CONTRATO DE FORNECIMENTO DE ÁGUA
ACÇÃO DE INCUMPRIMENTO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL COMUM
ALTERAÇÃO DA LEI
Sumário

I- À luz da al. e) do nº 4 do art. 4 do ETAF introduzida Lei nº 114/2019, de 12.9, que entrou em vigor em 11.11.2019, está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de acção em que uma empresa privada, que desempenha a actividade concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais domésticas, pretende cobrar de um utente, no âmbito de contrato celebrado entre ambos, o fornecimento de água;
II- Excepcionada a incompetência material do tribunal comum onde corre a acção correspondente, e tendo especialmente em conta os motivos determinantes da alteração legislativa em apreço, deve aquele novo normativo ser considerado ainda que a acção tenha sido interposta antes da entrada em vigor da referida alteração legislativa se esta já vigorava quando foi deduzida a contestação e foi apreciada a excepção.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

I- Relatório:
AdC-Águas de Cascais, S.A., veio propor contra B, em 17.5.2019, providência de injunção, pedindo o pagamento da quantia global de € 416,36, incluindo a taxa de justiça suportada no montante de € 51,00, sendo € 206,27 o valor de capital não pago pelo R. respeitante ao fornecimento de água e drenagem de águas residuais ao prédio sito na Praceta Pedro Reinel,…., Edif. Mar Norte, Serviço Incêndio, Alto da Pampilheira, Cascais. Alude a “Contrato de Fornecimento de Água” celebrado com o Condomínio R. em 29.10.2003 e refere que este não lhe pagou a fatura no valor de € 206,27, de 7.12.2018, respeitante ao fornecimento de água entre 7.11.2018 e 6.12.2018, juntando os documentos correspondentes.
O Condomínio R. deduziu oposição, excecionando a incompetência material do tribunal judicial para conhecer do litígio e sustentando que não lhe cabe a responsabilidade do aluguer/manutenção do contador da boca-de-incêndio instalado pela A. a que se refere o contrato em questão, não correspondendo o valor peticionado de € 206,27 ao consumo de água.
A convite do Tribunal, respondeu a A. à matéria de exceção, sustentando que está em causa fatura referente ao normal pagamento de água para o serviço de incêndio do prédio do R. e não medição com base em contador padrão (contador totalizador), concluindo pela competência material do tribunal.
Em 22.1.2020, foi proferida decisão que, apreciando da referida exceção, concluiu nos seguintes termos: “(…) julgo verificada a excepção dilatória da incompetência deste Tribunal, em razão da matéria, para preparar e proferir decisão nos presentes autos e, consequentemente, absolvo o R. da instância.
Custas pela A.. (…)”.
Inconformada, recorreu a A., culminando as alegações por si apresentadas com as seguintes conclusões que se transcrevem:
 “
a) A ora Recorrente não concorda com a sentença recorrida, proferida pelo tribunal "a quo";
b) Uma vez que considera, que, subjacente à questão em controvérsia, nos autos, não há uma relação jurídica administrativo-tributária;
c) Tendo sido definido pela Autora, ora Recorrente, o objecto do litígio suscitado nos autos, relacionado com a sua pretensão formulada, de pagamento pelo Réu, ora Recorrido, dos serviços de fornecimento de água efectuados pela primeira, enquanto prestador, ao segundo;
d) Fornecimento de água, esse, traduzido em consumo constituído/verificado na rede predial de incêndio instalada no prédio do Réu, ora Recorrido,
e) E não se tratando sequer, ao contrário do afirmado na sentença do Tribunal "a quo", de problemática ligada a medição por contador totalizador (vulgo contador padrão),
f) Conforme comprovou a Autora, ora Recorrente, nos autos (vide artigos 2.° a 7.º do requerimento da Autora/Recorrente enviado para os autos em 17/12/2019, com a referência CITIUS 34344670).
