I - Nos termos conjugados dos arts. 671.º, n.os 1 e 3, e 672.º, n.º 1, do CPC, só há lugar a revista excecional quando, verificados os requisitos gerais da admissibilidade desta espécie de recurso, ocorra dupla conformidade decisória entre a decisão da 1.ª instância e o acórdão da Relação, tendo a revista excecional por finalidade exclusiva levantar o impedimento à interposição de recurso para o STJ decorrente dessa dupla conformidade.
II - O facto de a ré destes autos, já depois da interposição da revista, ter interposto uma ação declarativa contra terceiros com o fim de obter deles a condenação no ressarcimento da quantia em que foi condenada pelo acórdão aqui recorrido, tendo ali alegado que não se conformava com esta decisão e que aguardava o resultado do julgamento da revista, não configura como uma situação inequivocamente incompatível com a vontade de manter este recurso, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 632.º, n.os 2 e 3, do CPC, não implicando, por isso, a perda do exercitado direito de recurso.
III - A força probatória legal plena que recai sobre as declarações confessórias constantes de escritura pública, nos termos do art. 371.º, n.º 1, do CC, apenas garante a veracidade de que essas declarações foram produzidas perante o notário, não garantindo a veracidade do facto material objeto das mesmas.
IV - Tal força probatória só pode ser ilidida com base na falsidade do que foi atestado pelo notário nessa escritura, nos termos do art. 372.º, n.os 1 e 2, do CC, podendo ainda sê-lo, mesmo oficiosamente, em face de evidentes sinais exteriores revelados no próprio documento, como decorre do n.º 3 do indicado normativo.
V - Por sua vez, a prova da veracidade do facto material objeto de declaração confessória constante de documento autêntico tem se ser aferida em sede da eficácia probatória da confissão extrajudicial estabelecida no art. 358.º, n.os 2 e 4, do CC.
VI - Tratando-se de confissão extrajudicial contida em documento autêntico feita pelo declarante à parte contrária, sobre ela recai força probatória legal plena nos termos do n.º 2 do art. 358.º do CC.
VII - Ainda assim, esta força probatória plena pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto objeto da declaração confessória, com exclusão da prova por presunção judicial e da prova testemunhal, como decorre da conjugação do preceituado nos arts. 347.º, 351.º, 393.º e 394.º do CC.
VIII - Num caso, como o dos autos, em que, no âmbito de uma escritura pública, o vendedor declara perante o comprador ter já recebido a quantia correspondente ao preço da venda, tal declaração confessória traduz-se em confissão feita a terceiro em relação ao mandatário desse vendedor que não interveio naquela escritura, estando assim essa declaração confessória sujeita a livre apreciação do tribunal nos termos do n.º 4 do art. 358.º do CC.
IX - O reconhecimento do vendedor ante o comprador de já ter recebido o preço da venda pode muito bem compreender a hipótese ter considerado como recebida a quantia correspondente através da entrega obtida pelo seu mandatário, o que não significa o reconhecimento de que este mandatário já lhe tenha feito, por sua vez, a entrega dessa quantia.
X - Assim, a eficácia probatória plena daquela declaração confessória feita pelo vendedor ao comprador não obsta a que aquele, em ação movida contra o seu mandatário, prove mediante qualquer meio probatório, que este não lhe entregou a quantia correspondente ao preço da venda por ele obtida na execução do contrato de mandato.
I – Relatório
1. AA, na qualidade de cabeça de casal da herança deixada por óbito de BB (A.), instaurou, em 06/11/2012, contra CC (R.), advogada, processo especial para prestação de contas, alegando, no essencial, o seguinte:
. A requerente é a única herdeira de BB, falecido em 22/02/2011, no estado de viúvo de DD, também falecida em 25/01/2009;
. A R., na qualidade de advogada, prestou diversos serviços em execução de mandato forense celebrado com BB, tendo aquela intentada ação contra este com vista ao pagamento da quantia de € 162.917,68, a título dos respetivos honorários;
. Em execução daquele mandato, a ora R. intentou, a 06/12/ 2007, ação especial, que correu termos no apenso B dos autos principais, com vista a obter autorização para a venda de património imobiliário do mandante BB e de sua mulher, entretanto declarada interdita;
. Obtida tal autorização, a R. realizou os atos necessários à concretização da venda dum prédio urbano pelo preço de € 397.000,00 e da quota ideal de 1/3 dum prédio misto pelo preço de € 21.500,00:
. No exercício das suas funções de mandatária forense, incumbia à R. entregar ao mandante BB o dinheiro proveniente das vendas autorizadas ou o saldo que a favor deste fosse apurado depois de liquidadas as respetivas responsabilidades, bem como depositar a parte respeitante à sua interdita mulher.
. Porém, a R. não entregou ao mandante o dinheiro das referidas vendas nem o saldo que a este cabia, nem juntou documentos comprovativos de depósito bancário realizado em nome da interdita.
Concluiu a A. a pedir que a R. preste contas pelos atos que praticou na execução do referido mandato, no período temporal a quer se reporta o acima indicado apenso B, em ordem a obter o apuramento e aprovação das receitas e das despesas realizadas e a condenação da mesma R. no pagamento do saldo que se vier a apurar.
2. Citada, a R. contestou, além do mais, impugnando a obrigação de prestar contas.
3. Em face disso, foi proferida a sentença de fls. 146-165, de 04/ 04/2016, a declarar a obrigação de a R. CC prestar contas no âmbito do sobredito mandato forense, decisão esta confirmada pelo acórdão da Relação de Évora de fls. 202-210, de 30/11/2016.
