I - Nos termos do artº 3º/1 do DL 172-B/86, de 30 de Junho, diploma que autoriza a emissão de certificados de aforro, diz que estes certificados são nominativos, reembolsáveis, só transmissíveis por morte e assentados apenas a pessoas singulares.
II - O termo inicial do prazo para a extinção de direitos consagrada no n.º 2 do art. 7.º do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho dependia do conhecimento do óbito e da existência dos certificados de aforro.
III - Tendo a autora tido conhecimento da existência dos certificados de aforro em Junho de 2013, tendo elaborada a escritura de habilitação de herdeiros referente ao seu pai em 10.07.2013 e nesta mesma data desencadeado o pedido de reembolso dos certificados de aforro do seu pai, tendo a acção dado entrada em 12.10.2016, não ocorreu a prescrição do direito da autora.
I - RELATÓRIO
AA intentou acção declarativa sob a forma de processo comum contra Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, IGCP, EPE, pedindo que seja reconhecida a propriedade plena dos certificados de aforro junto do IGCP, da série B e que a ré seja condenada ao reembolso dos aludidos certificados, procedendo ao pagamento à autora de € 120.669,32.
Em síntese, alegou que o pai da autora era aforrista, tendo falecido em … de Outubro de 1996. Deixou como herdeiras a autora e a sua mãe, a qual sofria de Alzheimer e nunca deu conhecimento à autora da existência de certificados de aforro.
Apenas em Junho de 2013 a autora descobriu dentro de um cofre que a mãe tinha na Caixa Económica Montepio Geral, os certificados de aforro titulados pelo seu pai.
A mãe da autora faleceu no dia … de Maio de 2015, sendo a autora a sua única herdeira.
A autora dirigiu em nome de sua mãe, incapaz, um pedido aos serviços da ré, de modo a proceder ao pedido de reembolso dos aludidos certificados de aforro, pretensão que lhe foi negada com a invocação que a pretensão se encontrava “fora do prazo estabelecido legalmente para o efeito – cinco anos após o óbito do titular”.
Foi, contudo, concedido à mãe da autora um direito à sua meação e considerada a outra parte prescrita.
Os certificados de aforro apenas foram descobertos em Junho de 2013, não podendo a autora, única herdeira de seu pai, exercer um direito que desconhecia, pelo que não ocorreu a prescrição.
A ré contestou e excepcionou a prescrição do direito invocado pela autora, referindo que in casu, se aplica o prazo prescricional de 5 anos, uma vez que o óbito ocorreu em data anterior a 04.05.1997- antes da entrada em vigor do DL nº 122/2002, de 4 de Maio, que veio prolongar o prazo de prescrição para 10 anos.
O pedido da ré do reembolso dos CA do aforrista falecido verificou-se com o processo de habilitação de herdeiras, desencadeado pela autora com procuração da sua mãe, em 10.07.2013.
Naquela data já tinha decorrido mais de 17 anos após a morte do aforrista. Não é juridicamente relevante que os herdeiros aleguem ter para que a prescrição seja decretada, nada obstando a que seja decretada a prescrição dos CA do aforrista falecido.
Deduziu pedido reconvencional, invocando que à data da solicitação do reembolso dos certificados, em virtude do seu casamento com o de cujus e do direito à meação. Nesta conformidade, a ré ordenou o crédito na conta e NIB que lhe foi apresentado da quantia de € 120.669,32, correspondente a metade do valor dos CA àquela data, excluindo os emolumentos devidos.
Tal actuação foi incorrecta, porquanto os pais da autora eram casados sob o regime da separação de bens e neste regime não existe direito à meação dos CA
O erro dos serviços apenas agora foi detectado, motivo pelo qual a autora peticiona a restituição da quantia que foi indevidamente paga pela ré.
Terminou peticionando que o tribunal declare a nulidade do acto praticado pela ré, com base em erro e que a autora seja condenada a restituir à ré a quantia de € 120.669,32.
Caso assim não se entenda, deve o tribunal anular o acto nos termos do artº 287º do Código Civil e condenar a autora a restituir o montante referido.
