VALOR DA CAUSA
COMPETÊNCIA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
CONTRATO-PROMESSA
AÇÕES
DETERMINAÇÃO DO PREÇO
Sumário

I – Numa acção, em que para além de outros pedidos, tem por objecto a execução específica de promessa de recompra de acções e discutindo-se não só o âmbito da recompra como o preço, o valor da acção deve corresponder à utilidade económica do negócio.
II – Incidindo a divergência sobre dois valores bastante dispares, deve considerar-se o maior valor em disputa, por ser aquele que abrange todas as hipóteses de determinação do preço acordado pelas partes.
III – A competência em razão do valor é aferida de harmonia com aquele valor.

Texto Integral



Relatório[1]

«Casa da Graciosa – Sociedade imobiliária, S.A., contribuinte fiscal nº 50…35 intentou, no Juízo Local Cível de …, ação declarativa de condenação com processo comum contra Totalpart – SGPS, S.A., pessoa coletiva nº 50…24,  formulando os seguintes pedidos:

I – Declarar-se que:

a) – O direito de “opção de recompra” da A. consagrada no acordo a que se reporta o documento junto sob o nº 4 com este articulado tem por objecto as 1630 acções representativas de 16,3% do capital social da sociedade “GPMG – Gestão e Participações, S.A.”;

b) – A A. exerceu esse direito nos termos prescritos no mencionado acordo;

II – Decretar-se:

a) – A transferência do direito de propriedade sobre as 1630 acções em causa da R. para a A., pelo preço de € 8.557,50;

b) – A retroacção dos efeitos da “recompra” à data em que o direito foi legalmente exercido (31-05-2010 ou 9-06-2010);

III – Condenar-se a R:

a) - A entregar à A. as referidas 1630 acções pelo preço de € 8.557,50;

b) – Nas custas da acção.

Para tanto alega, em síntese, que outorgou com a Mague – SGPS, S.A. um contrato de compra e venda de ações e cessão de créditos, nos termos do qual vendeu à ré 1630 ações e lhe cedeu determinados créditos, e que as partes vieram a celebrar um acordo nos termos do qual a autora teria a opção de recompra das mesmas ações mediante o pagamento de um preço a calcular de acordo com determinada fórmula.

Mais sustenta que de acordo com tal forma de cálculo, o preço para recompra das mesmas ações é de € 8.557,50, e que comunicou à Mague – SGPS, S.A. a intenção de recomprar as referidas ações pelo preço referido, mas que esta se recusou a vendê-las, entendendo que o preço calculado pela autora não respeita a fórmula ajustada, e  manifestando o entendimento de que o preço correto é de € 3.008.353,86.

Finalmente esclarece que a Mague – SGPS, S.A. veio a transmitir à ré os direito e obrigações emergentes dos acordos mencionados.

Citada a ré a mesma contestou, sustentando que nos termos previstos nos acordos invocados pela autora, o preço de recompra das ações é de € 3.008.353.86; pelo que é este o correto valor a atribuir à causa, o que determina a incompetência do Juízo Local Cível de …e a consequente remessa dos autos para o Juízo Central Cível da mesma cidade.

Mais deduziu a exceção de caducidade do direito de opção de recompra invocado pela autora, e impugnou extensamente os factos e o Direito por aquela invocados na petição inicial, concluindo a final pela improcedência da ação e pela sua absolvição do pedido.

A autora veio a responder às exceções invocadas pela ré, pugnando pela sua improcedência.

