REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA
TRIBUNAL ECLESIÁSTICO
CASAMENTO CATÓLICO
NULIDADE
APOIO JUDICIÁRIO
IGUALDADE DAS PARTES
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
PRINCÍPIOS DE ORDEM PÚBLICA PORTUGUESA
TRÂNSITO EM JULGADO
INCONSTITUCIONALIDADE
CONCORDATA
DIREITO CANÓNICO
Sumário


Deve ser revista e confirmada a decisão do Tribunal Eclesiástico do ..., em que foi declarado nulo o matrimónio entre as partes, em acção intentada naquele tribunal pelo requerente, para esse efeito, (decisão na qual foi exarado por Decreto executivo de Verificação de Nulidade de Matrimónio emanado pelo Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, em 23.02.2018), tal como havia decidido o tribunal recorrido, por não ter sido violado o principio da igualdade das partes, ter havido trânsito em julgado e não serem desrespeitados os princípios da ordem pública internacional do Estado português.

Texto Integral


Proc. nº 14945/I8.8T8PRT.S1


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. AA, anteriormente, ainda à data do seu casamento, chamado de BB, casado, ao abrigo do disposto nos art.ºs 978 e seguintes do CPC, veio instaurar contra CC, casada, ACÇÃO DE REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA, proferida pelo Tribunal Eclesiástico do ..., pedindo a revisão e confirmação desta sentença.

Na 1ª instância Eclesiástica foi proferida sentença de nulidade do casamento, que obteve verificação pelo Tribunal Superior - o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, em Roma - sendo exarado o competente Decreto Executivo.

2. A requerida contestou a revisão e confirmação, indicando que, na sua opinião, esta não cumpria os requisitos formais para ser revista e confirmada, nomeadamente porque havia sido violado o princípio da igualdade das partes.

3. O MP havia sustentado equivalente objecção.

4. O TRP conheceu do pedido de revisão e confirmação, decidindo:
“Pelo exposto, julga-se procedente a pretensão do requerente e decide-se rever e confirmar a sentença, proferida em 7 de julho de 2017, pelo Tribunal Eclesiástico do ..., em que foi declarado nulo o matrimónio entre as partes, em acção intentada neste tribunal pelo requerente, para esse efeito, (decisão na qual foi exarado por Decreto executivo de Verificação de Nulidade de Matrimónio emanado pelo Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, em 23.02.2018), que produzirá todos os seus efeitos na ordem jurídica portuguesa.”

5. A requerida apresentou recurso para o STJ dessa decisão, formulando as seguintes conclusões (transcrição):

I – A Recorrente não concorda com o Acórdão recorrido uma vez que este enferma de uma incorreta aplicação da lei, nomeadamente no que diz respeito ao artigo 980.º, als. b), e) e f) do CPC.

Senão vejamos,

II – Após ter sido notificada da sentença a 16 de Fevereiro de 2018, a Recorrente no dia 26 do mesmo mês compareceu perante o Tribunal Eclesiástico do ... onde apresentou a sua intenção de apelar.

III – Ainda no mesmo dia, a Recorrente prontamente informou o Tribunal Eclesiástico da sua situação económica e da consequente necessidade de que lhe fosse nomeado um advogado e concedido apoio jurídico, tendo inclusive entregue toda a documentação que acreditava ser necessária.

IV – Perante tal situação, o Tribunal Eclesiástico do ... foi incapaz de esclarecer a Recorrente sobre como proceder corretamente ao pedido de apoio jurídico. Ao invés limitou-se a devolver os documentos no dia seguinte, juntamente com a informação de que deveria dirigir-se ao Tribunal de 2ª Instância.

V – Todavia, tal informação demonstrou-se também esta incorreta, uma vez que o Tribunal Eclesiástico de Braga se recusou a avaliar o pedido submetido pela Recorrente, remetendo-a novamente para o Tribunal do ....

