LOGÓTIPO
MÁ FÉ
CADUCIDADE
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
INVERSÃO DO CONTENCIOSO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
CONTRA-ALEGAÇÕES
TEMAS DA PROVA
VALOR EXTRAPROCESSUAL DAS PROVAS
CASO JULGADO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
RECURSO DE REVISTA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
MEIOS DE PROVA
FORÇA PROBATÓRIA
CONSUMIDOR
CONCORRENCIA
APROPRIAÇÃO
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
AÇÃO DE ANULAÇÃO
Sumário

I. A atribuição de valor extraprocessual a certos meios de prova não significa conferir força de caso julgado à decisão sobre os factos em processo diferente daquele onde foi produzida; mas tão somente permitir a utilização dos próprios meios de prova, que o juiz da segunda acção terá de apreciar.
II. O julgamento de facto proferido no âmbito dos procedimentos cautelares, nos quais se busca uma prova indiciária, ou de primeira aparência, tendo em conta a urgência que domina o respectivo regime, não obriga sequer na acção correspondente.

III. A inversão do contencioso significa apenas que, sendo procedente a providência requerida e verificados os requisitos exigidos, deixa de ser o requerente a ter o ónus de propor a acção definitiva, sob pena de caducidade da providência decretada, e passa a ser o requerido a ter esse ónus, caducando a providência se a sua acção for julgada procedente por decisão transitada.
IV. Não existe qualquer ónus de contra-alegar, diferentemente do que sucede com o ónus do recorrente de apresentar alegações; a diferença resulta da função atribuída a cada alegação: delimitação do objecto do recurso e dos poderes de cognição do tribunal de recurso, para a alegação do autor; defesa da decisão impugnada ou inadmissibilidade do recurso, ou eventual ampliação do seu objecto, para a do réu.
V. As contra-alegações desempenham um papel relevante quando, no recurso de apelação, o recorrente impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
VI. Os temas de prova correspondem a enunciados das questões essenciais de facto, não implicando a individualização de cada facto a provar.
VII. A revista não abrange a apreciação de meios de prova sem força probatória tabelada.
VIII. Para além de outras funções eventuais e acessórias, como a de servir também de meio de publicidade, a marca tem por função específica possibilitar ao consumidor distinguir os produtos ou serviços de um fornecedor dos produtos ou serviços idênticos ou afins produzidos ou fornecidos pelos demais.
IX. A aptidão distintiva é um elemento essencial para que a marca desempenhe a sua função e, considerada agora na perspectiva do empresário, para lhe permitir usufruir da exclusividade característica dos direitos privativos da propriedade industrial, o que implica limitações ao princípio da liberdade de composição, como seja a impossibilidade de ser somente composta por termos genéricos, desprovidos de carácter distintivo.
X. A exclusividade conferida pela titularidade de uma marca registada desempenha também a função de interesse público de protecção da sã concorrência.

XI. O direito de utilização exclusiva das marcas implica o dever de a utilizar seriamente; a falta de uso sério durante um determinado período de tempo provoca a caducidade do registo.

XII. Considera-se requerido de má fé o registo de uma marca que, em lugar de ter como objectivo a sua utilização séria, antes se destina a prejudicar outrem.

XIII. À luz do CPI 2003, a má fé era motivo autónomo de anulação de uma marca registada e não apenas de imprescritibilidade dos motivos de anulação.
XIV. Considera-se requerido de má fé o registo de marca sem que o requerente tenha a intenção de a usar, mas apenas a de privar concorrentes dessa utilização.
XV. Para considerar verificada a má fé, cumpre analisar a globalidade das circunstâncias específicas do caso concreto. 

Texto Integral


Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça


1. AA propôs uma acção contra BB pedindo que fosse “declarado que o exercício pela Ré do seu direito ao uso exclusivo da marca e do logotipo registados sob o n.º 585533 de marca nacional, mormente para impedir o A. de os utilizar (com excepção da locução ‘by Gi Calhau’) é abusivo” e “que o A. pode continuar a utilizar no seu comércio a denominação comum ‘A Fábrica dos Chapéus’, com as cores patenteadas nos docs. n.ºs 9 a 15” da petição inicial, “bem como o logotipo consistente num chapéu de coco vermelho (panetone #cc66), com uma pena amarela (panetone #993333), visível nos referidos documentos”. Pelo despacho de fls. 58, v.º, foi admitida a ampliação do pedido, passando a incluir “sendo consequentemente anulada aquela marca e cancelado o respectivo registo junto do INPI”.
A ré contestou, por impugnação, concluindo que deve ser recusada a possibilidade de uso, pelo autor, da “marca (tipo misto, nome de desenho) e o logótipo” referidos, verificando-se “todos os requisitos do conceito de imitação” em relação à marca que registou – a marca “A Fábrica dos Chapéus by Gi Calhau” – e pediu a condenação do autor como litigante de má fé “numa indemnização pelas despesas que teve com a presente contestação, incluindo reembolso de honorários de mandatário” e em multa.
A acção foi julgada improcedente pela sentença de fls. 123. Em breve síntese, considerou-se na sentença que a ré, ao acrescentar à expressão genérica  “fábrica dos chapéus” a expressão “by Gi Calhau” e o chapéu com a pena “fez com que a sua marca genérica tivesse suficiente distintividade para poder ser registada”; que a marca “fábrica dos chapéus”, que o autor alega ter sido por ele concebida (o que não se provou) não foi registada; que não procede a afirmação do autor de que a ré registou a sua marca para o prejudicar, pois ficou provado que, quer o autor, quer a ré e a sua mãe sempre a usaram; que o registo da marca da ré lhe concede “o direito de impedir terceiros de, sem o seu consentimento, usar, no exercício de actividades económicas, qualquer sinal igual ou semelhante em produtos idênticos ou afins ao da marca registada”; o que conduz à improcedência dos pedidos de se julgar “abusivo o direito exclusivo da R. em usar a marca que registou e de se declarar que o A. pode continuar a usar a designação ‘fábrica dos chapéus´”; tem o direito de usar a firma “Fábrica dos Chapéus de VPM Barbosa, Unipessoal, Lda.,” “mas tal qual a mesma foi registada”. Para além disso, não ficou provado que a ré registou a marca para prejudicar o autor, “fazendo-lhe concorrência desleal”.
A sentença foi revogada pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 257, que julgou parcialmente procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, declarou abusivo “o exercício pela Ré do seu direito ao uso exclusivo da marca e do logotipo registados sob o n.º 585533 de marca nacional, mormente para impedir o Autor de os utilizar (com excepção da locução ‘by Gi Calhau’), declarou que o autor podia “continuar a usar no seu comércio a denominação comum ’A Fábrica dos Chapéus’, com as cores patenteadas nos docs. n.ºs 9 a 15” juntos com a petição inicial “bem como o logotipo consistente num chapéu de coco vermelho (…) com uma pena amarela (…), ordenou “a anulação da marca e do logotipo nacionais registados sob o n.º 585533” e o cancelamento do registo correspondente, junto do INPI.

2. A ré recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça. Nas alegações que apresentou, formulou as conclusões seguintes (dada a sua extensão, apenas se transcrevem na parte em que enunciam e enquadram as questões a resolver):

«a) Por sentença notificada em 18 de junho de 2019, julgou o tribunal a quo totalmente improcedente a presente ação de anulação, assim como os demais pedidos formulados pelo A., e, em consequência, foi a R. absolvida dos mesmos.

b) Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não resultou provado que a R. pretendesse, com o registo da marca, prejudicar o Recorrido, em abuso de direito e fazendo-lhe concorrência desleal.

c) Os Venerandos Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, entenderam em sentido contrário, afirmando que o exercício pela Ré do direito ao uso exclusivo da marca e logótipo é abusiva, e que o Autor continue a utilizar no S/ comércio a denominação da marca registada pela Ré.

d) anulando-se a marca e logótipo nacionais registados sob o n.º 58533, e, finalmente, cancelando o respetivo registo junto INPI.

e) (…) além da decisão proferida em 1.ª instância, foi proferida outra decisão, com os mesmos factos, fundamentos e direito, a qual intimou o Autor, ora Recorrido, a suspender e interromper o uso do logótipo constituído “por um chapéu de coco vermelho com uma pena amarela, na associação com a designação “A Fábrica dos Chapéus” no exercício da sua actividade comercial para assinalar serviços idênticos ou afins aos identificados pela marca nacional nº 585533, fixando para o efeito o prazo de 60 dias [proc. n.º 262/19.0…, que correu termos no 2.º Juízo de Propriedade Intelectual de Lisboa] – cfr. documento n.º 1 – Providência Cautelar.

