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REALIZAÇÃO DE PERÍCIA
PAGAMENTO DE ENCARGOS
PRINCÍPIO INQUISITÓRIO
PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO
Sumário
I- Por decorrência do princípio do inquisitório, consagrado na lei processual civil, o juiz tem a iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para o apuramento da verdade. II - O princípio da cooperação deve ser conjugado com o princípio da auto-responsabilidade das partes, que não comporta o suprimento por iniciativa do juiz da omissão de articulação de factos estruturantes da causa no momento processualmente adequado. III- Assim, a amplitude de poderes/deveres decorrentes do principio do inquisitório não significa que o juiz tenha a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa, pois que, associada a ela está a responsabilidade das partes, sobre as quais a lei faz recair ónus, inclusive no domínio probatório, que se repercutem em vantagens ou desvantagens para as mesmas e que, por isso, aquelas têm interesse directo em cumprir. IV- Por consequência, neste contexto, a investigação oficiosa não deve ser exercida com a finalidade da parte poder contornar a preclusão processual decorrente da sua inércia, uma vez que o exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste.
Texto Integral
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
I – RELATÓRIO.
Recorrente: “Município de X”.
Recorrido: A. V. e esposa M. J..
Tribunal Judicial da Comarca de Bragança – Juízo Central Cível e Criminal de Bragança, J1.
Nestes autos de oposição à execução, mediante embargos de executado, o executado/embargante “Município de X” requerer a realização de perícia.
Por a perícia não se afigurar impertinente ou dilatória, o tribunal ouviu a parte contrária – exequentes/embargados – sobre o objeto proposto, facultando-lhe a possibilidade de a ele aderir ou de propor a sua ampliação ou restrição, isto nos termos do disposto no art. 476, n.º2 do Código de Processo Civil.
Pronunciaram-se os exequentes/embargados.
Foi determinada a realização da perícia.
No prazo estabelecido para o efeito o executado/embargante não pagou os encargos com a perícia.
E assim sendo, veio requerer que o tribunal lhe conceda novo prazo para esse efeito. Por despacho proferido nos autos foi indeferida a pretensão da embargante e, consequentemente, a realização da perícia.
Inconformada com tal decisão, apela a Embargante, e, pugnando pela respectiva revogação, formula nas suas alegações as seguintes conclusões: 1ª. Por douta decisão proferida em 31-10-2019, na Audiência Prévia, o Ilustre Tribunal à quo considerou pela aplicação ao presente processo do regime legal previsto no NCPC e, em consequência, determinou que ”DA INSTRUÇÃO DO PROCESSO: Ao abrigo do disposto no art. 5, n.º4 da Lei n.º41/2013, de 26 de Junho, aplicável com as necessárias adaptações a este apenso declarativo da execução, notifique as partes para, no prazo de 15 dias, apresentarem os seus requerimentos probatórios ou alterarem os que hajam apresentado.” 2ª. O recorrente apresentou os seus meios de prova em 14-11-2019, tendo requerido também a realização de prova pericial (cfr. alínea e), a incidir sobre “o prédio rústico sito em “ … “, freguesia e concelho de X, inscrito na respectiva matriz predial sob o artº … e descrito na CR Predial de X sob o nº …”, tendo formulado os respetivos quesitos. 3ª. Por douto despacho de 3-2-2020, o Ilustre Tribunal recorrido determinou que (sublinhado nosso) “Por se considerar tal diligência relevante para a descoberta da verdade material (e não impertinente ou dilatória), no deferimento do requerido pelo executado/embargante, ao abrigo do disposto nos artigos 467, n.º1 e 476, n.º2 do Código de Processo Civil, determina-se a realização de uma perícia singular com o objeto indicado pelo executado/embargante a fls. 275/276, que aqui se dá por integralmente reproduzido.” 4ª. Tendo desta forma considerado, de forma inequívoca, que a perícia em causa constituía diligência relevante para a descoberta da verdade material e para a justa composição do litígio. 5ª. Em sequência, com data de expedição de 5-2-2020, o mandatário do oponente (aqui também subscritor) foi notificado da respetiva guia para pagamento antecipado de encargos com tal perícia, a pagar até 20-02-2020, que remeteu logo em 6-2-2020 para o oponente, via correio eletrónico – cfr. doc. 1, que se junta 6ª. Por lapso dos serviços da contabilidade da respetiva Câmara Municipal, tal pagamento não foi efetuado até àquele dia 20-2-2020. O oponente só se apercebeu de tal falta em 9-3-2020, tendo apresentado nesse mesmo dia requerimento a invocar tal lapso daqueles serviços, manifestar a continuação de interesse na realização da perícia, e requerer a relevação da falta e a emissão de nova guia para efetuar o imediato pagamento dos encargos com a perícia. 