Seguidamente foi proferido o despacho com a refª 384…97, de 26-02-2019, cuja cópia se acha a fls. 124 a 126, e que tem o seguinte teor:

Do incidente do valor da causa

Nos presentes autos deduz a Autora os seguintes pedidos:

a) de prolação de decisão no sentido de que “o direito de recompra“ da Autora consagrado no acordo a que se refere o documento nº 4 por si junto com a p. inicial tem por objecto 1630 acções representativas de 16,3% do capital social da sociedade GPMG – Gestão e Participações, SGPS, S.A. e,

b) de que a Autora exerceu esse direito nos termos prescritos no mencionado acordo e que, em consequência,

c) se declare a transferência do direito de propriedade sobre as 1630 acções em causa da Ré para a Autora, pelo preço de 8.557,50 Euros, com retroacção dos efeitos da recompra à data em que o direito foi legalmente exercido (31.5.2010 ou 9.6.2010) e,

d) a condenação da Ré a entregar à Autora as 1630 acções pelo preço de 8.557,50 Euros.

Para o efeito alega a demandante ter celebrado com a Mague – SGPS, S.A. (de que a ora Ré é sucessora de todo o activo e passivo), em 7.5.2009, um contrato de compra e venda de acções e outro (?) de cessão de créditos, contrato por força do qual vendeu à Mague 1630 acções do capital social da G.P.M.G – Gestão e Participações, SGPS, S. A., pelo preço de 8.150,00 Euros e lhe cedeu créditos, no valor de 2.856.948,91 Euros, sendo 2.820.103,69 Euros por suprimentos e que, por documento com a mesma data de 7.5.2009, a Autora lhe concedeu (e ou à GPDG, S.A.) uma opção de recompra da posição accionista de 16,3% transmitida por aquele contrato inicial.

Mais refere ter, por carta de 31.5.2010, comunicado à Ré (então ainda Mague) pretender exercer o direito de recompra da aludida posição accionista na mencionada G.P.M.G – Gestão e Participações, SGPS, S. A., pelo preço de 8.557,50 Euros e que a Ré a Mague recusou a recompra, alegando inicialmente que deveria reformular a proposta e, posteriormente, que a demandante não tinha comprovado a verificação da condição prevista no documento através do qual lhe conferiu o direito de recompra, além de que o valor da mesma recompra era o correspondente à totalidade do valor do negócio de venda de acções e cessão de créditos, acrescido de determinado valor percentual e não o por si oferecido.

Por último, refere ter instaurado uma acção arbitral contra a Mague, cujo pedido era o mesmo destes autos, acção julgada procedente, tendo posteriormente a respectiva decisão arbitral vindo a ser anulada em sede de acção com tal fim pela Ré instaurada.

Contestando – por impugnação e por excepção – veio a Ré, além do mais, impugnar o valor da causa, alegando para tanto que o preço de recompra da posição accionista em causa nos autos coincide, nos termos previstos no doc. nº 4 junto pela Autora com a p. i., com o valor total do contrato de compra e venda de acções e de cessão de créditos, acrescido de determinado percentual, ou seja, o preço de 3.008.353,86 Euros, valor que entende (por ser coincidente com o valor global do contrato de compra e venda de acções e de cessão de créditos) dever ser fixado à causa, com a consequente incompetência, em razão do valor da lide, deste Juízo Local Cível para conhecer e decidir da causa.

Respondendo ao incidente do valor da causa veio a Autora pugnar pela sua improcedência, entendendo que o valor da causa é o da recompra das acções, ou seja, o valor de compra e venda das acções (de 8.150,00 Euros, acrescido do percentual previsto no documento em questão nos autos) por força da dissociabilidade de ambos os negócios e que ou a acção é julgada procedente e a Ré condenada no pedido ou a acção é julgada improcedente e a demandada é absolvida do pedido, tal como formulado.

Cumpre decidir.

Antes de mais, crê-se que a Autora confunde, de forma clara, a questão do valor da causa com a do seu mérito.

Com efeito, a toda a lide corresponde um valor, que deve ser indicado pelo ou pela demandante e que representa a utilidade económica imediata do pedido (artº 296 do C. P. Civil), sendo patente que o facto de o ou a demandante indicar, na p. inicial, um determinado valor à causa não significa que o mesmo coincida com os critérios legais da sua determinação e, por isso, com o efectivo valor da causa até porque este não é o momento de decidir do eventual mérito da acção, sendo que o valor da causa deve ser fixado no despacho saneador (artº 305 do C. P. Civil).