VI – Não obstante toda as vicissitudes supra descritas – geradas única e exclusivamente pela incompetência do Tribunal Eclesiástico –, a Recorrente agiu sempre com a devida diligência, tendo apresentado o requerimento de apelação dentro do prazo de 15 dias úteis previsto no Cânone n.º 1630º, nº1 do CDC.

VII – De acordo com os Cânones n.º 1464 e 1640 do CDC, as questões relativas à concessão do patrocínio gratuito deveriam ter sido avaliadas antes de a Recorrente apresentar, no prazo de 30 dias, as suas motivações de recurso.

VIII – Como de outra forma não seria aceitável, sob pena de inutilidade do pedido, visto que a Recorrente necessitava do auxílio de um advogado doutor em Direito Canónico, por forma a garantir que formulava tais motivações corretamente.

IX – Tanto mais que o direito de ser acompanhada de advogado perante qualquer autoridade é um Direito Fundamental de todos os cidadãos portugueses, previsto no artigo 20º, n.º2 da CRP!

X – Ao executar a sentença, apesar dos inúmeros requerimentos apresentados pela Recorrente, quer no sentido de intentar a apelação, quer no sentido de obter apoio jurídico, o Tribunal Eclesiástico não só violou a própria leia Canónica, visto que a execução da ação se encontraria suspensa por força do Cânone n.º 1638, não havendo por isso trânsito em julgado,

XI – como agiu em desconformidade pelo princípio de igualdade das partes, que pressupõe que o Tribunal garante a ambos os intervenientes as mesmas oportunidades para o uso dos meios de defesa disponíveis.

XII – Ao invés, o Tribunal Eclesiástico acabou por beneficiar o Recorrido, que não só foi auxiliado ao longo de todo o processo por uma Advogada Doutora em Direito Canónico, como acabou por gozar da execução de uma sentença que lhe é favorável, antes mesmo do seu trânsito em julgado.

XIII – Salienta-se ainda que a Recorrente só teria de apresentar sozinha as suas motivações de recurso caso o seu pedido de apoio jurídico tivesse sido de facto avaliado, e consequentemente recusado, tendo em consideração os critérios objetivos para a sua concessão.

XIV – Todavia tal não aconteceu, uma vez que ambos os Tribunais Eclesiásticos de 1ª e 2ª instância se recusaram a fazer tal avaliação, empurrando a responsabilidade de um para o outro, até que o pedido foi simplesmente ignorado, nunca tendo existido uma verdadeira decisão sobre o mesmo.

XV – É, por isso, inadmissível, perante a inércia do Tribunal Eclesiástico, que não cumpriu com as suas funções, a Recorrente ser agora prejudicada, vendo-se não só impedida de recorrer de uma decisão com a qual não concorda, como ainda vê tal sentença ser executada e confirmada pelo Estado Português, postergando assim os seus direitos!

XVI – Posto todo o supra exposto, é latente que a confirmação da Sentença, objeto deste processo, implica que o Estado Português aceite uma decisão que ainda não transitou em julgado e que apenas foi obtida, não só em desrespeito pelo princípio da igualdade das partes,

XVII – bem como em desrespeito por um dos princípios fundamentais previsto pela CRP no que diz respeito ao acesso à Justiça pelos cidadãos portugueses, o que por sua vez consubstancia uma manifesta incompatibilidade com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

XVIII – Desta forma, a sentença proferida pelo Tribunal Eclesiástico não preenche os requisitos estabelecidos pelo artigo 980º, als. b), e) e f) do CPC, pelo que não poderá ser confirmada de forma a produzir efeitos em Portugal.

XIX – Pelo que, deverão V. Exas admitir e dar provimento ao presente recurso, alterando a decisão proferida por uma conforme ao direito, negando assim confirmação à Sentença em questão.

Nestes termos e nos demais de Direito, que Vossas Exas. doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se o acórdão recorrido, substituindo-o um novo acórdão que contemple as conclusões atrás deduzidas.