g) E portanto, estar-se perante um objecto do litígio emergente de relação de consumo relativa à prestação de serviço público essencial (fornecimento de água) e respectiva cobrança coerciva;
h) Referindo-se, assim, o objecto do litígio a relação contratual não atingida por uma regulação de direito público;
i) Por se entender que a matéria de incumprimento de contrato de fornecimento de água não se insere numa relação jurídica administrativo-tributária;
j) Antes resulta numa relação de direito privado, submetida aos Tribunais Comuns;
k) Ainda que a entidade fornecedora seja uma entidade concessionária;
l) Da análise da causa de pedir apresentada pela Autora, ora Recorrente, verifica-se que a situação de vida levada a juízo não se refere a uma relação especial do tipo Estado versus Cidadão, em que o primeiro esteja imbuído dos seus poderes de autoridade, mas antes a uma relação contratual estabelecida entre as partes, não sendo relevante a concessão aludida;
m) De facto, em concreto, nos autos, não estamos perante matéria tributária;
n) Nos autos não se discute uma «questão fiscal»;
o) Na verdade, o litígio dos autos não se situa no quadro ou no âmbito de relação jurídica tributária;
p) Visto que o litígio insere-se estritamente nas relações contratuais, de consumo, entre a Autora/Recorrente, prestadora dos serviços de abastecimento de água e o Réu/Recorrido, seu cliente, e utilizador;
q) Nos autos, a Autora, ora Recorrente, na sua qualidade de empresa privada concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais, pede/exige o pagamento, não efectuado, pelo Réu, ora Recorrido, de quantia devida por fornecimento de água, a que estava obrigada, por força da relação contratual estabelecida;
r) E ao abrigo da qual foi instalado contador divisionário para medição do fornecimento/consumo de água no serviço de incêndio do prédio do Réu/Recorrido;
s) Ora, atenta à matéria que está em causa, e o que a mesma Autora pretende obter do Réu, a competência para a sua discussão e julgamento reside nos tribunais comuns;
t) Restringindo-se o litígio em causa à cobrança de um crédito por água fornecida e não paga à empresa concessionária do serviço municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais;
u) Tem de se considerar processualmente correcto, por adequado, a distribuição dos autos nos tribunais comuns;
v) Estando em causa a competência para conhecer matéria relativa à validade da relação contratual entre Autora e Réu e a sua execução e o seu cumprimento;
w) Relação contratual consubstanciando uma manifestação de uma relação jurídica de direito privado;
x) Uma vez que a relação em causa não se destina a quaisquer fins de "interesse público";
y) A jurisdição competente para conhecer do litígio em apreciação são os tribunais comuns;
z) Pelo que, deve considerar-se que o Juiz "a quo" fundou a sua decisão numa inexistente relação jurídica administrativa-tributária;
aa) Para além do mais, e acima de tudo, por via da 12.ª alteração ao Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) (aprovado pela Lei n.° 13/2002, de 19 de Fevereiro), levada a cabo pela Lei n.° 114/2019, de 12 de Setembro, entrou em vigor, no passado dia 12 de Novembro de 2019, a (nova) alínea e) do n.° 4 do artigo 4.° do mesmo Estatuto, a qual estipula que está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal "a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva";
bb) Ora, no caso dos autos estamos perante um litígio emergente de relação de consumo atinente à prestação de serviço público essencial (fornecimento de água), com base no previsto na alínea a) do n.° 2 do artigo 1.° da Lei n.° 23/96, de 26 de Julho (com respectivas alterações subsequentes) e respectiva cobrança coerciva (inicialmente através de injunção e subsequentemente, com carácter judicial);
cc) Por outro lado, o Acordão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10/10/2019 (portanto, proferido pouco tempo antes da entrada em vigor da supra indicada alteração do ETAF), referente ao Processo de Apelação 124980/18.4YIPRT.L1, em que foi recorrente a ora Recorrente/Autora, chamava já a atenção para a publicação do diploma com a mencionada alteração do ETAF, considerando-a um relevante elemento de interpretação sistémica, nomeadamente, quando o legislador claramente enuncia a sua intenção interpretativa;
