RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
ATROPELAMENTO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
EXCESSO DE VELOCIDADE
DANO MORTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
FACTOS NOTÓRIOS
AMPLIAÇÃO DO PEDIDO
CASO JULGADO
DECISÃO PENAL ABSOLUTÓRIA
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
ALÇADA
SUCUMBÊNCIA
REJEIÇÃO PARCIAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
CONDENAÇÃO EXTRA VEL ULTRA PETITUM
LIMITES DA CONDENAÇÃO
Sumário

I. Em termos gerais, a admissibilidade do recurso depende do duplo requisito da causa ter um valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada ser desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.
II. Quando o pedido se desdobra em várias parcelas, os limites da condenação referem-se ao pedido e não a cada uma das parcelas em que se desdobra.
III. O condutor de veículo automóvel, numa localidade, tendo a possibilidade de avistar, pelo menos a 20 metros, um peão a atravessar a faixa de rodagem e no qual embate, circula com excesso de velocidade, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, do Código da Estrada.
IV. O artigo 624.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, estabelece uma presunção juris tantum, suscetível de ser ilidida por prova em contrário, que poderá resultar da prova obtida no âmbito do processo civil.
V. É facto notório que, quem morre em consequência das lesões corporais resultantes de acidente de viação, sofre antes um dano não patrimonial, quer pela angústia advinda da consciência do risco de lesão iminente, quer pelas lesões corporais sofridas.
VI. O indeferimento da ampliação do pedido baseada na atualização do valor dos danos, devida a razões de natureza adjetiva, ainda que transitado em julgado, não interfere com a possibilidade de atualização da indemnização, dada a prevalência do direito substantivo, nomeadamente do disposto no artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I – RELATÓRIO


AA instaurou, em 5 de janeiro de 2005, no então Tribunal Judicial de … (Juízo Central Cível do …, Comarca da …), contra Império Bonança – Companhia de Seguros, S.A. (a que sucedeu Fidelidade Companhia de Seguros, S.A.), Machado Ferraz Construções, Sociedade Unipessoal, Lda., e Fundo de Garantia Automóvel, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que os Réus fossem condenados, solidariamente, a pagar-lhe a quantia de € 69 500,00, acrescida dos juros legais, desde a citação até integral pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que em consequência do acidente de viação, ocorrido no dia … de fevereiro de 2003, pelas 7:30 horas, na ER n.º 2...2, no sítio da …, freguesia do …, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, matrícula …-…-CD, propriedade da R. Machado Ferraz Construções, Lda., e o peão BB, filha da A. e de CC, causado exclusivamente pelo condutor do veículo que, ao tentar contornar o peão pela esquerda, o atropelou. Para além da morte de BB, ocorrida a … de fevereiro de 2003, o acidente causou-lhe danos patrimoniais e não patrimoniais. A responsabilidade civil dos danos causados pelo veículo fora transferida para a seguradora, que a declinou por a apólice ter sido anulada em 1 de janeiro de 2003.

Contestou o R. Fundo de Garantia Automóvel, arguindo designadamente a sua ilegitimidade, e concluindo pela improcedência da ação.

Contestaram igualmente as RR. Machado Ferraz Construções, Lda, e Império Bonança, S.A., arguindo também a sua ilegitimidade e concluindo pela improcedência da ação.

Foi admitida a intervenção principal provocada de DD, condutor do veículo, e de CC, pai de BB, que foram citados para a ação.

O Interveniente Principal DD contestou, alegando a sua ilegitimidade e concluindo pela improcedência da ação.

Foi proferido o despacho saneador e organizada a base instrutória.

A Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial, S.A., requereu a sua intervenção principal espontânea e apresentou articulado próprio contra os Réus e o Interveniente Principal DD, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia líquida de € 20 942,74, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, articulado do qual veio a desistir, desistência que foi homologada.

Declarada a insolvência da R. Machado Ferraz Construções, Sociedade Unipessoal, Lda., foi julgada extinta a instância em relação à mesma.

Em 4 de novembro de 2016, a A. requereu a ampliação do pedido, nomeadamente para a quantia de € 113 500,00, ampliação que não foi admitida por despacho de fls. 537 a 539, que não foi impugnado.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida, em 28 de junho de 2019, sentença, que, julgando a ação improcedente, absolveu os Réus do pedido.