A autora replicou, sustentando a ilegitimidade da ré enquanto reconvinte, porquanto o valor a ser eventualmente devolvido não o será à ré mas ao Fundo de Regularização da Dívida Pública. Invocou ainda a ilegitimidade da autora enquanto reconvinda. Alegou que, mesmo que a posição da ré, reconvinte, procedesse, a mesma apenas poderia peticionar a anulabilidade do negócio e nunca a sua nulidade. A anulabilidade só pode ser arguida dentro do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento.
O erro alegadamente invocado pela ré terá ocorrido em 13.09.2013 e nessa data a mesma já se encontrava na posse de documentação da qual consta o regime de casamento dos pais da autora, pelo que a ré teria, quando muito, até 30.08.2014 para peticionar a anulabilidade do negócio, encontrando-se esgotado o prazo legal. A ré reconvinte actua em abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
Concluiu pela sua absolvição da instância relativamente ao pedido reconvencional, ou caso assim não se entenda, pela absolvição do pedido.
A autora replicou às excepções deduzidas na réplica.
No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade.
Por sentença proferida em 06.06.2019, foi julgada a acção procedente e, em conformidade, reconheceu que a titularidade dos certificados de aforro de que foi titular o falecido BB se transmitiu mortis causa para a autora sua herdeira, juntamente com a sua mãe e única herdeira desta entretanto falecida. Condenou a ré a pagar à autora a quantia de €120.669,32 e julgou a reconvenção improcedente absolvendo a autora do pedido reconvencional.
A ré recorreu e a Relação, por acórdão de 19.12.2019, julgou improcedente a apelação e confirmou a sentença recorrida.
A ré interpôs recurso de revista excepcional, alegadamente “nos termos do nº 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil”, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
ii. Independentemente do alegado desconhecimento dos herdeiros, o início do prazo de prescrição aplicável aos certificados de aforro da série B conta-se desde a morte do aforrista, conforme resulta do disposto no artigo 7º do Decreto-Lei nº 172-B/ 86, de 30 de junho e só se suspende ou interrompe uma vez verificada alguma das causas taxativas previstas na lei civil.
ii. Subsidiariamente ao artigo 7º do Decreto-Lei nº 172-B/ 86, de 30 de Junho, aplica-se o previsto no artigo 14º da Lei n.º 7/98, de 3 de Fevereiro e, subsidiariamente a este preceito, os artigos relativos à suspensão e interrupção da prescrição previstos na lei civil – artigos 318.º a 327.º do Código Civil.
iii. Caso se entenda que de alguma forma o artigo 306º da lei civil se aplica aos produtos de aforro, determinar que a expressão “… quando o direito puder ser exercido ...” se refere objetivamente à morte do aforrista como factor determinante para o direito poder ser exercido e para o início da contagem do prazo de prescrição.
iv. O registo de produtos aforro existe desde a sua criação em 1960, uma vez que os certificados de aforro têm natureza escritural e nominativa e a disponibilização da informação relativa à conta aforro dos aforristas falecidos constante desse registo de produtos de aforro sempre esteve disponível para os herdeiros, mesmo antes da publicação do Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de Junho.
Termina, pedindo que seja admitido o presente recurso de revista excecional, nos termos do nº 1 do artº 672º do CPC.
Caso assim não se entenda, deve ser admitido o presente recurso de revista nos termos gerais, conforme dispõe o nº 5 do artº 672º do CPC e, em qualquer dos casos, decretar procedente a exceção peremptória de prescrição do direito da autora e, consequentemente, revogar o acórdão recorrido.
A autora contra-alegou, pedindo que seja julgada improcedente a revista excepcional e pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.
A Formação a que se refere o artigo 672º nº 3 do Código de Processo Civil, por acórdão de 15.09.2020, admitiu a revista excepcional.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
A) Fundamentação de facto
Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:
1º- A autora é a única filha de BB e de CC, falecido o primeiro em 27/10/1996, no estado de casado com a segunda, em primeiras núpcias de ambos, no regime de separação de bens e falecida esta em 2/5/2015.