7ª. Por douto despacho de 26-6-2020 e invocando o disposto nos artºs 20º, nº 1 e 23º, nºs 1 e 2, do Regulamento das custas Processuais, o Meritíssimo Juiz do tribunal recorrido decidiu então “Indeferir o requerido pelo executado/embargante; e, Pela não realização da perícia ordenada a fls. 284 e ss. dos autos, nos termos do disposto no art. 23, n.º1 do Regulamento das Custas Processuais”. 8ª. Salvo o devido respeito, o recorrente não se conforma com tal douto entendimento. É que, nos termos do artº 411º, do NCPC, que consagra o princípio do inquisitório “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”, poder-dever este que, salvo melhor opinião, tem também consagração no artº 6º, nº 1, do NCPC. 9ª. Neste pressuposto, tendo o douto despacho de 3-2-2020 (cfr. conclusão 3ª) determinado a realização da perícia singular (com o objeto indicado pelo executado/embargante a fls. 275/276) pelo facto de considerar que a mesma constituía diligência relevante para a descoberta da verdade material (e não impertinente ou dilatória), e incumbindo ao Tribunal a quo “realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio”, tal perícia não podia deixar de ser oficiosamente ordenada, tendo em vista este mesmo desiderato. 10ª. Pelo que, sempre com o muito devido respeito, impõe-se a revogação do douto despacho que decidiu pela não realização da perícia ordenada a fls. 284 e ss. Dos autos, por violação dos artºs 411º e 6º, nº 1, do NCPC. 11ª. Devendo tal perícia ser agora oficiosamente determinada.
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O Apelado apresentou contra-alegações concluindo pela improcedência da apelação.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II- Do objecto do recurso.
Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, a questão decidenda é, no caso, a seguinte: - Analisar da aplicabilidade ou não na presente situação do principio do inquisitório, ou seja, do exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
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III- FUNDAMENTAÇÃO.
Além do que consta do relatório da presente decisão e com relevância para a decisão da causa, da decisão recorrida constam, designadamente, os seguintes fundamentos de facto e de direito: (…)
Cumpre apreciar e decidir.
Os encargos com a perícia são pagos pela requerente ou interessada, imediatamente ou no prazo de 10 dias a contar da notificação do despacho que ordene a diligência, é o que resulta do art. 20, n.º1 do Regulamento das Custas Processuais. O não pagamento dos encargos nos termos fixados no art. 20, n.º1 do Regulamento das Custas Processuais, implica a não realização da diligência requerida, como decorre do n.º1 do art. 23.º do mesmo diploma legal. Todavia, a parte que não efetuou o pagamento pontual dos encargos pode, se ainda for oportuno, realizá-lo nos cinco dias posteriores ao termo do prazo previsto no art. 20, n.º1 do Regulamento das Custas Processuais, mediante o pagamento de uma sanção de igual valor ao montante em falta, com o limite máximo de 3 UC. Tal hipótese acha-se legalmente consagrada no art. 23, n.º2 do Regulamento das Custas Processuais. Ademais, à parte contrária é permitido pagar o encargo que a outra não realizou, devendo, para tanto, solicitar guias para o depósito imediato nos cinco dias posterior ao termo do prazo estipulado no n.º2 do art. 23.º do Regulamento das Custas Processuais. Trata-se de hipótese legal prevista no n.º3 do art.23.º do Regulamento das Custas Processuais. In casu, como a perícia foi requerida pelo executado/embargante e a parte contrária a ela não aderiu, era o executado/embargante, como requerente e parte interessada na sua realização, o responsável pelo pagamento dos encargos com tal perícia, como decorre do disposto no art. 20, n.º1 do Regulamento das Custas Processuais. E, de acordo com esse mesmo normativo, o executado/embargante teria de proceder ao pagamento dos encargos com a perícia imediatamente ou no prazo de 10 dias a contar da notificação do despacho que ordene a diligência. Não o fez. Ou seja, não procedeu ao pagamento pontual dos encargos com a perícia. Apesar de não o ter feito, o executado/embargante gozou, ainda, da faculdade legalmente prevista no art. 23, n.