhas efetuadas em 26/04/2000, foi adjudicado na proporção de 2/3 indivisos ao apelante J. P. (arts. 4º a 6º da p.i.).
Alega ainda que em 06/12/2005, na sequência da partilha subsequente a divórcio entre o apelante e a ex-mulher deste, M. C., foi adjudicado 1/3 indivisos desse prédio ao apelante J. P., tornando-se este último, “por efeito das partilhas dos pontos 6º e 7º, proprietário da totalidade do prédio urbano inscrito na matriz sob o art. ... e descrito no registo predial sob o n.º ...” (arts. 7º e 8º da p.i.).
Mais alega que para ultrapassar o impedimento com que o apelante J. P. se deparou no pedido de licenciamento que efetuou junto da Câmara Municipal para proceder reconstrução e ampliação da construção existente nesse prédio, “o Réu J. P. resolveu anexar ao prédio principal inscrito sob o art. ..., um outro prédio contíguo, destinado a armazém, inscrito na matriz sob o art. ...º (art. 14º da p.i.), tendo sido essa unidade predial composta pelos prédios inscritos na matriz predial urbana sob os arts. ... e ...º e descrito no registo predial sob o n.º ... que o mesmo comprou, no âmbito dos autos de insolvência do apelante J. P. e que cuja aquisição inscreveu, no registo, em seu nome (arts. 20º a 24º da p.i.).
Também alega que uma parte desse prédio foi separada, formal e ilicitamente, pelos Réus, que no ano de 2016, combinados entre si, por meio de escritura de justificação, criaram a favor do Réu P. P., um novo artigo matricial e descrição predial (art. 2º da p.i).
Concretiza essa sua alegação, sustentando que essa escritura de justificação notarial foi celebrada em 5 de setembro de 2016, procedendo à transcrição do teor dessa escritura, designadamente, das declarações nelas feitas pelo Réu P. P., em que este último declara “ser dono e legitimo possuidor do prédio urbano, sito no lugar da ... (…), não descrito no registo predial e inscrito na matriz predial sob o art. ...º (…), que veio à sua posse e fruição no ano de 1995, por doação verbal, que nunca foi formalizada, que lhe foi efetuada por sua avó, M. E., viúva, já falecida (…) – art. 25º da p.i.
Mais alega que, na sequência dessa escritura de justificação, em 28/10/2016, o Réu P. P. fez registar a seu favor a aquisição do direito de propriedade sobre esse prédio, pela ap. 59, de 2016/10/28, (…).
Sustenta que por efeito dessa justificação, o Réu P. P., conluiado com o Réu J. P., arroga-se proprietário da parte sul do prédio da Autora identificado no ponto 1º da p.i. (arts. 26º e 38º da p.i.).
Finalmente alega que as declarações constantes da mencionada escritura de justificação são falsas (arts. 39º, 40º a 59º da p.i.), uma vez que o prédio descrito no art. 1º da p.i., sempre foi possuído pelo Réu J. P. neste conjunto, sem exclusão de qualquer parte, habitando uma parte do mesmo e alugando os quartos da parte sul – ora em causa – para turismo rural, por si ou através da sociedade Ré, apresentando-se publicamente como dono desse prédio no seu conjunto (arts. 65º a 68º) e tendo sido por si legitimamente adquirido (art. 70º da p.i.).
Por sua vez, compulsadas as contestações apresentadas pelos Réus P. P. e J. E. verifica-se que estes alegam que o prédio objeto da escritura de justificação outorgada em 05/09/2016, foi desanexado do prédio descrito na matriz sob o art. ... (ou seja, do prédio de que a apelada se arroga proprietária), sustentando que essa desanexação material ainda ocorreu em vida de M. E., que o doou verbalmente ao Réu P. P., que se mantem na posse do mesmo, reafirmando as declarações contantes da escritura de justificação (arts. 24º, 25º, 37º e 39º da contestação dos Réus P. P. e J. E.).
Mais alegam que o apelante José J. P., na sequência das partilhas efetuadas por óbito de sua mãe, M. E., apenas adquiriu 2/3 indivisos daquele prédio inscrito na matriz predial urbana sob o art. ... e então omisso no registo predial (de que tinha sido antes pretensamente desanexado o prédio justificado), sendo os restantes 1/3 indivisos adjudicados à irmã daquele, M. E. (arts. 25º a 30º dessa contestação dos Réus P. P. e J. E.).
Também o apelante J. P. alega, em sede de contestação, que o prédio objeto da escritura de justificação foi desanexado do prédio inscrito na matriz sob o art. ... ainda em vida de M. E., que o doou verbalmente ao Réu P. P. (cfr. arts. 33º e 55º da contestação do apelante).
Mais alega que na sequência das partilhas efetuadas por óbito de sua mãe, M. E., o prédio inscrito na matriz sob o art. ... (já com a parte referente ao prédio objeto da escritura de justificação notarial desanexada), foi-lhe adjudicado na proporção de 2/3 indivisos, tendo os restantes 1/3 indivisos sido adjudicados à sua irmã M. E. e confessa que àqueles 2/3 indivisos anexou o armazém, inscrito na matriz sob o art. ...º (arts. 1º a 5º, 11º, 12º, 13º e 15º da contestação do apelante).
Por sua vez, na contestação que apresentou, a Ré M. S. nega que alguma vez tivesse estado na posse do prédio reivindicado pela apelada ou que a tivesse impedido de o ocupar.
Analisado o que se vem dizendo, dir-se-á que atenta a causa de pedir deduzida pela apelada em sede de petição para ancorar os dois primeiros pedidos que formula nas alíneas a) e b) do petitório, a presente ação, reafirma-se, configura uma ação de impugnação da escritura de justificação notarial outorgada em 05/09/2016, mediante o qual o Réu P. P., declarando que o prédio objeto dessa escritura lhe tinha sido doado verbalmente pela sua falecida avó, M. E., e a posse que manteve sobre o mesmo desde então, declarou ter adquirido o direito de propriedade sobre esse “prédio” por usucapião, logrando assim obter o título, que lhe permitiu inscrever, no registo, pela primeira vez, o seu alegado direito de propriedade sobre esse pretenso prédio.
A esse respeito, incumbe referir que a escritura de justificação notarial é um mecanismo pensado pelo legislador tendo em vista suprir a falta de título do justificante em relação ao direito de que se arroga titular sobre determinado prédio, a fim de lhe permitir a primeira inscrição desse direito no registo (25).
Impugnado esse direito e colocados, assim, em crise os factos constitutivos do direito de que o justificante se arroga titular e que aquele alegou, mais as respetivas testemunhas, na escritura de justificação impugnada, o justificante já não poderá naturalmente beneficiar desse mecanismo célere e expedito que a lei colocou à sua disposição – a justificação notarial -, sequer da presunção de titularidade desse direito de propriedade sobre o prédio justificado decorrente do art. 7º do Reg. Predial, que emerge do registo, quando esse registo foi efetuado precisamente com base na escritura de justificação notarial impugnada.