2º - O referido BB deixou como únicos herdeiros a sua mulher e a ora autora.
3º - A referida CC deixou como única herdeira a ora autora.
4º- Nenhuma das referidas heranças abertas por aqueles óbitos foi partilhada.
5º - BB foi titular de Certificados de Aforro (CA), designados da série B, sendo que, à data do seu óbito, os valores da sua conta aforro correspondiam a 36.000 unidades, respeitantes a 5 CA da série B, com o valor de € 130.588,48.
6º - Após o óbito daquele, não foram registados resgates na sua conta aforro.
7º- A ré procedeu à imobilização da conta aforro em questão em 5/6/2012 e, na mesma data, transferiu o valor de € 235.674,80 da mencionada conta para o Fundo de Regularização da Dívida Pública (FRDP).
8º- Em 10/7/2013, a autora desencadeou o pedido de reembolso dos CA do seu pai, com procuração de sua mãe, mediante apresentação à ré do documento a que se refere fls. 41 verso e 42.
9º - Essa reclamação foi acompanhada de cópia da escritura de habilitação de herdeiros referente ao seu pai, onde consta o seu estado civil à data do falecimento e o regime de bens do casamento.
10º- Esse pedido mereceu a resposta da ré à referida CC, datada de 19/9/2013, a que se refere a cópia de fls. 46 verso., sendo de salientar, do seu teor, o seguinte: “(…) habilitação essa que se encontra fora do prazo estabelecido legalmente para o efeito – cinco anos após o óbito do seu titular. Assim sendo, o Conselho de Administração desta Instituição, em reunião de 30 do mês findo, deliberou considerar metade das unidades dos certificados em causa como prescritos nos termos da lei (…) reconheceu o direito à meação da parte que lhe corresponde. Mais informamos que em 13 do corrente foi ordenado o crédito na conta em seu nome, com o NIB (…) do montante de € 120.669,32, relativo ao assunto acima referenciado”.
11º - Em 13/9/2013, a ré ordenou o crédito na conta bancária indicada para o efeito pela autora, da quantia de € 120.669,32, correspondente a metade do valor dos CA titulados pelo referido BB, excluindo os emolumentos devidos, tendo sido a outra metade transferida para o FRDP.
12º- Os certificados de aforro referidos em 5º encontravam-se depositados num cofre existente na Caixa Económica Montepio Geral, de que a mãe da autora era titular.
13º- A autora teve conhecimento da existência dos certificados de aforro referidos em 5º em Junho de 2013.
14º- A mãe da autora padecia da doença de Alzheimer que, a partir de 2007, a incapacitava de proceder à reclamação dos certificados de aforro titulados pelo referido BB e de dar conhecimento à autora da existência dos mesmos.
15º- O reembolso efectuado pela ré a favor da referida CC nos termos referidos em 11º ficou a dever-se a erro dos serviços, quanto ao regime de casamento dos pais da autora.
16º - A ré apercebeu-se do erro referido em 15º em Junho de 2016.
Factos Não Provados
- Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão dos autos, não tendo ficado demonstrado que: a) à data do óbito de BB, pai da A., a mãe desta se encontrasse incapacitada de proceder à reclamação dos certificados de aforro titulados por aquele e de dar conhecimento à autora da existência dos mesmos.
B) Fundamentação de direito
A questão jurídica que nos compete apreciar, à luz das conclusões da minuta recursória da ré consiste em saber se, independentemente do alegado desconhecimento dos herdeiros, o início do prazo de prescrição aplicável aos certificados de aforro da série B conta-se desde a morte do aforrista, conforme resulta do disposto no artigo 7º do Decreto-Lei nº 172-B/ 86, de 30 de Junho e só se suspende ou interrompe uma vez verificada alguma das causas taxativas previstas na lei civil. Ou se, pelo contrário, o prazo da prescrição apenas começa a correr a partir do momento em que o herdeiro do primitivo titular dos certificados de aforro teve conhecimento da sua existência.
Cumpre decidir.