(…)

i) Não obstante, a douta decisão proferida na providência cautelar, ora junta, com inversão do contencioso, refere que:

“Por último, não resultou demonstrado que a Requerente apenas tenha registado a marca para prejudicar o Requerido, impedindo-o de usar o logótipo por si criado. Tanto mais, quando a recusa do registo de marca por sido apresentado data de 2009 e o pedido da Requerente de registo foi apresentado em 18.8.2018, tendo tido o Requerido nove anos para apresentar novo pedido de registo de marca e do logótipo entretanto criado, podendo bem agora estar na posição da Requerente, caso tivesse sido minimamente zeloso no exercício dos seus direitos, protegendo o que alegadamente era seu.”

j) (…) Conselheiros, trata-se de duas decisões contraditórias, sobre os mesmos factos, com interpretação e aplicação distinta do mesmo direito material.

k) E, o Acórdão de que ora se recorre, interpretou e aplicou, de forma errada, a lei substantiva, in casu, abuso de direito.

l) Atente-se, aos factos dados como provados, naquela providência cautelar, [J2 TPI] a qual inverteu o contencioso e transitou em julgado, cuja cópia se junta, e se descreve nas alegações supra.

m) Já o J1 do TPI, que proferiu a douta sentença da 1.ª Instância, no presente processo, produzida a prova, deu como provados os seguintes factos:

(…)

p) Pelo que, a fundamentação de facto e motivação de direito, dada como provada, em ambos do processos (providência cautelar e estes autos), assentaram na prova documental carreada para os autos por ambas as partes, “(…) corroborada e explicitada pelos depoimentos das testemunhas (…) Na estrita medida em que demonstraram ter conhecimento directo dos factos e depuseram com a necessária isenção, clareza e coerência”.

q) Testemunhas essas que, também foram ouvidas pelo douto tribunal de 1.ª instância recorrida e, que, surpreendentemente, deram origem ao Acórdão contraditório de que ora se recorre.

r) E, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, com base nos mesmos depoimentos, os quais selecionou e transcreveu, entendeu existir abuso de direito no registo e utilização da marca 585533 por parte da ora Recorrente. Pasme-se!

s) Mas, dos depoimentos transcritos, não resulta existir qualquer abuso de direito no registo, o qual foi legalmente efetuado, i.e., dez anos depois de o Recorrido ter tentado registar a mesma marca.

t) São pressupostos do abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente suscetível de basear uma situação objetiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e atual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou acórdão STJ, processo n.º 1464/11.2TBGRD-A.C1S1]..

u) E, da prova produzida em julgamento, a qual deve ser analisada no seu todo e não apenas certas frases soltas, conforme indevidamente fez o Recorrido, não resultou provado qualquer abuso de direito, nem sequer estão verificados os pressupostos que a lei faz depender.

(…)

hh) Acresce que, ao longo do douto Acórdão recorrido, não se vislumbra com precisão, numa primeira análise, quais os fundamentos para alterar a decisão ora recorrida.

ii) Em bom rigor, os Venerandos Desembargadores, apenas transcreveram parte da prova produzida pelas testemunhas arroladas pelo Recorrido AA, com menções conclusivas sobre o abuso de direito.

jj) Ignorando os depoimentos prestados pelas demais testemunhas da Recorrente, ignorando, ainda, toda a prova documental.

kk) E, não se diga, que não foram indicadas nas contra-alegações, as provas a apreciar pelo douto Tribunal da Relação de Lisboa, uma vez que as contra-alegações que a Recorrente apresentou nem sequer são obrigatórias nos termos da lei.

ll) Pelo que, competia aos Venerandos Desembargadores, ouvir toda a prova testemunhal produzida, conjugada com a prova documental, a qual surge num determinado contexto, que não aquele explanado na douta decisão.

(…)

eee) O Recorrido litiga age em clara e manifesta má fé, pois deliberadamente, deturpa a realidade para tentar fazer sua uma marca que é da Recorrente!

fff)O Douto Tribunal da Relação não pode, como indevidamente o fez, alterar a matéria de facto fixada, muito menos, com fundamento em excertos de depoimentos transcritos.

ggg) Sendo que esta – matéria de facto – foi fixada em estrito respeito pelo princípio da livre apreciação das provas, que se atribui ao julgador em primeira instância.

hhh) No caso concreto não existiu qualquer erro na apreciação da prova, nem flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto.

iii) Não existe, nos depoimentos prestados, nem na prova documental, quaisquer razões para alterar a factualidade apurada pelo tribunal a quo.

(…)

mmm) É evidente, pela conjugação da prova produzida, que não existiu abuso de direito no registo da marca pela Recorrente, nem é lógico afirmar que a Recorrente não tem interesse na marca ou no seu uso, porquanto resulta provado que a mesma usa a marca – só não a usa na loja que fica na mesma rua da loja do Recorrido.

(…)

nnn) A Recorrente é detentora da Marca Nacional n.º 585533, “A FÁBRICA DOS CHAPEUS BY GI CALHAU”.

ooo) O registo da marca nacional n.º 585533, denominada “A Fábrica dos Chapéus”, foi apresentado no dia 14 de julho de 2017.

ppp) E foi deferido e tornado definitivo no dia 28 de março de 2018.

qqq) Do teor deste documento, é possível retirar que a titular da marca “A Fábrica dos Chapéus”, é BB, ora R.

rrr) É esta a marca que comercializa e utiliza na sua loja, tal como demonstrando pelo Recorrido, com a junção de fotogramas noutros autos.

sss) É esta a marca que usa em Bruxelas e na Loja em … .

ttt) Trata-se, pois, de uma marca devidamente registada, tipo de sinal misto, em que está registada a imagem do chapéu, imagem essa igual a que Recorrido tentou registar, em momento posterior, para além de criar confusão, devido ao nome e imagem, é ilegal.

uuu) Pelo que, não é verdade que a marca da Recorrente tenha sido registada em “abuso de direito”.

vvv) Pelo contrário! Quem tentou, ilegitimamente, registar a mesma marca EM MOMENTO POSTERIOR, foi o Recorrido, que, obviamente, lhe foi negado.

(…)

oooo) É possível, desde já afirmar, que o douto TRL alterou matéria de facto   dada como provada pela 1.ª instância, essencial, e, consequentemente, interpretou, aplicou e concluiu de forma errada, lei substantiva [abuso de direito], apenas com os depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pelo A/Recorrido.

pppp) Olvidando, o depoimento das demais testemunhas, designadamente, de CC, que acompanhou a criação do projeto “A Fábrica dos Chapéus”, desde o seu início.

qqqq) (…) Conselheiros, é fundamento de revista, a violação de lei substantiva, que pode consistir tanto no erro de interpretação como no de aplicação.

rrrr) Atente-se que além do erro da interpretação e aplicação do instituto do abuso de direito, existe uma clara violação do disposto no artigo 13.º, 233.º, n.º 1, alínea b), 235.º e 236.º, n.º 3, 245.º do C.P.I.

ssss) Face à prova documental junta aos autos, não há a mínima dúvida da prioridade do registo da Recorrente/R., visto que o registo em causa é datado de 28 de março de 2018.

(…)

aaaaa) Ao ter decidido da maneira que decidiu, o douto TRL aplicou erradamente o direito material [abuso de direito], com base em interpretação e apreciação             errada da prova testemunhal, maioritariamente, arrolada pelo Autor, sem qualquer menção às testemunhas da Ré, a qual, diga-se, não se poderia sobrepor aos documentos de registo junto.

bbbbb)No mesmo sentido, com a decisão em causa, violou também os dispositivos legais referidos do CPI, os quais relativos ao processo de registo da marca pela Recorrente, que lhe conferem o direito ao uso exclusivo da marca e logótipo “A Fábrica dos Chapéus”,

(…)

fffff) Face ao exposto, deve o douto Acórdão recorrido ser revogado, na íntegra, e o recurso interposto pela Recorrente ser julgado procedente, mantendo-se a decisão proferida em 1.ª instância, uma vez, caso se mantenha a decisão dos Venerandos Desembargadores, a mesma viola, sentença já transitada em julgado, e que determinou que o Recorrido interrompesse de forma definitiva, no prazo de 60 dias, o uso do logótipo e marca “A Fábrica dos Chapéus”.

(…).