dd) Tal Acórdão vem considerar que "a relação contratual estabelecida entre uma concessionária de serviço de fornecimento de água e drenagem de águas residuais e uma entidade privada não tem a natureza de contrato administrativo, não está sujeita às regras da contratação pública, nem tem por objeto questões relativas a relações jurídicas administrativas e fiscais, pelo que não se enquadra na previsão doa artigo 4.º do ETAF, na redacção do DL 214-G/2015, estando sujeita à jurisdição dos tribunais comuns.";
ee) Ora, atento o supra exposto, verifica-se que a sentença ora recorrida, apesar de mencionar a existência de nova redacção da alínea e) do n.° 4 do artigo 4.° do ETAF, introduzida pela Lei 118/2019,
ff) Não retira da existência de tal nova redacção as devidas consequências,
gg) Pelo contrário, retirando a conclusão contrária à que devia ter retirado,
hh) Isto é, efectivamente, conclui que o conflito dos autos deve ser dirimido pela jurisdição especializada dos tribunais administrativos e fiscais.
ii) O que não faz sentido, já que, ao contrário da posição contida na sentença, estamos perante um litígio emergente de relação de consumo atinente à prestação de serviço público essencial (fornecimento de água), com base no previsto na alínea a) do n.° 2 do artigo 1.° da Lei n.° 23/96, de 26 de Julho (com respectivas alterações subsequentes) e respectiva cobrança coerciva (inicialmente através de injunção e subsequentemente, com carácter judicial).
jj) Daí que a nova redacção da alínea e) do n.° 4 do artigo 4.° do ETAF, introduzida pela Lei 118/2019, não mereceu do Tribunal "a quo" a interpretação e decisão devidas,
kk) Inclusivamente, tendo o Tribunal "a quo", com a sua decisão, violado tal preceito legal,
ll) Ao ter, efectivamente, decidido pela exclusão, do âmbito da jurisdição dos tribunais comuns, e portanto do tribunal judicial dos autos, a apreciação do litígio em apreço,
mm) Litígio, esse, emergente da relação de consumo relativa à prestação de serviço público essencial, incluindo a respetiva cobrança coerciva.
nn) O Tribunal "a quo", ao considerar-se incompetente materialmente para apreciar o litígio dos autos,
oo) Decretando a verificação da excepção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria, do Tribunal "a quo" para a causa,
pp) Incorreu em erro de apreciação e de aplicação do Direito ao caso vertente,
qq) Assim, sendo, pelo supra indicado, é de concluir que a jurisdição competente para conhecer do litígio dos autos é a jurisdição dos tribunais comuns, os tribunais judiciais.
rr) Assim, pelo supra exposto, deverá o presente Recurso merecer provimento e, em consequência, ser a sentença recorrida revogada.”
Não se mostram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
II- Fundamentos de Facto:
A factualidade a ponderar é a que acima consta do relatório.
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III- Fundamentos de Direito:
São as conclusões que delimitam o objeto do recurso (art. 635, nº 4, do C.P.C.). Por outro lado, não deve o tribunal de recurso conhecer de questões que não tenham sido suscitadas no tribunal recorrido e de que, por isso, este não cuidou nem tinha que cuidar, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
De acordo com as conclusões acima transcritas, o único ponto a apreciar respeita à reclamada improcedência da exceção de incompetência material do tribunal.
Na sentença, apreciando-se da referida exceção e entendendo-se que está em causa um contrato respeitante à instalação pela A. de um contador padrão, concluiu-se pela competência dos tribunais administrativos e fiscais para conhecer da causa, nos seguintes termos: “(…) tendo presente a relação contratual estabelecida, e sendo o contador totalizador uma unidade de contagem (instrumento de medição) instalada, por iniciativa e no interesse da entidade fornecedora da água, em local onde se encontram instalados vários contadores diferenciais (neste caso num condomínio) e destinam-se a detectar perdas ou a medir consumos não detectados pelos contadores diferenciais instalados em cada uma das fracções.