É assim que a doutrina e a jurisprudência, na sequência do acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 1/2008, de 04/12/2007, DR. n.º 63, Iª Série, de 31/03/2008, são unânimes em afirmar que a ação de impugnação da escritura de justificação é uma ação de simples apreciação negativa (art. 10º, n.ºs 2 e 3, al. a) do CPC), em que compete, nos termos do art. 343º, n.º 1 do CC, ao justificante o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que se arroga titular na escritura de justificação.
Logo, a causa de pedir na ação de impugnação da escritura de justificação são os factos concretos constitutivos do direito justificado, alegados pelo impugnado e respetivas testemunhas na escritura de justificação impugnada.
Quanto ao direito ou interesse do impugnante incompatível com o direito justificado, o mesmo não integra a causa de pedir da ação de impugnação, mas é mero requisito para que seja reconhecida ao impugnante a legitimidade ativa para instaurar a ação de impugnação da escritura de justificação (26).
Por sua vez, o pedido na ação de impugnação é a declaração da inexistência do direito justificado e o cancelamento dos registos que foram feitos com base na escritura de justificação impugnada (27).
Decorre do exposto que, na presente ação, na parte respeitante à impugnação da escritura de justificação notarial celebrada em 05 de setembro de 2016, a causa de pedir é integrada pelos factos constitutivos da aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre o prédio objeto dessa concreta escritura pelo que Réu P. P. que este e as testemunhas declararam na mencionada escritura de justificação impugnada.
Deste modo, como bem decidiu a 1ª Instância, é sobre o Réu J. P. que impende o ónus da prova em como o terreno objeto dessa escritura de justificação notarial foi desanexado do prédio inscrito na matriz sob o art. ... ainda em vida da sua avó M. E.; que esta lhe doou esse terreno e, bem assim que desde então, se mantém na sua posse desse terreno, com as características necessárias à aquisição do direito de propriedade sobre esse pretenso prédio por usucapião, sob pena de não o fazendo, os pedidos formulados pela apelada nas alíneas a) e b) da petição inicial terem de proceder.
Já no que respeita aos pedidos deduzidos pela apelada nas alíneas c) e d) da petição inicial, trata-se de pedidos típicos de uma ação de reivindicação.
A ação de reivindicação é uma ação petitória e condenatória (28) destinada à defesa da propriedade, estando prevista na Seção II do Titulo II, que tem justamente por epígrafe “Defesa da Propriedade”, tratando-se da ação destinada a obter a restituição da coisa de que se é proprietário do possuidor ou detentor desta.
Essencial à caracterização de uma ação como de reivindicação é que esta prossiga uma dupla finalidade típica da reivindicatio: o reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre a coisa (imóvel ou móvel), de um lado; a consequente restituição da coisa pelo possuidor ou detentor dela, do outro.
O direito de reivindicar é uma manifestação da sequela, uma manifestação do conteúdo do direito real.
Consequentemente, a ação de reivindicação é integrada e caracterizada por dois pedidos: o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio) e a restituição da coisa (condemnatio). Só através destas duas finalidades se preenche o esquema da ação da reivindicação, pondo-se, contudo, em destaque, que se o reivindicante se limitar a pedir a restituição da coisa, não formulando expressamente o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre aquela, entende-se que aquele pedido encontra-se implícito no da restituição (29).
Por outro lado, reconhecido que seja o direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa reivindicada, esta, nos termos do n.º 2 do enunciado art. 1311º do Cód. Civil, só não lhe será restituída se o reivindicado alegar e provar que é titular de um direito real (por ex: servidão, usufruto, etc.) ou de um direito de crédito (ex: contrato de arrendamento) que legitime a sua recusa em restituí-la, pelo que ao reivindicante apenas compete alegar e provar que é proprietário da coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do reivindicado, cumprindo, por sua vez, ao reivindicado o ónus de alegar e provar matéria que extinga, modifique ou impeça o direito do reivindicante em ver-lhe restituída a coisa.
Resulta do que se vem dizendo, que a ação de reivindicação é uma ação real, em que a causa de pedir é o direito de propriedade do reivindicante e a violação desse direito pelo reivindicado (possuidor ou mero detentor da coisa), enquanto o fim (logo, o seu pedido) é o reconhecimento do direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e a sua restituição ao reivindicante.
Assim é que Manuel Rodrigues (30) sustenta que há “na ação de reivindicação um indivíduo que é titular do direito de propriedade, que não possui, há uma causa de pedir que é o direito de propriedade, e há finalmente um fim, que é constituído pela declaração da existência da propriedade do autor e pela entrega do objeto sobre que o direito de propriedade incide (…). Da causa pretendi e do seu fim resulta imediatamente a natureza da reivindicação”.
Não obstante esse entendimento não seja totalmente exato em face do art. 1311º do CC., porquanto a ação de reivindicação pode, também, ser usada pelo proprietário possuidor contra um simples detentor, dúvidas não subsistem que na ação de reivindicação a causa de pedir é o direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e pela lesão desse direito de propriedade pelo demandado possuidor ou meramente detentor da mesma (precise-se que por força do princípio da substanciação que anima a lei processual civil nacional, a causa de pedir nas ações reais é o facto jurídico de que deriva o direito real – art. 581º, n.º 4 do CPC), enquanto o pedido é o reconhecimento desse direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa e a restituição desta àquele.
Essencial para que o reivindicante lance mão da ação de reivindicação é que este possua titulo constitutivo do seu direito de propriedade sobre a coisa – porque aquele tem esse título legítimo de aquisição do seu direito de propriedade (contrato, sucessão por morte, usucapião, acessão e demais modos previstos na lei – art. 1316º do CC) e, consequentemente, não tem dúvidas quanto ao seu direito de propriedade sobre a coisa possuída ou meramente detida por terceiro e respetivos limites, reivindica-a do último, estando o êxito da sua pretensão apenas dependente, reafirma-se, do ónus da alegação e da prova do seu direito de propriedade sobre a coisa e que esta está na posse ou detenção do terceiro demandado (art. 342º, n.º 1 do CC).

No caso dos autos, conforme acusa o apelante acontecer, é certo que, em sede de petição inicial, a apelada não alegou a existência da escritura pública de compra e venda outorgada em 13/04/2004, em que a irmã daquele, M. E., com a autorização do marido, o Réu J. E., vendeu ao apelante J. P. 1/3 indivisos do prédio descrito no registo predial sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o art. ..., ao qual o apelante confessadamente anexou o prédio inscrito na matriz sob o art. ...º.