Efectivamente, não só a parte contrária pode impugnar o valor da causa em sede de contestação (como in casu sucedeu) como, além do mais, o próprio tribunal pode entender não ser de aceitar o valor à causa indicado pelo(a) demandante e aceite pela parte contrária, competindo-lhe, assim, fixá-lo em face dos elementos do processo e, se necessário, mediante prévias diligências de prova que entenda pertinentes / indispensáveis – ver artºs. 305 (em particular os nºs 1, 2 e 4), 308 e 309 do C. P. Civil.

Ora, in casu, a Ré impugnou o valor da causa por entender que o valor da mesma deve ser o valor do preço total ou global do contrato de compra e venda de acções e de cessão de créditos entre a Autora e a Mague então outorgado e a que se referem fls. 18, verso a 25 dos autos.

Ora, com vista à decisão do incidente ora sob apreciação impõe-se ter em conta os seguintes factos:

a) que as partes (Autora e, à data, a Mague) outorgaram entre si, em 7.5.2009, um contrato de compra e venda de acções e de cessão de créditos, por força do qual a demandante vendeu à Mague 1630 acções - pelo preço de 8.150,00 Euros - e lhe cedeu créditos, no valor de 2.856.948,91 Euros;

b) ter a Mague, por documento datado de 7.5.2009 e assinado por administradores seus, da Autora e da G.P.D.G. – Gestão e Participações, S. A., conferido à Autora e ou à G.D.P.G., uma opção de recompra da participação accionista de 16,3% transmitida por força do acordo aludido em a), mediante um preço, apurado de acordo com uma fórmula em que, um dos seus factores se cifrava no preço total do contrato assinado em 7.5.2009 (ver fls. 26 e fls. 18, verso a 25 dos autos).

Ora, o preço total do contrato assinado e outorgado entre Autora e Mague em 7.5.2009 cifra-se, efectivamente, em 2.865.098,91 Euros, não se conseguindo descortinar qualquer diferença entre preço total e global (expressões utilizadas, respectivamente, no documento de fls. 26 dos autos e no de fls. 18, verso a 25 dos autos) e que são, salvo o devido respeito por opinião contrária, sinónimas.

Por outro lado, impõe-se ter presente que a Ré alega que a opção de recompra das acções teria de ser exercida de forma indissociável da recompra dos créditos cedidos, sendo que pese embora se não veja impedimento legal à sua dissociação, a verdade é que sempre terá de apurar, com vista à decisão do litígio dos autos, a efectiva vontade das partes, aquando da outorga do acordo referente à opção de recompra, ou seja, apurar se apenas se quis conceder a acção de recompra relativamente às acções e aos créditos ou se o foi apenas relativamente às acções.

Por outro lado, decorre do teor dos pedidos formulados nos autos pela demandante que através desta lide pretende a mesma obter a declaração da existência do cumprimento, por si, da concedida opção de recompra, sendo por isso aplicável o disposto no artº 301 do C. P. Civil, preceito legal que prevê, no seu nº 1, que quando a acção tiver por objecto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um acto jurídico, se atende ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.

Do exposto decorre que estando em causa o âmbito do objecto da mencionada opção de recompra e, logo, o seu preço, se tem de ter em conta o maior âmbito da mencionada opção de recompra pela Ré indicado e valor por esta indicado à causa, por ser aquele que abrange todas as hipóteses de determinação do preço pelas partes acordado.

Na verdade, só assim se pode efectivamente apurar se as partes acordaram numa mera opção de recompra das acções e ou também dos créditos cedidos e qual o respectivo preço e, consequentemente, se a Autora cumpriu ou não com o acordado entre as partes quanto ao exercício da mencionada opção de recompra, em termos de preço, já para não discutir, neste momento, a questão de a mesma ter ou não comprovado a verificação da condição a tal opção aposta.