Resulta do disposto no art° 66° n°3 do DL 194/2009 de 20 de Agosto que "Em prédios em propriedade horizontal devem ser instalados instrumentos de medição em número e com o diâmetro estritamente necessários aos consumos nas zonas comuns ou, em alternativa e por opção da entidade gestora, nomeadamente por existir reservatório predial, podem ser instalados contadores totalizadores, sem que neste caso o acréscimo de custos possa ser imputado aos proprietários" — sublinhado nosso.
Tal contador não tem como função medir o consumo de água (e não o mede), medindo apenas a quantidade global de água que entra no prédio, sendo a cobrança de água, nestas circunstâncias, imposta pela fornecedora de água ao consumidor final, sendo que os conflitos a dirimir resultantes da instalação de um contador destas características o devem ser pela jurisdição especializada dos tribunais administrativos e fiscais, nos termos do disposto no artigo 4.° n.° 1 alínea e), do ETAF, na redacção introduzida pelo DL n.° 214-G/2015, de 2 de Outubro, vigente à data da propositura da acção (actualmente, artigo 4.° n.° 1 alínea e), do ETAF, na redacção introduzida pela Lei n.° 114/2019, de 12 de Setembro).
Como se refere no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 25-06-2013 (Processo n° 033/13, relatado por Rosendo José, integralmente disponível em www.dgsi.pt), "Compete aos tribunais tributários o conhecimento de acção em que uma empresa concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água pretende cobrar o «preço fixo» e consumos por um contador «totalizador» que precede os contadores das fracções e das partes comuns de um condomínio, por estarem em causa tarifas, taxas e encargos com exigências impostas autoritariamente em contrapartida do serviço público prestado, relação jurídica que é regulada por normas de direito público tributário" — no mesmo sentido se decidiu, ainda, nos Acórdãos do Tribunal de Conflitos n°038/13 de 18.02.2013, relatado pelo Sr. Cons. Paulo Sá; n° 039/13 de 05.11.2013, relatado pelo Sr. Cons. Rui Botelho e n° 045/13 de 29.01.2014, relatado pelo Sr. Cons. Costa Reis.
Entende-se, pois, que a ordem administrativa e fiscal é a competente para conhecer da presente acção, o que importa a exclusão da competência (residual) deste Tribunal.
Neste entendimento, ao abrigo das normas legais citadas e, ainda, do disposto nos artigos 96°, 97°, 98°, 99°, 278° n° 1 al. a), 576° nºs 1 e 2 e 577° al. a), todos do CPC, verifica-se a incompetência absoluta deste Tribunal Judicial, em razão da matéria, que constitui excepção dilatória e que determina a absolvição do R. da instância.
Por todo o exposto, julgo verificada a excepção dilatória da incompetência deste Tribunal, em razão da matéria, para preparar e proferir decisão nos presentes autos e, consequentemente, absolvo o R. da instância.
Custas pela A.. (…)”.
A apelante defende no recurso, em síntese, que ainda que a entidade fornecedora do serviço seja uma entidade pública ou uma concessionária, a relação contratual estabelecida com o destinatário é de direito privado, devendo os litígios correspondentes ser, por isso, submetidos aos tribunais comuns. Mais refere que a nova al. e) do nº 4 do art. 4 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF - aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.2), introduzida pela Lei nº 114/2019, de 12.9, e entrada em vigor no dia 12.11.2019, dispõe que está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”, não tendo a sentença recorrida atendido ao sentido de tal preceito legal apesar de o mencionar.
Vejamos.