No entanto, salvo o devido respeito por entendimento diverso, contrariamente ao pretendido pelo apelante, a apelada não tinha de alegar a existência dessa concreta escritura pública de compra e venda na petição inicial, uma vez que nela alegou que o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º .../20000512, da freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana sob os arts. ... e ...º, foi por si adquirido, por compra, em 19/08/2015, nos autos de insolvência do apelante J. P., cuja propriedade registou em seu nome em 20/08/2015, estando essa aquisição aí inscrita pela ap. 2577, de 20/08/2015 (cfr. arts. 23º e 24º da p.i.), e juntou aos autos, em anexo à p.i., como doc. n.º 1, a certidão da mencionada Conservatória do Registo Predial que prova plenamente que esse prédio se encontra efetivamente com propriedade inscrita em nome da apelada através da referida apresentação n.º 2577, por compra efetuada nos identificados autos de insolvência da apelada.
Logo, a apelada beneficia da presunção registral emergente do art. 7º do Cód. Reg. Predial, nos termos da qual o direito de propriedade sobre o identificado prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º .../20000512, inscrito na matriz predial urbana sob os arts. ... e ...º, existe e é propriedade do titular inscrito, isto é, é propriedade da apelada, cumprindo antes aos Réus ilidir essa presunção, alegando e provando factos dos quais decorra que esse direito de propriedade sobre esse prédio presuntivamente da apelada não é efetivamente propriedade desta (art. 350º do CC).
Resulta do exposto, que beneficiando a apelada da presunção de propriedade plena sobre o mencionado prédio, não impendia sobre esta o ónus da alegação e da prova da existência da escritura de compra e venda outorgada em 13/04/2004, entre o apelante e a sua irmã, em que esta, com a autorização do marido, o Réu J. E., declarou vender ao primeiro 1/3 indivisos sobre o identificado prédio, mas era antes sobre os Réus P. P., J. E. e J. P. (este, o apelante) que incumbia o ónus da alegação, em sede de contestação (e posterior prova) de factos dos quais decorram que a apelada não detém a propriedade plena sobre esse prédio, mas que apenas é titular de 2/3 indivisos sobre o mesmo.
Logo, contrariamente ao pretendido pelo apelante, a facticidade atinente à celebração da dita escritura pública de compra e venda, que o tribunal a quo deu como provada na alínea k) dos factos provados na sentença, não consubstancia factos essenciais da causa de pedir invocada pela apelada na petição inicial, sequer é certa a alegação do mesmo segundo a qual a 1ª Instância determinou a reabertura da audiência e ordenou a realização das diligências instrutórias mencionadas nos despachos recorridos de 06/01/2020 e 17/01/2020 com vista ao apuramento de factos essenciais integrativos da causa de pedir invocada pela apelada, não alegados por esta, em sede da petição inicial, mas antes essa reabertura e diligências oficiosamente determinadas pelo tribunal tiveram em vista ao apuramento de factos essenciais alegados pelo próprio apelante e pelos Réus P. P. e J. E., na contestação, com vista a elidir a presunção iuris tantum de propriedade plena sobre o prédio em discussão nos autos de que é beneficiária a apelada e que emergente do art. 7º do CRP, onde aquele apelante e Réus alegam que a apelada é tão-somente detentora de 2/3 indivisos sobre esse prédio.
Por outro lado, porque esses mesmos Réus alegam, em sede de contestação, que o prédio objeto da escritura de justificação notarial foi desanexado do mencionado prédio presuntivamente propriedade da apelada, pretensamente ainda em vida de M. E., a qual o terá alegadamente doado verbalmente ao Réu P. P., que estará na respetiva posse desde então, daqui deriva que ou os Réus faziam prova dessa sua alegação e a impugnação da escritura de justificação notarial celebrada em 05/09/2016, improcederia, e com ela forçosamente a parte reivindicada pela apelada referente a esse prédio objeto dessa escritura de justificação, ou seja, teriam de improceder os pedidos deduzidos pela apelada nas alíneas a), b), c) – na parte em que pede que se declare que o prédio identificado no art. 1º da petição inicial, integra o prédio objeto da escritura de justificação – e d) da petição inicial, ou não logrando os mesmos fazer prova dessa sua alegação (conforme não fizeram) e esses pedidos tinham de proceder, conforme procederam, uma vez que são os próprios Réus que reconhecem que esse prédio objeto da escritura de justificação integra o prédio propriedade do apelante, apesar de pretenderem que dele fora desanexado, dando lugar a um “novo prédio”, ainda em vida de M. E., cuja propriedade entretanto foi adquirida pelo Réu P. P., através do instituto da usucapião, factos esses que, contudo, não provaram.
Resulta do exposto que ao proferir os despachos de 06/01/2020 e 17/01/2020, reabrindo a audiência final e determinando oficiosamente que se oficiasse à Conservatória do Registo Predial ... para que juntasse aos autos a ficha original do prédio aí descrito sob o n.º 00.../120500, freguesia de ..., existente antes da informatização dos registos, com todas as inscrições em vigor e que a Secção indagasse o Cartório Notarial em que se encontra arquivada a escritura celebrada a13/04/2004 no Cartório Notarial ..., lavrada a fls. 31, do livro 184 E, em que foi outorgante J. P. e para que após oficiasse a esse cartório notarial para que juntasse aos autos certidão dessa escritura de compra e venda, a 1ª Instância não proferiu qualquer decisão surpresa, uma vez que essa reabertura está prevista e é consentida pelo nº 1 do art. 607º do CPC e destinou-se a verificar da bondade da versão dos factos alegada pelos Réus, que em sede de contestação, alegaram que a apelada apenas tinha adquirido 2/3 indivisos do prédio descrito naquela Conservatória e inscrito na matriz sob o art. ..., e assim a eventualmente carrear para os autos factos suscetíveis de ilidir a presunção iuris tantum de propriedade plena de que era beneficiária a apelada sobre aquele prédio.
Logo, conforme refere a 1ª Instância, “esta questão sempre fez parte do objeto do processo e foi considerada e assumida pelas partes. Os Réus J. E. e P. P., na sua contestação, no artigo 32º, alegaram que 1/3 indiviso teria sido adjudicado à irmã do Réu J. P., M. E., e, no artigo 33º, alegaram que os bens acabaram por ser todos adjudicados ao referido J. P., por força do divórcio deste, não explicando, e omitindo, a explicação da transmissão do 1/3 indiviso da referida irmã M. E. para o referido J. P. (sendo certo que o referido J. P. não podia estar a divorciar-se da sua própria irmã…). Mas também o Réu J. P., na sua contestação, nos artigos 11º e 13º, alegou que nunca foi proprietário da totalidade do prédio inscrito no artigo ... da matriz predial urbana, que o outro 1/3 indiviso foi adjudicado à sua irmã”, tendo essa questão sido suscitada pelos próprios Réus nas respetivas contestações.
