NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
AMBIGUIDADE
OBSCURIDADE
REFORMA DE ACÓRDÃO
LAPSO MANIFESTO
Sumário

I. - A falta de especificação dos fundamentos da decisão só terá o efeito previsto no art. 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil desde que a falta de fundamentação seja absoluta.
II. - A ambiguidade ou obscuridade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil só releva quando torne a parte decisória ininteligível.
III. - A ambiguidade ou obscuridade prevista na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil só torna a parte decisória ininteligível “quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar”.
IV.- A reforma prevista no art. 616.º do Código de Processo Civil pressupõe um lapso manifesto, revelado por referência a elementos exteriores.

Texto Integral

ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. — RELATÓRIO

 1. AA propôs a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, gerente comercial, CC, advogado, casado com a 1.ª Ré, e DD, agente de execução, pedindo que se:

I. — declare nula a venda efectuada pela 3.3 ré, na qualidade de agente de execução, no processo 9505/12.0….1, do Tribunal Judicial da Comarca de … - … -JL Criminal - Juiz …, mediante a qual foi vendido (adjudicado) à primeira ré, BB, 34 indiviso do prédio urbano, situado na Rua … n.º 49, a 49- B, da freguesia de … concelho de …, composto por casa do rés-do-chão com habitação de porteira, quatro andares e logradouro, prédio que se encontra descrito na CRP de Lisboa, sob a ficha n.º 3…9/20080929, da Freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana, na freguesia de … sobre o artigo 2328, ou, quando assim se não entenda:

II. — Anulada a mesma venda,

III. — A título de pedido subsidiário, em caso de improcedência de qualquer um dos pedidos anteriores, o que por mera hipótese se admite, declarado que o autor é usufrutuário vitalício das fracções referentes ao 1.º andar direito e esquerdo, rés-do-chão e casa da porteira do acima identificado prédio e que o mesmo tem eficácia ergo omnes e não caduca com a venda executiva, nos termos dos artigos 824.º n.º 2 do Código Civil, ordenando-se aos réus a obrigação de reconhecerem esse direito e, por via disso, se absterem de qualquer ato que esbulhe, perturbe ou cause qualquer diminuição ao seu pleno exercício; quando se entenda de modo diferente:

IV. — Que o autor tem o direito real de uso e habitação vitalício das fracções referentes ao l.s andar direito e esquerdo, rés-do-chão e casa da porteira do mesmo prédio e que o mesmo tem eficácia ergo omnes e não caduca com a venda executiva, nos termos do artigo 824.º n.º 2 do Código Civil, ordenando-se aos réus a obrigação de reconhecerem esse direito e, por via disso, se absterem de qualquer ato que esbulhe, perturbe ou cause qualquer diminuição ao seu pleno exercício.

V. — Em todo e qualquer um dos pedidos que venha a proceder, ordenado o averbamento na conservatória do registo predial da sentença que vier a ser proferida ordenando o cancelamento do registo da compra efectuada pela ré BB.

VI. — Em qualquer caso, devem os réus serem reconhecidos como litigantes de má-fé, e consequentemente, condenados no pagamento de uma multa e indemnização condigna a favor do autor um montante não inferior a 200.000,00€.

 2. O Tribunal de 1.ª instância, considerando que os RR. ainda não se encontravam citados, proferiu despacho, nos termos do art. 590.º do Código de Processo Civil, indeferindo liminarmente a petição inicial.

 3. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação.

 4. O Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida. 

  5. Inconformado, o Autor AA interpôs recurso de revista.

 6. Em 23 de Janeiro de 2020, foi proferido despacho de remessa dos autos à Formação prevista no art. 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

7. Em 28 de Abril de 2020, a Formação prevista no art. 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil proferiu acórdão por que admitiu a revista excepcional.

  8. Em 25 de Junho de 2020, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão em que negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.