4. De seguida, apesar de notificada para apresentar contas no prazo de 20 dias, sob pena de não lhe ser permitido contestar as contas que a A. apresentasse, a R. não as apresentou, tendo a A. feito a sua apresentação, conforme fls. 294-296/v.º, pedindo a condenação da mesma R. a pagar à herança aberta por óbito do mandante BB a quantia de € 35.000,00 correspondente ao saldo a apurado a seu favor.
5. Realizada uma perícia e depois de vicissitudes várias, foi proferida a sentença de 385-386, de 05/02/2018, a declarar “aceitar” as contas apresentadas pela A. e a condenar a R. a pagar o saldo positivo no valor de € 35.000,00.
6. Inconformada com tal decisão, a R. recorreu dela, tendo sido proferido o acórdão de fls. 419-433, de 28/06/2018, a anular a sentença recorrida por falta de fundamentos de facto, baixando o processo à 1.ª instância para o respetivo suprimento.
7. Foi então proferida nova sentença (fls. 440-453), datada de 15/10/2018, a julgar parcialmente procedente a ação, declarando-se “aceitar” em parte as contas apresentadas pela A., na qualidade de cabeça de casal na herança aberta por óbito de BB, reconhecendo-se a existência dum saldo a favor daquela herança no valor de € 21.500,00 e condenando-se a R. no seu pagamento.
8. Desta feita, ambas as partes interpuseram recurso para a Relação de Évora, pugnando:
- a A., em sede de facto e de direito, pela alteração da decisão recorrida no sentido de ser reconhecida a existência dum saldo no valor de € 41.144,44 a favor da herança de BB e de ser a R. condenada a pagar a esta herança o valor de € 35.000,00 correspondente ao saldo apurado nas contas que a própria A. apresentou;
- a R. pela anulação da sentença recorrida e, subsidiariamente, pela rejeição das contas apresentadas e revogação daquela sentença.
9. Sobre os referidos recursos foi proferido o acórdão de fls. 518-554, de 28/02/2019, mediante o qual se julgou:
a) - Improcedente a apelação interposta pela A.;
b) – E parcialmente procedente a apelação interposta pela R., decidindo-se fixar no valor de € 10.750,00 o saldo das contas relativas ao exercício, pela R., do mandato em causa, condenando-se esta R. a pagar à A. o referido saldo.
10. Veio então a A. recorrer de revista, pedindo que:
a) – Em primeira linha, se declarasse nulo o acórdão recorrido com fundamento em diversas espécies de nulidade;
b) – Subsidiariamente, se revogasse o mesmo e se substituísse por decisão que:
- considerasse provada a existência de receita a favor da herança de BB no valor de € 41.144,44;
- condenasse a R. a pagar àquela herança o saldo apurado de € 35.000,00;
- ou, caso assim se não entendesse, condenasse a R. a pagar o valor de € 21.500,00 conforme o decidido na 1.ª instância.
11. No âmbito dessa revista, foi proferido por este Supremo Tribunal o acórdão de fls. 611-632, de 17/10/2019, a conceder parcialmente a revista, decidindo-se anular o acórdão recorrido nos seguintes termos:
a) – Por um lado, na parte em que conheceu de objeto diverso do pedido, determinando-se a eliminação do segmento decisório que fixou no valor de € 10.750,00 o saldo das contas relativas ao exercício, pela R., do mandato em referência, na parte respeitante à representação da então interdita DD e condenou a R. a pagar à A. o referido saldo;
b) – Por outro lado, na parte em que deixou de se pronunciar sobre as contas apresentadas pela A. a favor da herança aberta por óbito de BB, determinando-se a baixa do processo à Relação para conhecer das questões ali suscitadas, no exato domínio do julgamento dessas contas, nos termos acima expostos.
12. Em cumprimento do assim decidido, o Tribunal da Relação de Évora proferiu o acórdão de fls. 642-678, de 19/12/2019, em que, após incluir no ponto 14-A da factualidade provada um facto dado como não provado pela 1.ª instância, se julgou improcedente a apelação interposta pela R. e parcialmente a interposta pela A., decidindo:
a) – Fixar em € 35.000,00 o saldo das contas relativas ao exercício pela R. do mandato em causa;
b) – Condenar a R. a pagar à A. aquela quantia correspondente ao saldo apurado;
c) – Revogar em conformidade e confirmar no mais a sentença recorrida.
13. Vem agora a R. pedir revista a título excecional ao abrigo das alíneas a) e c) do n.º 1 do art.º 672.º do CPC, invocando erro de direito na valoração das provas com incidência na prova documental junta aos autos, alegadamente provida de eficácia probatória plena, com apelo ao disposto nos artigos 355.º, n.ºs 1 e 4, 358.º, n.º 2, 369.º, 370.º 371.º e 372.º do CC.