º2 do Regulamento das Custas Processuais, isto é, da possibilidade de liquidar os encargos com a perícia nos cinco dias posterior ao termo do prazo consagrado no art. 20, n.º1 do Regulamento das Custas Processuais, mediante o pagamento de uma sanção de igual valor ao montante em falta, com o limite máximo de 3 UC. Todavia, o executado/embargante não usou dessa faculdade legal, ou seja, não liquidou os encargos com a perícia, acrescidos da sanção pelo não pagamento pontual, no prazo previsto no art. 23, n.º2 do Regulamento das Custas Processuais. Nessa conformidade, não tendo o executado/embargante pago os encargos da perícia nos termos e momentos legalmente previstos nos artigos 20, n.º1 e 23, n.º2 do Regulamento das Custas Processuais, opera a consequência legalmente prevista para tal inadimplemento, isto é, a consagrada no art. 23, n.º1 do Regulamento das Custas Processuais, não assistindo ao executado/embargante, nos termos da lei, o direito a beneficiar de um novo prazo e de uma nova possibilidade para liquidar os encargos com a perícia, diga-se, da sua inteira responsabilidade. Acresce que não colhe como justo impedimento (que aliás não é invocado) para a não prática atempada do ato o alegado e não comprovado lapso dos serviços de contabilidade do exequente/embargante, tanto assim que o exequente/embargado é responsável pelos atos e omissões dos seus serviços, designadamente dos serviços de contabilidade.
Pelo exposto, decide-se: - Indeferir o requerido pelo executado/embargante; e, - Pela não realização da perícia ordenada a fls. 284 e ss. dos autos, nos termos do disposto no art. 23, n.º1 do Regulamento das Custas Processuais. (…)
Fundamentação de direito.
Como fundamento da sua pretensão recursória alega o Recorrente que, por despacho de 26-6-2020 e invocando o disposto nos artºs 20º, nº 1 e 23º, nºs 1 e 2, do Regulamento das custas Processuais, o Juiz do tribunal recorrido decidiu então “Indeferir o requerido pelo executado/embargante, e, pela não realização da perícia ordenada a fls. 284 e ss. dos autos, nos termos do disposto no art. 23, n.º1 do Regulamento das Custas Processuais.
Sucede, ni entanto que, por despacho de 3-2-2020, o Tribunal recorrido determinou que “Por se considerar tal diligência relevante para a descoberta da verdade material (e não impertinente ou dilatória), no deferimento do requerido pelo executado/embargante, ao abrigo do disposto nos artigos 467, n.º1 e 476, n.º2 do Código de Processo Civil, determina-se a realização de uma perícia singular com o objeto indicado pelo executado/embargante a fls. 275/276, que aqui se dá por integralmente reproduzido”, tendo desta forma considerado, de forma inequívoca, que a perícia em causa constituía diligência relevante para a descoberta da verdade material e para a justa composição do litígio.
Em sequência, com data de expedição de 5-2-2020, o mandatário do oponente (aqui também subscritor) foi notificado da respectiva guia para pagamento antecipado de encargos com tal perícia, a pagar até 20-02-2020, que remeteu logo em 6-2-2020 para o oponente, via correio electrónico – cfr. doc. 1, que se junta
Por lapso dos serviços da contabilidade da respetiva Câmara Municipal, não foi efectuado o pagamento antecipado de encargos com tal perícia, a pagar até 20-02-2020, sendo que, o Recorrente só se apercebeu de tal falta em 9-3-2020, tendo apresentado nesse mesmo dia requerimento a invocar tal lapso daqueles serviços, manifestar a continuação de interesse na realização da perícia, e requerer a relevação da falta e a emissão de nova guia para efectuar o imediato pagamento dos encargos com a perícia.
Ora, é entendimento do Recorrente o de que, consagrando o artº 411º, do NCPC, o princípio do inquisitório, nos termos do qual “Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”, poder-dever este que tem também consagração no artº 6º, nº 1, do NCPC, tendo determinado a realização da perícia singular pelo facto de considerar que a mesma constituía diligência relevante para a descoberta da verdade material, incumbia ao Tribunal a quo “realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio”, pelo que, tal perícia não podia deixar de ser oficiosamente ordenada, tendo em vista este mesmo desiderato.
Sendo estes os fundamentos em que se alicerça a presente apelação com expressa invocação do principio do inquisitório afigura-se-nos pertinente sobre ele tecer algumas considerações em ordem à determinação do seu objecto e amplitude.