Tanto o acórdão recorrido como a sentença da 1ª instância decidiram com a mesma fundamentação, ou seja, ambos consideraram – contrariamente à tese da ré - que o direito da autora, única herdeira, ao reembolso da quantia peticionada e discriminada nos certificados de aforro, prescreve a contar da data em que a mesma teve conhecimento da existência dos certificados de aforro e não da data em que ocorreu a morte do aforrista, pai da autora.
No acórdão em que admitiu a revista excepcional, a Formação a que se refere o artigo 672º nº 3 do Código de Processo Civil citou vários acórdãos deste Supremo Tribunal, do STA e das Relações que, sem discrepâncias, têm entendido que “ à determinação do termo inicial do prazo de prescrição do direito de pedir o reembolso ou transmissão dos certificados de aforro de que era titular o de cujus não basta o facto (neutro) morte deste, exigindo-se também a aquisição pelos herdeiros do conhecimento da existência de tais certificados de aforro”.
Em sentido oposto, refere a Formação que só detectou o acórdão fundamento invocado pela recorrente, que é o da Relação de Lisboa de 05.05.2005 (Cfr fls 284 e 285 e junto a fls 245 a 249), assim sumariado[1]:
“I - O direito dos herdeiros do aforrista de requererem a transmissão dos certificados de aforro integradores da herança daquele pode ser exercido, como decorre da lei, a partir da morte do mesmo aforrista. Isto porque o direito se constitui com o facto do decesso do aforrista, podendo a partir desse momento ser exercido.
II - O facto de os herdeiros, por circunstâncias alheias à sua vontade, apenas tomarem conhecimento da existência dos certificados de aforro mais de cinco anos volvidos sobre a morte do aforrista, não integra uma situação que suspenda ou interrompa a prescrição.
III - A prescrição em causa só não se teria verificado, se se tivesse suspendido ou interrompido nas situações previstas nos artigos 318º a 327º do CC, que têm de ser entendidas como taxativas e que no caso se não verificam, designadamente por não estamos em face de um caso de força maior”.
Rememorando os factos essenciais:
- A autora é a única filha de BB e de CC, falecido o primeiro em 27/10/1996, no estado de casado com a segunda, em primeiras núpcias de ambos, no regime de separação de bens e falecida esta em 2/5/2015.
- Os referidos BB e esposa CC deixaram como únicos herdeiros e a ora autora.
- BB foi titular de Certificados de Aforro (CA), designados da série B, sendo que, à data do seu óbito, os valores da sua conta aforro correspondiam a 36.000 unidades, respeitantes a 5 CA da série B, com o valor de € 130.588,48.
- A autora teve conhecimento da existência dos certificados de aforro em Junho de 2013 e, em 10/07/2013 desencadeou o pedido de reembolso dos CA do seu pai, com procuração de sua mãe, mediante apresentação à ré do documento a que se refere fls. 41 verso e 42.
Por conseguinte, mal teve conhecimento da existência dos certificados de aforro (Junho de 2013) desencadeou logo o pedido de reembolso dos CA do seu pai (10/07/2013).
À data do óbito do pai da autora estava em vigor o Decreto-Lei nº 172-B/86, de 30 de Junho.
No seu artigo 1º foi autorizada a emissão de uma nova série de certificados de aforro, denominada «série B», cuja administração ficou a cargo da Junta do Crédito Público.
Antes das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 122/2002, de 4 de Maio e Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de Março, o seu artigo 7º prescrevia o seguinte:
“1 - Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efetivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.
2 - Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição”.
O nº 1 do artigo 7º do Decreto-Lei nº 172-B/86, de 30 de Junho, por força da alteração introduzida pelo artigo 12º do Dec-Lei nº 122/2002, de 4 de Maio passou a ter a seguinte redacção:
“1 - Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado”.
Foi, assim, alargado o prazo de cinco para dez anos, porque o legislador se apercebeu de que eram desajustadas as soluções existentes e de que se tornava necessário reformular o regime então em vigor.