Nas respetivas conclusões recursórias, a Recorrente expõe as razões que, no essencial, se resumem ao seguinte:
a) – BB, por si e na qualidade de tutor da sua então interdita mulher DD, outorgou, como vendedor, as duas escrituras públicas de compra e venda lavradas em 02/07/2008 e em 05/12/2008;
b) – Na escritura outorgada em 02/07/2008, aquele declarou já ter recebido o preço de € 397.000,00 pela venda do prédio urbano sito no Largo …, nºs 3 e 5, em …;
c) – E na escritura realizada em 05/12/2008, o mesmo vendedor declarou já ter recebido o preço de € 21.500,00 pela venda da quota ideal de 1/3 de um prédio misto sito em …, …, freguesia de …;
d) – As receitas de € 13.500,00 e de € 21.500,00 aqui em causa dizem respeito, respetivamente, àqueles valores;
e) – Tais declarações por parte do referido vendedor correspondem a confissões extrajudiciais constantes de documento autêntico providas de valor probatório pleno nos termos dos artigos 355.º, n.ºs 1 e 4, e 358.º, n.º 2, do CC, o que não foi ilidido por via de falsidade;
f) – Em face disso, o tribunal “a quo”, ao considerar que a Recorrente não entregou a BB tais montantes, sem atentar no valor probatório pleno resultante das referidas declarações confessórias, violou o preceituado nos artigos 358.º, n.º 2, 369.º, 370.º, 371.º e 372.º do CC e contrariou o entendimento, nesse particular, adotado no acórdão do STJ, de 09/07/2014, proferido no processo n.º 28252/10.0T2SNT.L1.S1, convocado como acórdão-fundamento;
g) – Nem esse valor probatório pode ser afastado pelos resultados da perícia realizada nos autos nem pelo cominatório estatuído no artigo 943.º, n.º 2, do CPC em sede do processo de prestação de contas.
Nesta base, pede a Recorrente que se revogue o acórdão impugnado e se substitua por decisão que
a) - Declare inexistente o saldo de € 35.000,00 das contas relativas ao exercício do mandato em causa;
b) – Declare que as duas verbas que serviram de base ao pedido da A. foram pagas e que o seu pagamento se encontra devidamente comprovado por escritura pública de compra e venda não impugnada;
c) – Se absolva a R. de todos os pedidos deduzidos pela A..
14. A Recorrida contra-alegou, a sustentar a inadmissibilidade da revista, seja por perda do direito de recorrer seja pela não verificação dos invocados pressupostos da revista excecional, pugnando, subsidiariamente, pela confirmação do julgado.
II – Questão prévia sobre a admissibilidade da revista e delimitação do seu objeto
Como acima se já disse, a R./Recorrente interpôs a revista a título excecional ao abrigo dos pressupostos previstos nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art.º 672.º do CPC, convocando como acórdão-fundamento o aresto do STJ, de 09/07/2014, proferido no processo n.º 28252/10.0T2SNT.L1.S1.
Justifica a revista excecional com base na relevância jurídica das questões suscitadas e na necessidade da sua clarificação para uma melhor aplicação do direito, bem como em pretensa contradição jurisprudencial do acórdão recorrido com o referido acórdão-fundamento.
Ora, como é sabido, no termos conjugados dos artigos 671.º, n.º 1 e 3, e 672.º, n.º 1, do CPC, só há lugar a revista excecional quando, verificados os requisitos gerais da admissibilidade desta espécie de recurso, ocorra dupla conformidade decisória entre a decisão da 1.ª instância e o acórdão da Relação. É neste quadro que a revista excecional tem por finalidade exclusiva levantar o impedimento à interposição de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça decorrente dessa dupla conformidade.
Sucede que, no caso presente, a sentença da 1.ª instância, de 15/10/2018, reconheceu a existência dum saldo a favor da herança aberta por óbito de BB no valor de € 21.500,00 e condenou a R. no seu pagamento.
Inconformadas com tal decisão, cada uma das partes recorreu para a Relação, acabando por ser proferido o acórdão de fls. 642-678, de 19/12/2019, ora recorrido, a julgar improcedente a apelação interposta pela R. e parcialmente procedente a interposta pela A., alterando-se a sentença da 1.ª instância e decidindo-se fixar o saldo das contas relativas ao exercício pela R. do mandato em causa no valor de € 35.000,00 e condenar esta R. a pagar àquela A. tal valor.
Daí resulta que a R. vem condenada pela Relação em montante superior ao que foi condenada na 1.ª instância, sendo a sua sucumbência correspondente ao valor de € 35.000,00.
Nestas circunstâncias, não se tem, de modo algum, por verificada a dupla conformidade decisória, o que retira fundamento para a revista excecional, cumprindo admitir tal recurso como revista normal dada a verificação dos respetivos requisitos de admissibilidade, mormente o valor da sucumbência, nos termos do artigo 629.º, n.º 1, do CPC.
No entanto, vem a Recorrida invocar a perda do direito de recorrer, por parte da R., alegando que esta, em 21/02/2020, intentou uma ação declarativa, que corre termos sob o n.º 268/20.6…, no Juízo Local de …, contra EE – Sociedade de Advogados, SP, RL, e contra uma seguradora ali não identificada a pedir a condenação destas a pagar-lhe, além do mais, a quantia de € 35.000,00 em que foi condenada pela Relação de Évora nos presentes autos, conforme doc. de fls. 748 e seguintes.
Nesta base, sustenta a Recorrida que a propositura dessa ação configura um comportamento, por parte da R./Recorrente, de aceitação, ainda que tácita, da condenação proferida no acórdão aqui impugnado, nos termos e para os efeitos do art.º 632.º, n.º 2 e 3, do CPC, o que implica a não admissão da presente revista.
Vejamos se assim é.
Dispõe o indicado artigo 632.º do CPC, no que aqui interessa, o seguinte:
2 – Não pode recorrer quem tiver aceitado a decisão depois de proferida.