Como é consabido, o princípio do dispositivo é aquele que se afirma por oposição ao princípio do inquisitório ou da oficialidade.
Enquanto no primeiro, o que é decisivo, é a vontade das partes, no segundo, o que releva no processo é a vontade do juiz.
O princípio do dispositivo identifica-se essencialmente em três vectores fundamentais, e que são os seguintes:
- As partes determinam o início do processo. É o princípio do pedido, cabendo às partes o impulso inicial do processo, expressamente consagrado no art. 3º do CPC;
- As partes têm a disponibilidade do objecto do processo;
- As partes têm a disponibilidade do termo do processo, podendo prevenir a decisão por compromisso arbitral, desistência, confissão ou transacção.
Todavia, dada a natureza pública do processo civil, os interesses públicos inerentes á administração da justiça e ao funcionamento das instituições judiciárias, o interesse de protecção de partes mais fracas, expostas a eventuais notórias desigualdades de recursos, o interesse da prevalência da justiça substantiva sobre a justiça adjectiva, muitas correcções vêm sendo introduzidas ao funcionamento do princípio dispositivo.
Como se refere na exposição de motivos do novo Código de Processo Civil, deu-se prevalência ao “princípio da prevalência do mérito sobre meras questões de forma” que, “em conjugação com o assinalado reforço dos poderes de direcção, agilização, adequação e gestão processual do juiz”deve conduzir a que toda a actividade processual seja orientada para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou a substância sobre a forma, cabendo suprir-se o erro na qualificação pela parte do meio processual utilizado e evitar deficiências ou irregularidades puramente adjectivas que impeçam a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais.
Assim, em diversas oportunidades, o juiz, à luz desse princípio do inquisitório, vê ampliados os termos da sua intervenção.
Assim, restabelecendo o equilíbrio entre os princípios do dispositivo e do inquisitório no que respeita ao domínio da factualidade em discussão na causa, prescreve-se no artigo 5.º, sob a epígrafe “Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal”, o seguinte:
- Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas. - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções. - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”
E é também neste contexto que se entende o disposto no artigo 6.º, do C.P.C., no qual se consagra, à luz do princípio do inquisitório e da oficialidade, um Dever de Gestão Processual, aí se prescrevendo, designadamente, que cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
Acresce que, ainda por decorrência do princípio do inquisitório, como se refere no acórdão da Relação do Porto, de 06/06/2013, “Sabendo-se que as regras do ónus da prova apenas determinam a parte contra a qual, havendo dúvidas quanto à demonstração de um determinado facto, o tribunal deve decidir, e não propriamente que a demonstração do facto só possa ser feita por essa parte, antes de discutir a quem cabe o ónus da prova do prejuízo para os credores, deve verificar-se se os autos revelam ou não a existência desse prejuízo, já que só na falta deste se coloca a questão de quem tinha o ónus de o demonstrar”. (1) Logo, por via desta norma o tribunal não está dependente da alegação das partes e pode servir-se perfeitamente de factos que não hajam sido alegados por estas e resultem apenas da instrução do processo e dos seus incidentes.
Outra dessas situações verifica-se, precisamente, a propósito da instrução do processo, prescrevendo-se no artigo 411º, sob a epígrafe, “Princípio do Inquisitório”, que“Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”
Por outro lado, de harmonia com o disposto no artigo 436, do C.P.C., “Incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objectos ou documentos necessários ao esclarecimento da verdade”.
Aliás, será mesmo pertinente referir que, ainda antes da reforma do C.P.C. de 1996, e, portanto, antes da reforma processual introduzida que veio reforçar o princípio do inquisitório, já então se discutia se o juiz podia ou não ordenar o depoimento de parte, havendo-se pronunciado em sentido afirmativo, dentre outros, o Prof. Castro Mendes, baseando-se no que, então, dispunham os artºs. 264º, nº 3, que reconhecia ao juiz o poder de ordenar oficiosamente as diligências que considerasse necessárias para o apuramento da verdade, quanto aos factos de que lhe era lícito conhecer, e 265º, que impunha às partes o dever de comparecer (perante o juiz) sempre que, para tanto, fossem notificados e o dever de prestar os esclarecimentos que lhes fossem pedidos.