O acórdão do Tribunal Constitucional de 15.07.2004[2] decidiu julgar inconstitucional a norma do artigo 7º do Decreto-Lei nº 172‑B/86, de 30 de Junho, por violação dos artigos 13º e 62º da Constituição.
O Tribunal Constitucional considerou, no essencial, que os certificados de aforro conferem direitos patrimoniais aos respectivos titulares, consubstanciando a aplicação de “poupança(s) das famílias” integrados no quadro de emissão e gestão da dívida pública, mas não evidenciam, por esse facto, qualquer especificidade relativamente aos demais bens que constituem o património dos sujeitos no que se refere ao aspecto do regime agora em questão, isto é, à transmissão de tais bens por morte do respectivo titular. Assim, não se divisa nenhuma razão, decorrente da natureza dos certificados de aforro, que legitime o diferente tratamento relativamente ao prazo geral de caducidade do direito de aceitar a herança, prazo esse que é de 10 anos, contados desde que o sucessível tem conhecimento de haver sido a ela chamado – nº 1 do artº 2059º do Código Civil.
Mas, afinal, o que são certificados de aforro?
Não obstante o seu conceito jurídico ter sido estabelecido recentemente pelo diploma legal supra citado de 2002, a verdade é que os primeiros certificados de aforro datam de 1960, tendo sido criados – a Série A – ainda na vigência do regime anterior ao 25 de Abril, pelo Decreto-Lei nº 43453, de 30 de Dezembro de 1960.
E presidiu ao desígnio de estimular a formação da poupança privada e de assegurar, de acordo com os objectivos então plasmados pelo Ministério das Finanças, “a mais ampla participação no financiamento do desenvolvimento económico nacional”.
Finalidade prosseguida pela reforma levada a cabo em 1986, já em plena democracia, com a publicação do Decreto-Lei nº 172-B/86, de 30 de Junho, que criou a Série B dos certificados de aforro, mas onde o estímulo à poupança já aparece referenciado como constituindo “um dos objectivos fundamentais da política económica e financeira do Governo”.
São, em síntese, instrumentos de dívida criados com o propósito de captar a poupança das famílias, tendo como característica principal a de serem distribuídos ou colocados directamente junto dos aforradores com montantes mínimos de subscrição reduzidos.
Distinguem-se pela particularidade de estarem circunscritos unicamente às pessoas singulares, só podendo ser emitidos a favor de particulares, não sendo transmissíveis excepto em caso de falecimento do seu titular.
Especificidade que perpassa por toda a legislação desde a sua criação e se mantém incólume nos Decretos-Lei nº 172-B/86, de 30 de Junho e Decreto-Lei nº 122/2002, de 4 de Maio, não obstante a reforma introduzida por este último diploma no quadro de emissão e gestão da dívida pública e dos seus instrumentos financeiros, com a criação de produtos financeiros alternativos mais flexíveis e ajustados ao actual contexto de funcionamento dos mercados, culminando com a criação de novas séries de certificados de aforro, cujas condições de subscrição e movimentação passaram a ser feitas por portaria do Ministério das Finanças.
Qual é, então, a data para o início do prazo de prescrição?
O prazo de prescrição conta-se, como defende a recorrente, a partir da data da morte do titular dos certificados de aforro? Ou a partir da data do conhecimento da existência desses certificados por parte da recorrida?
Desde já propendemos para a tese colocada em segundo lugar.
Em nosso entender, a herança manteve-se jacente até ao momento em que a autora a aceitou, o que sucedeu em10.07.2013, data em que outorgou na escritura de habilitação de herdeiros – Cfr facto provado nº 9º e doc. de fls 41 vº a 42 vº.
Por outro lado, o direito de aceitação da sucessão não caducou, face ao que se dispõe no artº 2059º nº 1 do C. Civil, contando-se o prazo de 10 anos a que alude esta disposição legal a partir do momento em que o sucessível conhece a existência de relações jurídicas patrimoniais constitutivas da herança aberta por morte, ou seja, a partir do momento em que a autora teve conhecimento da existência dos certificados de aforro, o que aconteceu em 05.06.2013.