3 – A aceitação da decisão pode ser expressa ou tácita; a aceitação tácita é a que deriva da prática de qualquer facto inequivocamente incompatível com a vontade de recorrer.
Não estamos perante qualquer ato que tenha sido praticado pela R., nestes autos ou fora deles, de aceitação expressa da decisão condenatória aqui impugnada.
Questão é saber se a propositura da referida ação declarativa instaurada, em 21/02/2020, pela Recorrente contra terceiros e que corre termos no processo n.º 268/20.6… do Juízo Local de … representa um comportamento inequivocamente incompatível com a vontade de manter a presente revista que ela já havia interposto em 03/02/2020.
Não sofre dúvida de que o objeto daquela ação tem por fim obter a condenação das ali demandadas a pagar à A. quantias que ela alega poder ter de suportar com a presente ação, incluindo a quantia de € 35.000,00 em que foi condenado no acórdão recorrido.
Todavia, do teor da petição inicial apresentada naquela ação colhe-se que a ali autora e aqui Recorrente afirma, nos respetivos artigos 38.º, 39.º e 40.º, não se ter conformado com a decisão aqui impugnada e, por isso, ter interposto a presente revista, estando a aguardar o seu resultado, salientando o efeito meramente devolutivo deste recurso e comprometendo-se a carrear para a mesma ação a decisão que aqui for obtida a final.
Significa isto que a ora Recorrente propôs aquela ação na perspetiva de não conseguir obter ganho de causa com a presente revista, não competindo aqui ajuizar sobre a natureza condicional da pretensão ali deduzida nem tão pouco sobre a probabilidade de um dano futuro que também ali possa ser equacionado.
O que se afigura seguro é que a Recorrente, nos termos em que propôs a sobredita ação, não manifesta um comportamento inequivocamente incompatível com o prosseguimento do presente recurso; bem pelo contrário, revela uma vontade expressa de prosseguir com ele de modo a lograr um resultado que lhe seja favorável.
Tanto basta para se concluir no sentido de não se considerar perdido o direito processual da Recorrente exercido através desta revista, que se tem por admissível nos termos gerais, conforme o anteriormente exposto.
Posto isto, cumpre apreciar e decidir sobre o objeto de recurso e que consiste em saber se o acórdão recorrido incorre em erro de direito por violação do disposto nos artigos 355.º, n.ºs 1 e 4, 358.º, n.º 2, 369.º, 370.º 371.º e 372.º do CC, ao ter dado como provado que a R./Recorrente não entregou a BB as quantias de € 13.500,00 e de € 21.500,00 que declarou ter recebido, respetivamente, no âmbito das escrituras públicas de compra e venda outorgadas em 02/07/2008 e em 05/12/2008.
III – Fundamentação
1. Factualidade dada por provada pelas instâncias
Vem dada com provado pelas instâncias o seguinte:
1.1. No âmbito do processo que, sob o n.º 291/06.3TBPTG-L corre por apenso à ação n.º 291/06.3TBPTG, por decisão proferida em 23/01/ 2012 e transitada em julgado, a ora requerente AA foi habilitada a intervir na ação principal em substituição de BB, conforme decisão judicial de fls. 32-35 daquele processo apenso;
1.2. AA assume o cargo de cabeça de casal no inventário que, por óbito de BB, corre termos sob o n.º 465/11…., do extinto 2.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de … .
1.3. BB, na qualidade de tutor da interdita DD, intentou, em 05/12/ 2007, ação para autorização judicial de venda de bens imóveis de interdito, que correu termos sob o n.º 291/06.3TBPTG-B, no âmbito da qual aquele autor juntou procuração conferindo poderes forenses e “…os especiais em direito permitidos …”, a favor da Dr.ª CC, conforme fls. 94 dos autos do referido processo;
1.4. No âmbito desse processo, cuja petição inicial – fls. 2-13 – aqui se dá por integralmente reproduzida e cujo pedido foi justificado com a existência de dívidas avultadas em nome do mandante e mulher, já em incumprimento, e a existência de interessados na aquisição dos imóveis pertencentes aos cônjuges, por decisão judicial proferida em 07/05/2008, o requerente BB foi autorizado, em representação da interdita DD, a proceder à venda dos seguintes bens:
a) - O prédio urbano sito na Rua …, n.º 16/18, em …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2074.º, da freguesia de …, concelho e distrito de …, pelo valor mínimo de € 360.000.00;
b) - A quota ideal de 1/3 de um prédio misto sito em …, …, freguesia de …, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 1 da Secção A e na matriz predial urbana sob o artigo 830.º, ambas a freguesia de …, concelho de distrito de …, pelo valor mínimo de € 21.500,00;
c) - O prédio urbano sito no Largo …, nºs 3 e 5, em …, composto pelas frações B, C e D, do prédio, em regime de propriedade horizontal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2338, da freguesia de …, concelho de … e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 467, pelo valor mínimo de € 397.000,00.