O Ac. do S.T.J., de 26/10/1999, considerando inovador aquele preceito legal - já que não reconhecia, face à redacção anterior à reforma, o poder de iniciativa do juiz de tomar, oficiosamente, depoimento à parte -, restringe-o à obtenção da confissão – “obter da parte que o presta o reconhecimento de factos que lhe sejam desfavoráveis e favoreçam a parte contrária”, recusando ao juiz o poder de, por sua iniciativa “tomar depoimento de parte sobre factos que sejam exclusivamente favoráveis à parte que os presta”.
Todavia, após a reforma introduzida que levou à publicação do novo C.P.C., o princípio do inquisitório está, no domínio da prova dos factos, muito mais revigorado que antes, tendo agora o juiz o poder-dever de aferir da veracidade dos factos, na busca da verdade material.
Com efeito, e como se disse, consagra o artº. 411º., do C.P.C., o princípio do inquisitório, impondo ao juiz o dever de realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer – isto é, os factos instrumentais, ainda que não alegados pelas partes, nos termos do nº. 2 al a), do artº. 5º., do C.P.C., e os factos essenciais que sejam complemento ou concretização de outros que as partes hajam alegado, verificados os pressupostos referidos no nº. 2, al. b), do mesmo preceito legal.
Daqui, e sem mais, inequivocamente se infere que, se o tiver considerado pertinente e fundado para a realização da prova dos aludidos factos que lhe é lícito conhecer, nada obsta a que o Juiz determine a produção de qualquer prova, pondo-se, assim, em evidência, o princípio geral da descoberta da verdade material, que sobressai do disposto nos citados artigo 411 e 436, do CPC, que, como se disse, permite ao Juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Ora, parece-nos de todo evidente que os poderes que princípio do inquisitório, consagrado no art. 411 do CPC, confere ao juiz são para serem usados de forma directa pelo juiz, e não para suprir falhas das partes.
Ordenar as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, não é admitir diligência probatórias que já não podem ser requeridas e nem o art. 411 do CPC existe para possibilitar ao juiz que, objectivamente, auxilie uma das partes, prejudicando a outra, permitindo àquela introduzir quaisquer meios probatórios quando já não o podia fazer, por não o ter feito atempadamente.
É certo que, como é consabido, “o princípio do inquisitório, a operar no domínio da instrução do processo, consagrado no art. 411º, do CPC, é um poder vinculado que impõe ao juiz, o dever jurídico de determinar, oficiosamente, as diligências probatórias complementares necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, independentemente, pois, de solicitação das partes” e “não se excluem, para o despoletar, alertas, sugestões e, mesmo, requerimentos, a apresentar pela parte nelas interessadas, tendo, cada uma delas o direito de influenciar o Tribunal em busca de decisão, a si, favorável”, sendo que “A inobservância do inquisitório, a gerar nulidade processual, nos termos gerais do nº1, do art. 195º, do CPC - porquanto consiste na omissão de um ato que a lei prescreve e a irregularidade cometida pode influir no exame ou na decisão da causa –, pode, validamente, ser suscitada no recurso da decisão interlocutória de não audição, apelação autónoma e imediata da decisão de rejeição de meio de prova (al. d), do nº2, do art. 644º, do CPC)”.
Todavia, como se refere no Acórdão da Relação de Guimarães de 23/05%2019, “O princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever limitado, restringindo-se, em matéria probatória, na busca pelas provas dentro dos factos alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade”.
Por sua vez, “o princípio da cooperação deve ser conjugado com o princípio da auto-responsabilidade das partes, que não comporta o suprimento por iniciativa do juiz da omissão de articulação de factos estruturantes da causa no momento processualmente adequado”. O art.º 423º, nº1, do C.P.C., consagra o princípio geral de proposição dos meios de prova, constituendos e pré-constituídos, com os articulados, ao dispor que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes. Na indagação da impossibilidade da prévia apresentação, a terminologia usada nos art.º 423º, n.º 3 e 425º é “não ter sido possível”, implicando que o fundamento haja de ser apreciado segundo critérios objectivos e de acordo com padrões de normal diligência, isto é, a diligência de um bom de família em face das circunstâncias do caso (art.º 487, nº2, do Código Civil). A inquirição por iniciativa do tribunal constitui um poder-dever complementar de investigação oficiosa dos factos, e não uma forma de suprimento oficioso de comportamentos negligentes das partes” (2).