Acresce que ao ordenar a abertura da audiência final e a realização das mencionadas diligências instrutórias, a 1ª Instância não incorreu em qualquer violação do princípio do dispositivo, sequer do contraditório, da igualdade e/ou da imparcialidade uma vez que beneficiando a apelada da presunção de propriedade plena sobre a totalidade do prédio descrito no art. 1º da p.i., era sobre o apelante J. P. e os restantes Réus que incumbia o ónus da alegação e da prova de factos que ilidissem a mencionada presunção registral, nomeadamente, tal como alegaram nas respetivas contestações, que a apelada era apenas detentora de 2/3 indivisos do prédio inscrito na matriz sob o art. ....
As diligências determinadas pelo tribunal apenas podiam, assim, beneficiar o apelante e os Réus P. P. e J. E., levando a elisão da presunção registral de que a apelada era beneficiária.
Acresce que antes da junção aos autos das mencionadas certidões naturalmente que o tribunal a quo desconhecia qual o respetivo teor e, por conseguinte, se este iria confirmar aquela presunção registral de que era beneficiária a apelada (conforme veio a acontecer) ou se antes iria beneficiar o apelante e os restantes Réus, levando à elisão dessa presunção registral, pelo que não se vislumbra qualquer quebra do princípio da igualdade das partes e da imparcialidade do tribunal.
Acresce que juntas aos autos as mencionadas certidões, todas as partes, incluindo o apelante, foram notificados para se pronunciarem sobre as mesmas, ou requererem o que tivessem por conveniente, pelo que o princípio do contraditório foi cabal e integralmente observado.
Quanto à terceira M. E., pretensa “verdadeira dona de 1/3 indivisos do prédio”, contrariamente ao pretendido pelo apelante, o tribunal não tinha, sequer podia, observar quanto à mesma o princípio do contraditório, pela singela razão de que esta não é parte nos presentes autos, sequer o apelado tinha de provocar a intervenção principal provocada desta nos presentes autos, sequer o podia fazer, pela simples razão de que o mesmo é titular da sobredita presunção registral sobre a propriedade plena do prédio, sendo antes essa terceira que caso entenda ter qualquer direito sobre esse prédio ou fração indivisa sobre o mesmo que terá de instaurar a competente ação, não tendo o apelante sequer legitimidade para suscitar uma pretensa violação do princípio do contraditório em relação a essa terceira pessoa.
Decorre do que se vem dizendo que os despachos proferidos em 06/01/2020 e 17/01/2020 não padecem de nenhum dos vícios que o apelante lhes assacam, designadamente, não configuram quaisquer decisão surpresa, sequer violam os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e/ou da imparcialidade, improcedendo este fundamento de recurso.

B.2- Da nulidade da sentença por condenação ultra petitum.

Na conclusão 27ª das alegações de recurso o apelante sustenta que “a decisão assim proferida não pode deixar de ser uma decisão proferida ultra petitum e, por isso, anulável”.
Ao invocar esse vício o apelante já o dirige à própria sentença recorrida, pretendendo que nela a 1ª Instância incorreu no vício a que alude a al. e) do n.º 1 do CPC, nos termos da qual a sentença é nula quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
A causa invalidatória da decisão judicial em referência relaciona-se com o disposto no art. 609º do CPC, onde se estabelece que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir (n.º 1).
Na verdade se por força do princípio do dispositivo, o processo tem de se iniciar por iniciativa insubstituível do autor, pois só a ele cabe solicitar a tutela jurisdicional, que não pode ser oficiosamente concedida (art. 3º, n.º 1 do CPC), e se esse processo se inicia com a apresentação da petição inicial (art. 259º), em que o autor terá de alegar os factos constitutivos da situação que quer fazer valer ou negar, ou integrantes do facto ou cuja existência ou inexistência afirma, isto é, a causa de pedir, e onde terá de formular a pretensão de tutela judiciária que pretende que o tribunal lhe reconheça com fundamento nessa concreta causa de pedir que invoca (pedido), quer o pedido, quer a causa de pedir invocados pelo autor em sede de petição inicial conformam necessariamente o objeto do processo e condicionam o âmbito de cognição dentro do qual o tribunal se pode mover e, consequentemente, a decisão de mérito a ser por ele proferida.
Deste modo, é que o juiz, na sentença, “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceto aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”, não podendo “ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” (art. 608º, n.º 2) –, o que se prende com os fundamentos (causa de pedir e exceções) - e “não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir (art. 609º, n.º 3) –, o que já se relaciona com a pretensão (pedido).
Sempre que o tribunal viole aqueles limites do seu poder cognitivo que lhe foram traçados pelas partes, incorre em nulidade, por violação dos princípios do dispositivo e do contraditório.
Quando o tribunal condena o réu ou o autor-reconvindo em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, posterga os limites do poder jurisdicional que lhe está conferido, infringindo o princípio do dispositivo e, noutra vertente, o princípio do contraditório (art. 3º, n.º 3), na medida em que condena a parte contrária (o réu ou o autor-reconvindo) em pedido em relação ao qual não teve oportunidade de se defender e de influir ativamente na decisão que acabou por ser proferida, pelo que essa sentença é nula na parte em que ocorre o excesso cometido em relação ao pedido formulado (art. 615º, n.º 1, al. e)).
O excesso de condenação pode ser quantitativo ou qualitativo, sendo que, no primeiro caso, verifica-se o vício da condenação “em quantidade superior”, também designado de condenação “extra vel ultra petitum”, enquanto, no segundo, verifica-se o vício da condenação em objeto diverso do pedido.
No entanto, conforme flui do que se vem dizendo, o vício da condenação ultra petitum e em objeto diverso do pedido não se confunde com o vício determinativo da nulidade da sentença por omissão ou excesso de pronúncia a que alude o art. 615º, n.º1, d) do CPC.
Na verdade, o vício da nulidade por omissão ou por excesso de pronúncia reporta-se aos fundamentos da ação, isto é, à causa de pedir em que o autor faz assentar o pedido, ou das exceções ou das contra exceções invocadas pelas partes.
O vício da nulidade da decisão judicial por condenação ultra petitum reporta-se já ao pedido, isto é, o tribunal condena em pedido quantitativamente superior ao que tinha sido pedido pelo autor na petição inicial ou pelo réu na reconvenção ou em pedido qualitativamente diverso desses pedidos.
Em síntese, se o tribunal condena no pedido, mas utiliza um fundamento (causa de pedir e/ou exceções não invocados pelas partes e de que não lhe era lícito conhecer oficiosamente) excede os seus poderes de conhecimento. Esta hipótese cabe na nulidade prevista no art. 615º, n,º 1, al. d) do CPC – excesso de pronúncia; mas se o tribunal, mesmo utilizando os fundamentos admissíveis (causa de pedir ou exceções), condena em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, o caso inclui-se na previsão do art. 615º, n.º 1, al. e) do CPC – condenação ultra petitum (31).