 9. O Autor AA vem agora reclamar do acórdão de 25 de Junho de 2020, arguindo a sua nulidade, ao abrigo do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alíneas b), c) e d) in fine, por remissão do artigo 666.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

 10. Fundamenta a sua reclamação nos seguintes termos:

1. s. d. r., que é muito, o acórdão erra nos pressupostos quer de fato quer de direito.

2. Dificilmente se pode verificar uma situação de litispendência entre uma ação declarativa de condenação, fundada na responsabilidade for fatos ilícitos, e um processo de execução.

3. Quando muito, a haver litispendência, poderia ser entre algum dos incidentes declarativos enxertáveis no processo de execução v. g., oposição à execução e/ou oposição à penhora ou no incidente de reclamação de créditos e uma ação declarativa, na qual, verificados os demais pressupostos, se pretendesse o mesmo efeito jurídico.

4. O acórdão não atentou que na execução 9505/12 não só não estava pendente qualquer incidente declarativo que pudesse brigar com a presente ação, como não foi proferida qualquer sentença em incidente declarativo que constitua caso julgado que, ainda assim, seria sempre formal e não material.

5. Certamente por erro/dificuldade nossa, não expusemos com clareza a questão e, por isso, este coletivo não alcançou a pretensão validamente formulada em juízo.

6. A formação que admitiu a revista percebeu a questão, mas o acórdão deslocou-a para outro campo.

7. Esta ação tem como fundamento a conduta ilícita, aliás, ilícito-penal de um agente de execução praticada num concreto processo judicial, vindo alegados os respetivos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual ou delitual, mormente: o facto; a ilicitude desse mesmo facto (ilicitude que pode revestir duas modalidades, traduzindo-se na violação do direito de outrem ou na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios); o nexo de imputação do facto ao lesante; odanoe finalmente, onexode causalidade entre ofactoe odano. - Cfr. Ac. da RL de 16.11.2017, processo 12597-15 in www.dgsi.pt.

8. Em caso algum, no processo de execução se aciona e declara a responsabilidade civil por fatos ilícitos praticados pelo agente de execução ou quem quer que seja no decurso desse mesmo processo.

9. O que per se seria suficiente para afastar qualquer possibilidade de litispendência.

10. Como entra pelos olhos adentro, a reclamação contra os atos do agente de execução, prevista no artigo 723.º/1 al. c) do CPC, não tem natureza de incidente declarativo e, por isso mesmo, não colide com a ação declarativa que posteriormente se venha a intentar visando a responsabilidade por fatos ilícitos.

11. Esta ação é posterior não só ao processo de execução como outrossim aos atos ilícito-penais nele praticados.

12. E nesta ação trata-se de matéria diversa da que é escopo da execução onde, como se sabe, nada rectius nenhum direito se define ou se acerta.

13. O acórdão sub judice não curou de considerar, em face dos fatos assentes pelas instâncias, o estado da execução 9505/12 quer à data da instauração da ação quer à data da prolação do acórdão.

14. É que se o tivesse feito,como se lhe impõe, enquanto órgão jurisdicional, comumaacrescidafunçãodoutrináriaouguiadora,facilmente concluiria diferentemente do vazado para o acórdão, pois que verificaria que a execução está finda e os recursos admitidos, e, entretanto, rejeitados, não colidem com a matéria desta ação.

15. Ainda assim, e de todo o modo, sempre cabe referir que a questão, a haver, não é de litispendência, mas, ao invés, de causa prejudicial, sendo que não sendo possível neste caso a suspensão da execução suspender-se-ia a presente ação. Com efeito,

16. É de aplicar ao caso sub judice a jurisprudência deste alto tribunal, no seu acórdão de 06.07.2017, processo 1220/15 in www.dgsi.pt, segundo a qual:

I - A litispendência, pressupondo a repetição da mesma ação em dois processos, depende, pois, da verificação cumulativa da identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir, de modo a evitar contradizer ou reproduzir decisão anterior.

II - A litispendência pode andar próxima da situação prejudicial, na qual pode existir, também, o risco de contradição ou reprodução de uma decisão judicial anterior.