Na verdade, explanando e desenvolvendo estas conclusões, refere-se ainda na fundamentação deste Aresto, “o processo é constituído por uma série de actos dirigidos a um fim - a decisão judicial que resolve o conflito entre as partes -, devendo obedecer a formas e requisitos adequados a esse escopo. Sem regras o processo fica sujeito à indisciplina das partes e cria insegurança, e presta-se a manobras que prejudiquem a obtenção da decisão em tempo razoável e útil. Tem, portanto, o processo exigências técnicas, designadamente sujeitando as partes a um tecido de ónus necessários à boa administração da justiça (3). Um dos princípios do processo civil é precisamente o da auto-responsabilidade das partes, segundo o qual estas sofrem as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência ou inépcia na condução do processo, que fazem a seu próprio risco. O princípio do inquisitório traduz uma ideia de divisão subordinada de trabalhos, dominante em matéria probatória, entre o juiz e as partes (estas num primeiro plano). Recebeu consagração legal no art. 411.º ao dispor que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer. O princípio do inquisitório exerce actualmente, é certo, um importante papel no processo civil português mas, a nosso ver, funciona subordinado ao princípio do dispositivo, parecendo-nos excessiva a sua configuração como um sistema processual híbrido, que se coaduna em par em torno dos dois princípios (4). O nosso sistema processual civil é norteado pelo princípio do dispositivo, competindo-lhe o “monopólio” dos factos e dos meios de prova. Como escreve Mariana França Gouveia esteirada nos ensinamentos dos mais ilustres processualistas, “O princípio dispositivo é a tradução processual do princípio constitucional do direito à propriedade privada e da autonomia da vontade. Subjacente ao processo civil está um litígio de direito privado, em regra disponível, pelo que são as partes que têm o exclusivo interesse na sua propositura em tribunal. O interesse público, neste âmbito, limita-se à correta aplicação do seu Direito para que haja segurança e paz nas relações privadas. Assim, o exato limite da intervenção estadual é fixado pelas partes que não só têm a exclusiva iniciativa de propor a ação (e de se defender), como delimitam o seu objeto. O princípio dispositivo traduz-se, assim, na liberdade das partes de decisão sobre a propositura da ação, sobre os exatos limites do seu objeto (tanto quanto à causa de pedir e pedidos, como quanto às exceções perentórias) e sobre o termo do processo (na medida em que podem transacionar). No fundo, é um princípio que estabelece os limites de decisão do juiz — aquilo que, dentro do âmbito de disponibilidade das partes, estas lhe pediram que decidisse. Só dentro desta limitação se admite a decisão.” Compreende-se, assim, por que o princípio do inquisitório deve ser interpretado como um poder-dever limitado, restringindo-se, em matéria probatória, na busca pelas provas dentro dos factos alegados pelas partes (factos essenciais), com vista à justa composição do litígio e ao apuramento da verdade. Não pode o juiz ao abrigo do inquisitório e da cooperação suprir o incumprimento de formalidades essenciais pelas partes, permitir o atropelo de normas legais e nem pode, obviamente, determinar oficiosamente a junção de documentos cuja junção já foi indeferida. Não pode o interessado afastar, fazendo apelo a princípios gerais de condução processual, regras básicas que contendem com a certeza e segurança jurídicas, como é o do caso julgado. Por outro lado, como bem se expressou na sentença recorrida, o disposto no artigo 411º do CPC não descaracteriza, nem invalida, o princípio base do processo civil que é o do impulso processual, competindo às partes em toda a sua extensão, nomeadamente no tocante à indicação e realização oportuna das diligências probatórias. Em suma, o exercício do dever de diligenciar pelo apuramento da verdade e justa composição do litígio, não comporta uma amplitude tal que o autorizem a colidir quer com o princípio da legalidade e da tipicidade que comanda toda a tramitação processual, quer com outros princípios fundamentais como o do dispositivo, da auto-responsabilidade das partes e o da preclusão, importando este que, ao longo do processo, as partes estão sujeitas, entre outros ónus, ao de praticar os actos dentro de determinados prazos peremptórios.
Assim, e concluído, como igualmente se refere nesse mesmo Acórdão “como salienta Lopes do Rego “O exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste - não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes. A inquirição por iniciativa do tribunal constitui um poder-dever complementar de investigação oficiosa dos factos, que pressupõe, no mínimo, que foram indicadas provas cuja produção implica a realização de uma audiência (…)” (5).