Mais ficou a constar da sobredita decisão judicial, que se fixava o prazo de quatro meses para o requerente juntar as escritura públicas de compra e venda dos referidos imóveis e para comprovar nos autos o depósito da quantia correspondente à parte do preço obtido pela venda dos imóveis pertencentes à interdita em conta bancária de que aquela fosse titular, singular ou conjuntamente, conforme decisão de fls. 214-224, do apenso B;
1.5. A R., na qualidade de mandatária de BB, diligenciou pela concretização das sobreditas vendas.
1.6. Por escritura pública lavrada em 02/07/2008, BB, por si e como tutor em representação da sua mulher DD, vendeu a “Lusagrades Hottels – Atividades Hoteleiras, Ldª”, pelo preço de € 397.000,00, o prédio identificado em 1.4-c, conforme documento de fls. 249-257 do processo n.º 291/06.3TBPTG-B;
1.7. Por escritura pública lavrada em 05/12/2008, BB, por si e como tutor em representação da sua mulher DD, vendeu a FF, casado com CC, o prédio identificado em 1.4-b, conforme documento de fls. 283-289 do processo n.º 291/06.3TBPTG-B;
1.8. No âmbito daquele processo judicial, CC, na qualidade de mandatária de BB, juntou o documento denominado “Declaração”, que constitui fls. 269 daqueles autos e do qual resulta ter sido depositado à ordem de BB e de DD o valor de € 13.500,00;
1.9. A 23/03/2009, juntou ao mesmo processo n.º 291/06.3TBPTG-B, o requerimento que constitui fls. 300-312 dos autos, do qual resulta, além do mais, que não juntou àqueles autos enquanto mandatária de BB comprovativo do depósito da parte do preço referente ao imóvel adquirido por FF, nos termos estipulados pela sentença ali proferida.
1.10. A R. não entregou a BB os montantes pecuniários obtidos com a venda dos imóveis.
1.11. Em 25/03/2009, CC renunciou à procuração que lhe foi outorgada por BB, conforme requerimento que constitui fls. 315 daquele mesmo processo;
1.12. No âmbito do processo n.º 291/06.3TBPTG-B, e no dia 3 de março de 2009, foi proferido o seguinte despacho:
«Por despacho de fls. 272, proferido em 01.10.2008 - sentença proferida nestes autos e transitada em julgado - foi ao requerente fixado um prazo de 15 dias para vir aos autos confirmar o depósito da quantia correspondente a metade do valor por que o bem imóvel sito no Largo … foi vendido, tal como consta do teor da escritura de compra e venda junta a fls. 260 a 266, ou seja, do valor de € 198.500,00.
Compulsados os autos, tal comprovação ainda não foi feita nos presentes autos.
Pelo exposto, determino se notifique o requerente para, no prazo de cinco dias, vir dar cumprimento estrito ao aludido despacho depositando a referida quantia e, se já tal tiver sido feito, vir comprovar nos autos o depósito devido.»
1.13. No período temporal compreendido entre 04/12/2007 e 25/03/ 2009, concernente ao mandato conferido por BB, à Dr.ª CC no âmbito do processo n.º 291/06.3TBPTG-B, por força das vendas atrás referenciadas, foi gerada a receita global de € 418.500,00, correspondendo € 397.000,00 ao valor da venda do imóvel identificado em 1.6, e de € 21.500,00 ao valor da venda identificada em 1.7, ascendendo à data o passivo de BB a € 377.355,56.
1.14. Existe atualmente receita a favor da herança de BB no valor de vinte e um mil e quinhentos euros (€ 21.500,00);
1.14-A. Existe receita a favor da herança de BB no valor de treze mil e quinhentos euros (€ 13.500,00) – facto incluído pela Relação;
1.15. No processo que sob o n.º 291/06.3TBPTG-D corre por apenso à ação 291/06.3TBPTG, a ora R. CC demandou BB, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de € 162.917,68, a título de honorários pelos diversos serviços que lhe prestou na execução do mandato forense que lhe havia sido conferido, conforme petição inicial daquele processo, que aqui se dá por integralmente reproduzida. Nesse processo, em sede de audiência de julgamento realizada no p. p. dia 31 de março, as partes puseram termo à ação, mediante transação, tendo a ali A. e aqui R. CC, reduzido o pedido para a quantia de € 31.500,00, verba que acordaram fosse descrita como passivo nos autos de inventário supra referenciados, e que a ali R. e aqui A. AA se obrigou a pagar, depois de concretizada a venda do imóvel descrito na Relação de Bens do dito processo de inventário, tudo conforme ata de audiência de julgamento constante daquele processo, que corre por apenso à ação principal de que estes autos também constituem apenso, e que aqui se dá por integralmente reproduzida.
Em extensão dos factos dados como provados nos pontos 1.7 e 1.8, ao abrigo do disposto no artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável por via de remissão sucessiva dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC, adita-se, como matéria provada a seguinte:
1.16. No âmbito da escritura pública outorgada em 02/07/2008, nos termos da qual BB, por si e como tutor em representação da sua mulher DD, vendeu a “Lusagrades Hottels – Atividades Hoteleiras, Ldª”, o prédio identificado em 1.4-c) pelo preço de € 397.000,00, aquele vendedor declarou já ter recebido este preço;
1.17. No âmbito da escritura pública outorgada em 05/12/2008, nos termos da qual BB, por si e como tutor em representação da sua mulher DD, vendeu a FF a quota ideal de 1/3 de um prédio misto sito em …, …, freguesia de … identificado em 1.4-b pelo preço € 21.500,00, aquele vendedor declarou já ter recebido este valor.
2. Do mérito da revista
Conforme o que acima ficou enunciado sobre o objeto do recurso a questão a decidir consiste, unicamente, em saber se o facto dado como provado de que a R. não entregou a BB os montantes pecuniários obtidos com as vendas dos imóveis através das escrituras públicas celebradas em 02/07/2008 e 05/12/2008 deve ser desconsiderado por virtude da declaração que o mesmo BB fez nessas escrituras de que tinha já recebido os preços ali estipulados.