Refira-se, aliás, que a própria Autora assume que o litígio entre as partes se reconduz, na essência, ao âmbito da opção de recompra, ou seja, se a mesma abrange ou não indissociavelmente as acções e os créditos ou apenas as acções e qual o valor da recompra – ver artºs 18º e 19º da p. inicial.

Diga-se, aliás, que em sede da acção arbitral instaurada pela demandante contra a Mague foi também o valor da causa fixado em 3.008.353,86 Euros (correspondente ao valor total de compra e venda das acções e da cessão dos créditos em causa no contrato entre as partes outorgado, acrescido de determinado valor percentual, como defendido pela aqui Ré), o que não impediu a Autora de proceder ao pagamento dos encargos inerentes nessa sede, de acordo com tal valor e de, assim, exercer o direito de demanda.

Ora, neste caso e em sede judicial, a taxa de justiça é, como é do conhecimento comum, manifestamente inferior ao praticado em sede de tribunal arbitral, não se vendo, por isso, que da fixação de um valor como o indicado pela Ré à causa possa decorrer a inviabilidade de recurso das partes a juízo – ver Tabela I-A do R.C. Processuais.

Assim e nos termos das disposições legais conjugadas dos artºs. 296, 297, 299, 301, 305, 308 e 310 do C. P. Civil e 117, nº 1 e 130 da Lei nº 62/2013, de 26/8, decide-se julgar procedente, por provado, o incidente de impugnação do valor da causa e fixar à causa o valor pela Ré indicado, de 3.008.353,86 Euros e, consequentemente, declarar este tribunal incompetente, em razão do valor da causa, para conhecer do litígio por, para o efeito, serem competentes os Juízos Centrais Cíveis do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa»


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Inconformada, veio a Autora interpor recurso de apelação, pedindo a revogação da decisão, a fixação do valor da acção no montante por si indicado e manutenção da acção no juízo recorrido por ser o competente em razão do valor.

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A relação de Lisboa deu integral procedência ao recurso, revogou o despacho recorrido, atribuiu à causa o valor de € 8.557,50, e em consequência, determinou que a causa prosseguisse os seus termos no Juízo Local Cível de …, por ser o competente em função do valor.

Inconformada com o decidido, veio, desta feita a R. interpor recurso de revista, tendo rematado as suas alegações com as seguintes

Conclusões:

« A.     A fixação do valor da causa deve obedecer ao critério geral da utilidade económica imediata do pedido, que se afere no contexto do pedido, mas também da causa de pedir, já que é esta última que explica o pedido e o delimita.

B.    Para se determinar o valor da causa, deve atender-se aos interesses que os litigantes se propõem fazer valer e aos efeitos jurídicos que visam conseguir.

C.     Ora, estando em discussão nos autos a determinação do âmbito de uma opção de recompra e a interpretação da fórmula para determinação do preço, nomeadamente se abrange ou não indissociavelmente as ações e os créditos associados ou apenas as ações e consequentemente qual o preço para exercício da  opção de recompra, é cristalino que ao fixar o valor da causa, o Tribunal deve ponderar os valores em confronto (€8.557,50 correspondente ao valor nominal das ações, acrescido do percentual previsto no contrato ou € 3.008.353,86, que corresponde ao verdadeiro valor da venda da participação de 16,3%, valor nominal das ações e o valor dos créditos, devidamente atualizados) e optar pelo maior, por ser aquele que abrange todas as hipóteses de determinação do preço acordado pelas partes e que mais garantias oferece às partes, permitindo que a ação seja julgada pela instância central cível e com alçada para eventual recurso até ao STJ.