6. Foram apresentadas contra-alegações, onde se conclui (transcrição):
A - A Sentença Canónica transitou em julgado no ordenamento jurídico canónico, conforme o previsto no art.º 980.º b) do CPC.
B - A Sentença canónica não pode ser objecto de Recurso.
C - Esta Sentença transitou em virtude de no prazo peremptório, bem como no prazo excepcional concedido, a Requerida não ter tido, porque não quis, impulso processual de acordo com o que lhe foi transmitido pela instância eclesiástica.
D - A Requerida declinou ser parte activa no processo canónico de nulidade matrimonial onde foi chamada como Parte Demandada.
E - Ignorou a Sentença Canónica, reenviando-a ao Tribunal Eclesiástico do ..., meses depois da sua remessa postal à Requerida, tendo já decorrido todos os prazos, veio declarar a sua discordância da Sentença.
F - A Requerida responsabiliza o tribunal eclesiástico pela sua inércia. De acordo com os preceitos processuais canónicos ou civis a imobilidade de uma Parte não pode ser assacada aos organismos judiciários, quando o interessado pretende parar e não dar andamento à sua eventual pretensão e vir criar, posteriormente, uma tese de impedimento no prosseguimento da justiça com base na falta de um princípio qualquer, mormente o da igualdade. A isto costuma chamar-se manobra dilatória.
G - No momento próprio, prescindiu de contestar, prestar depoimento, declarando por escrito, duas vezes, não estar interessada no desenrolar deste processo conforme nem se opor aos seus fundamentos, tudo conforme documentação junta anteriormente.
H - O cânone 1650 conjugado o can. 1647 §2, resulta precisamente o contrário do que alega a Requerida, nomeadamente no seu art.º 12 da contestação. Assim, não podem ser utilizados expedientes que tenham como objectivo impedir a execução de sentença no âmbito do direito canónico.
I - A Requerida alega a violação do princípio da igualdade das Partes, porém, não pode fazer esta alegação sem que, inteiramente, comprove que não foi apoiada nem orientada da simplicidade para proceder de forma muito simples para a Apelação. Ora, esta alegação de violação, por si só, não é suficiente. Não pode arguir violação de princípios e, especialmente, do direito à igualdade só porque não quis aceitar o apoio concedido, ficando-se no entretenimento aos devaneios processuais, segundo as oportunidades judiciais concedidas.
J - Pelo que seria útil ouvir as testemunhas já arroladas pelo Requerente, por uma questão de descoberta da verdade e com vista à igualdade as Partes.
K - Além do mais, o Tribunal, mutatis mutandis, cânone 1647 §2, conforme já se referiu, prevê que “quando por indícios prováveis se suspeite que a petição foi feita para provocar a demora na execução, o juiz pode decidir que a sentença se execute.”.
L - O ideal teria sido a Requerida, lealmente, participar no processo canónico, ab initio, conforme seria de esperar de alguém que não concorda com nulidade matrimonial canónica e receie lesão daí decorrente, como seria seu dever canónico.
M – Contudo, ainda, lhe foi possibilitada hipótese de reentrar no processo onde poderia, ainda, de viva voz, declarar perante o Notário canónico toda a sua perspectiva e discordância sobre o pedido do Demandante e da Decisão proferida, que a Apelação subiria de imediato de forma muito célere.
N - Não foi, repete-se, negado o apoio jurídico, nem o acesso à justiça à Requerida, nem ferido qualquer dos seus direitos:
- Primeiro, porque poderia ter intervindo para contestar, por escrito ou oralmente, e prestar o seu depoimento em tempo útil. Não se trata de uma falha do Tribunal e dos seus deveres, mas de uma falha própria.
- A Requerida falha quando declinou a faculdade de ser interveniente activa no processo canónico.
- Depois, falha de novo, quando sonegou o conhecimento da sentença enviada a 4 de Setembro de 2017, perante o Juízo Cível, em sede de divórcio.
- E volta a falhar, quando aborda o processo canónico com uma visão distorcida, não considerando a isenção e rigor do Tribunal Canónico, para com todos, conforme é imposto pelos princípios canónicos e civis.
- E falha de novo quando considera que o Tribunal Eclesiástico não está ao serviço de todos os que lhe colocam a resolução dos seus problemas e dúvidas. - E volta a falhar em toda a linha, quando em sede de Revisão sonega que não lhe foram concedidos iguais direitos processuais, soltando mais uma novidade: a falta de igualdade de tratamento. Não está ao alcance de todos uma semelhante criatividade processual.
O – Ainda, que, por muitas vezes, que seja repetido o can. 1650, este preceito não serve procedimentos dilatórios nem qualquer tipo de má-fé.
Assim sendo,
É evidente, reitera-se, que a Requerida litiga com má-fé, conforme 542.º n.º 2 b) C.P.C.
A sentença revidenda transitou plenamente em julgado.
O tratamento dado à Demandada/Requerida, em sede de procedimento canónico, antes e após a Decisão Canónica, não restam dúvidas, pautou-se pelos mais elevados princípios de igualdade e dignidade enquanto ser humano e como parte processual.
Resta a pretensão, surreal, prometida ao Requerente, de bloquear um processo já definido canonicamente, onde é Parte a Requerida, com intuito muito esquivo de não pretender que a Sentença produza efeitos porque se considera e afirma por escrito, ao Tribunal Bracarense, não concordar com a mesma com base num preconceito próprio: «Tenho uma filha e não pretendo ser mãe solteira».
A Sentença, conforme à Lei Canónica, resolveu uma questão fraturante para ambas as Partes. Lamenta-se que a Requerida a tenha considerado um ataque pessoal à sua imagem e à sua condição de mãe. Mãe não é um estado civil. Mas, também, não é este o cerne da Sentença prudentemente proferida, pelo que não haveria espaço de reclamação. Nem a Nulidade canónica representa um conflito entre Partes, mas a resolução e restituição da verdade e justiça na vida concreta das pessoas, sustentadas pela Lei Canónica e pelos princípios exigíveis pela Lei Civil.
Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, solicita-se que, tendo em conta o aqui exposto e o exposto no decorrer dos presente Autos, bem como tendo em conta a documentação anteriormente junta, se considere e reconheça a Sentença Canónica aqui em questão, ordenando a execução da mesma, com as consequências civis inerentes, conforme peticionado.”