Inconformada, a Autora apelou para o Tribunal da Relação de …, que, por acórdão de … de fevereiro de 2020, julgando parcialmente procedente a apelação, revogou a sentença e condenou apenas a Ré Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., a pagar à Autora a quantia de € 60 000,00, acrescida dos juros de mora, à taxa de 4 %, sobre a quantia de € 20 000,00, desde a citação até integral pagamento, e à mesma taxa, sobre a quantia de € 40 000,00, desde a data da prolação do acórdão.


Inconformada, a Ré Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:

a) O valor total arbitrado excede o valor peticionado, sendo uma condenação “ultra petitum”.

b) Não ficou provado qualquer excesso de velocidade.

c) A culpa do sinistro é exclusivamente imputada à sinistrada, que desrespeitou o art. 101.º do Código da Estrada.

d) Tal conclusão foi também considerada no processo-crime, tendo o arguido DD sido absolvido, por decisão transitada em julgado.

e) A Autora não elidiu a presunção prevista no art. 624.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

f) Sem prescindir, o acórdão não contabilizou a repartição de culpas de 50 %.

g) Apreciou danos próprios da sinistrada que não ficaram provados e procedeu à atualização da indemnização do dano morte que está ferida de nulidade, por ultrapassar o valor peticionado.

h) Essa atualização, para além da violação do caso julgado (art. 620.º do CPC), faz incorrer o acórdão em nulidade, por condenação “ultra petitum” (art. 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC).

i) O dispositivo do acórdão refere valores indemnizatórios não coincidentes com os valores arbitrados no corpo do texto do acórdão.

j) O acórdão recorrido considerou que o valor dos danos ascendia a € 95 000,00, tendo condenado a Seguradora na quantia de € 60 000,00, acrescida dos juros.

k) Não pode o acórdão recorrido considerar um valor indemnizatório de € 95 000,00 com base em 100 % de responsabilidade e no dispositivo não efetuar a respetiva repartição de acordo com a culpa apurada de 50 %.

l) Ainda sem prescindir, o valor arbitrado sempre seria € 47 500,00 e não € 60 000,00.


A Recorrente Fidelidade, com o provimento do recurso, pretende a revogação do acórdão recorrido e a sua absolvição do pedido.


Ainda inconformada, também a Autora recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, especificou essencialmente as seguintes conclusões:

a) A BB em nada contribuiu para o acidente.

b) O quantum indemnizatório fixado pela “perda do direito à vida” é desajustado, impondo-se fixar um valor superior, nunca inferior a € 80 000,00.

c) Não tem qualquer sentido argumentar com o hipotético condenar em quantia superior ao pedido previsto no art. 661.º do CPC.

d) Trata-se de um raciocínio descabido face ao claramente disposto no art. 566.º, n.º 2, do Código Civil.

e) O Tribunal recorrido violou nesta matéria o disposto nos artigos 495.º, n.º 3, e 566.º, n.º s 2 e 3, todos do Código Civil.

f) O condutor do veículo agiu com culpa, violando o disposto dos artigos 13.º, n.º s 1 e 2, 24.º, n.º 1, ....º, n.º 1, alínea h), 35.º, n.º 1, e 103.º, n.º 1, todos do Código da Estrada, na redação dada pela Lei n.º 20/2002, de 21 de agosto.

g) Sem prescindir, o juízo de censurabilidade a imputar ao condutor do veículo é deveras superior à conduta do peão, sendo a deste sempre inferior a 20 %.


Pretende a Autora, com o provimento do recurso, a alteração do acórdão recorrido, de modo a fixar-se a indemnização, a título de dano morte, no valor de € 80 000,00, ou, subsidiariamente, a distribuição da culpa nunca inferior a 80 % e nunca superior a 20 %, para o condutor do veículo e o peão, respetivamente.


Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

Nestes recursos, para além da nulidade do acórdão recorrido, discute-se essencialmente a culpa pelo acidente de viação e o valor da indemnização.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:

1. No dia ... de fevereiro de 2003, pelas 7 horas e 30 minutos, na ER …, ao sítio da …, freguesia do …, concelho da …, ocorreu um acidente de viação na forma de atropelamento.

2. Foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Toyota, modelo ..., matricula …-…-CD, e o peão BB, solteira, filha de CC e de AA, natural da freguesia do Arco da ..., concelho da ..., onde residia, ao sítio das ….