D.     O Tribunal de 1ª instância, à semelhança do que já havia feito o tribunal arbitral (constituído para dirimir o presente litígio, mas cujo acórdão arbitral proferido veio a ser judicialmente anulado por inexistência de convenção de arbitragem) fixou à ação o valor de € 3.008.353,86, por ser aquele que abrange todas as hipóteses de determinação do preço acordado pelas partes.

E.      A Relação de Lisboa revogou esse despacho, atribuindo ao invés ao processo o valor de € 8.557,50, determinando que a causa prossiga os seus termos no Juízo Local Cível de … onde se encontrava, por ser o competente em função do valor.

F.   O Acórdão recorrido considerou que, estando em causa o cumprimento de um contrato oneroso que prevê determinado preço, nos termos do disposto no art. 301º, nº 1 do CPC, o valor da causa é o do preço estipulado pelas partes, mas como o acordo de opção de recompra das ações celebrado entre as partes não indica uma quantia certa e líquida como preço para a recompra das ações, antes enuncia uma fórmula para o seu cálculo, sendo a aplicação desta fórmula controvertida, entendeu que não fazia sentido antecipar a apreciação do mérito da causa para calcular desde já o montante do preço, por aplicação da fórmula ajustada pelas partes, devendo antes atender-se à configuração que a autora deu ao objeto da causa, através da formulação dos pedidos que deduziu e da delimitação que atribuiu à causa de pedir.

G.    É deste Acórdão que vem interposto o presente Recurso de Revista, o qual é admissível nos termos do previsto no art. 629º n.º 2 b) do CPC, sendo pacífico que a expressão “decisões respeitantes ao valor da causa” abrange quer o despacho a que se refere o art. 306º n.º 1 do CPC, quer a simples discussão do valor da causa, desde que se alegue, como é o caso, que o valor do processo excede a alçada da Relação.

H.      O Acórdão recorrido confunde, de forma clara, a questão do valor da causa com a do seu mérito, não tendo feito uma correta aplicação do critério contido no art. 301º do CPC.

I.       A Relação de Lisboa esquece que, quando não esteja em causa a obtenção de uma quantia certa em dinheiro, isto é, quando pela ação se pretenda obter um benefício diverso, o valor da causa definir-se-á pela tradução pecuniária desse benefício.

J.       Ora, ressalta aos olhos de todos que a tradução pecuniária do benefício correspondente ao reconhecimento de uma posição acionista de 16,3% numa sociedade comercial não se pode reconduzir ao valor nominal dessas ações, que é precisamente o preço pelo qual a Autora pretende exercer tal opção de recompra, que a Ré diz já ter caducado, e além de tudo o mais, nega que fosse esse o preço acordado.

K.     Face aos pedidos formulados pela Autora nos autos, e que se reconduzem ao reconhecimento da existência do direito de opção de recompra da Autora de 1630 acções representativas de 16,3% do capital social da sociedade GPMG –Gestão e Participações, SGPS, S.A., ao correto exercício do direito de opção de recompra nos termos estabelecidos entre as partes, a transferência do direito de propriedade sobre as 1630 acções em causa da Ré para a Autora, pelo preço de €8.557,50, com retroacção dos efeitos da recompra à data em que o direito terá sido legalmente exercido e a condenação da Ré a entregar à Autora as 1630 acções pelo preço de € 8.557,50, é óbvio que a utilidade económica imediata do pedido para a Autora não corresponde ao valor que atribuiu à presente ação (€ 8.557,50), tanto mais quanto, noutros foros, a Autora tem vindo a defender que a sociedade cujas ações pretende adquirir vale mais de 150 milhões de euros.

L.      A circunstância de o valor indicado pela ora Recorrente, além de encontrar respaldo na configuração do litígio efetuada pelas partes permitir que a ação seja julgada na instância central cível, com alçada até ao Supremo Tribunal de Justiça, não é algo despiciendo, nem que não deva ser ponderado pelo Tribunal na fixação do valor da causa, por ser aquele que mais garantias oferece às partes, argumento a que o legislador não é estranho como se infere do disposto no art. 303º e 310º n.º3 do CPC.