Colhidos os vistos, cumpre analisar e decidir.


II. Fundamentação

De facto

7. Vieram provados os seguintes factos:

A. Requerente e Requerida contraíram casamento católico em 22 de Setembro de 1990, na Igreja … - conforme documento 2, Assento de Casamento n.º …. do ano de ….da Conservatória do Registo Civil de ....

B. Do casamento existe uma filha maior, DD, nascida a …., - Assento de Nascimento n.º …. ano de 2007 da Conservatória do Registo Civil de ....

C. Por Sentença, proferida em 7 de julho de 2017, pelo Tribunal Eclesiástico do ..., foi declarado nulo o matrimónio entre as partes, em acção intentada neste tribunal pelo requerente, para esse efeito.

D. Em 23 de Fevereiro de 2018, foi esta Sentença verificada pelo órgão eclesiástico de controlo superior, o Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, em Roma, sendo exarado o competente Decreto Executivo.

E. O Requerente no itinerário processual encontrava-se representado.

F. A Requerida, enquanto Parte Demandada, foi notificada, pelo Tribunal Eclesiástico do ..., por carta registada com aviso de receção, em 22 de Janeiro de 2015, da constituição do Tribunal, dos capítulos invocados no Libelo, à qual foi enviada cópia integral do mesmo, para se pronunciar em conformidade.

G. A Requerida, notificada, com data de 10 de fevereiro de 2015, responde ao Tribunal Eclesiástico, dizendo que não tinha qualquer oposição a fazer aos assuntos referidos na Notificação.

H. A Requerida, citada, em 28 de setembro de 2015, pelo Tribunal Eclesiástico, enquanto Parte Demandada, para prestar depoimento no dia 15 de outubro seguinte, respondeu por escrito não pretender prestar declarações nos autos de nulidade de matrimónio … nem pretender que a notificassem para outras diligências.