Sustenta a Recorrente que assim deve ser entendido, uma vez que tais declarações se traduzem em confissão extrajudicial constante de documento autêntico, sendo, por isso, provida de eficácia probatória plena, nos termos dos artigos 358.º, n.º 2, e 371.º, n.º 1, do CC, a qual não foi impugnada nem ilidida por via de falsidade.
Vejamos.
Em primeira linha, importa traçar a distinção entre, por um lado, a força probatória legal das referidas escrituras públicas que recai sobre as declarações, nelas consignadas, por parte do ali outorgante BB, na qualidade de vendedor em nome próprio e em representação da sua então interdita mulher, no sentido de já ter recebido dos respetivos compradores o preço das vendas desse modo realizadas e, por outro lado, a prova do próprio facto assim declarado, ou seja, do facto material objeto dessas declarações, no caso, o recebimento do preço.
Quanto à força probatória dessas escrituras, como documentos autênticos que são nos termos definidos no artigo 363.º, n.º 2, do CC, o n.º 1 do artigo 371.º do mesmo Código, prescreve o seguinte:
Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (…).
E, segundo o disposto no artigo 372.º, n.º 1, do referido diploma, a força probatória dessa espécie de documento só pode ser ilidida com base na falsidade deste, podendo ainda sê-lo, mesmo oficiosamente, em face de evidentes sinais exteriores nele revelados, como decorre do n.º 3 do indicado normativo.
Fora desta hipótese de evidentes sinais exteriores, incumbe ao declarante ou a quem pretenda impugnar a força probatória do documento autêntico provar, através de quaisquer meios probatórios, que o que nele se atesta não foi objeto de perceção da entidade documentadora ou não foi por esta praticado, nos termos do disposto no n.º 2 do mencionado artigo 372.º do CC.
Como certeiramente se observa em comentário ao art.º 371.º do CC de MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA, na obra coletiva intitulada Comentário ao Código Civil – Parte Geral, editada pela Universidade Católica Editora em setembro de 2014, a pag. 853, a força probatória do documento … não tem qualquer repercussão … na veracidade da declaração documentada.
O mesmo é dizer que o documento só faz prova plena de que esta declaração foi proferida ante a entidade documentadora, no caso, perante o notário[1].
E note-se que isto mesmo está em perfeita sintonia com o afirmado no acórdão deste Supremo Tribunal, de 09/07/2014, proferido no processo n.º 28252/10.0T2SNT.L1.S1 e convocado como acórdão-fundamento, quando nele se afirma, a dado passo, quanto aos documentos autênticos, que:
“(…) o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que os factos relatados e que resultam das suas percepções correspondem à verdade.”
Segundo o mesmo aresto, a prova da veracidade do facto objeto da declaração confessória constante de documento autêntico terá então de ser equacionada em sede da eficácia probatória da confissão extrajudicial, em sede do disposto no artigo 358.º, n.º 2, do CC.
No caso dos autos, não sofre dúvida que se encontra plenamente provado, nos termos do artigo 371.º, n.º 1, do CC, que BB produziu as sobreditas declarações de ter já recebido o preço das vendas celebradas através das escrituras públicas outorgadas em 02/07/2008 e 05/12/2008 perante os respetivos compradores, tal como se deixou consignado nos pontos 1.16 e 1.17 acima aditados à factualidade provada.
E também dúvidas não existem de que essas declarações, na medida em que se revelam desfavoráveis ao declarante, assumem a natureza de declarações confessórias extrajudiciais contidas em documento autêntico, nos termos dos artigos 352.º e 355.º, n.º 1, e para os efeitos do disposto no artigo 358.º do CC.
Porém, a prova dos factos materiais assim confessados, ou seja, do próprio recebimento pelo declarante dos montantes correspondentes aos mencionados preços não decorre diretamente, como foi dito, da eficácia probatória legal das escrituras públicas em que tais declarações foram consignadas, tendo antes de ser aferida agora em função da força probatórias de tais declarações confessórias estabelecida no artigo 358.º do CC.
Com efeito, este artigo, no que aqui releva, reza o seguinte:
(…)
2 – A confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena.
(…)
4 – A confissão judicial que não seja escrita e a confissão extrajudicial feita a terceiro ou contida em testamento são apreciadas livremente pelo tribunal.
Assim, as declarações confessórias feitas, no âmbito das referidas escrituras públicas de 02/07/2008 e de 05/12/2008, pelo vendedor BB perante os respetivos compradores - “Lusagrades Hottels – Atividades Hoteleiras, Ld.ª”, e FF -, encontram-se cobertas pela eficácia probatória legal plena da confissão extrajudicial constantes daqueles documentos autênticos, nos termos do transcrito n.º 2 do artigo 358.º, eficácia esta que só poderia ser contrariada por meio de prova que mostrasse não ser verdadeiro o facto delas objeto, com exclusão da prova testemunhal e da prova por presunção judicial, como decorre da conjugação do preceituado nos artigos 347.º, 351.º, 393.º e 394.º do CC.
Sucede que a R./Recorrente, enquanto advogada mandatária que então era de BB, muito embora tenha diligenciado pela concretização das vendas realizadas (ponto 1.5 dos factos provados), não interveio sequer nos atos de outorga das referidas escrituras públicas.