O autor contra-alegou, sustentado o acórdão recorrido, concluindo deste modo:

a) O que está em causa no presente recurso são as provas constantes deste processo, depois de sujeitas ao apertado crivo do Venerando Tribunal a quo, e não os factos dados indiciariamente por provados no procedimento cautelar requerido pela recorrente contra o aqui recorrido e que, ao contrário do afirmado nas conclusões (…)da petição de revista não tem o efeito previsto no art. 371º., nº, 1, do Código de Processo Civil revisto, não se tendo consolidado como composição definitiva de litígio;

b) Em 9 de Janeiro de 2020, o ora recorrido intentou contra a aqui recorrente a acção principal de que o procedimento cautelar se tornou dependência, no prazo previsto na citada norma, assim evitando um conflito entre duas sentenças sobre o mesmo objecto (…).

c) É estranha ao objecto do presente recurso a decisão alcançada no referido procedimento cautelar, de nula relevância para o seu mérito (…)

(…)

e) A douta decisão recorrida quanto à matéria de facto só poderia ser alterada pelo Colendo Tribunal ad quem no caso excepcional previsto no nº. 3 do art. 674º. do Código de Processo Civil revisto, que no caso não ocorre;

(…)

g) Num singular comportamento que não adoptou quando a lei (art. 640º., nº. 2, alínea b) do Código de Processo Civil revisto) lho consentia e a prudência o recomendava, a recorrente transcreveu, inútil e espuriamente, passagens dos depoimentos gravados, tanto no corpo das suas alegações, como nas conclusões que o reproduzem (…);

(…)

i) A decisão de facto da 1ª. Instância foi modificada, pelo Venerando Tribunal a quo, de forma justificada e sindicável pela sua própria leitura, no estrito respeito pelo nº. 1 do art. 662º. do Código de Processo Civil revisto;

j) Decorre da prova produzida – e com recurso a presunção judicial consentida ao Venerando Tribunal a quo – que a ora recorrente não tem qualquer interesse na marca “A Fábrica dos Chapéus by Gi Calhau”, que não usa, nem nunca usou, cujo registo foi feito apenas para que o aqui recorrido não continue a utilizar a denominação genérica “A Fábrica dos Chapéus”, com que assinala, há mais de 10 anos, os produtos do seu comércio e do seu fabrico (…);

k) O que está em causa nesta acção não são os factos, incontroversos, de o registo da marca nacional nº. 585533, “A Fábrica dos Chapéus by Gi Calhau” ter sido requerido pela aqui recorrente em 14 de Fevereiro de 2017, de ele ter sido deferido em 28 de Março de 2018 e estar averbado em nome dela, mas o abuso do direito de que enferma o pedido de tal registo, pelo que as conclusões (…)da petição de revista são despropositadas, quando inseridas no contexto em que o foram;

(…)

n) Não está também em causa a “prioridade do registo” convocada pela recorrente (…), no confronto com outra que não identifica, mas saber se tal registo deverá ser mantido (…)

o) O abuso do direito não se reconduz ao venire contra factum proprium, que é apenas uma das formas em que ele pode manifestar-se exteriormente, ao contrário do que a recorrente dá notícia de ser o seu entendimento (…);

p) No caso dos autos, como o douto acórdão recorrido bem consigna na sua pág. 50, o exercício pela Ré do direito de registar a marca “A Fábrica dos Chapéus by Gi Calhau” extravasa manifestamente dos limites impostos pelo fim social e económico desse direito, não assistindo razão ao que a Ré fez escrever (…);

q) O exercício abusivo do direito por parte da Ré emerge da motivação que a levou a requerer o registo da marca em causa, que foi apenas o de impedir o A. de prosseguir o seu negócio com a denominação genérica “A Fábrica dos Chapéus”, em associação com o logotipo que idealizou e cuja criação foi por ele paga;

r) A afirmação (…) – de que foi constituída uma sociedade entre o A. e a mãe da Ré – foi cenário afastado pelo douto acórdão recorrido na modificação a que procedeu do facto nº. 1;

s) O próprio Código da Propriedade Industrial regulamenta, especificamente, o abuso do direito no requerimento de registo de marca e logotipos, convocando a existência de “legítimo interesse” para que o direito ao registo exista na pessoa de quem o exerce, nos termos dos arts. 211º. e 225º. da versão vigente à data da propositura da acção, a que corresponde o art. 211º. da versão actual, e nos do art. 304º., alínea b), da versão anterior, que transitou para o art. 282º. no novo Código.

t) Nas circunstâncias em que o fez – não para colher qualquer utilidade para si, mas apenas para prejudicar o A. – a Ré não tinha interesse no registo da marca “A Fábrica dos Chapéus by Gi Calhau”, tendo exercido abusivamente esse direito, o que o art. 334º. do Código Civil, não lhe consentia;

u) A enteada do A. e sua ex-empregada, ora recorrente, decalcou a imagem por ele utilizada, apropriando-se dela, com o exclusivo intuito de o impedir de continuar a assinalar os bens do seu comércio e o produto da sua indústria;

v) Apesar de ter obtido o registo da marca “A Fábrica dos Chapéus by Gi Calhau”, as marcas que utiliza no seu comércio são as (de que também é titular) constantes dos factos provados nºs. 15 e 16, não tendo qualquer interesse, digno de tutela jurídica, em manter a marca que copiou da denominação comum, nem o logotipo do chapéu de coco vermelho com a pena amarela;

w) Ao contrário do que a recorrente fez escrever na (…) petição de revista, o douto acórdão recorrido é claro na fundamentação da solução alcançada para dirimir o litígio, a partir da matéria de facto que estabilizou, depois de ouvir toda a prova gravada, que sopesou em conjunto com os documentos autuados e com as regras da experiência comum, não sendo tal decisão passível de censura;

x) O douto acórdão recorrido aplicou aos factos provados a norma que ao caso cabia, isto é, o art. 334º. do Código Civil, tendo procedido à correcta escolha e interpretação da mesma.

3. Vem provado o seguinte (assinalam-se as alterações introduzidas na Relação):

"1 - Em Agosto de 2008, o A. iniciou o negócio de fabrico e comercialização de chapéus, com a designação de "A Fábrica dos Chapéus";

(1ª Instância: - Em Agosto de 2008, o A. com DD iniciou o negócio de fabrico e comercialização de chapéus, com a designação de "A Fábrica dos Chapéus";

2 - No dia 9 de Agosto o A. criou o endereço de correio electrónico afabricadoschapeus@gmail.com.

3 - Nesse mês e ano abriu a sua primeira loja na Rua …, nº …, em ..., com a seguinte imagem na porta:



4 - Nos cartões comerciais, papel timbrado e publicidade, o A. utilizava uma elipse com esse nome:

5 - A10 de Fevereiro de 2009 o A. registou o domínio "afabricadoschapeus.com".

6 - Em 18 de Julho de 2009 requereu, junto do INPI, o registo da marca "A fábrica dos chapéus", mas foi-lhe indeferido com o fundamento de ser uma denominação comum insusceptível de ser objecto de um direito privativo.

7 - O A. e DD casaram em 11/09/2011.

8- A R. é filha de DD.

9- A Ré passou a prestar a sua colaboração para o negócio com a designação "A Fábrica dos Chapéus", em 1 de Abril de 2010.

10- (1ª Instância: O Autor e DD conceberam e iniciaram em 2008 a comercialização de chapéus com a designação de “Fábrica dos Chapéus”, com a colaboração da R.)

10 - A primeira loja situava-se na Rua …, nº … em … .

11 - Posteriormente passou a situar-se na Rua …, nº … em … .

12 - Abriram mais duas lojas, uma na Rua … e outra no Centro Comercial … e uma terceira em Bruxelas.

13 - A. e DD separaram-se a 26/03/2017, estando a correr termos o divórcio.

14 - O A. cancelou o endereço de e-mail que a R e sua mãe usavam.