I. No dia 27 de Setembro de 2018 foi decretado o divórcio entre o Requerente e a Requerida. (Cfr. Documento 1, que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais)

J. No dia 26 de Fevereiro de 2018 a Requerida dirigiu-se ao Tribunal Eclesiástico do ... - Iª Instância - e expressou a sua intenção de interpor a apelação, que foi reconhecida pelo notário naquele momento em funções

L. no dia 27 de Fevereiro de 2018 foram-lhe devolvidos os documentos respeitantes a esse pedido, por não se aplicarem "as normas dos tribunais do Estado" e indicando que deveria fazer prova da sua carência junto do tribunal superior, nomeadamente o Tribunal Eclesiástico de ….

M. Nesse seguimento, no dia 12 de Março de 2018, a Requerida remeteu para o Tribunal Eclesiástico de … novo pedido de apoio judiciário, acompanhado da documentação necessária.

N. Porém, a 19 de Março de 2018, recebe como resposta que a apelação não se encontra naquele Tribunal e que portanto, não podem proceder à conceção do patrocínio gratuito.

0. Mais uma vez a Requerida repetiu o pedido, dirigindo-se agora novamente à 1ª instância.

P. A 09 de Março de 2018, a Requerida é notificada do Decreto de execução da sentença do Tribunal da Assinatura Apostólica.

Q. A requerida recebeu notificação da sentença proferida no 7/7/2017 pelo Tribunal Eclesiástico, enviada em 12/2/2018.

De Direito

8. Considerando que os recursos se delimitam pelas conclusões das alegações da recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso e alguma questão prévia que possa ter sido suscitada pela defesa, a única questão suscitada neste recurso é a de saber se a sentença do tribunal eclesiástico deve ser confirmada e revista, ou não, por violar o princípio da igualdade das partes, não ter transitado em julgado e ofender os princípios da ordem pública internacional.

9. No entender da recorrente, a sentença não deve ser revista e confirmada por estar em causa a violação do regime legal imposto, nomeadamente, o que se dispõe no artigo 980º, als. b), e) e f) do CPC.

10. O art.º 980.º do CPC dispõe:

Para que a sentença seja confirmada é necessário:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;

b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;

c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;

d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;

e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;

f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

11. O Tribunal da Relação teve oportunidade de conhecer da questão suscitada pela recorrente, tendo dito o seguinte (negritos nossos):
“Vejamos agora o requisito previsto na alínea, b) e e).
Na contestação a requerida veio dizer que a sentença não transitou em julgado e que não lhe foi dado o direito de defesa porquanto não, pretendeu apelar da sentença do Tribunal Eclesiástico do ....
De acordo com os factos provados e todos os elementos dos autos pode extrair-se que a requerida não tem razão. A requerida recebeu notificação da decisão do Tribunal Eclesiástico enviada em 12.02.2018. Assim como consta da própria decisão tinha o prazo de 15 dias para recorrer. Não o fez. Se pretendia obter o apoio judiciário deveria ter apresentado o requerimento neste prazo. Ora quando apresenta o requerimento em 12.03.2018 já havia transcorrido o prazo de 15 dias. A requerida não actuou com a diligência devida, pois após ter sido notificada da sentença deveria ter tomado os cuidados necessários no sentido de apresentar atempadamente o pedido de apoio judiciário e a respectiva apelação.
Acresce que a Requerida, citada, em 28 de setembro de 2015, pelo Tribunal Eclesiástico, enquanto Parte Demandada, para prestar depoimento no dia 15 de outubro seguinte, respondeu por escrito não pretender prestar declarações nos autos de nulidade de matrimónio …./… nem pretender que a notificassem para outras diligências.
Este facto em si indiciaria até uma renúncia ao recurso. Seja como for a sentença transitou em julgado como vimos e, a requerida foi devidamente notificada da mesma. E, não apresentou apoio judiciário e apelação no prazo que dispunha para isso, não lhe tendo sido coarctado o direito de defesa.
Ao requerente e à requerida foi facultado o direito de defesa, observando-se, designadamente, os princípios do contraditório e da igualdade das partes e a sentença transitou em julgado.
O reconhecimento da decisão revidenda não é manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português - alínea f).
Por conseguinte, nada obsta à revisão e confirmação da decisão revidenda.
Pelo exposto, julga-se procedente a pretensão do requerente e decide-se rever e confirmar a sentença, proferida em 7 de julho de 2017, pelo Tribunal Eclesiástico do ..., em que foi declarado nulo o matrimónio entre as partes, em acção intentada neste tribunal pelo requerente, para esse efeito, (decisão na qual foi exarado por Decreto executivo de Verificação de Nulidade de Matrimónio emanado pelo Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica, em 23.02.2018), que produzirá todos os seus efeitos na ordem jurídica portuguesa.