M.     Face ao exposto, o Tribunal “a quo” ao revogar o despacho recorrido, atribuindo à causa o valor de € 8.557,50, violou o disposto nas disposições conjugadas dos artigos. 296º, 297º, 299º, 301º, 301º e 310º do CPC.

Termos em que deve ser revogado o Acórdão recorrido, confirmando-se a sentença da 1ª instância de fixar à ação o valor de € 3.008.353,86,


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Não houve resposta da parte contrária.

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Na perspectiva da delimitação pelo recorrente[2], os recursos têm como âmbito as questões suscitadas nas conclusões das alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do novo Cód. Proc. Civil)[3], salvo as questões de conhecimento oficioso (n.º 2 in fine do art.º 608º do  novo Cód. Proc. Civil).

Das conclusões acabadas de transcrever conjugadas com o teor do acórdão impugnando, decorre que a revista interposta pelo ré, tem apenas por objecto saber se o valor fixado à acção respeita ou não os critérios legais pertinentes e, em consequência do que vier a ser decidido, definir qual o tribunal competente em razão do valor.


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Dos factos

Os factos a considerar são os constantes do relatório que antecede.


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Do Direito

No tocante à fixação do valor da causa o acórdão recorrido fundamentou a deliberação nos seguintes termos:

«No caso vertente, vem a autora invocar a celebração com a ré de um contrato de compra e venda de ações, nos termos do qual vendeu a esta determinadas ações e lhe cedeu créditos, e a outorga de um acordo de opção de recompra das mesmas ações, que no seu entender a ré não cumpriu, pretendendo que o Tribunal decrete a venda pelo preço que em seu entender resulta do acordo de recompra.

Este acordo de recompra (cuja cópia se acha a fls. 34) consubstancia uma verdadeira promessa unilateral de venda, sujeita a termo certo, manifestada pela compradora das ações (Mague SGPS, S.A.), e aceite pela vendedora (a autora), nos termos da qual esta poderia, caso assim o quisesse, voltar a comprar as ações vendidas, mediante determinado preço.

Trata-se de uma promessa unilateral, na medida em que nos termos do acordado, a autora não se obriga a recomprar as ações, embora assegure o direito de o fazer, caso o entenda. Por seu turno, a Mague, SGPS, S.A. não adquire o direito de exigir à autora que lhe recompre as ações, apenas assume o encargo de lhas vender, pelo preço acordado[4].

À luz destas considerações é possível desde já concluir que a presente ação configura uma verdadeira ação de execução específica (art. 830º do CC), visto que a autora pretende que o Tribunal se substitua à ré na emissão das declarações de vontade próprias do contrato prometido, pelo que é de concluir que tal ação visa o cumprimento do mencionado acordo de recompra de ações[5].

Estando em causa o cumprimento de um contrato oneroso que prevê determinado preço, nos termos do disposto no art. 301º, nº 1 do CPC, o valor da causa é o do preço estipulado pelas partes.

Sucede, contudo que no caso vertente o acordo de opção de recompra das ações celebrado entre as partes não indica uma quantia certa e líquida como preço para a recompra das ações, antes enuncia uma fórmula para o seu cálculo, sendo por aplicação desta que se apura o mencionado preço.

Contudo, as partes divergem frontalmente no que diz respeito à aplicação desta fórmula, sustentando a autora que o preço é de € 8.557,50, e a ré que o mesmo é de € 3.008.353,86.

Coloca-se, pois, a questão de saber qual dos montantes deve ser tomado em consideração com vista à determinação do valor da causa.