Posto isto, salvo o devido respeito por opinião contrária, prefigura-se-nos que face à alegação do apelante, este confundiu o vício da nulidade a que alude a alínea e) do n.º 1 do art. 614º, com o vício da invalidade da sentença por pretenso excesso de pronúncia, a que se reporta a al. d).
Na verdade, a condenação constante da parte dispositiva da sentença não excede quer em termos quantitativos, quer em termos qualitativos o pedido deduzido pela apelada na petição inicial, não existindo indiscutivelmente qualquer invalidade da sentença por condenação “ultra petitum”.
Atenta a alegação do apelante o que se nos prefigura é que o mesmo pretendia antes imputar à sentença sob sindicância o vício da nulidade, por alegada excesso de pronuncia, por alegadamente ter sustentado a condenação em causa de pedir não alegada pelas partes e de que não era lícito ao tribunal conhecer oficiosamente, nomeadamente, por ter dado como provada a existência da escritura celebrada em 13/04/2004, entre aquele e M. E., em que a última, com autorização do seu marido, o Réu J. P., lhe vendeu 1/3 indivisos do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ... e então inscrito na matriz predial urbana sob o art. ... (al. k) dos factos provados na sentença), o que, na sua perspetiva, “veio a determinar o desfecho do julgamento”.
Acontece que se esse for o caso, incumbe precisar que não ocorre qualquer nulidade por excesso de pronúncia, porquanto, conforme supra se demonstrou, a questão da propriedade da apelada sobre apenas 2/3 indivisos do prédio foi suscitada pelo próprio apelado e pelos Réus P. P. e J. E. logo nas respetivas contestações, com vista a ilidir a presunção registral de propriedade plena que emerge do art. 7º do CRP, de que é titular a apelada, não consubstanciando, por isso, facto essencial da causa de pedir invocada pela apelada na p.i., mas antes facto essencial da exceção ao direito de propriedade plena sobre o prédio da apelada invocada pelo apelante e pelos Réus P. P. e J. E. nas respetivas contestações.
Acresce precisar que colocando-se esse pretenso excesso de pronúncia ao nível do julgamento da matéria de facto, a circunstância do tribunal a quo ter julgado provada a facticidade da alínea k) dos factos provados na sentença a facticidade respeitante à mencionada escritura, nunca seria suscetível de operar a nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
Com efeito, os erros de julgamento da matéria de facto não determinam, ao menos, por norma, a nulidade da sentença, não integrando, em princípio, nenhum dos vícios de invalidade da decisão judicial taxativamente enunciados no art. 615º do CPC.
Os erros de julgamento da matéria de facto, salvo nos casos em que o tribunal omita, na sentença, a indicação de parte substancial dos factos essenciais integrativos da causa de pedir e/ou das exceções ou contraexceções invocadas pelas partes e não discrimine nela os factos provados (n.ºs 3 e 4 do art. 607º do CPC), ou omita parte substancial da fundamentação/motivação que o levam a dar esses factos como provados e não provados, em que se poderá estar perante vícios formais que afetam a sentença em si, por nela não terem sido observadas as regras processuais que regulam a elaboração e/ou estruturação da sentença e que, por isso, a poderão inquinar da invalidade a que alude a al. b), do n.º 1 do art. 615º do CPC, em princípio, não constituem causa de nulidade da sentença, tratando-se de erros atacáveis e sindicáveis em sede de recurso, mediante a observância dos ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto enunciados no art. 640º, n.ºs 1 e 2, al. a) do CPC, onde caso assista razão ao recorrente, terão de ser solucionados pelo Tribunal da Relação ao abrigo dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto, nos termos do disposto no art. 662º, n.ºs 1 e 2, al. c) do CPC (32).
Em função dessas regras, se a 1ª Instância julgou provados na sentença factos essenciais integrativos da causa de pedir e/ou das exceções ou contraexceções que não foram alegados pelas partes nos respetivos articulados e, por isso, fora do condicionalismo legal do n.º 1 do art. 5º do CPC (com o que viola os princípios do dispositivo e do contraditório), impõe-se ao tribunal de recurso, mesmo oficiosamente, determinar a eliminação pura e simples desses factos essenciais julgados provados mas não alegados e operar a subsunção jurídica da matéria fáctica nela provada e não provada (uma vez feita essa eliminação) em face do “novo” enquadramento fáctico.

Ora, no caso dos autos, caso cumprisse ao apelado efetivamente alegar a facticidade que se deu como provada na alínea k) da sentença, por esta consubstanciar factos essenciais da causa de pedir por ele invocada para sustentar os pedidos que formulou em sede de petição inicial (o que não é o caso, atenta a presunção registral de que é beneficiário), não se estaria perante qualquer situação de nulidade da sentença por excesso de pronúncia (sequer por condenação ultra petitum), mas antes perante um vício de julgamento da matéria de facto, em que o tribunal a quo teria julgado provados factos essenciais que não tinham sido alegados, quando tal lhe estava vedado pelo art. 5º, n.º 1 do CPC, o que impunha que o tribunal ad quem, perante essa contestação, determinasse a eliminação dessa facticidade do elenco dos factos provados na sentença.
Acontece que conforme supra já se demonstrou, contrariamente ao pretendido pelo apelante, a facticidade julgada provada naquela alínea k) não consubstancia factos essenciais da causa de pedir que vem invocada pela apelada na petição inicial, com vista a suportar os pedidos que aí formulou, os quais assentam na presunção registral de propriedade plena sobre o prédio emergente do art. 7º do CRP de que é beneficiária, decorrente desse prédio se encontrar com propriedade plena inscrita em seu nome no registo.
De resto, porque a facticidade julgada provada na alínea k) em nada acrescenta a essa presunção registral (sequer confirma a versão dos factos alegada pelo apelante e pelos Réus P. P. e J. E. em sede das respetivas contestação, mas antes o contrário), diremos que a mesma configura meros factos instrumentais dos factos base em que assenta essa presunção registral de que é beneficiária a apelada, pelo que nenhum óbice processual se levanta a que o tribunal os tivesse julgado como provados na sentença, uma vez que esses factos instrumentais resultaram da instrução da causa (art. 5º, n.º 2, al. a) do CPC).
Termos em que improcede a nulidade da sentença por pretensa condenação ultra petitum e/ou excesso de pronúncia.

B.3- Condenação como litigante de má fé.

O apelante imputa erro de direito à sentença recorrida na parte em que o condena como litigante de má fé, advogando que o tribunal não entendeu a resposta que o mesmo lhe deu quando notificado, na sessão de audiência final de 13/12/2019, para juntar aos autos “a alegada escritura pública, no prazo de cinco dias”, em que declarou “que o documento não existe, pelo que não o poderá juntar no prazo concedido pelo tribunal” (cfr. ata de julgamento de 13/12/2019), posto que o alcance e o sentido dessa sua declaração é que essa “escritura não existia no processo e nem ele a tinha na sua posse” e daí “não a poder juntar aos autos no prazo estipulado pelo tribunal a quo”.