Donde o artigo 7° do DL nº 172-B/86 tem de ser interpretado restritivamente, no sentido de que o legislador tão-só quis determinar que, após a concretização do direito de exigir a partilha, o herdeiro ou o cônjuge meeiro tem o direito de averbar a sua propriedade nos certificados de aforro (art. 2101.° do C. Civil).»
A própria jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça assim o tem entendido sem discordâncias.
O acórdão de 08.11.2005[3] decidiu que “dispondo o artº 7 do Dec-Lei 172-B/86, de 30.06 que, por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem ... (nº1) e que findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição (nº 2), a contagem do prazo prescricional só se inicia com o conhecimento da morte do titular (facto neutro) e de que ele era titular de certificados de aforro”.
Em caso idêntico ao dos presentes autos, mas estando em causa o prazo de 10 anos contido na redação do citado nº1 do artigo 7º), introduzida pelo artigo 12º do Dec-Lei nº 122/2002, de 4 de Maio, decidiu o STJ no seu acórdão de 08.01.2019[4] que:
“- A prescrição assenta no desvalor da inércia do titular de um direito no seu exercício e implica a afetação da sua eficácia; porém, o curso do prazo de prescrição apenas se pode iniciar quando o titular do direito esteja em condições de o exercer.
- O prazo de 10 anos a que aludia o n.º 1 do art. 7.º do DL n.º 122/2003, de 04-05, inicia o seu decurso no momento em que o herdeiro teve conhecimento do decesso do titular dos certificados de aforro e da existência destes, porquanto só então aquele está em condições de exercer o direito ali previsto.
- Demonstrando-se que a recorrida apenas teve conhecimento de que a sua falecida mãe era titular de certificados de aforro em 01-05-2015 e que, em 11-06-2015, requereu ao recorrente o seu reembolso, é de concluir pela improcedência da exceção perentória da prescrição, tanto mais que inexistia, à data do óbito, o Registo Central de Certificados de Aforro e que, em todo o caso, não impende sobre o cabeça de casal o dever de indagar, junto do IGCP, sobre a titularidade de certificados de aforro”.
O Supremo Tribunal Administrativo, no seu acórdão de 01.10.2015[5] encontra-se assim sumariado:
“I - O prazo de prescrição a que alude o art. 7º do DL 172-B/86 de 30/6, na redação que lhe foi dada pelo DL 122/2002 de 4/5, deve contar-se de acordo com o art. 306º do CC o qual pressupõe o conhecimento dos pressupostos do direito ou, pelo menos a possibilidade fática de os conhecer.
II - A questão de determinar o termo inicial de contagem do prazo de prescrição implica a ponderação da factualidade provada, mediante recurso a regras da vida e da experiência comum, de modo a poder ser formulado um juízo sobre o momento em que o concreto lesado teve ou poderia ter tido conhecimento do direito que lhe compete”.
Recuperadas aqui algumas orientações a este respeito recolhidas na jurisprudência, no caso dos autos ficou demonstrado que, não obstante o seu pai ter falecido em 1996, a autora, herdeira do mesmo juntamente com a sua mãe, entretanto falecida e da qual a autora é a única herdeira, apenas teve conhecimento da existência dos certificados em Junho de 2013 – Facto provado nº 13 -, pelo que, considerando o que fica referido e contrariamente ao invocado pela recorrente, não prescreveu o direito da mesma ao reembolso da quantia peticionada.
Finalmente, no caso dos autos, nunca poderia invocar-se a existência da base de dados de registo de certificados de aforro criada pelo DL nº 47/2008, de 13 de Março para fundamentar a alegada prescrição do direito da autora a requerer o reembolso dos certificados de aforro de que o seu falecido pai era titular.
Efectivamente, o DL nº 47/2008, no seu artigo 4º aditou ao Decreto-Lei nº 122/2002, de 4 de Maio o artigo 9º-A com a seguinte redacção:
“Artigo 9.º-A
Registo central de certificados de aforro
1 - É criado o registo central de certificados de aforro, com a natureza de registo electrónico, que tem por finalidade possibilitar a obtenção de informação sobre a existência de certificados de aforro e sobre a identificação do respectivo titular.