15 - A R. requereu em 22/11/2017 o registo da marca nacional nº 592217 "Os Chapeleiros de LX", o qual foi concedido em 22/02/2018, para assinalar na Classificação Internacional de Nice os seguintes produtos e serviços:

Classe 18           CHAPÉUS DE SOL DE PRAIA; CHAPÉUS-DE-SOL; CHAPÉUS- DE-SOL IMPERMEÁVEIS; POCHETES DE CERIMÓNIA; MALAS DE SENHORA PARA CERIMÓNIA. ARMAÇÕES DE CHAPÉUS; BARRETES FEZ [CHAPÉUS TRADICIONAIS MUÇULMANOS]; BONÉS [CHAPÉUS]; CHAPÉUS; CHAPÉUS-ALTOS; CHAPÉUS COM BORLAS; CHAPÉUS DE BASEBOL; CHAPÉUS DE CERIMÓNIA; CHAPÉUS DE COZINHEIRO; CHAPÉUS DE ESQUI; CHAPÉUS DE MODA; CHAPÉUS DE PALHA; CHAPÉUS DE PAPEL PARA CHEFES DE COZINHA; CHAPÉUS DE PAPEL PARA ENFERMEIROS; CHAPÉUS DE PAPEL PARA USAR COMO ARTIGOS DE VESTUÁRIO; CHAPÉUS DE PELE; CHAPÉUS DE PRAIA; CHAPÉUS DE SOL; CHAPÉUS E BONÉS DE DESPORTO; CHAPÉUS EM PELE FALSA; CHAPÉUS FEDORA; CHAPÉUS PARA A CHUVA; CHAPÉUS PARA FESTAS [VESTUÁRIO]; CHAPÉUS PEQUENOS; PALAS DE CHAPÉUS; TOQUES [CHAPÉUS]; CHAPÉUS DE PAPEL [VESTUÁRIO]; VESTUÁRIO PARA HIPISMO [EXCETO CHAPÉUS DE EQUITAÇÃO].

16 - A R. requereu em 18/08/2018 [22/11/2017] o registo da marca nacional nº 607360 o qual foi concedido em 22/02/2018, para assinalar na Classificação Internacional de Nice os seguintes produtos e serviços:




Classe 18     CHAPÉUS-DE-CHUVA; CHAPÉUS-DE-SOL; CHAPÉUS DE CHUVA PARA CRIANÇAS; ANÉIS PARA CHAPÉUS-DE-CHUVA; ARMAÇÕES DE CHAPÉUS DE CHUVA; ARMAÇÕES DE CHAPÉUS-DE-CHUVA OU DE CHAPÉUS-DE-SOL; ARMAÇÕES PARA CHAPÉUS-DE-CHUVA OU PARA CHAPÉUS-DE-SOL; BAINHAS DE CHAPÉUS-DE-CHUVA; BARBAS DE BALEIA PARA CHAPÉUS-DE-CHUVA OU CHAPÉUS-DE-SOL; BENGALAS DE CHAPÉUS-DE-CHUVA; BENGALAS E CHAPÉUS DE CHUVA COMBINADOS; BENGALAS PARA CHAPÉUS-DE-CHUVA; CAIXAS DE CHAPÉUS PARA VIAGEM; CAIXAS EM IMITAÇÃO DE COURO PARA CHAPÉUS; CAIXAS PARA CHAPÉUS EM COURO; CAPAS PARA CHAPÉUS-DE-CHUVA; CAPAS PARA CHAPÉUS DE SOL; CHAPÉUS DE CHUVA COM CABO TELESCÓPICO; CHAPÉUS DE CHUVA E CHAPÉUS DE SOL; CHAPÉUS DE CHUVA PARA GOLFE; CHAPÉUS DE SOL DE PRAIA; CHAPÉUS-DE-SOL IMPERMEÁVEIS; CHAPÉUS-DE-SOL PARA ESPLANADAS; CHAPÉUS-DE-SOL PARA JARDINS; COBERTURAS PARA CHAPÉUS-DE-CHUVA; ESTOJOS DE CHAPÉUS-DE-CHUVA; ESTOJOS EM COURO PARA CHAPÉUS; ESTOJOS PARA CHAPÉUS-DE-CHUVA; FITAS DE CHAPÉUS [FITAS EM COURO]; FITAS DE QUEIXO, EM COURO, PARA CHAPÉUS; PEÇAS METÁLICAS PARA CHAPÉUS DE CHUVA; PUNHOS DE CHAPÉUS-DE-CHUVA; PUNHOS PARA CHAPÉUS-DE-CHUVA; VARETAS PARA CHAPÉUS-DE-CHUVA OU CHAPÉUS-DE-SOL; VARETAS DE CHAPÉUS DE CHUVA; VARETAS (BARBAS DE BALEIA) PARA CHAPÉUS DE CHUVA OU DE SOL; SACOS PARA CHAPÉUS-DE-CHUVA.

Classe 25 BANDANAS; ARTIGOS DE CHAPELARIA COM PALA; ARTIGOS DE CHAPELARIA DE DESPORTO (EXCETO CAPACETES); AROS PARA USAR NA CABEÇA [VESTUÁRIO]; AQUECEDORES DE MÃOS EM PELE; AQUECEDORES DE MÃOS [VESTUÁRIO]; ARMAÇÕES DE CHAPÉUS; ARTIGOS DE CHAPELARIA DE DESPORTO [SEM SER CAPACETES]; ARTIGOS DE CHAPELARIA EM COURO; ARTIGOS DE CHAPELARIA PARA CRIANÇAS; ARTIGOS DE CHAPELARIA PARA SENHORA; BANDANAS [LENÇOS PARA PESCOÇO]; BARRETES DE LÃ; BARRETES FEZ [CHAPÉUS TRADICIONAIS MUÇULMANOS]; BIVAQUES; BONÉS [CHAPÉUS]; CHAPÉU DE TECIDO; CHAPÉUS; CHAPÉUS-ALTOS; CHAPÉUS COM BORLAS; CHAPÉUS DE BASEBOL; CHAPÉUS DE CERIMÓNIA; CHAPÉUS DE COZINHEIRO; CHAPÉUS DE ESQUI; CHAPÉUS DE MODA; CHAPÉUS DE PALHA; CHAPÉUS DE PALHA DE ESTILO JAPONÊS (SUGE-GASA); CHAPÉUS DE PAPEL PARA CHEFES DE COZINHA; CHAPÉUS DE PAPEL PARA ENFERMEIROS; CHAPÉUS DE PAPEL PARA USAR COMO ARTIGOS DE VESTUÁRIO; CHAPÉUS DE PAPEL [VESTUÁRIO]; CHAPÉUS DE PELE; CHAPÉUS DE PRAIA; CHAPÉUS DE SOL; CHAPÉUS E BONÉS DE DESPORTO; CHAPÉUS EM PAPEL [VESTUÁRIO]; CHAPÉUS EM PELE FALSA; CHAPÉUS FEDORA; CHAPÉUS PARA A CHUVA; CHAPÉUS PARA FESTAS [VESTUÁRIO]; CHAPÉUS PEQUENOS; PALAS DE CHAPÉUS; TOQUES [CHAPÉUS]; VESTUÁRIO PARA HIPISMO [EXCETO CHAPÉUS DE EQUITAÇÃO].

17 - A R. requereu em 14/07/2017 o registo da marca nacional nº 585533

para assinalar na classe 25 da Classificação Internacional de Nice «Chapéus»,

18 - O A. opôs-se ao registo da marca com fundamento na reprodução da sua denominação social, mas em 21/03/2018 foi concedido o registo de tal marca.

19 - O A. registou em 26/07/2017 a firma "A fábrica dos chapéus de VPM Barbosa, Unipessoal, Lda", a qual tem por objecto «fabrico, venda directa e comércio a retalho de chapéus, bonés e outros artigos e acessórios para vestuário em qualquer material; comércio a retalho por correspondência e por via internet; revenda, importação e exportação de chapéus, boinas, bonés e outros acessórios».

20  - O site com a configuração

foi usado até ocorrer a separação.

21 - Barbalete significa … e era a marca usada para chapéus de festa.

22- O site e o nome de domínio foram pedidos pelo A.

23 - EE e FF redesenharam e conceberam, com a aprovação do A. e ouvida DD, a configuração do site referido em 20.

(1ª Instância: - EE e FF redesenharam e conceberam, com a aprovação do A. e DD a configuração do site referido em 20.).

24   - Com a separação do A. e de DD, ficou acordado que o A. continuaria com a loja da Rua …, a revenda e o site e DD com a da Rua …, a do Centro Comercial … e a de Bruxelas

(1ª Instância: Com a separação do A. e DD, ficou acordado que o A. continuaria com a loja da Rua …, e DD e BB com a da Rua de … e CC … e a de Bruxelas, sendo que BB estava sempre mais tempo em Bruxelas).

25 - A loja do CC … fechou.

26 - A R. e sua mãe deixaram de ter acesso ao domínio, ao site e aos mails entre Julho e Novembro de 2017.

27 - Apesar de a loja de … se encontrar a funcionar, no site aparece como fechada permanentemente, sendo que essa é a informação que a loja do A. dá a quem ligar a perguntar por aquela.

28 -0 investimento inicial na loja foi efectuado apenas com dinheiro do A.;

29 - A R. foi contratada apenas em 2010 como trabalhadora do A.

30 - A R. não tem interesse na marca "A fábrica dos chapéus by Gi Calhau"

31 - A R. quer prejudicar o A. com o registo de tal marca.