III -Estando pendente causa prejudicial, a solução passa pela suspensão da instância,nomeadamente nos termos previstos noart.272.ºdoCódigo de Processo Civil.

17. Como e se bem que compreendemos o acórdão sub judice, a litispendência equacionada pelo mesmo terá a ver com a possibilidade de se obterem efeitos idênticos quer na presente ação quer na execução, qual seja a possibilidade de anular em qualquer um deles a criminosa venda judicial.

18. É, porém, uma possibilidade mais aparente do que real porque:

a) No processo de execução a apreciação da eventual ilegalidade dos atos praticados pelo agente de execução é meramente cassatória, baseada numa avaliação perfuntória dos documentos apresentados; ao passo que

b) Esta ação declarativa é um processo de partes e de contencioso puro, de plena jurisdição e com produção de prova.

c) E no processo de execução não se aprecia a responsabilidade civil por atos ilícito-penais praticados pelo agente de execução, mas, sim, na respetiva ação de responsabilidade civil por atos ilícitos.

19. Sendo isto assim, vê-se que, quando muito, haveria lugar à suspensão da instância e não absolvição porque não se verifica qualquer litispendência.

20. Ademais falta, desde logo, a identidade de partes, já que na execução partes são a exequente e o executado e, ao invés, nesta ação partes são o autor, e réus o agente de execução, exequente e comprador, demandados por responsabilidade civil aquiliana.

21. Também no que concerne à causa de pedir, s. d. r. não há repetição da mesma, inexistindo, portanto, qualquer possibilidade contradição entre julgados, porque “Qualquer eventual atuação dolosa ou negligente do agente de execução, mormente, na fase de realização da penhora, apenas o poderá fazer incorrer em responsabilidade civil, nos termos gerais, preenchidos que se encontrem os requisitos previstos no artigo 483º do Código Civil, não sendo fundamento de oposição à penhora. – Ac. da RL de 12.05.2016, processo 20516/10 in www.dgsi.pt.

22. Outrossim o Tribunal de Conflitos teve oportunidade de fixar competência de que “…entendemos que no domínio dalegislação aplicável ao caso, a responsabilidade civil extracontratual dos agentes de execução tem natureza privada, regendo-se pelos artigos 483º e seguintes do CC.” – Ac. do Tribunal de Conflitos de 01.02.2018, processo 018/17 in www.dgsi.pt

23. Na jurisdição administrativa não é diversa a jurisprudência, pois, inter alia decidiu-se que “A responsabilidade civil extracontratual que aos agentes de execução for imputada no exercício das respetivas funções profissionais e por causa delas obedece ao regime geral da responsabilidade por factos ilícitos, previsto no art 483º e seguintes do Código Civil.” Ac. do TCA – Sul de 22.11.2019, processo 1184/16 in www.dgsi.pt e já assim o acórdão de 28.06.2018 do mesmo tribunal.

24. Note-se ainda que, ao invés do que decidiram as instâncias e aparenta ser pressuposto no acórdão sub judice, não só não existe um ónus de concentração de reação contra os atos do agente de execução como no processo executivo não se dá qualquer caso de preclusão em relação a estes.

25. Na verdade, “…deixando de invocar um qualquer fundamento (exceção) contra a execução, não poderá falar-se de um efeito preclusivo para além do próprio processo executivo, de modo que nada impedirá que o executado venha depois a invocar num outro processo o fundamento (a exceção) omitido e que sempre podia ter invocado na oposição.” – Ac. do STJ de 19.03.2019, processo 751/16 in www.dgsi.pt.

26. Também e dito de outro modo, “a não utilização dos meios de defesa na execução não preclude a posterior invocação de exceções ao direito exequendo em outras ações (sendo que o efeito preclusivo se verifica no processo executivo e relativamente aos meios de defesa específicos desse processo) eque, quando utilizados, as decisões demérito nela proferidas formam caso julgado material apenas quanto às concretas exceções apreciadas, por inexistência na execução de ónus de concentração da defesa.” -Ac. da RL de 16.01.2018,processo 1301/12 in www.dgsi.pt.