3. BB faleceu no dia … de fevereiro de 2003, pelas 10 horas e 40 minutos.

4. A falecida tinha, à data do acidente, 23 anos.

5. O veículo pertencia à R. Machado Ferraz Construções, Sociedade Unipessoal, Lda., e era conduzido, na altura do acidente, pelo Interveniente DD.

6. O veículo automóvel circulava no sentido este-oeste (L…o-A…s), descendente.

7. A Companhia Império Bonança Companhia de Seguros, contactada extrajudicialmente, declinou qualquer responsabilidade, alegando que a apólice fora anulada em 01/01/2003, não havendo seguro válido nessa seguradora à data do acidente.

8. A Interveniente Companhia de Seguros Fidelidade Mundial, S.A., no exercício da sua atividade seguradora, celebrou com Avelino Farinha & Agrela, Lda., um contrato de seguro, do ramo acidentes de trabalho, titulado pela apólice n.º 2 … 6.

9. O acidente foi caracterizado como acidente de trabalho pelo Tribunal do Trabalho do ....

10. Por força do acidente, correram termos no Tribunal Judicial de ... os autos de processos comum n.º 5…/03.2…, no qual o Ministério Público deduziu acusação contra o Interveniente DD.

11. A Interveniente deduziu pedido de indemnização civil, em julho de 2004, contra todos os Requeridos, tendo os mesmos contestado.

12. Por despacho proferido em audiência de julgamento, foram as partes cíveis remetidas para os meios comuns.

13. No processo-crime, o Interveniente DD foi absolvido, por decisão transitada em julgado.

14. O veículo contornou BB pela esquerda da faixa de rodagem, na altura em que esta procedia à sua travessia.

15. O acidente ocorreu quando BB se deslocava para o seu local de trabalho, onde iria desempenhar a sua profissão, sob ordens e direção de Avelino Farinha & Agrela, Lda.

16. No momento do acidente, a sinistrada atravessava a ER ..., no sentido norte-sul, da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo.

17. No local do acidente, a via tem cerca de 6,90 metros de largura

18. Apresentando traçado de reta e permitindo uma visibilidade para ambos os lados não inferior a 10 metros.

19. Não dispondo de linhas longitudinais nem passadeiras para peões.

20. O estado do tempo era bom, embora o piso se encontrasse molhado.

21. O veículo circulava pela metade direita da estrada.

22. Dada a visibilidade existente, tinha o condutor do veículo possibilidade de avistar, pelo menos a 20 metros, o peão a atravessar a faixa de rodagem.

23. O condutor desviou a viatura para a faixa de rodagem contrária.

24. Momentos antes do embate, o peão retrocedeu o passo recuando para a metade esquerda da faixa de rodagem.

25. Do embate resultaram ferimentos no peão, que foi transportado para o Centro Hospitalar do ....

26. O veículo circulava dentro de uma localidade.

27. O piso apresentava-se com gravilha.

28. Não existia passeio.

29. Para não colher a vítima, o condutor do veículo acionou os travões e desviou-se para a esquerda.

30. Mas não evitando que o peão colidisse com a viatura, embatendo no para-brisas, do lado direito, e na parte lateral direita do veículo.

31. A vítima deu início à travessia da estrada, encontrando-se, pelo menos, a meio da faixa de rodagem do lado direito do condutor, motivo pelo qual este contornou a mesma pela esquerda da sua faixa de rodagem.

32. De forma imprevista e inopinada, a vítima retrocedeu, sem que nada o fizesse prever, indo embater no veículo.

33. À data, mediante contrato de seguro, celebrado entre a R. Seguradora e a R. Machado Ferraz Construções, Sociedade Unipessoal, Lda., titulado pela apólice n.º A…4, a R. Seguradora havia assumido a responsabilidade civil perante terceiros emergente da circulação do veículo …-…-CD.

34. Tendo a R. Machado Ferraz Construções, Lda., pago o respetivo prémio, o qual foi liquidado até 1 de janeiro de 2003.

35. A falecida sofreu lesões, tendo recebido tratamento hospitalar.

36. Em consequência do acidente, BB acabou por falecer.

37. O que causou sofrimento à Autora, que acompanhou sempre de perto os últimos dias da vida da sua filha.

38. Sentindo-se impotente para travar o rumo dos acontecimentos.

39. O que lhe provocou angústia dor e sofrimento.

40. À data do seu falecimento, BB gozava de boa saúde.