Para definir em concreto a competência material do tribunal cumpre ter em conta os termos em que a ação é proposta, a relação controvertida tal como é configurada na petição inicial, o fundamento da causa e a pretensão deduzida([1]).
“Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (art. 211, nº 1, da C.R.P.), o que resulta confirmado no art. 40 da LOSJ e no art. 64 do C.P.C..
Compete, por seu turno, aos “tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (art. 212, nº 3, da C.R.P.).
Dispõe o art. 4, nº 1, do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19.2), na redação do DL nº 214-G/2015, de 2.10, vigente à data da propositura da ação, que: “Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
(…)
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
(…)”.
No caso em análise, muito embora os autos não forneçam a adequada caracterização da condição jurídica da A., esta reconhece-se como empresa privada que desempenha a atividade concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais domésticas.
Temos, por isso, que o serviço público em questão está, como é hoje comum, atribuído a uma entidade privada, sendo estabelecida uma relação jurídica de colaboração entre a Administração Pública (titular do serviço) e o gestor do serviço([2]).
No que toca à natureza jurídica da concessão de serviços públicos, parece não haver dúvidas de que se trata de um contrato claramente administrativo.
O DL nº 194/2009, de 20.8, estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, logo prevendo no respetivo preâmbulo que: “As actividades de abastecimento público de água às populações, de saneamento de águas residuais urbanas e de gestão de resíduos urbanos constituem serviços públicos de carácter estrutural, essenciais ao bem-estar geral, à saúde pública e à segurança colectiva das populações, às actividades económicas e à protecção do ambiente. Estes serviços devem pautar-se por princípios de universalidade no acesso, de continuidade e qualidade de serviço e de eficiência e equidade dos tarifários aplicados.
O actual regime de abastecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos assenta na dicotomia entre sistemas municipais, situados na esfera dos municípios, onde se incluem também os sistemas intermunicipais, e sistemas multimunicipais, situados na esfera do Estado.
No quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais, os municípios encontram-se incumbidos de assegurar a provisão de serviços municipais de abastecimento de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, nos termos previstos na Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, sem prejuízo da possibilidade de criação de sistemas multimunicipais, de titularidade estatal. (…)”.
Tal significa, assim, que na prestação do serviço de fornecimento de água, na sua área de concessão, a ora A. prossegue inequivocamente fins de interesse público, estando para o efeito munida dos poderes de autoridade conferidos pelo citado DL nº 194/2009 e pela Lei nº 159/99 (entretanto revogada pela Lei nº 75/2013, de 12.), cabendo-lhe, por essa via, impor os tarifários correspondentes, aplicar taxas e coimas (cfr. arts. 43, 61 e 73 do DL nº 194/2009).
Assim, e embora entidade privada, a A. exerce determinadas funções de interesse público – considerados no preâmbulo do DL nº 194/2009 como serviços públicos de carácter estrutural – que lhe foram confiadas, contratualmente, pelo município, e que não perderam a sua natureza nem podem ser desempenhadas por qualquer entidade, não tendo a A. liberdade contratual, possibilidade de escolher os clientes ou decidir livremente cessar a prestação de tais serviços.
As relações concessionário/utente, ainda que inseridas no âmbito dos contratos de consumo, não podem ser tidas como relações de puro direito privado, uma vez que muitas das disposições que fixam as regras de prestação dos serviços aos utentes (e que podem assumir natureza legal ou regulamentar) são de direito público([3]). Conclui-se, no entanto, no estudo acima citado, que as relações entre utente do serviço e concessionária assumem uma natureza mista, pelo que “A prestação dos serviços públicos, especificamente quando concessionados, fica, assim, regida em parte por um estatuto de regulamentação pública; mas só se penetra na incidência desse estatuto mediante a celebração de um contrato de prestação de serviços entre dois particulares (utente e concessionário), que será de natureza civil em todos os aspectos que não contrariem a situação estatutária”([4]).