No mesmo sentido, Nuno Lemos Jorge defende que se a necessidade de promoção de diligências probatórias pelo juiz “não for patentemente justificada pelos elementos constantes dos autos, a promoção de qualquer outra diligência resultará, apenas, da vontade da parte nesse sentido, a qual, não se tendo traduzido pela forma e no momento processualmente adequados, não deverá agora ser substituída pela vontade do juiz, como se de um seu sucedâneo se tratasse” (5). Afigura-se-nos claro que o juiz não se encontra obrigado a proceder à inquirição de uma testemunha só porque a parte, que não a indicou oportunamente, invoca a importância daquela inquirição para a descoberta da verdade. A não se entender assim, como se adverte no aresto desta Relação de 4.3.2013 (Proc. 293/12.0TBVCT-J.G.l) (7), perdia sentido a obrigação de apresentação da prova em momentos processuais determinados, pois restaria sempre à parte a possibilidade de invocar esta norma do art. 526º, do C.P.C. “ (…) “Daí que, o poder-dever de ordenar a notificação oficiosa de pessoas, não oferecidas como testemunhas, se circunscreva às situações em que haja razões para presumir que têm conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, não podendo configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos negligentes das partes, que conduziria à subversão das regras processuais relativas à indicação e produção das provas e violação da igualdade das partes”.
Destarte e concluindo, de acordo com o princípio do inquisitório, consagrado na lei processual civil, o juiz tem a iniciativa da prova, podendo realizar e ordenar oficiosamente todas as diligências necessárias para o apuramento da verdade.
Todavia, esta amplitude de poderes/deveres, no entanto, não significa que o juiz tenha a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa, pois que, associada a ela está a responsabilidade das partes, sobre as quais a lei faz recair ónus, inclusive no domínio probatório, que se repercute em vantagens ou desvantagens para as mesmas e que, por isso, aquelas têm interesse directo em cumprir, sendo que, neste contexto, a investigação oficiosa não deve ser exercida com a finalidade da parte poder contornar a preclusão processual decorrente da sua inércia (8).
Ora considerado tudo o acabado de expender, na presente situação temos que, como o próprio Recorrente reconhece, com data de expedição de 5-2-2020, foi notificado da respectiva guia para pagamento antecipado de encargos com tal perícia, a pagar até 20-02-2020, sendo que, por lapso dos serviços da contabilidade da Câmara Municipal, não foi efectuado o pagamento antecipado de encargos com tal perícia, a pagar até 20-02-2020.
E assim sendo, dúvidas não podem restar que razão por que preludio o seu direito de requerer a peritagem ficou a dever-se à sua própria inércia, que, como é evidente, não pode ser suprida por decorrência do principio do inquisitório, pois, como se deixou dito, “o exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste - não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes”.
Destarte e pelo exposto, improcede a presente apelação, com a consequente manutenção da decisão recorrida.
IV- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante
Guimarães, 19/ 11/ 2020.
Relator: Jorge Alberto Martins Teixeira.
Adjuntos: Desembargador José Fernando Cardoso Amaral.
Desembargadora Helena Gomes de Melo.
Processado em computador. Revisto – artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.
1. Cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 06/06/2013, in www.dgsi.pt.
2. Cfr. Acórdão da Relação de Guimarães, de 24/05/2019, proferido no processo nº 1345/18.9T8CHV-A.G1, in www.dgsi.pt.
3. Neste sentido, o Acórdão do STJ de 12.11.2002, disponível em www.dgsi.pt.
4. Como defende Téssia Matias Correia, A Prova no Processo Civil, Reflexões sobre o problema da (in)admissibilidade da prova ilícita, Dissertação de Mestrado em Direito, na Área de Especialização de Ciências Jurídico - Civilísticas, Coimbra, 2015, pag. 62 e Francisco Almeida, Direito Processual Civil, vol. I, Almedina, Coimbra, 2010, pag. 243.
5. Comentários ao Código de Processo Civil, Almedina, pág. 425.
6. “Os poderes Instrutórios do Juiz: Alguns Problemas”, Revista Julgar, nº 3, pág. 70.
7. Disponível em www.dgsi.pt.
8. Como se pode constatar da leitura, entre outros, do Acórdão do STJ, de 28/05/2002, Processo n.º 02A1605, Ac.s RP, de 02/01/2006, Processo n.º 0613159, de 22/02/2011, Processo n.º 476/09.0TBVFR-B.P1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 04/03/2013, Processo n.º 293/12.0TBVCT-J.G1, todos consultáveis em www.dgsi.pt.