41. Não tinha qualquer defeito físico.

42. Tinha grande alegria de viver e constante boa disposição.

43. Em consequência direta e necessária do acidente, a sinistrada sofreu leões corporais, designadamente traumatismo craniano encefálico grave, traumatismo abdominal grave e outras fraturas, que foram causa direta e necessária da sua morte.

44. A Companhia de Seguros Fidelidade-Mundial pagou, em despesas de funeral, a quantia de € 2 909,84, em transportes, € 12,00, em remições, € 16 774,58, em despesas hospitalares, € 750,00 e, em despesas judiciais, € 496,32.

45. Foi enviado à Segurada, para pagamento, o recibo relativo o período de 2002/11/20 a 2003/11/20.


***


2.2. Delimitada a matéria de facto, expurgada de redundâncias, importa conhecer do objeto dos recursos, definido pelas respetivas conclusões, designadamente da culpa no acidente de viação e do valor da indemnização.

Antes, porém, há que conhecer da questão prévia da admissibilidade do recurso interposto pela Autora.

Na verdade, à ação foi atribuído o valor de € 69 500,00, indicado pela Autora e não impugnado pelas restantes partes.

O acórdão recorrido condenou a R. Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., a pagar à Autora a quantia de € 60 000,00.

Embora o valor da causa, porque superior à alçada da Relação (€ 30 000,00), permita o recurso, já o decaimento da Autora no acórdão recorrido (€ 9 500,00), sendo inferior a metade do valor da alçada da Relação (€ 15 000,00), obsta à admissibilidade do recurso, nomeadamente nos termos do disposto no art. 629.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC).

Efetivamente, em termos gerais, a admissibilidade do recurso depende do duplo requisito da causa ter um valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada ser desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.

Nestas circunstâncias, o recurso interposto pela Autora é inadmissível, por não satisfazer o duplo requisito consagrado no art. 629.º, n.º 1, do CPC.

Assim, não sendo admissível o recurso interposto pela Autora, não se conhece do seu objeto.


2.3. A R. Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., arguiu a nulidade do acórdão recorrido, por condenação ultra petitum, nos termos do art. 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC, por se ter atualizado a indemnização, pelo dano morte, no valor de € 70 000,00, quando a Autora o estimara, na petição inicial, em € 42 500,00.

Como decorre do disposto no art. 609.º, n.º 1, do CPC, a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir, numa concretização do princípio do dispositivo, que permite ao autor delimitar o thema decidendum.

Quando o limite em quantidade e qualidade da condenação, porém, não é observado, é cometida a nulidade da sentença, prevista na alínea e) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

No caso vertente, como se referiu, a Ré foi condenada, no acórdão recorrido, a pagar, à Autora, a quantia de € 60 000,00.

Ora, correspondendo o pedido à quantia de € 69 500,00, é evidente que a condenação não ultrapassa o pedido formulado na ação, entendido este em sentido estrito, como pretensão jurídica.

Por outro lado, quando o pedido se desdobra em várias parcelas, como sucede no tipo de ação como a dos presentes autos, os limites da condenação referem-se ao pedido (global) e não a cada uma das parcelas em que se desdobra, como é jurisprudência corrente e pacífica (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de outubro de 2002 (02B2643), acessível em www.dgsi.pt, e de 4 de novembro de 2003, Col. Jur. (STJ) Ano XI, T. 3, pág. 138, e A. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e LUÍS F. PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado I, 2018, pág. 579).

Deste modo, mesmo que se valorize alguma parcela em valor superior ao indicado na petição inicial, mas sem que, a final, se exceda o valor do pedido (global), não ocorre qualquer violação do limite da condenação, previsto no art. 609.º, n.º 1, do CPC, e, por isso, não se verifica a nulidade da sentença, constante da alínea e) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

Por consequência, julga-se improcedente a arguida nulidade do acórdão, por condenação em quantidade superior ao pedido.


2.4. A 1.ª instância e a Relação divergiram no julgamento da causa, pois enquanto na sentença, atribuindo-se a culpa do acidente de viação exclusivamente ao peão, se absolveu a Ré do pedido de indemnização, já no acórdão recorrido, diferentemente, admitindo-se a concorrência de culpas entre o condutor do veículo e o peão em 50 % para cada um, condenou-se a Ré a pagar a indemnização de € 60 000,00.