Neste contexto, as declarações de recebimento do preço produzidas no âmbito dessas escrituras pelo vendedor BB perante os respetivos compradores traduzem-se em declarações extrajudiciais constantes de documento autêntico feitas a terceiros em relação ao contrato de mandato existente entre aquele vendedor e a R./Recorrente, sua mandatária.
Em tal medida, essas declarações, quanto à R. no âmbito da relação emergente do referido contrato de mandato que mantinha com BB, não se encontram abrangidas pela eficácia probatória legal plena da confissão feita à parte contrária – no caso, aos respetivos compradores - nos termos do n.º 2 do artigo 358.º do CC, estando antes sujeitas à livre apreciação do tribunal na veste de declarações extrajudiciais constantes de documento autêntico feitas a terceiro, em conformidade com o preceituado no n.º 4 do mesmo artigo.
De resto, as declarações confessórias assim produzidas pelo vendedor BB face aos respetivos compradores bem poderão compreender, no seu alcance, a hipótese de aquele considerar, perante estes compradores, como recebidos os montantes correspondentes aos preços de venda através da entrega obtida pela sua mandatária, o que não significa o reconhecimento por ele de que esta já lhe tivesse feito, por seu turno, a entrega de tais importâncias, não obstando, por isso, a que se pudesse dar por provado, mediante quaisquer meios probatórios, que a R. não lhe entregou os montantes obtidos com a venda dos imóveis, tal como consta do pontos 1.10 da factualidade provada.
Diferente seria a hipótese de, nas mencionadas escrituras, o notário ter atestado a sua verificação, durante os próprios atos de outorga, da entrega material dos montantes em causa por parte do vendedor aos respetivos compradores.
Nesta hipótese, tal entrega estaria então coberta pela força probatória legal plena dessas escrituras, nos termos do artigo 371.º, n.º 1, do CC, o que poderia tornar-se incompatível com o facto de essas importâncias terem sido obtidas pela R. como mandatária do vendedor.
Mas não é este seguramente o caso.
Ora, em sede de apreciação da apelação interposta pela R., o Tribunal da Relação considerou o seguinte:
«[…] face aos poderes de averiguação concedidos ao juiz pelo artigo 943.º, n.º 2, do CPC, dos quais fez uso a 1.ª instância, ao incumbir perito de elaborar uma perícia, da qual consta parecer sobre as verbas inscritas pela autora, bem como sobre a despesa efetuada no período em causa, não há que rejeitar as contas apresentadas pela autora.
Como tal, na falta de apresentação pela ré das contas a que estava obrigada, cumpre julgar as contas apresentadas pela autora, nos termos indicados pelo artigo 943.º, n.º 2, do CPC, isto é, segundo o prudente arbítrio do julgador.
No que respeita ao âmbito da obrigação de prestação de contas, considerou o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão proferido na revista, que respeita à execução do mantado conferido à Sr.ª Advogada ré, não apenas na qualidade de mandatária da interdita, mulher do autor da herança, conforme havia entendido esta Relação no acórdão recorrido, mas também em representação do próprio BB.
[…]
Nas contas apresentadas pela autora encontram-se inscritas duas verbas relativas a receitas, a primeira no montante de € 13 500 – decorrente da venda do prédio urbano sito no Largo …, n.ºs 3 e 5, em …, composto pelas frações B, C e D do prédio, em regime de propriedade horizontal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2338 da freguesia de …, através de escritura pública outorgada a 02-07-2008 – e a segunda no montante de € 21 500 – decorrente da venda da quota ideal de 1/3 do prédio misto sito em …, …, freguesia de …, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 1 da Secção A, e na matriz predial urbana sob o artigo 830.º, ambas da freguesia de …, através de escritura pública outorgada a 05-12-2008.
Atento o objeto da ação de prestação de contas, cumpre analisar as verbas inscritas nas contas apresentadas, à luz da matéria de facto julgada provada e do enquadramento efetuado no parecer elaborado pelo perito.
Por sentença de 07-08-2008, proferida nos autos que constituem o apenso B e transitada em julgado, foi o requerente BB autorizado a, em representação da interdita DD, a proceder à venda: a) do prédio urbano sito na Rua …, n.º 16/18, em …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2074.º, da freguesia de …, Concelho e Distrito de …, pelo valor mínimo de € 360 000; b) da quota ideal de 1/3 de um prédio misto sito em …, …, freguesia de …, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 1 da Secção A, e na matriz predial urbana sob o artigo 830.º, ambas da freguesia de …, concelho e Distrito de …, pelo valor mínimo de € 21 500; c) do prédio urbano sito no Largo …, nºs 3 e 5, em …, composto pelas frações B, C e D do prédio, em regime de propriedade horizontal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 2338, da freguesia de …, Concelho de … e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 467, pelo valor mínimo de € 397 000. Na aludida decisão foi fixado em quatro meses o prazo para o requerente vir juntar as escrituras públicas de compra e venda dos referidos imóveis e ainda para comprovar nos autos o depósito da quantia correspondente à parte do preço obtido pelas vendas dos imóveis pertencentes à interdita, em conta bancária da qual aquela seja titular, singular ou conjuntamente.
Extrai-se das contas apresentadas pela autora que a proveniência da receita que configura a primeira das verbas, no montante de € 13 500, decorre da venda do prédio a que alude a alínea c), operada através de escritura pública outorgada a 02-07-2008, reportando-se à parte do preço que caberia a BB, sendo certo que foi efetuado o depósito de igual montante correspondente à quota-parte devida à interdita. Conforme decorre do ponto 14-A da factualidade provada, esta primeira verba relativa a receita mostra-se justificada.