27. Lapidarmente e após citar ensinamentos derivados de, aliás, douta jurisprudência, esclarece-se neste acórdão que “Não releva para a apreciação da subsidiariedade do enriquecimento sem causa a possibilidade de aproveitamento dos trâmites de natureza processual da execução (e.g. oposição à execução e reclamação), que não podem ser tidos como meios específicos de desfazer uma ilegítima deslocação patrimonial. Essa deslocação patrimonial, ademais, se concretiza no momento em que ao exequente foi facultada a disponibilidade das quantias obtidas na execução (ou quando muito quando tais quantias são disponibilizadas na execução), pelo que nesse momento haverá de aferir-se da subsidiariedade do enriquecimento sem causa; e nesse momento é por demais evidente que que o executado não tem qualquer outro meio para desfazer aquela deslocação patrimonial.”.

28. O senhor professor Miguel Teixeira de Sousa, ainda que numa questão não rigorosamente idêntica, refere que “Os reflexos de uma decisão de procedência proferida numa dessas ações na apreciação da outra ação concorrente não são reconduzíveis, dada a sua diferença subjetiva e objetiva, à autoridade ou à exceção de caso julgado, mas a produção dessasentençade fundamentação afetao interesse processual das partes nesta outra causa concorrente e justifica a sua extinção por inutilidade superveniente.”. in Exceção de Litispendência – Casos julgados contraditórios – Efeitos duplos, À memória do Dr. Vasco de Castro, pág. 850

29. Isto para dizer que, a haver identidade do pedido, o que não se vê como, a solução em concreto passaria por, face à instauração desta ação, se declarar no processo de execução a inutilidade superveniente dos atos (declarativos) que eventualmente colidissem com esta e ainda estivessem pendentes, questão que, de resto, nem sequer se coloca.

30. Ademais, cabe sempre relembrar que os tribunais ou o ordenamento jurídico não podem encaminhar os cidadãos para becos sem saída, o que não sucede neste caso.

31. Ficam os recorridos premiados ou impunes por engrupirem de forma tão grave os tribunais?

Nestes termos, nos melhores de Direito,

E sempre com o mui douto e mais erudito suprimento de vossas excelências, egrégios juízes conselheiros, deve ser reformado o acórdão sub judice, e, consequentemente, substituído por outro que revogando a dupla conforme ordene o normal prosseguimento da presente ação, pois só assim se fará justiça e correta aplicação do direito adjetivo.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

11. O art. 615.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, aplicável aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça por remissão dos arts. 666.º e 585.º, é do seguinte teor:

É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

  12. O agora Reclamante alega que a decisão impugnada viola as alíneas b), c) e d), in fine, do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil, sem explicar em que consistiria a alegada falta de especificação dos fundamentos de facto ou de direito da decisão — relevante para efeitos da alínea b) —, em que consistiria a alegada contradição, ambiguidade ou obscuridade da decisão — relevantes para efeitos da alínea c) — ou qual teria sido a questão que o Supremo Tribunal de Justiça tivesse conhecido e de que não pudesse ou não devesse tomar conhecimento — relevante para efeitos da alínea d), in fine.

  13. Em tema de arguição da nulidade, por falta de especificação dos fundamentos da decisão, chamar-se-á a atenção para que “a jurisprudência tem vindo a interpretar, de forma uniforme, [a alínea b) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil] no sentido de que apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão” [1].

  14. Os fundamentos da decisão, especificados nos n.ºs 18 a 34 do acórdão impugnado, estão completamente de acordo com a decisão de negar provimento ao recurso interposto pelo agora Reclamante.