12.      Analisados os autos, é entendimento deste STJ que a decisão do Tribunal da Relação não merece reparo.

No que respeita à não violação do princípio da igualdade das partes é de acolher a fundamentação do tribunal recorrido quando afirma: “A requerida recebeu notificação da decisão do Tribunal Eclesiástico enviada em 12.02.2018. Assim como consta da própria decisão tinha o prazo de 15 dias para recorrer. Não o fez. Se pretendia obter o apoio judiciário deveria ter apresentado o requerimento neste prazo. Ora quando apresenta o requerimento em 12.03.2018 já havia transcorrido o prazo de 15 dias. A requerida não actuou com a diligência devida, pois após ter sido notificada da sentença deveria ter tomado os cuidados necessários no sentido de apresentar atempadamente o pedido de apoio judiciário e a respectiva apelação” e “Ao requerente e à requerida foi facultado o direito de defesa, observando-se, designadamente, os princípios do contraditório e da igualdade das partes e a sentença transitou em julgado.”

12.1. Dispondo o Código Canónico de regras específicas de apoio judiciário e de prazos e procedimentos para recorrer da decisão eclesiástica de 1ª instância, ainda que as mesmas sejam distintas das regras aplicáveis ao processos judiciais do Estado Português, nomeadamente para processos de anulação de casamento civil, e tendo Portugal celebrado uma convenção com o Estado do Vaticano – a Concordata de 2004  – cujas regras devem ser cumpridas por ambos os Estados (art.º 8.º da CRP), e tendo a recorrente tido conhecimento e oportunidade de, em tempo, dar cumprimento às regras dispostas no código canónico, não se pode deixar de considerar que  a mesma teve oportunidade e tratamento igualitário.

Não colhe o argumento da recorrente de ter ocorrido violação da CRP no que concerne ao apoio judiciário e ao acesso à justiça: a recorrente podia aceder ao apoio judiciário canónico, se para o efeito tivesse respeitado as regras que naquele ordenamento se dispõe para o efeito, no Cânone 1649, onde se lê:

            § 1. O Bispo, a quem compete superintender no tribunal, estabeleça normas acerca:

 1.° da condenação das partes ao pagamento ou à compensação das custas judiciais;

2.° dos honorários dos procuradores, advogados, peritos e intérpretes, bem como das indemnizações às testemunhas;

3.° da concessão do patrocínio gratuito ou da redução das custas;

4.° da reparação dos danos devida por aquele que não só perdeu a causa, mas que litigou temerariamente;

5.° do depósito da quantia ou da garantia para pagamento das custas ou da reparação dos danos.

 § 2. Da decisão acerca das custas, honorários ou reparação dos danos não se dá apelação distinta, mas a parte pode apresentar recurso dentro do prazo de quinze dias perante o próprio juiz, que pode modificar a taxação.

Não procede, assim, a invocada inconstitucionalidade.