2 - O IGCP é a entidade responsável pela criação, manutenção e actualização do registo central.
3 - A definição dos elementos que devem constar do registo central bem como o tratamento a dar aos dados pessoais recolhidos são aprovados por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, com observância do disposto na Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro.
4 - Sem prejuízo do direito de acesso pelo titular do certificado de aforro, o acesso por terceiro ao registo central só pode efectuar-se através de pedido devidamente fundamentado e documentado, em caso de morte ou de declaração de morte presumida do referido titular, comprovada mediante apresentação da correspondente certidão de óbito.
5 - A informação sobre o titular só pode ser dada ao próprio, aos respectivos herdeiros, de acordo com o disposto no número anterior, ou aos seus representantes legais tratando-se de menores ou de outras pessoas incapazes nos termos da lei.
6 - Os serviços e entidades que celebrem actos de partilha ou de adjudicação de bens adquiridos por sucessão devem aceder, por meios informáticos e nos termos que venham a ser regulamentados por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da justiça, ao registo central de certificados de aforro, devendo fazer menção do resultado da referida consulta no acto público celebrado”.
Na verdade, aquando do óbito do aforrista pai da autora/recorrida em 27.10.1996 (Facto provado nº 1) - tal base não fora sequer ainda criada, já que - como acabámos de expor -, o registo central electrónico só surgiu com o Decreto-Lei n.º 47/2008, e com elementos a aprovar por Portaria (cfr. o nº 3 do artigo 9º-A do Decreto-Lei n.º 122/2002, aditado pelo referido DL nº 47/2008). Daí que a autora/eecorrida não tivesse sequer, até 2008, acesso à existência, localização e titularidade dos investimentos financeiros do titular falecido, não podendo, consequentemente, iniciar-se o prazo de prescrição antes dessa data, nos termos do citado artigo 306º, nº 1, do Código Civil.
Tal prazo de prescrição iniciou-se, como já dissemos a partir de 10.07.2013, data da escritura de habilitação e do pedido de reembolso dos CA do seu pai (Factos provados nºs 8º e 9º).
Terminando, para concluir, diremos que, de acordo com os factos provados, designadamente com os nºs 8º, 9º e 13º, a autora exercitou o seu direito ao levantamento dos certificados de aforro pouco tempo após ter conhecido que era titular do mesmo.
Assim, estamos de pleno acordo com a orientação perfilhada na sentença da primeira instância e no acórdão recorrido, pelo que bem decidiram as instância em considerar improcedente a excepção da prescrição.
SUMÁRIO
- Nos termos do artº 3º/1 do DL 172-B/86, de 30 de Junho, diploma que autoriza a emissão de certificados de aforro, diz que estes certificados são nominativos, reembolsáveis, só transmissíveis por morte e assentados apenas a pessoas singulares.
- O termo inicial do prazo para a extinção de direitos consagrada no n.º 2 do art. 7.º do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho dependia do conhecimento do óbito e da existência dos certificados de aforro.
- Tendo a autora tido conhecimento da existência dos certificados de aforro em Junho de 2013, tendo elaborada a escritura de habilitação de herdeiros referente ao seu pai em 10.07.2013 e nesta mesma data desencadeado o pedido de reembolso dos certificados de aforro do seu pai, tendo a acção dado entrada em 12.10.2016, não ocorreu a prescrição do direito da autora.
III - DECISÃO
Atento o exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 29.10.2020
Ilídio Sacarrão Martins (Relator)
Nuno Manuel Pinto Oliveira
Ferreira Lopes
______
[1] Procº nº 3850/2005-6, in www.dgsi.pt/jtrl
[2]Acórdão nº 541/2004 proferido no procº nº 786/2003, in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040541.html
[3] Procº nº 05A3169, in www.dgsi.pt/jstj
[4] Procº nº 25635/15.3T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj
[5] Procº nº 0619/15, in www.dgsi.pt/jsta