Quanto à receita que configura a segunda das verbas, no montante de € 21 500, extrai-se das contas apresentadas que decorre da venda da quota ideal de 1/3 do prédio a que alude a alínea b), operada através de escritura pública outorgada a 05-12-2008.
A respeito desta verba, considerou o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão proferido na revista, o seguinte:
(…) na apreciação da receita de € 21.500,00 que ali figura nas contas apresentadas a favor dessa herança, como sendo devida integralmente ao “de cujus”, deverá ser tido agora em linha de conta o facto de o autor da herança BB, falecido em 22-02-2011, ter sucedido também no património da sua mulher DD, falecida em 25/01/2009, como decorre do auto de declarações de cabeça de casal reproduzido a fls. 8-9.
Como tal, verificando que a verba em causa respeita ao preço obtido pela venda de 1/3 do imóvel, a qual pertencia à interdita e a seu marido BB, face ao ponto 14 da factualidade provada, mostra-se justificada esta verba relativa a receita.
Não tendo a autora feito constar das contas que apresentou qualquer outra verba, mostra-se deslocada a argumentação constante das respetivas alegações, no sentido de ser tida em conta receita superior à constante das verbas em causa, supra analisadas.
Por outro lado, não tendo a ré apresentado contas, nem constando das contas apresentadas pela autora qualquer verba relativa a despesas, carece de fundamento fáctico a argumentação constante das alegações da ré, na parte em que pretende se atenda ao pagamento de dívidas com o produto das vendas efetuadas.
Em suma, analisadas as verbas constantes das contas apresentadas, cumpre considerar apurada receita no montante de € 35 000, pelo que, perante a inexistência de despesa apurada, se verifica a existência de um saldo positivo no valor de € 35 000.
Nesta conformidade, há que considerar prestadas as contas e condenar a ré no pagamento à autora da quantia de € 35 000, correspondente ao saldo apurado.»
Assim, o Tribunal da Relação apreciou a justificação das receitas de € 21.500,00 e de € 13.500,00 a favor da herança aberta por óbito BB, em função da prova produzida, em especial da perícia realizada nos autos, e do mecanismo cominatório estabelecido no artigo 943.º, n.º 2, do CPC em sede do processo de prestação de contas. E, com base no critério da livre apreciação da prova pericial editado pelo artigo 389.º do CC e do prudente arbítrio do julgador a que se refere o art.º 943.º, n.º 2, do CPC, apurou um saldo positivo a favor daquela herança no valor total de € 35.000,00 (€ 21.500,00 + 13.500,00).
Além disso, tendo também em consideração o facto provado no ponto 1.10 da factualidade acima consignada de que a R. não entregou a BB os montantes pecuniários obtidos com a venda dos imóveis, condenou-a no pagamento à A. desse saldo.
Como decorre do anteriormente exposto, aquela valoração da prova feita segundo o critério da livre apreciação e do prudente arbítrio do julgador não colide, minimamente, com o facto dado como plenamente provado de que o vendedor BB, no âmbito das escrituras públicas realizadas em 02/07/2008 e de 05/12/2008, reconheceu perante os respetivos compradores já ter recebido os montantes correspondentes ao preço das vendas ali celebradas.
E não colide porquanto, como também foi dito e convém reiterar, aquele reconhecimento não significa que BB tenha reconhecido que a R. lhe tenha feito a entrega de tais valores, por ela obtidos com a venda dos imóveis, na execução do contrato de mandato entre eles existente.
Em suma, a prova dos factos constantes dos pontos 1.10 e 1.14 - consistentes em que a R., na qualidade de mandatária de BB, diligenciou pela concretização das sobreditas vendas (ponto 1.10) e não lhe entregou os montantes pecuniários obtidos com a venda dos imóveis (ponto 1.14) - não contraria a eficácia probatória legal plena das sobreditas declarações confessórias feitas pelo vendedor aos respetivos compradores.
Assim, sendo o acórdão recorrido não incorre em violação de qualquer das disposições dos artigos 355.º, n.ºs 1 e 4, 358.º, n.º 2, 369.º, 370.º 371.º e 372.º do CC, ao contrário do que sustenta a Recorrente.
Termos em que se impõe negar a revista.
IV - Decisão
Pelo exposto, acorda-se em negar a revista e confirmar a decisão recorrida.
As custas dos recursos interpostos pela R. aqui em apreço, bem como da ação na parte em que a mesma decaiu, são da sua responsabilidade.
Lisboa, 7 de outubro de 2020
Manuel Tomé Soares Gomes
Maria da Graça Trigo
Maria Rosa Tching
Nos termos do artigo 15.º-A do Dec.-Lei n.º 10-A/2020, de 13-03, aditado pelo Dec.-Lei n.º 20/20, de 01-05, para os efeitos do disposto no artigo 153.º, n.º 1, do CPC, atesto que o presente acórdão foi aprovado com o voto de conformidade das Exm.ªs Juízas-Adjuntas Maria da Graça Trigo e Maria Rosa Tching, que não assinam pelo facto de a sessão de julgamento (virtual) ter decorrido mediante teleconferência.
Lisboa, 7 de outubro de 2020
O Juiz Relator
Manuel Tomé Soares Gomes
________
[1] A este propósito e no sentido exposto, veja-se PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª Edição revista e atualizada, Coimbra Editora, 1987, nota 1, pag. 328.