12.2. No que concerne ao trânsito em julgado da decisão revidenda é também de sustentar a posição do tribunal recorrido, na medida em que, por força das regras do Código Canónico em conjugação com o art.º 16.º da Concordata (2004), a recorrente não interpôs recurso da decisão do tribunal eclesiástico, nos termos dispostos na respectiva regulamentação, tendo o Supremo Tribunal da Assinatura procedido à emissão do Decreto de execução da sentença do Tribunal da Assinatura Apostólica, conforme factos fixados, e requereu a revisão e confirmação da sentença no TR competente.

A regularidade desse procedimento é atestada pela conformidade com os cânones:

1630

 § 1. A apelação deve interpor-se perante o juiz que proferiu a sentença, dentro do prazo peremptório de quinze dias úteis contados desde que se teve conhecimento da publicação da sentença.

1633

Deve prosseguir-se a apelação perante o juiz ad quem no prazo de um mês a contar da data da sua interposição, a não ser que o juiz a quo tenha determinado um prazo mais longo para o prosseguimento.

1635

Transcorridos inutilmente os prazos fatais para a apelação quer perante o juiz a quo, quer perante o juiz ad quem, considera-se deserta a apelação.

1641
Sem prejuízo do prescrito no cân. 1643, há caso julgado:
l.° se houver duas sentenças conformes entre as mesmas partes, sobre a mesma petição e feita pela mesma causa de pedir;
2.° se não se interpuser apelação contra a sentença dentro do prazo útil;
3.° se, no grau de apelação, houver perempção da instância ou a ela se tiver renunciado;

4.° se se tiver dado sentença definitiva da qual não há apelação, nos termos do cân. 1629.

1650
 § 1. A sentença, que tiver transitado em julgado, pode ser execu­tada, sem prejuízo do prescrito no cân. 1647.
§ 2. O juiz que proferiu a sentença e, no caso de ter sido interposta apelação, também o juiz de apelação, oficiosamente ou a instância da parte, podem mandar dar execução provisória à sentença que ainda não tenha transitado em julgado, prestadas, se for o caso, cauções idóneas, quando se tratar de provisões ou presta­ções destinadas à sustentação de alguém, ou se urgir outra causa justa.
§ 3. Se for impugnada a sentença referida no § 2, o juiz que deve conhecer da impugnação, se vir que esta tem fundamento provável, e que da execução se pode seguir um dano irreparável, pode suspender a própria execução, ou sujeitá-la a caução.

1651

A execução não pode ter lugar antes de haver decreto executório do juiz, pelo qual se determine que a sentença deve ser executada; este decreto, segundo a natureza das causas, inclua-se no próprio texto da sentença, ou publi­que--se separadamente.


Valem ainda as regras disposta no art.º 16.º da Concordata:
Artigo 16
1. As decisões relativas à nulidade e à dispensa pontifícia do casamento rato e não consumado pelas autoridades eclesiásticas competentes, verificadas pelo órgão eclesiástico de controlo superior, produzem efeitos civis, a requerimento de qualquer das partes, após revisão e confirmação, nos termos do direito português, pelo competente tribunal do Estado.
2. Para o efeito, o tribunal competente verifica:
a) Se são autênticas;
b) Se dimanam do tribunal competente;
c) Se foram respeitados os princípios do contraditório e da igualdade; e

d) Se nos resultados não ofendem os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

Os mesmo é confirmado pelos factos provados.

12.3. No que concerne a alegada violação dos princípios da ordem pública internacional, na medida em que os mesmos estarão alegadamente relacionados com a violação da CRP (não acolhida) e com o princípio da igualdade (igualmente não acolhido), não se vê como pode a mesma ser sustentada, valendo aqui a fundamentação indicada no acórdão recorrido, que se assume parte integrante desta mesma fundamentação.

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, é negada a revista da recorrente, confirmando-se o acórdão recorrido.

Sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia a recorrente, a responsabilidades pelas custas se a eles houver lugar, em alguma das suas componentes, é da mesma recorrente, por ter ficado vencida no recurso.

Lisboa, 13 de Outubro de 2020

Fátima Gomes (Relatora)

Acácio Neves

Fernando Samões