Mais sustenta que ainda que assim não fosse, “não será por isso que se lhe possa ser infligida uma penosa e perigosa consequência como esta, sempre lembrando que não é pela mera negação ou não confirmação de um direito que se possa automaticamente concluir com uma litigância de má fé”, tanto mais que, uma vez notificado para se pronunciar, o mesmo alegou que “a escritura de compra e venda referida existia, que foi um negócio de conveniência celebrado com a sua irmã M. E., considerando, todavia que as obras e a propriedade do terço do imóvel eram, exclusivamente, da mesma”.

Apreciando:
Nos termos do n.º 2 do art. 542º do CPC, “diz-se litigante de má fé quem, como dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
É corrente a doutrina distinguir entre a denominada má fé material ou substancial, que se relaciona com o mérito da causa, em que a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objetivo que se afasta da função processual e sustentar-se que sobre essa modalidade regem as als. a) e b) do n.º 2 do art. 485º, da má fé instrumental ou processual, em que se abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa e se qualifica o comportamento processualmente assumido pela parte em si mesmo, modalidade essa a que se reportam as alíneas c) e d) daquele n.º 2 do art. 542º.
Como decorrência, em função dessa distinção, apenas a parte vencida poderá incorrer em má fé substancial, mas ambas as partes podem já atuar com má fé instrumental e, por isso, o vencedor poderá ser condenado como litigante de má fé, por ter adotado um dos comportamentos previstos nas als. c) e d) do n.º 2 do art. 542º do CPC (33).
Cingindo-nos ao dever de cooperação, cuja omissão grave é sancionado como litigância de má fé instrumental pela al. c) do n.º 2 do art. 542º, esse dever encontra-se concretizado no n.º 1 do art. 7º do CPC, onde se estabelece que “na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio".
O dever de cooperação, no dizer de Teixeira de Sousa, destina-se a transformar o processo civil numa comunidade de trabalho e a responsabilizar as partes e o tribunal pelos seus resultados. Quanto às partes, o dever de cooperação obriga-as a um dever de litigância de boa fé. A infração do dever do honeste procedere pode resultar de uma má fé subjetiva, se ele é aferida pelo conhecimento ou não ignorância da parte, ou objetiva, se resulta da violação dos padrões de comportamento exigíveis (34).
Como é sabido, antes da revisão ao CPC operada pelo DL n.º 329-A/95, de 12/11, apenas se sancionava como litigância de má fé a lide dolosa, isto é, aquela em que o litigante assumia intencional e conscientemente um dos comportamentos tipificados pela lei como consubstanciadores de litigância de má fé com os fitos nelas enunciados, mas já não a lide temerária ou a litigância imprudência, ou seja, então o que importava à condenação como litigante de má fé era que existisse um intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) e não apenas com leviandade ou imprudência (má fé em sentido ético).
Acontece que na sequência da revisão à lei adjetiva operada pelo identificado DL n.º 329-A/95, alargou-se o âmbito da má fé aos casos de negligência grave com o intuito de atingir uma maior responsabilização das partes.
Deste modo, a condenação como litigante de má fé exige que a parte assuma um dos comportamentos previstos no n.º 2 do art. 542º e que estes lhe sejam imputáveis subjetivamente, a título de dolo (o litigante assume consciente e voluntariamente um dos comportamentos previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do art. 542º, com os fitos nelas enunciados) ou de negligência grave, grosseira, isto é, com falta de precauções exigidas pelas mais elementar prudência ou previsão, que deve ser observada nos usos correntes da vida (35).
Revertendo ao caso dos autos, verifica-se que tendo o apelante e os Réus P. P. e J. E., nas suas contestação, contestado a propriedade plena do apelado sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º .../20000512, inscrito na matriz sob os arts. ... e ...º, apesar deste beneficiar da presunção de propriedade plena que decorre do art. 7º do CRP, em virtude de ter inscrito em seu nome, no registo, a aquisição do direito de propriedade pleno sobre esse prédio, por compra efetuada nos autos de insolvência do apelante, alegando o apelante e os identificados Réus, em sede de contestação, que o apelado era apenas titular de 2/3 indivisos sobre o prédio inscrito na matriz predial urbana sob o art. ..., pertencendo os restantes 1/3 indivisos a M. E. e de, por conseguinte, essa questão fazer parte do thema decidendum dos autos, dado que mediante essa alegação, o apelante e os Réus P. P. e J. E., colocaram em crise a presunção de propriedade plena de que é beneficiário o apelado, tendo na sessão de audiência final que teve lugar no dia 13/12/2019, o ilustre mandatário da apelada requerido a notificação do apelante para que juntasse aos autos o documento de aquisição à sua irmã M. E. de 1/3 parte do prédio urbano descrito no registo sob o n.º ... – ..., alegando como fundamento desse pedido que “a referida M. E. transmitiu 1/3 ao Réu J. P., na constância do casamento deste, desconhecendo a requerente o cartório notarial onde foi celebrada a respetiva escritura”, deferida essa pretensão e notificado, de imediato, o apelante para, no prazo de cinco dias, juntar aos autos “a mencionada/alegada escritura pública”, este, ainda no decurso dessa sessão de julgamento, pediu a palavra e no seu uso disse: “o Réu J. P. vem, em resposta ao solicitado pela Autora relativamente à junção de um documento, informar que o documento não existe, pelo que não o poderá juntar no prazo concedido pelo tribunal”.
Dir-se-á que quer pelo objeto do litígio, quer pelo teor do requerimento apresentado pela apelada, em que esta alegou que a irmã do apelante, M. E., transmitiu àquele 1/3 indivisos do prédio de que era proprietária ainda durante a constância do matrimónio do apelante com a sua ex-mulher, mas que ela, apelada, desconhece o cartório notarial onde foi celebrada a respetiva escritura de transmissão, quer atenta a notificação que, na sequência desse requerimento, lhe foi dirigida pelo tribunal, o apelante não desconhecia, sequer podia desconhecer, à semelhança do que sucederia com qualquer declaratário médio que se encontrasse naqueles concretas circunstâncias e que fosse alvo dessa notificação, que o sentido e o alcance da mencionada notificação era no sentido de que o mesmo juntasse aos autos a escritura de transmissão dos mencionados 1/3 indivisos que lhe foi feita pela sua irmã.