  15. Em tema de obscuridade da decisão, ou da fundamentação da decisão, chamar-se-á a atenção para duas coisas.

 16. Em primeiro lugar, para que que a ambiguidade ou obscuridade previstas na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º só releva quando torne a parte decisória ininteligível [2] e, em segundo lugar, que a ambiguidade ou obscuridade só torna a parte decisória ininteligível “quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar” [3].

  17. Ora a parte decisória do acórdão reclamado é do seguinte teor — “Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido” — e o teor da parte decisória do acórdão reclamado é inteligível (tem um sentido unívoco).

  18. O problema pôr-se-ia em termos em tudo semelhantes, ainda que a reclamação devesse interpretar-se como um requerimento de reforma do acórdão recorrido.

 19. O art. 616.º do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

1. — A parte pode requerer, no tribunal que proferiu a sentença, a sua reforma quanto a custas e multa, sem prejuízo do disposto no n.º 3.

2. — Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz:

a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos;

b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.

3. — Cabendo recurso da decisão que condene em custas ou multa, o requerimento previsto no n.º 1 é feito na alegação.

  20. A doutrina e a jurisprudência chamam constantemente a atenção para que o texto do n.º 2 do art. 616.º do Código de Processo Civil pressupõe um lapso manifesto, revelado por referência a elementos exteriores [4]. Ora, como se escreve no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Maio de 2010, proferido no processo n.º 364/04.4TBPCV.C1.S1,

“lapso manifesto será o erro grosseiro, um evidente engano, um desacerto total no regime jurídico aplicável à situação ou na omissão ostensiva de observação dos elementos dos autos”.

    Entre os casos de lapso manifesto na determinação da norma aplicável estão aqueles em que o juiz aplique uma norma que não esteja em vigor, p. ex., por ter sido revogada, e aqueles em que o juíz não aplique uma norma que esteja em vigor [5]. Entre os casos de lapso manifesto na qualificação jurídica dos factos, ou seja, na coordenação dos factos às normas aplicáveis, estão aqueles em que haja “ofensa de conceitos… elementares”, ou de “princípios elementares de direito” [6].

   Entre os casos de lapso manifesto na apreciação das provas estão aqueles em que “o juiz… não repare que está feita a prova documental, por confissão ou por admissão de certo facto, incorrendo assim em erro grosseiro que determine a decisão… tomada” [7].

           

   21. Como se escreve no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Fevereiro de 2009 — proferido no processo n.º 08A2680 —,

“O incidente de reforma não deve ser usado para manifestar discordância do julgado ou tentar demonstrar error in judicando (que é fundamento de recurso) mas apenas perante erro grosseiro e patente, ou aberratio legis, causado por desconhecimento, ou má compreensão, do regime legal” [8].

  22. O agora Reclamante não conseguiu demonstrar nenhum um “desacerto total” ou “erro grosseiro” na aplicação ao caso da directriz substancial traçada pelo art. 580.º, n.º 2, do Código de Processo Civil — conseguiu, tão-só, exprimir a sua discordância do julgado.

III. — DECISÃO

    Face ao exposto, indefere-se a presente reclamação.

   Custas pelo Reclamante AA, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

Lisboa, 8 de Outubro de 2020

Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)

José Maria Ferreira Lopes

Olindo dos Santos Geraldes

    Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos Exmos. Senhores Conselheiro Olindo dos Santos Geraldes e José Maria Ferreira Lopes.

_________

[1] Vide, por último, António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao art. 615.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), Livraria Almedina, Coimbra, 2018, pág, 736-738 (737).

[2] José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 615.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018 (reimpressão), págs. 733-740 (735).

[3] José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 615.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, cit., pág. 735.

[4] Cf. designadamente José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 616.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018 (reimpressão), págs. 740-743 (742).

[5] José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 616.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, cit., pág. 742.

[6] José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 616.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, cit., pág. 742.

[7] José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 616º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, cit., pág. 742.

[8] Em termos em tudo semelhantes, vide, p. ex., o acórdão do STJ de 4 de Maio de 2010 — processo n.º 364/04.4TBPCV.C1.S1.