Aqui chegados, insistimos que na definição da competência material do tribunal há que atender aos termos da causa, à relação controvertida tal como é configurada pelo demandante, ao fundamento e à pretensão deduzida.
No caso, a A., enquanto concessionária do serviço público municipal de abastecimento de água e drenagem de águas residuais domésticas, pretende cobrar do Condomínio R., no âmbito de contrato celebrado entre ambos, o pagamento do fornecimento de água para o serviço de incêndio do prédio do R..
Considerando o pedido formulado, de simples cobrança de dívida de âmbito privado, mas também a necessidade de ponderar sobre o fornecimento do serviço em questão e os valores cobrados envolvidos, o que inevitavelmente conduz à interpretação de normas de interesse público – designadamente por estarem em causa tarifas, taxas ou encargos como exigências impostas autoritariamente em contrapartida do serviço público prestado, matéria regulada por normas de direito público tributário – orientou-se a jurisprudência largamente maioritária no sentido da competência para conhecer de tais litígios caber aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal([5])([6]).
Essa mesma posição foi seguida por este coletivo no Acordão de 23.5.2017, Proc. nº 4341/14.1TBCSC-A.L1 (não publicado).
Em todo o caso, a recente alteração introduzida no art. 4 do ETAF a que se alude no recurso veio, em nosso entender, impor sobre o tema uma nova abordagem.
Assim, a Lei nº 114/2019, de 12.9, que entrou em vigor em 11.11.2019, veio aditar uma nova al. e) ao nº 4 do referido art. 4 do ETAF, estabelecendo que estão, além do mais, excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.”
Já na Exposição de Motivos que acompanhou o Projeto de Lei nº 167/XIII que deu origem à referida Lei nº 114/2019 consta o seguinte: “(…) Cumpre realçar também as alterações propostas para o âmbito da jurisdição e da competência dos tribunais administrativos e fiscais.
A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.(…).”
Por conseguinte, parece evidente de que, com a entrada em vigor desta Lei, e por força da nova al. e) do nº 4 do art. 4 do ETAF, os tribunais administrativos e fiscais não têm competência para as ações que, como a presente, se destinem a apreciar “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
Cumpre, de facto, reiterar que na definição da competência material do tribunal deve atender-se aos termos em que a ação é proposta, à relação controvertida tal como é configurada na petição inicial, ao pedido e à causa de pedir, e a A. reclama do Condomínio R. o pagamento de uma fatura respeitante ao fornecimento de água e drenagem de águas residuais ao prédio sito na Praceta Pedro Reinel, 32, Edif. Mar Norte, Serviço Incêndio, Alto da Pampilheira, Cascais, o que respeitará a um verdadeiro litígio de consumo.
Por sua vez, o art. 38 da LOSJ, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26.8, dispõe que: “1. A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.
2 - São igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.”
Não havendo dúvida de que, quando a presente ação foi instaurada, em 17.5.2019, era inteiramente defensável a tese maioritária acima indicada e que antes sustentámos, é também certo que, quando a contestação foi apresentada nos autos, em 25.11.2019, já se encontrava em vigor a mais recente versão do art. 4 do ETAF (introduzida pela Lei nº 114/2019, de 12.9), com o expresso afastamento, na al. e) do seu nº 4, da competência dos tribunais administrativos e fiscais para apreciar “litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
Tendo especialmente em conta os motivos determinantes da alteração legislativa em apreço que atrás transcrevemos, será, por isso, de considerar o regime de exceção previsto no nº 2 do aludido art. 38 da LOSJ, conjugado com os arts. 211, nº 1, e 212, nº 3, da C.R.P., e afastar aqui a regra geral de que o tribunal competente é determinado pela data da propositura da ação, passando a ter em conta o disposto na atual al. e) do nº 4 do art. 4 do ETAF([7]).