Logo, dir-se-á que o único sentido interpretativo a dar à resposta do apelante a essa notificação é no sentido de que essa escritura de transmissão dos mencionados 1/3 indivisos sobre o prédio não existe, isto é, a sua irmã nunca lhe transmitiu esses 1/3 indivisos do prédio, o que de resto, se mostra conforme à versão dos factos que foi sustentada logo pelo apelante na sua contestação e que também fora a alegada pelos Réus P. P. e J. E. nas respetivas contestações.
Deste modo, de nada vale agora ao apelante vir argumentar com a tese absurda de que o sentido interpretativo a dar a essa sua declaração é apenas de que essa escritura não existia no processo e que o mesmo não a tinha na sua posse e daí que não a pudesse juntar aos autos no prazo estipulado pelo tribunal para o efeito.
Aliás, dir-se-á que evidentemente que o tribunal e as partes bem sabiam que essa escritura não se encontrava junta ao processo, pelo que naturalmente que a apelada não iria requerer a notificação do apelante, sequer o tribunal o iria notificar para algo que era de todos bem conhecido – essa escritura não se encontrava junta aos autos.
Acresce que a apelada, sequer o tribunal, não esperavam que o apelante tivesse essa escritura, na sua posse, para que de imediato, a juntasse aos autos, assim se justificando o prazo de cinco dias que o tribunal lhe concedeu para o efeito.
Acresce que, conforme referido, a resposta dada pelo apelante na sequência daquela notificação está em concordância plena com aquela que tinha sido a sua alegação em sede de contestação e com a que também tinha sido a alegação dos Réus P. P. e J. E. nas respetivas contestações, isto é, a apelada apenas era titular de 2/3 indivisos sobre o prédio, uma vez que os restantes 1/3 indivisos era detidos por M. E..
Acontece que reaberta a audiência de julgamento e encetadas diligências instrutórias oficiosamente determinadas pelo tribunal, veio-se a constatar que essa escritura existe efetivamente, de nada valendo ao apelante vir agora invocar os argumentos absurdos sobre um sentido a atribuir à sua resposta que não tem qualquer aderência com os factos ocorridos, sequer com as regras da experiência comum. Sequer vale agora ao apelante vir invocar a circunstância de,uma vez notificado para o teor dessa escritura, ter assumido a existência dessa escritura, uma vez que essa sua posição apenas foi por si assumida quando se encontrava “a nu” a inverdade que anteriormente tinha cometido, ao afirmar a inexistência dessa escritura.
Em síntese, ao negar a existência da mencionada escritura de compra e venda, o apelante omitiu dolosamente o dever de cooperação a que se encontrava adstrito, nos termos do n.º 1 do art. 7º do CPC, e que o obrigava a um dever de litigância de boa fé, faltando à verdade para com o tribunal e com isso, incorrendo na situação de litigância de má fé instrumental da al. c), do n.º 2 do art. 542º do CPC, a título doloso.
Resulta do que se vem dizendo que ao condená-lo como litigante de má fé, bem andou o tribunal recorrido, não padecendo essa decisão de nenhum dos erros de direito que lhe são assacados pelo apelante.
Aqui chegados, resulta do exposto, improcederem todos os fundamentos de recurso invocados pelo apelante, impondo-se julgar a apelação improcedente e confirmar os despachos proferidos em 06/01/2020 e 17/01/2020 e, bem assim, a sentença recorrida.
*
*
Decisão:

Nesta conformidade, acordam os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência:
- confirmam os despacho proferidos em 06/01/2020 e 17/01/2020 e, bem assim a sentença recorrida.
*
Custas pelo apelante (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
*
Guimarães, 19 de novembro de 2020
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

Dr. José Alberto Moreira Dias (relator)
Dr. António José Saúde Barroca Penha (1º Adjunto)
Dr. José Manuel Alves Flores (2º Adjunto)



1. Ac. STJ. de 14/02/2012, Proc. 6823/09.3TBRG.G1.S1, in base de dados da DGSI.
2. Ac. RG. de 01/06/2017, Proc. 1227/15.6T8BGC.C1, in base de dados da DGSI.
3. António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 153.
4. António Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 228.
5. Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 155.
6. Abrantes Geraldes, in ob. cit., pág. 159. Ac. RC, de 11.07.2012, Proc. n.º 781/09, in base de dados da DGSI, onde se lê que este “especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, deve ser cumprido com particular escrúpulo ou rigor”, constituindo “simples decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última extremidade, a seriedade do próprio recurso”. No mesmo sentido vide Acs. S.T.J. de 18/11/2008, Proc. 08A3406; 15/09/2011, Proc. 1079/07.0TVPRT.P.S1; 04/03/2015, Proc. 2180/09.0TTLSB.L1.S2; 01/10/2015, Proc. 824/11.3TTLSB. L1. S1; 26/11/2015, Proc. 291/12.4TTLRA.C1; 03/03/2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1; 11/02/2016; Proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1, todos in base de dados da DGSI.
7. Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 158 e 159.
8. Acs. do STJ de 26/09/2018, Proc. 141/17.5T8PTM.E1-S1; 05/09/2018, Proc. 15787/15.8T8PRT.P1-S2; 01/03/2018, Proc. 85/14.2TTMAI.P1.S1; de 06/06/2018, Proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1; 06/06/2018, Proc. 1474/16.38CLD.C1.S1; 06/06/2018, Proc. 552/13.5TTVIS.C1.S1; e de 16/05/2018, Proc. 2833/16.7T8VFX.L1.S1, todos in base de dados da DGSI.
9. Neste sentido Abílio Neto, “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro/2014, Ediforum, pág. 254, nota 6, onde se lê “Mantém-se, assim, atualidade o ensinamento de Alberto dos Reis, Comentário, 2º - 507, quando escreve que “a arguição da nulidade só seria admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho por interposição do recurso competente. Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se”.
10. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código Civil Anotado”, vol. 2º, 3ª ed., pág. 703. Ainda Abílio Neto, ob. cit., pág. 691, notas 3 e 4. Ac. RL. de 01/07/20154, Proc. 8928/11.6TBOER.L1-1. In base de dados da DGSI.
11. Jorge Augusto Pais de Amaral, “Direito Processual Civil”, 2016, 12ª ed., Almedina, pág. 16.
12. Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex 1997, pág. 322 e 323.
13. Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 323.
14. Ac. STJ. de 18/10/2018, Proc. 1295/11.0TBMCN.P1.S2.
15. Ac. RC. de 12/03/2019, Proc. 141/16.2T8PDL-A.C1; RG. de 20/03/2018, Proc. 14/15.6T8VRL-C.G1, lendo-se neste último: “Esta amplitude de poderes/deveres não significa que o juiz tenha a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa. Associada a ele está também a responsabilidade das partes, sobre as quais faz a lei recair alguns ónus, inclusive no domínio probatório, que se repercutem em vantagens ou desvantagens para as mesmas e que, por isso mesmo, aquelas têm interesse direto em cumprir. Até porque, no limite, em sede probatória, a dúvida sobre a realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o mesmo aproveita (art. 414º). Daí que as partes tenham natural interesse em concorrer ativamente para o processo de instrução da causa. Esse concurso não se encontra desregulado. Pelo contrário. A lei assinala prazos e limites para as partes apresentarem e produzirem os respetivos meios de prova, conferindo àqueles prazos um caráter preclusivo”.