A Ré, recorrendo, insurgiu-se contra o veredicto da Relação, designadamente por a culpa do sinistro ser exclusivamente da vítima, por ter considerado danos não provados e ainda por não ter atendido à repartição de culpas (50 %).

A sua posição, com efeito, é no sentido da sua absolvição do pedido, como oportunamente se especificou, embora nas alegações admita, por fim, que a indemnização, no critério seguido no acórdão recorrido, seria sempre no valor de € 47 500,00.

Identificada a controvérsia jurídica emergente dos autos, vejamos então o direito aplicável, nomeadamente quanto à culpa do acidente de viação e à indemnização.

Nos autos discute-se a efetivação da responsabilidade civil emergente do acidente de viação ocorrido no dia ... de fevereiro de 2003, na ER n.º ..., no sítio da ..., freguesia do …, concelho da ..., no qual intervieram o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Toyota, modelo …, matrícula …-…-CD, conduzido por DD, e o peão BB, que viria a falecer.

Admitindo-se a culpa do condutor do veículo automóvel, ainda que em proporção igual à da vítima, a Ré, no entanto, alega que aquela foi a única e exclusiva culpada do acidente de viação, porquanto não tomou previamente as cautelas de que podia efetuar a travessia da estrada sem perigo de acidente, não lhe podendo, por isso, ser atribuída a responsabilidade civil pelos danos.

A culpa, como requisito da responsabilidade civil, corresponde a um juízo de reprovação pessoal da conduta de alguém que, face a certas circunstâncias de facto, devia e podia ter agido de outro modo, podendo revestir quer a forma de dolo quer a de negligência ou mera culpa, distinção que ganha natural relevo em diversas circunstâncias.

Não se colocando sequer a aplicação do dolo, sobra para o caso a negligência ou mera culpa, que consiste na omissão da diligência exigível, isto é, na violação de dever geral de cuidado (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª edição, 2004, pág. 573).

A culpa, que por princípio, não se presume, é apreciada em termos abstratos, como resulta do disposto no art. 487.º, n.º 2, do Código Civil (CC), cabendo ao lesado o ónus da prova.

Perante o circunstancialismo fáctico provado, não se pode atribuir, exclusivamente, a culpa do acidente ao peão.

Na verdade, ao não efetuar o atravessamento da faixa de rodagem o mais rapidamente possível, chegando a retroceder e a recuar para a metade esquerda da faixa de rodagem, onde se deu o embate, quando já se encontrava, pelo menos, a meio da faixa de rodagem do lado direito do condutor do veículo, o peão violou o dever consagrada no art. 101.º, n.º 2, do Código da Estrada.

Refira-se que, contrariando alegação da Ré, não existe factualidade provada consubstanciadora da ausência de certificação prévia e em segurança por parte do peão para o atravessamento da faixa de rodagem, dever imposto pelo art. 101.º, n.º 1, do Código da Estrada.

Assim, pelo que antes se afirmou, atuando em contraordenação estradal, o peão concorreu, com culpa, para o acidente de viação.


Por outro lado, apesar de não ter sido apurada a velocidade concreta a que seguia o veículo automóvel (fls. 788 e 789), o seu condutor estava obrigado a regular a velocidade de modo que, atendendo ao piso molhado e à gravilha apresentada, pudesse, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade fosse de prever, em particular numa localidade, e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente, como estabelece o art. 24.º, n.º 1, do Código da Estrada.

Não obstante o condutor do veículo tivesse tido a possibilidade de avistar, pelo menos a vinte metros, o peão a atravessar a faixa de rodagem, acabou por embater no mesmo, já na faixa de rodagem contrária à que seguia, para onde se desviou acionando os travões, de modo a evitar o embate.

Esta circunstância de facto, no entanto, importa clarificar, não contradiz a do facto n.º 18, especificada pela Ré, porquanto traduzem perspetivas diferentes e verdadeiras acerca da visibilidade do local.

Ao conduzir do modo descrito e não lograr imobilizar o veículo antes do embate no peão, o condutor do veículo seguia em excesso de velocidade, nomeadamente por violação da norma prevista no art. 24.º, n.º 1, do Código da Estrada.

De resto, circulando numa localidade, o condutor do veículo devia moderar especialmente a velocidade, como dispõe o art. 24 º, n.º 1, alínea c), do Código da Estrada.