De resto, razões de manifesta ordem lógica e pragmática o determinam, como bem ilustrava Alberto dos Reis a propósito de idêntica norma reguladora da competência e do tema da incompetência absoluta (como é também recordado no Ac. da RL de 8.10.2020 citado em rodapé)([8]): “Propôs-se uma ação no tribunal comum, incompetente para ela, em razão da matéria, nesse momento; veio uma lei nova sujeitar ao foro comum as ações da natureza daquela de que se trata. Sendo este o estado de direito no momento em que a exceção de incompetência tem de ser julgada, quid juris?
A exceção não pode proceder. Veja-se o que sucederia se o tribunal comum fosse julgado incompetente. Absolvido o réu da instância, o autor teria de propor outra ação; e havia de propô-la necessariamente no tribunal comum, pois era esse o tribunal competente segundo a lei em vigor à data da proposição da nova ação. Seria absurdo que se declarasse incompetente o tribunal comum para, a seguir, o autor ter de propor nova ação perante o tribunal comum.(…).”
Deste modo, e tendo em vista no caso sub judice – como não pode deixar de ser – o disposto na nova al. e) do nº 4 do art. 4 do ETAF, introduzida pela Lei nº 114/2019, de 12.9, forçoso é concluir pela competência dos tribunais comuns para a apreciação da presente lide e pela improcedência da exceção dilatória deduzida, não podendo manter-se o decidido.
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IV- Decisão:
Termos em que e face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em, julgando procedente a apelação, revogar a sentença recorrida e julgar o Tribunal a quo materialmente competente para conhecer da presente causa, improcedendo a exceção arguida.
Custas pelo apelado/R., em sentido estrito (isto é, na vertente de custas de parte – art. 529, nº 1, do C.P.C.).
Notifique.
*
Lisboa, 24.11.2020
Maria da Conceição Saavedra
Cristina Coelho           
Luís Filipe Pires de Sousa
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[1] Cfr. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Almedina, 2018, Vol. I, págs. 124/125.
[2] Cfr. Joana Catarina Neto dos Anjos, “Litígios entre as Concessionárias do Serviço Público de Abastecimento de Água e os Consumidores – Questão da Jurisdição Competente”, pág. 15, estudo publicado em www.fd.uc.pt/cedipre/publicacoes/online_24.pdf, pelo CEDIPRE, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Setembro de 2014.
[3] Ainda Joana Catarina Neto dos Anjos, ob. cit., pág. 25.
[4] Ob. cit., pág. 25.
[5] Cfr., entre outros, os Acórdãos do Tribunal dos Conflitos de 9.11.2010 (Conflito n° 017/20), de 18.12.2013 (Conflitos nºs 038/13 e 053/13), de 25.6.2013 (Conflito nº 033/13), de 29.1.2014 (Conflito nº 061/13), de 25.11.2014 (Conflito nº 040/14), de 9.7.2015 (Conflito nº 07/15), de 19.1.2017 (Conflito nº 014/16), e, mais recentemente, de 7.11.2019 (Conflito nº 021/19), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Idêntica posição foi seguida, designadamente, nos Acs. do STA de 28.10.2015, Proc. 0125/14, e de 4.11.2015, Proc. 0177/14, no Ac. do STJ de 12.10.2010, Proc. 1984/09.9TBPDL.L1.S1, nos Acs. da RP de 13.9.2016, Proc. 85567/15.2YIPRT.P1, e de 10.1.2017, Proc. 106973/15.5YIPRT.P1, no Ac. da RL de 12.10.2017, Proc. 55099-16.8YIPRT.L1-6, e nos Acs. da RG de 25.9.2012, Proc. 100536/08.9YIPRT.G1 e de 25.9.2014, Proc. 657/10.4TBFAF.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[7] Neste sentido, ver o recente Ac. da RL de 8.10.2020, Proc. 40700/19.0YIPRT.L1-8, que quanto a este entendimento seguimos de perto.
[8] In “Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 1º, 2ª ed., pág. 117.