16. Ac. RP. de 21/10/2019, Proc. 18884/18.4T8PRT-A.P1.
17. Lopes do Rego, “Comentário ao Código de Processo Civil”, Almedina, 1999, pág. 425.
18. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 283.
19. Ac. RC. de 20/09/2016, Proc. 1215/14.0TBPBL-B.C1, in base de dados da DGSI.
20. Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 1996, págs. 96 e 97.
21. Lebre de Freitas, “Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto”, 1996, Almedina, págs. 102 a 103, lendo-se na nota 24 que é “manifestamente desnecessário convidar as partes a pronunciar-se sobre a qualificação dum contrato, integrando a causa de pedir, como compra e venda, se o autor, embora não invocando explicitamente esta qualificação, o descreveu facticamente como tal, em termos inequívocos e não contrariados, de facto nem de direito, pelo réu. Mas já será necessário o convite se o juiz entender que, não obstante as partes, explicita ou implicitamente, terem tomado o contrato como de compra e venda ao longo de todo o processo, a sua qualificação jurídica correta é de empreitada ou de doação; ou ainda se, concordando embora com a qualificação que as partes lhe atribuíram, o juiz se propuser aplicar uma norma jurídica, específica ou genérica, do respetivo regime (por exemplo, o art. 895º CC ou o art. 280-2 cc) que as partes durante o processo não tiveram em conta. A falta deste convite, quando deva ter lugar, gera a nulidade (art. 201). No mesmo sentido, Abílio Neto, in “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed. revista e ampliada, janeiro/2014, Ediforum, pág. 18, onde se lê: “A proibição das decisões-surpresa (art. 3º, 3) constitui uma garantia cuja manifestação predominantemente se situa no âmbito das questões de conhecimento oficioso não levantadas no decurso do processo, das quais o tribunal se propõe conhecer no momento da decisão. Verificando-se em concreto uma situação deste tipo, deve o tribunal criar condições para o exercício do contraditório sobre o ponto em causa, relativamente a ambas as partes, em momento anterior à decisão e seja qual for a fase que o processo esteja a atravessar. Se, p. ex., o tribunal «ad quem» entender que os factos apurados nos autos devem ser submetidos a enquadramento normativo diverso daquele que foi considerado pelas partes e pelo tribunal «a quo», a vinculação do julgador ao contraditório – princípio que «o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo», conforme preceitua o n.º 3 do art. 3º - impõe-lhe que adapte a tramitação do recurso, de maneira a que nela se encaixe a tomada de posição das partes sobre a mudança a efetuar na qualificação jurídica da matéria de facto”.
22. Acs. STJ. de 14/05/2002, Proc. 02A1353; de 24/02/2015, Proc. 116/14.6YLSB, ambos in base de dados da DGSI.
23. Ac. STJ. 27/09/2011, Proc. 2005/03.0TVLSB.L1.S1, in base de dados da DGSI.
24. Ac. RC. de 13/11/2012, Proc. 572/11.4TBCND.C1, in base de dados da DGSI.
25. Neste sentido Ac. STJ. de 17/12/2014. Proc. 5169/11.6TBSXL.L1.S1, in base de dados da DGSI, onde se lê que: “A justificação é uma solução pensada para resolver problemas de falta de título, por extravio ou destruição do mesmo ou para permitir a inscrição com base numa aquisição originária da propriedade, por usucapião ou acessão”.
26. Ac. RP. de 24/01/2005, Proc. 0535685, in base de dados da DGSI.
27. Ac. STJ. de 29/06/2017, Proc. 5043/16.0T8STB.S1, na mesma base de dados.
28. Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª ed., Coimbra Editora, págs. 112 e 113.
29. Pires de Lima e Antunes Varela, in ob. cit. pág. 113. No mesmo sentido, Oliveira Ascensão, in “Direito Reais”, 5ª ed., Coimbra Editora, págs. 428 e 429, onde conclui que a ação de reivindicação “Não é de simples declaração, porque não se pretende apenas a declaração da existência de um direito ou de um facto. É antes uma ação de condenação dirigida à entrega da coia (…) Na reivindicação acumular-se-iam dois pedidos: o reconhecimento do direito real e a consequente restituição da coisa” e onde conclui que defender que se trataria de “uma ação mista, de declaração e de condenação” seria “deturpar-se sem razão a realidade. O que o autor pretende na grande maioria dos casos é a restituição. A demonstração do direito é a via dolorosa por que tem de passar para conseguir aquele desiderato”.
30. Manuel Rodrigues, “A Reivindicação no Direito Civil Português”, RLJ, ano 57º, pág. 144.
31. Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 223.
32. Ac. RC de 20/01/2015, Proc. 2996/12.0TBFIG.C1, in base de dados da DGSI, cujo sumário consta do seguinte: “Apesar de atualmente o julgamento da matéria de facto se conter na sentença final, há que fazer um distinguo entre os vícios da decisão da matéria de facto e os vícios da sentença, distinção de que decorre esta consequência: os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença, considerado além do mais o carácter taxativo da enumeração das situações de nulidade deste último ato decisório. Realmente a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos – a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação – a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é suscetível de dar lugar à atuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto pela 1ª Instância (art. 662º, n.º 2, als. c) e d) do nCPC”. Em sentido não totalmente coincidente, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, págs. 733 e 734, onde ponderam: “…atualmente a sentença contém tanto a decisão sobre a matéria de direito como da decisão sobre a matéria de facto (cf. o art. 607-4), pelo que os vícios da sentença não se autonomizam hoje dos vícios da decisão sobre a matéria de facto, diversamente do que antes sucedia (cf. Os arts. 668 e 653-4 do CPC de 1961). Esta circunstância, se não justifica a aplicação, sem mais, do regime do art. 615º à parte da sentença relativa à decisão sobre a matéria de facto – desde logo porque a invocação de vários dos vícios que a esta dizem respeito é feita nos termos do art. 640º e porque a consequência desses vícios não é necessariamente a anulação do ato (cf. os n.ºs 2 e 3 do art. 662º) -, obriga, pelo menos, a ponderar, caso a caso, a possibilidade dessa aplicação”.
33. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2º, 3ª ed., Almedina, pág. 457.
34. Miguel Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 2ª ed., págs. 62 e 63.
35. Acs. STJ. de 28/05/2009, Proc. 09B681 in base de dados da DGSI; e de 03/02/2011, Ver. 351/2000, Sumários, 2011, pág. 77.