É certo que o condutor do veículo, além de travar, tentou desviar-se do peão, seguindo para a sua esquerda, a faixa de rodagem contrária, quando foi surpreendido pelo retrocesso e recuo do peão para aquela faixa de rodagem e ocorreu então o atropelamento.

O movimento inesperado do peão, porém, não exclui a culpa do condutor do veículo, pois, não fora circular em excesso de velocidade, nos termos caracterizados, podia ter imobilizado o veículo automóvel antes de alcançar o peão e evitado a tragédia que aconteceu.  

Deste modo, para além do peão, também o condutor do veículo automóvel contribuiu, com culpa, em medida não inferior à determinada pelo acórdão recorrido, para o acidente de viação ocorrido no dia ... de fevereiro de 2003.


Alega ainda a Ré que o Interveniente DD foi absolvido por sentença transitada em julgado, no âmbito do processo penal, e sem que tenha sido ilidida a presunção prevista no art. 624.º, n.º 1, do CPC.

Trata-se, com efeito, de uma presunção juris tantum, suscetível de ser ilidida por prova em contrário, que poderá resultar da prova obtida no âmbito do processo civil (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de junho de 2000, BMJ n.º 498, pág. 195).

Pelos factos demonstrados nestes autos, nomeadamente os que consubstanciam também a culpa do condutor do veículo automóvel, a presunção prevista no art. 624.º, n.º 1, do CPC, encontra-se ilidida.


Verificando-se a responsabilidade civil do condutor do veículo automóvel que interveio no acidente de viação, existe então obrigação de indemnizar, proporcionalmente, a lesada.

O acórdão recorrido fixou a favor da Autora a indemnização por danos não patrimoniais, decorrentes da dor e angústia sofridas pela perda da filha, a quantia de € 15 000,00, e, a título de dano morte, a quantia de € 70 000,00; à sinistrada, pelos danos não patrimoniais, resultantes das dores sofridas até à sua morte, a quantia de € 10 000,00,  

Quanto a estes valores, questiona-se a última parcela, em virtude dos danos próprios correspondentes não terem ficado provados.

Trata-se, com efeito, de uma questão muito delicada e debatida tanto na jurisprudência como na doutrina.

Na verdade, foi declarado como não estando provado que “a falecida sofreu com as dores que a assaltaram”, “sentiu que a morte estava à porta” e “prolongando-se este martírio por dois dias, até chegar a morte” (fls. 789).

Todavia, esta resposta negativa não obsta ao reconhecimento de que a sinistrada tenha tido um dano não patrimonial antes da morte, ocorrida dois dias depois do atropelamento.

Efetivamente, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de março de 1971 (BMJ n.º 205, pág. 150) já deixava claro que “os danos não patrimoniais da vítima, em caso de morte, existem sempre, sendo resultantes da morte consequente à ilícita violação da integridade física da vítima”, explicitando ainda que a morte, “por demais rápida que surja, nunca é clinicamente instantânea, ou melhor simultânea com a colisão: há sempre um período, mais ou menos longo, fração de segundo, minutos ou horas, em que o coração ainda palpita, em que o sangue ainda circula, em que o cérebro ainda sente, em que, portanto a vida ainda existe no corpo destroçado da vítima”.

Seguindo este pensamento, a doutrina argumenta “normalmente existirá sofrimento ainda que a morte seja imediata: a dor física, a angústia causada pela consciência do risco da lesão iminente e dos seus funestos resultados” (I. GALVÃO TELLES, Direito das Sucessões, 3.ª edição, 1978, pág. 85, e M. OLIVEIRA MATOS, Código da Estrada Anotado, 1991, pág. 467 e segs.).

Assim, é facto notório que, quem morre em consequência das lesões corporais resultantes de acidente de viação, sofre antes um dano não patrimonial, quer pela angústia advinda da consciência do risco de lesão iminente, quer pelas lesões corporais sofridas.

Tal facto, como tal, não carece de prova, nos termos do art. 412.º, n.º 1, do CPC.

Revertendo aos autos, verifica-se que, em consequência direta e necessária do acidente, a sinistrada sofreu lesões corporais, designadamente traumatismo craniano encefálico grave, traumatismo abdominal grave e outras fraturas, que foram causa direta e necessária da sua morte, tendo esta resultado dois dias depois do acidente.