                                    

Os factos 28, 29, 30 e 31 foram considerados não provados em 1ª Instância.

4. Estão em causa neste recurso as seguintes questões (n.º 4 do artigo 635.º do Código de Processo Civil):

– Contradição, pelo acórdão recorrido, da decisão de facto e de direito proferida na providência cautelar decretada em 3 de Novembro de 2019 no proc. n.º 262/19.0…, requerida pela ré contra o autor, com inversão do contencioso;

– Erro do Tribunal da Relação quanto à decisão sobre a matéria de facto;

– Erro de direito, no que respeita à verificação de abuso de direito por parte da recorrente

Pelo despacho de fls. 343, a ré foi notificada “para apresentar certidão do requerimento da providência cautelar n.º 260/19.0…, com indicação da data da apresentação em tribunal, bem como de cópia do despacho completo de deferimento do pedido do registo da marca n.º 585533”, o que a ré fez. Da certidão consta que o requerimento da referida providência cautelar entrou em juízo em 22 de Julho de 2019.

A fls. 375, “nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 3.º do Código de Processo Civil”, foi proferido despacho convidando “as partes a pronunciarem-se, querendo, sobre a eventualidade de se enquadrarem os factos em discussão do âmbito do registo de má fé”, sendo certo que as partes e as decisões das instâncias os consideraram no quadro do abuso de direito”.

O recorrido apresentou resposta na qual concluiu que, não estando o tribunal “sujeito às alegações das partes em matéria de direito (…), a questão deverá ser resolvida com o enquadramento legal dos factos” que entender adequado, “no caso, o registo de má fé”.

A recorrente, pelo contrário, veio rejeitar esse enquadramento e recusar qualquer abuso de direito ou má fé no requerimento do registo da marca em causa no presente processo, afirmando que o recorrido é que “age de má fé”,  ao afirmar nesta acção que a ré nunca usou tal marca e ao pedir, noutra acção, a sua condenação numa“ indemnização pelo uso da marca” e que, aliás, a prova nada revela nesse sentido. Reiterou que o acórdão recorrido tinha aplicado “erradamente o direito material [abuso de direito], com base em interpretação e aplicação errada da prova testemunhal, sem qualquer menção às testemunhas” que indicara.

Observou ainda que o autor não tem legitimidade para pedir a anulação da marca, pois não era “à data [do registo] titular de qualquer registo de marca ‘Fábrica dos Chapéus”,  que ficou provado que “não agiu com o intuito de se aproveitar de um sinal distintivo pertencente ao A (…) nem, consequentemente, que o tenha feito com o intuito de causar prejuízos ao A (…), citando o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Maio de 2010.

5. Antes de mais, cumpre ter em conta o seguinte:

– Estando em causa um pedido de declaração de que é abusivo o exercício do direito da ré “ao uso exclusivo da marca e do logotipo registados sob o n.º 585533 de marca nacional” (petição inicial) e da respectiva anulação, com cancelamento do registo, requerido em 22 de Novembro de 2017 e concedido em 22 de Fevereiro de 2018, é aplicável o Código da Propriedade Industrial de 2003. A sentença da 1ª Instância, aliás, foi proferida em 17 de Junho de 2019;

– Só é admissível a junção de documentos no recurso de revista nos termos limitados do artigo 680.º do Código de Processo Civil, ou seja, se forem supervenientes (por referência às alegações e contra-alegações apresentadas no recurso de apelação porque, se o não forem, poderiam ter sido juntos nesse recurso, se cumprissem os requisitos fixados no artigo 651.º, n.º 1, ou em 1ª instância, no caso contrário). De qualquer forma, valem as limitações ao conhecimento de factos pelo Supremo Tribunal de Justiça, como se estabelece no n.º 3 do artigo 674.º e no n.º 2 do artigo 682.º e o próprio artigo 680.º ressalva, no seu n.º 1.

Este regime não impede o Supremo Tribunal de Justiça de determinar a junção de documentos que possa apreciar, se o entender necessário.

6. A recorrente, ré na presente acção, alega que o acórdão da Relação de Lisboa contraria a decisão proferida na providência cautelar que requereu contra o recorrido e autor, pedindo “a) [a]suspensão e interrupção imediata do uso da marca e símbolo “A Fábrica dos Chapéus” com o desenho e o tipo de letra registado na marca nacional nº 585533 pelo Requerido” e “b) [a] proibição do Requerido utilizar a marca e o símbolo a “A Fábrica dos Chapéus” com o desenho e o tipo de letra registado na marca nacional nº 585533”. Por  sentença de 3 de Novembro de 2019, que inverteu o contencioso, no que agora interessa, foi decidido “Pelo exposto e nos termos sobreditos, julgo parcialmente procedente por provado o presente procedimento cautelar, intimando o Requerido a suspender e interromper o uso do logótipo constituído por um chapéu de coco vermelho com uma pena amarela, na associação com a designação “A Fábrica dos Chapéus” no exercício da sua actividade comercial para assinalar serviços idênticos ou afins aos identificados pela marca nacional nº 585533, fixando para o efeito o prazo de 60 dias. (…)”

Conclui aliás o corpo das alegações afirmando que o acórdão recorrido “viola sentença já transitada em julgado e que determinou que o Recorrido interrompesse de forma definitiva, no prazo de 60 dias, o uso do logótipo e marca “A Fábrica dos Chapéus”.
Esta providência foi requerida a 22 de Julho de 2019 (cfr. Certidão de fls. 340), quando já se encontrava em vigor o novo Código da Propriedade Industrial (desde 1.7.2019, cfr. n.º 4 do artigo 16.º do DL 110/2018, de 10 de Dezembro); no entanto, essa circunstância não releva para o que agora está agora em causa.
Neste recurso, também não releva a circunstância de a providência ter sido requerida pela ré e de, confrontando o pedido e a defesa desta acção com o pedido formulado na providência, se verificar que o último poderia conduzir a uma inutilização temporária do efeito pretendido com esta acção, apesar de não ter sido requerida como sua dependência; o que, aliás, estaria vedado à ré, por falta de legitimidade (Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra, 1985, nota (1) da pág. 23.
Apenas está em causa a alegação de desconsideração da decisão proferida na providência pelo acórdão recorrido, quer quanto aos factos, quer quanto à decisão de procedência parcial do que foi requerido, com inversão do contencioso (artigo 369.º do Código de Processo Civil).
É incontestável que há divergências quanto ao resultado probatório em relação a factos decisivos e que as decisões não são conciliáveis, uma vez que a que foi proferida na providência cautelar pressupõe a titularidade de uma marca anulada pelo acórdão recorrido, que igualmente determinou o cancelamento do registo.
De qualquer modo, verifica-se que:
– A prova pericial e por depoimentos (de testemunhas ou das partes, “sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil” para a confissão) feita numa acção pode ser utilizada noutra acção que decorra entre as mesmas partes, verificados os requisitos previstos no artigo 421.º do Código de Processo Civil. Mas este valor extraprocessual das provas, como todos sabemos, não significa atribuir força de caso julgado à decisão sobre os factos em processo diferente daquele onde foi produzida; mas tão somente permitir a utilização dos próprios meios de prova, que o juiz da segunda acção terá de apreciar, podendo, naturalmente, chegar a uma conclusão diferente da que foi alcançada no processo onde a prova foi produzida. Este regime não se aplica aos documentos, como se sabe, por não serem provas que se formam no processo (são o que habitualmente se designa por provas pré-constituídas) e é excluído quando a prova que se quer utilizar num processo no qual não foi produzida não teve contraditório ou foi prestada segundo um regime que oferece às partes “garantias inferiores às do segundo”.
Não foi utilizado este regime no caso dos autos; mas seria este o quadro a considerar, naturalmente tendo em conta as datas da produção de prova na acção e na providência. Refere-se aqui, aliás, para esclarecer que, independentemente das alterações que a Relação tenha introduzido no julgamento de facto proferido em 1ª instância nesta mesma acção, em nada contraria a lei a circunstância de ter divergido da matéria considerada provada na providência.
Acrescenta-se ainda que o julgamento de facto proferido no âmbito dos procedimentos cautelares, nos quais se busca uma prova indiciária, como se diz na sentença proferida no processo cautelar n.º 262/19.0…, ou de primeira aparência, tendo em conta a urgência que domina o respectivo regime, não obriga sequer na acção correspondente (n.º 4 do artigo 364.º do Código Civil);
       – A inversão do contencioso, uma das inovações trazidas pelo Código de Processo Civil de 2013, significa apenas que, sendo procedente a providência requerida e verificados os requisitos definidos no n.º 1 do artigo 369.º do Código de Processo Civil, deixa de ser o requerente a ter o ónus de propor a acção definitiva, sob pena de caducidade da providência decretada (cfr. o artigo 373.º do Código de Processo Civil), e passa a ser o requerido que tem esse ónus (n.º 1 do artigo 371.º do Código de Processo Civil), naturalmente para contrariar o que foi decidido, caducando a providência se a sua acção for julgada procedente por decisão transitada (n.º 3 do artigo 371.º citado).
No caso, o autor alega ter proposto a acção definitiva no prazo legalmente previsto, obstando assim a que o que foi definido na providência se consolide “como composição definitiva do litígio” (n.º 1 do mesmo artigo 371.º) – cfr. aviso de recpção relativo à citação nessa acção, junto com as contra-alegações como doc. n.º 2.