Quer pelo modo como o acidente ocorreu, já antes referido, quer pelas lesões sofridas pela sinistrada, quer ainda pelo tempo que mediou até se verificar a morte, mesmo que tenha passado por um estado de coma, não pode deixar de se reconhecer um dano não patrimonial a favor de BB. Perante a angústia face ao iminente atropelamento e as dores resultantes das lesões corporais, há um dano não patrimonial, para além da perda do direito à vida, que importa ressarcir.  

Por isso, reconhecendo o dano, é devida a quantia pecuniária a título de indemnização por danos não patrimoniais da sinistrada.


Por outro lado, impugna-se também a atualização do dano morte, quando na petição inicial foi indicado o valor de € 42 500,00, designadamente por violação do caso julgado.

Na verdade, a ampliação do pedido deduzida pela Autora foi indeferida pelo despacho de fls. 537 a 539, o qual, não tendo sido impugnado, transitou em julgado.

Embora a ampliação do pedido se baseasse na atualização do valor dos danos, o seu indeferimento, no entanto, deveu-se a razões de natureza adjetiva, não interferindo com a possibilidade de atualização da indemnização, que o direito adjetivo não poderia impedir, dada a prevalência do direito substantivo, nomeadamente da norma consagrada no art. 566.º, n.º 2, do Código Civil.

Por isso, no acórdão recorrido podia proceder-se à atualização da indemnização, pela perda do direito à vida, sem violação do caso julgado formado sobre o despacho de indeferimento da ampliação do pedido.


Correspondendo o valor global dos danos a € 95 000,00 (€ 10 000,00 + € 15 000,00+ € 70 000,00), deve a indemnização, em correspondência com a proporção da contribuição de 50 % do condutor do veículo automóvel para o acidente de viação, fixar-se no valor global de € 47 500,00.

Por efeito da alteração introduzida, interessa adaptar ainda, no espírito do acórdão recorrido, porquanto tal não foi impugnado, a condenação na mora, nomeadamente quanto ao seu termo inicial.

Assim sendo, procede parcialmente a revista, justificando-se a alteração do acórdão recorrido.


2.5. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante: 

I. Em termos gerais, a admissibilidade do recurso depende do duplo requisito da causa ter um valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada ser desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal.

II. Quando o pedido se desdobra em várias parcelas, os limites da condenação referem-se ao pedido e não a cada uma das parcelas em que se desdobra.

III. O condutor de veículo automóvel, numa localidade, tendo a possibilidade de avistar, pelo menos a 20 metros, um peão a atravessar a faixa de rodagem e no qual embate, circula com excesso de velocidade, nos termos do artigo 24.º, n.º 1, do Código da Estrada.

IV. O artigo 624.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, estabelece uma presunção juris tantum, suscetível de ser ilidida por prova em contrário, que poderá resultar da prova obtida no âmbito do processo civil.

V. É facto notório que, quem morre em consequência das lesões corporais resultantes de acidente de viação, sofre antes um dano não patrimonial, quer pela angústia advinda da consciência do risco de lesão iminente, quer pelas lesões corporais sofridas.

VI. O indeferimento da ampliação do pedido baseada na atualização do valor dos danos, devida a razões de natureza adjetiva, ainda que transitado em julgado, não interfere com a possibilidade de atualização da indemnização, dada a prevalência do direito substantivo, nomeadamente do disposto no artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil.


2.6. A Ré e a Autora, ao ficarem vencidas por decaimento, são responsáveis pelo pagamento proporcional das custas, nas diversas instâncias, sendo ainda a Autora responsável pelo pagamento das custas da revista por si interposta – art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Não conhecer do objeto do recurso da Autora.

2) Conceder a revista parcial e, em consequência, condenar a Ré Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., a pagar, à Autora, a quantia de € 47 500,00 (quarenta e sete mil e quinhentos euros), acrescida dos juros de mora legais, sobre a quantia de € 12 500,00, desde a citação até integral pagamento, e sobre a quantia de € 35 000,00, desde 20 de fevereiro de 2020 até integral pagamento.

3) Condenar a Ré e a Autora no pagamento proporcional das custas, nas diversas instâncias, e ainda a Autora no pagamento das custas da revista por si interposta.


Lisboa, 29 de outubro de 2020


Olindo dos Santos Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

Oliveira Abreu

O Relator atesta que os Juízes Adjuntos votaram favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.