7. A recorrente insurge-se contra as alterações introduzidas na matéria de facto pela Relação, sustentando, em síntese, que substituiu a convicção da 1ª Instância pela sua sem atender aos documentos juntos aos autos e a toda a prova testemunhal produzida, pois só considerou os depoimentos das testemunhas indicadas pelo autor; que valorou erradamente os depoimentos, que aliás apreciou sem dispor de imediação; que não respeitou os limites definidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil, exorbitando dos poderes que a lei confere à 2ª Instância na reapreciação da matéria de facto, pois lhe está “vedado o recurso a conceitos de direito e a juízos valorativos ou conclusivos.

Alega ainda que não tinha que indicar provas a apreciar pela Relação, “uma vez que as contra-alegações que a recorrente apresentou nem sequer são obrigatórias nos termos da lei” (ponto 9 das alegações da revista); e que não constava dos temas de prova saber se a ré “tem utilidade na marca” (ponto 92 das alegações).

O recorrido contrapõe defendendo a correcção das alterações introduzidas, quer material, quer quanto à observância das regras processuais aplicáveis e lembrando as limitações impostas ao Supremo Tribunal de Justiça no controlo da decisão de facto.

8. Começa-se por observar que é exacto que não existe qualquer ónus de contra-alegar, diferentemente do que sucede com o ónus de apresentar alegações.

O ónus de alegar foi uma inovação introduzida no Direito Processual Civil português pelo Código de Processo Civil de 1939 – anteriormente, era facultativa a apresentação de alegações, também para o recorrente – e tem-se mantido até hoje, mas só para o recorrente, não para o recorrido.

A diferença resulta simplesmente da função atribuída desde então a cada alegação: à do recorrente incumbe desde logo a definição do objecto do recurso, que pode ser delimitado ainda nas respectivas conclusões  (n.º 1 do artigo 639.º e n.º 4 do artigo 635.º do Código de Processo Civil) e, por essa via, dos poderes de cognição do tribunal de recurso; a sua falta – quer da alegação, quer das respectivas conclusões – implica o não conhecimento do recurso (al. b) do n.º 2 do artigo 641.º). Naturalmente que a alegação do recorrente desempenha ainda a função de fundamentação ou motivação do recurso.

As contra-alegações destinam-se a sustentar a decisão impugnada e, eventualmente, a inadmissibilidade do recurso, seja por irrecorribilidade da decisão, ilegitimidade do recorrente ou intempestividade do recurso (cfr. n.ºs 5 e 6 do artigo 638.º do Código de Processo Civil). Podem ainda servir para proceder à ampliação do objecto do recurso ou para, subsidiariamente, arguir nulidades da decisão recorrida ou impugnar pontos determinados da decisão sobre a matéria de facto (artigo 636º). Se não forem apresentadas, o recurso não deixa de ser conhecido; o recorrido pode efectivamente optar por não contra-alegar.

Interessa agora referir especialmente a particular importância que as contra-alegações desempenham quando, no recurso de apelação, o recorrente impugnar a decisão sobre a matéria de facto.

Como o Supremo Tribunal de Justiça já teve a ocasião de observar por diversas vezes (ver por exemplo o acórdão de 7 de Novembro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 121/06.6TBOBR.P1.S1, de cujo texto se faz uma transcrição parcial, e jurisprudência nele citada), «a impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorada em primeira instância, ainda que apenas se pretenda discutir parte da decisão. Como se diz no preâmbulo do Decreto-Lei nº 39/95 (…), “a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. (…) Nesse sentido, impôs-se ao recorrente um “especial ónus de alegação”, no que respeita “à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”, em decorrência “dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º [actual 662º]) – e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1ª instância – possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito e julgado de uma decisão inquestionavelmente correcta.

Daí que se estabeleça”, continua o mesmo preâmbulo, “no [então] artigo 690º-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto. Tal ónus acrescido do recorrente justifica, por outro lado, o possível alargamento do prazo para elaboração e apresentação das alegações, consentido pelo nº 6 do [então] artigo 705”. O ónus especificamente criado foi, assim, justificado pela necessidade de impor ao recorrente uma “delimitação do objecto do recurso” e uma “fundamentação”, repete-se, tendo em conta o âmbito possível do recurso da decisão de facto, tal como foi concebido (cfr. acórdãos de 9 de Outubro de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 07B3011, ou de 18 de Junho de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B2998).

O artigo 690º-A do Código de Processo Civil foi posteriormente alterado (…) pelo Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto. Continuou a incumbir ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto proferida em primeira instância, para o que agora releva, “especificar (…) os concretos pontos de facto que [o recorrente] considera incorrectamente julgados” e “os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida”. Mas, se “os meios probatórios invocados como fundamento de erro na apreciação das provas [tiverem] sido gravados”, passou a caber-lhe, “sob pena de rejeição do recurso, indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 522ºC”.(…)

Como também se teve já a ocasião de observar (cfr. “Notas sobre o novo regime dos recursos no Código de Processo Civil”, in O Novo Processo Civil, Contributos da doutrina para a compreensão do novo Código de Processo Civil, caderno I, Centro de Estudos Judiciários, Dezembro de 2013, pág. 395 e segs)., a reforma do Código de Processo Civil de 2013 não pretendeu alterar o sistema dos recursos cíveis, aliás modificado significativamente pouco tempo antes, pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto; mas teve a preocupação de “conferir maior eficácia à segunda instância para o exame da matéria de facto”, como se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII apresentada à Assembleia da República, de cuja aprovação veio a resultar o actual Código de Processo Civil, disponível em www.parlamento.pt .

Essa maior eficácia traduziu-se no reforço e ampliação dos poderes da Relação, no que toca ao julgamento do recurso da decisão de facto; mas não trouxe consigo a eliminação ou, sequer, a atenuação do ónus de delimitação e fundamentação do recurso, introduzidos em 1995.

Com efeito, o nº 1 do artigo 640º vigente:

– manteve a indicação obrigatória “dos concretos pontos de facto” que o recorrente “considera incorrectamente julgados” (al. a),

– manteve o ónus da especificação dos “concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida” (al.b),

exigiu ao recorrente que especificasse “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas” (al. c),

sob pena de rejeição do recurso de facto. E à mesma rejeição imediata conduz a falta de indicação exacta “das passagens da gravação em que se funda” o recurso, se for o caso, sem prejuízo de poder apresentar a “transcrição dos excertos” relevantes. Cumpridos os requisitos assim definidos para a delimitação e fundamentação da impugnação da decisão de facto, então caberá à Relação julgar o recurso, nos termos amplos acima referidos.»

Nesse julgamento, quando estiverem em causa meios de prova abrangidos pelo princípio da livre apreciação, caberá à Relação formar a sua própria convicção, como hoje expressamente se esclarece (cfr. n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, e n.º 2 do artigo 663.º), não obstante, em regra, a falta de imediação.

Ora o recorrido pode ter interesse em contrapor os meios de prova que sustentem a decisão recorrida, indicando expressamente quais deles infirmam o que o recorrente sustentou nas alegações (al. b) do n.º 2 do artigo 640.º), embora a Relação não esteja limitada por aqueles que o recorrente indica (cfr. a citada al. b)). O que naturalmente não significa que recaia sobre o recorrido qualquer ónus de fazer essa indicação; mas confere-lhe o poder de arguir a nulidade do acórdão, se não apreciou meios de prova correctamente indicados.

Seja como for, a Relação tem o poder oficioso de apreciar meios de prova não especificamente indicados pelas partes (cfr., quanto ao recorrido, expressamente, a al. b) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil) e não tem qualquer limitação, dentro do âmbito do objecto do recurso, seja a alterar factos, seja a extrair ilações de facto, não procedendo a afirmação, feita pela recorrente, de que lhe não cabe formular “juízos conclusivos” (ponto. 164 das alegações de revista).

Explicando um pouco melhor: tem-se entendido que a Relação não pode, através de presunções e sem alterar a decisão sobre os factos que a 1ª Instância deu como não provados, vir a proferir um julgamento de facto contrário a esses factos; mas não foi o que sucedeu no caso presente. Aqui, a Relação, apreciando o recurso de facto interposto pelo autor, alterou os factos de onde extraiu uma conclusão de facto – que a ré “não tem qualquer interesse comercial na utilização da marca ‘A Fábrica dos Chapéus by Gi Calhau’ (…) e que a mesma foi criada e registada com o intuito de prejudicar o apelante” – sem estar a criar qualquer contradição com a matéria de facto provada.

A recorrente afirma ainda que, ao alterar o julgamento de 1ª Instância de não estar provado “Que a ré não tenha interesse na marca ‘A fábrica dos chapéus by Gi Calhau” para a afirmação de que, saber “(…) se a R., tem utilidade na marca”,  “a resposta a tal questão apenas pode advir da conjugação de diversos factores” e implicou alterar um ponto essencial que “não vem identificado nos temas da prova, fixados em sede de saneador”.

No entanto, os temas de prova  que, com o Código de Processo Civil de 2013, identificam a matéria controvertida, correspondem a enunciados das questões essenciais de facto, não implicando a individualização de cada facto a provar, como se exigia para o questionário ou se generalizou, na prática, para a base instrutória (cfr. artigo 410.º do Código de Processo Civil).

Lendo a definição dos temas de prova constante do despacho saneador, concretamente a fls. 59, deve concluir-se que se trata de matéria de facto incluída nos temas G) (“Circunstâncias em que a Ré registou a marca n.º 585533”) e I) (“Circunstâncias em que a Ré usa a marca n.º 585533”).

9. Já está afastado dos poderes do Supremo Tribunal de Justiça o controlo do julgamento da matéria de facto na apelação, salvo nos limites do disposto no n. º 3 do artigo 674.º e no n.º 2 do artigo 682.º do Código de Processo Civil. Estão assim fora da sua apreciação meios de prova sem força probatória tabelada, ou seja, sujeitos à regra da livre apreciação; para o julgamento destes meios de prova, existe apenas um grau de recurso – cfr., apenas a título de exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 22 de Janeiro de 2015, www.dgsi.pt, proc. n.º 24/09.2TBMDA.C2.S.

Não lhe cabe, pois, controlar presunções judiciais, porque são ilações tiradas no domínio dos factos (cfr., por exemplo, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Março de 2018, www.dgsi.pt, proc.n.º 1781/15.2TB8VRL.G1.S1).

A recorrente não especifica meios de prova cujo controlo possa ser efectuado neste recurso, esclarecendo quais os documentos ou outros meios de prova com força probatória plena que não foi respeitada pelo acórdão recorrido; nada há portanto a decidir, quanto a este ponto do recurso.

10. Finalmente, a recorrente alega que o acórdão recorrido errou quando julgou ser abusivo “o exercício pela ré do seu direito ao uso exclusivo da marca e do logotipo registados sob o n.º 585533 da marca nacional, mormente para impedir o A. de os utilizar (com excepção da locução ‘by Gi Calhau’”), declarou que o Autor podia “continuar a usar no seu comércio a denominação comum “A Fábrica dos Chapéus”, com as cores patenteadas nos docs. n.ºs 9 a 15 da petição inicial, bem como o logotipo consistente num chapéu de coco vermelho (…) com uma pena amarela (…)”, determinou a anulação da marca e do logotipo e ordenou o cancelamento do respectivo registo junto do INPI.

Como escreveu Carlos Olavo (Propriedade Industrial, vol I, Sinais Distintivos do Comércio e Concorrência Desleal, 2ª ed., Coimbra, 2005, pág. 71) e seguindo de perto o que se disse já por várias vezes (cfr. por exemplo o acórdão proferido no processo n.º 35/15.9YHLSB.L1.S1), não curando agora de outras funções eventuais e acessórias, como a de servir também de meio de publicidade, a marca, dentro dos sinais distintivos do comércio, tem por função específica “diferenciar a origem empresarial dos produtos ou serviços propostos ao consumidor”, ou, dito de outra forma, possibilitar ao consumidor distinguir os produtos ou serviços “de um dado empresário” dos produtos ou serviços idênticos ou afins produzidos ou fornecidos pelos demais (cfr. nº 1 do artigo 222º do Código da Propriedade Industrial). Como se observou no acórdão deste Supremo Tribunal de 6 de Outubro de 2016, proc. 429/12.1YHLSB.L1.S1, www.dgsi.pt,No cerne da marca está pois o seu escopo diferenciador de modo a que é na função distintiva que a marca encontra o seu fundamento ontológico”.
A sua aptidão distintiva (cfr., em especial, o artigo 223º do Código da Propriedade Industrial) é, portanto, um elemento essencial para que a marca desempenhe a sua função e, considerada agora na perspectiva do empresário, para lhe permitir usufruir da exclusividade característica dos direitos privativos da propriedade industrial, constitutivamente concedida pelo respectivo registo (cfr. artigos 224º e 258º do Código da Propriedade Industrial).
Esta finalidade implica limitações ao princípio da liberdade de composição da marca, como por exemplo a impossibilidade de a marca ser somente composta por termos genéricos, desprovidos de carácter distintivo, por apenas designarem a “espécie (…) do produto (…)” (al. c) do n.º 1 do artigo 223.º, como seria o caso de “A Fábrica dos Chapéus.” Essas expressões podem integrar marcas, mas, em regra, “não serão considerados[as] de uso exclusivo pelo requerente” (n.º 2) devendo “ficar disponíveis para serem utilizados por todos os concorrentes no mercado” [Código da Propriedade Industrial Anotado, António Campinos (Coord. Geral) e Luís Couto Gonçalves (Coord. Científica) e outros, 2ª ed., Coimbra, 2015, anot. ao artigo 223º, pág. 392, e, por ex., o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Dezembro de 1997, proc. nº 771/97, com sumário em www.stj.pt].
Resulta do processo que foi este o fundamento do indeferimento do registo da marca “A Fábrica dos Chapéus”(ponto n.º 6 dos factos provados); e que, com o acrescentamento de “by Gi Calhau”, foi concedido o registo da marca em 21 de Março de 2018 (pontos 17 e 18), para “assinalar na classe 25 da classificação internacional de Nice «chapéus»” (ponto 17), passando assim a ré a beneficiar do “exclusivo da marca para os produtos e serviços a que se destina” (n.º 1 do artigo 224.º), razão principal para a improcedência da acção em 1ª Instância, uma vez que se consideraram não provados os fundamentos invocados pelo autor. O exclusivo não abrange, todavia, os elementos “Fábrica de Chapéus”, uma vez que, como se salienta no “Relatório de exame” do INPI junto a fls. 372, cfr. fls. 373 v.º: “são descritivos dos produtos em si, pelo que não poderão ser de apropriação exclusiva de apenas um titular”
A Relação, porém, considerou abusivo o exercício dos direitos de exclusivo assim conferidos à ré, na sequência da alteração da decisão sobre a matéria de facto da 1ª Instância e de ter dado como assente que a ré requereu o registo da marca sem nela ter interesse (ponto 30) e para prejudicar o autor (ponto 31).
Na verdade, vindo definitivamente provado que a ré não tem interesse na marca "A Fábrica dos Chapéus by Gi Calhau" e que com o registo dessa marca a ré quis prejudicar o autor, a conclusão de direito tirada pela Relação quanto à invalidade é inevitável.
Embora a exclusividade conferida à recorrente pelo registo da marca nacional n.º 585533, com sinal misto, não abranja o direito de uso exclusivo dos elementos genéricos – a expressão A Fábrica dos Chapéus –, e tenha sido a expressão “by Gi Calhau” e o desenho do chapéu com a pena que, como se observou na sentença da 1.ª Instância, fizeram com que a marca de sinal misto “A Fábrica dos Chapéus by Gi Calhau” tivesse distintividade suficiente para poder ser registada, a verdade é que aquele desenho e o tipo de letra criam um impressão de conjunto de manifesta semelhança entre a marca da recorrente e a denominação comum que o autor utiliza no seu comércio, para o mesmo produto; o que torna inadmissível a utilização por ambas as partes, pela ostensiva confusão que pode criar junto do público, pondo em causa a “lealdade da concorrência” (artigo 1º do Código da Propriedade Industrial).
           
11. A exclusividade conferida pela titularidade de uma marca registada desempenha uma função, não só de protecção dos interesses do seu titular, mas também do interesse público da sã concorrência,  permitindo que a marca desempenhe a função, que lhe é específica, de “distinguir os produtos ou serviços de uma empresa dos de outra empresa” (Carlos Olavo, Propriedade Industrial cit, vol I, pág. 73), excluindo os demais agentes económicos da sua utilização em produtos idênticos ou afins (artigo 258.º).
É esta dupla finalidade da concessão da exclusividade que fundamenta a exclusão dos outros agentes económicos que comercializam o mesmo produto.
Por essa razão, tem-se repetidamente recordado que o direito de utilização exclusiva das marcas implica o dever de a utilizar seriamente, tanto que a falta de uso sério durante um determinado período de tempo – cinco anos consecutivos – provoca a caducidade do registo (artigo 269.º, n.º 1, do Código da Propriedade Industrial), considerando-se requerido de má fé o registo de uma marca que, em lugar de ter como objectivo a sua utilização séria, antes se destina a prejudicar outrem.
           
12. O Código da Propriedade Industrial de 2018, “fazendo uso de uma faculdade admitida pelo n.º 2 do art. 4.º da DHM de 2015”, como escreve Pedro Sousa e Silva, Direito Industrial, Noções Fundamentais,  2º ed., Coimbra, 2019, pág. 262, é hoje muito claro quanto à inclusão do requerimento de má fé entre os motivos absolutos de recusa do registo de uma marca (n.º 6 do artigo 231.º), desde que a má fé seja invocada por um contra-interessado, e de nulidade (artigo 259.º, n.º 1).
Mas já no domínio do Código da Propriedade Industrial anterior se entendia que a má fé era motivo autónomo de anulação de uma marca registada (n.º 4 do artigo 266.º), e não apenas de imprescritibilidade dos motivos de anulação autonomamente enunciados (Carlos Olavo, Propriedade Industrial cit., pág. 156, nota (308)), sendo este o regime aplicável, por ser o que se encontrava em vigor à data da apresentação do pedido de registo, como se disse já  e o Tribunal de Justiça da União Europeia teve ocasião de afirmar (ver, por todos, o recente acórdão de 29 de Janeiro de 2020, proc. C-371/18,  Sky plc e outros v. SkyKickUk Ltd e outra, quer para as marcas comunitárias – ainda assim designadas por se tratar de um reenvio prejudicial que foi apreciado à luz do Regulamento n.º 40/94 do Conselho, de 20 de Dezembro de 1993, e referiu também a Directiva n.º 89/104CEE do Conselho, de 21 de Dezembro de 1988), quer para as marcas nacionais..            
O Código da Propriedade Industrial de 2003 não definia (tal como o actual não define) o conceito de má fé. Todavia, neste contexto, entende-se por má fé a consciência de estar a violar de forma ilícita e prejudicial um direito de terceiro”, “no momento do registo” (Couto Gonçalves, Manual de Direito Industrial, Propriedade Industrial e Concorrência Desleal, 3.ª ed., Coimbra, 2012, pág. 310), acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa 20 de Maio de 2010, www.dgsi.pt, proc. n.º 526/2002.L1.6 ou de 25 de Maio de 2017, www.dgsi.pt, proc. 1818/11.4TBEVR.L1-2, ou da Relação do Porto, www.dgsi.pt, proc. n.º 3607/10.4TJVNF.P2, o citado acórdão de 29 de Janeiro de 2020, pro. C-371/18 ou acórdão de 11 de Junho de 2009, proc. C-529/2009, Chocoladefabriken Lindtv& Sprünglich AG v. Franz Hauswirth GmbH). Um exemplo de má fé será justamente o caso de o requerente do registo da marcas o requerer “sem intenção de as usar, para privar concorrentes dessa disponibilidade” (Pedro Sousa e Silva, Direito Industrial cit., pág. 284), situação que o acórdão recorrido entendeu ocorrer no caso presente, em resultado da alteração da prova (pontos n.ºs 30 - A R. não tem interesse na marca "A fábrica dos chapéus by Gi Calhau" e 31 - A R. quer prejudicar o A. com o registo de tal marca dos factos provados).
Para considerar verificada a má fé, cumpre analisar a globalidade das circunstâncias específicas do caso concreto.  Tal como se observa nomeadamente nas conclusões da advogada geral, apresentadas no processo C- 529/2009, que recordou que deviam ser os mesmos os critérios a aplicar, nos tribunais nacionais, quando apreciassem marcas nacionais ou marcas comunitárias, saber se o registo de uma marca foi requerido de má fé implica a análise das concretas circunstâncias do caso, de forma a poder-se concluir – ou não – que o requerente teve como intenção violar um direito de outrem, prejudicando-o ilicitamente.
Ora vem definitivamente provado que o autor iniciou o fabrico e comercialização de chapéus em Agosto de 2008, com a designação de “A Fábrica dos Chapéus” (ponto 1), com investimento seu (ponto 28), criou o endereço de correio electrónico em 9 de Agosto (ponto 2), abriu nessa altura a sua primeira loja com essa designação na porta (ponto 3), usava a mesma designação nos cartões, papel timbrado e publicidade (ponto 4); registou o domínio afabricadoschapeus.com em 10 de Fevereiro de 2009 (ponto 5), requereu, sem êxito, o registo da marca em 18 de Julho de 2009 (ponto 6); a ré passou a colaborar com o negócio designado por “A Fábrica dos Chapéus” em Abril de 2010 (ponto 11), sendo contratada como trabalhadora do autor nesse mesmo ano (ponto 32); em Setembro de 2011, o autor casou com a mãe da ré (ponto 7); abriram mais lojas (pontos 10, 11 e 12);  o autor e a mãe da ré separaram-se em Março de 2017 (ponto16); o autor cancelou o endereço de correio electrónico que a ré e sua mãe utilizavam (ponto 17). Em Julho de 2017, a ré requereu o registo da marca agora em causa (ponto 19) e em Novembro desse ano de 2017 a ré requereu o registo da marca nacional nº 592217 "Os Chapeleiros de LX", o qual foi concedido em 22/02/2018, para assinalar na Classificação Internacional de Nice os mesmos produtos fabricados e comercializados pelo autor (ponto 16); entre Julho e Novembro de 2017, a ré e sua mãe deixaram de ter acesso ao site e ao correio electrónico (ponto 29): após a separação e a divisão das lojas (pontos 24 e 25), o site dá a indicação de que uma loja que ficou para a mãe da ré está fechada, sendo essa informação que é prestada na loja do autor (ponto 25). E vem ainda provado que a ré não tem interesse na marca "A fábrica dos chapéus by Gi Calhau" (ponto 30) e quer prejudicar o A. com o registo de tal marca (ponto 31).
Da consideração global da prova decorre que ré conhecia o negócio do autor e sabia com que designação foi criado e funcionou vários anos; que a marca n.º 585533, na qual a ré não tinha interesse, incluía os termos e o desenho usados no negócio do autor; e que foi registada para o prejudicar. Ou seja: que foi registada de má fé, não relevando para a excluir a circunstância de estarmos a falar de uma composição não registada como marca, mas efectivamente usada no exercício do comércio pelo autor.
A prova impõe a conclusão de que o pedido de registo foi feito de má fé, para prejudicar o autor e sem que se destinasse a satisfazer um interesse da ré.
Tendo o autor pedido a anulação da marca e o cancelamento do registo, há que confirmar o que a Relação decidiu, adaptando apenas o fundamento de direito julgado procedente.

13. Resta recordar que a anulação da marca nacional n.º 585533 não concede ao autor a protecção que só o registo lhe poderia conferir. Mantendo-se as actuais circunstâncias, apenas elimina o obstáculo resultante do registo anulado.

 14. Nestes termos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido, nestes termos;

      a) Declara-se que o autor AA pode continuar a utilizar no seu comércio a denominação comum “A Fábrica dos Chapéus”, com as cores patenteadas nos docs. n.ºs 9 a 15 da petição, bem como o logotipo consistente num chapéu de coco vermelho (panetone #ffcc66), com uma pena amarela (panetone #993333).

       b) Ordena-se a anulação da marca e do logotipo registados sob o n.º 585533 e o cancelamento do respectivo registo junto do INPI.

        Custas pela recorrente, BB.

Lisboa, 29-10-2020

           

       A relatora atesta que os adjuntos, Conselheiro Olindo dos Santos Geraldes e Maria do Rosário Correia de Oliveira Morgado, votaram favoravelmente este acórdão, não o assinando porque a sessão de julgamento decorreu em videoconferência.

           

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (relatora)