Interpretando o art. 301º, nº 1 do CPC dizem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[6]:

“3. O valor do ato (e, assim, o valor da ação) apura-se por uma de duas vias: pelo preço fixado ou pelo próprio valor que as partes deram aos bens sobre que versa o negócio (…). Quanto ao preço, este não deve ser tomado nos estritos termos referidos na lei substantiva para a compra e venda (art. 874º do CC) e para a empreitada (art. 1207º do CCF), mas no sentido abrangente de contrapartida devida no âmbito do negócio submetido à consideração do tribunal.

Quanto ao valor estipulado, mais restritamente, respeita a casos em que, importando embora a disposição de bens, não há uma contrapartida (doação) ou a contrapartida é igualmente em bens (permuta), pelo que o valor do negócio (e, assim, da ação) decorre do valor atribuído pelas partes aos bens envolvidos.

4. Nos casos em que ao ato jurídico corresponder um valor certo e determinado (v.g. o preço no contrato de compra e vanda, o valor do crédito assumido na confissão de dívida), torna-se fácil determinar o valor processual. Quando as partes não tenham estipulado um valor, importará recorrer às normas substantivas, tais como o art. 883 (determinação do preço na compra e venda), o art. 1158, nº 2 (valor da remuneração no mandato) ou o art. 1211º (determinação do preço na empreitada), todos do CC.”.

No caso vertente, não se verifica nenhuma das situações exemplificadas pelos insignes Mestres, na medida em que as partes fixaram por acordo o preço para a recompra das ações, mas não indicaram um montante certo. Logo, nem dispomos um montante certo e líquido, nem se verifica uma situação de ausência de estipulação de preço, razão pela qual a nosso ver não é aplicável o art. 883º do CC, na medida em que não se trata de determinar o preço, de acordo com o preço de mercado ou critérios de equidade, mas de o calcular, de acordo com os critérios acordados pelas partes.

E não faz sentido antecipar a apreciação do mérito da causa para calcular desde já o montante do preço, por aplicação da fórmula ajustada pelas partes.

Não obstante, permanecendo controvertido o montante do preço em questão, não nos impressiona o argumento esgrimido pela ré, no sentido de se atender ao valor mais elevado dos propostos pelas partes, por daí resultarem garantias processuais mais robustas, nomeadamente o direito de recorrer até ao Supremo Tribunal de Justiça.

Na verdade, a recorrida não invocou, nem nós descortinamos qualquer disposição legal que consagrar tal critério decisório.

Nesta conformidade, cremos que no caso vertente se deve atender a outras circunstâncias.

Com efeito, é importante ter presente que como a autora referiu, não deduziu qualquer pedido subsidiário, no sentido de improcedendo o pedido principal, se atender ao preço indicado pela ré; nem a ré deduziu reconvenção, pedindo que as ações se transmitam pelo preço que ela mesma indica.

Assim, caso a final o Tribunal venha a considerar que se verificam as condições para a autora exercer o direito de recompra das ações, e venha a considerar que o preço é o indicado pela autora, a ação procederá; mas se o Tribunal vier a concluir estarem reunidas as referidas condições, mas que o preço é o indicado pela ré, ou qualquer outro superior ao indicado pela autora, a ação deverá ser julgada improcedente.

Daqui decorre, que face à configuração que a autora deu ao objeto da causa, através da formulação dos pedidos que deduziu e da delimitação que atribuiu à causa de pedir, o valor da utilidade económica visada na presente causa é efetivamente de € 8.557,50.

Deve pois ser revogada a decisão recorrida, atribuindo-se à causa o referido valor de € 8.557,50».


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A decisão e a fundamentação que lhe subjaz, parecem confundir a questão do valor da causa com a do seu mérito.

É verdade que a A., com a presente acção visa a execução específica duma promessa de recompra de acções. Porém os pedidos formulados não se circunscrevem aos de uma típica acção de execução especifica de promessa. Vão para além disso. Desde logo a A. pede que declare que a mesma «exerceu esse direito (de recompra) nos termos prescritos no mencionado acordo» de compra e venda de acções e créditos, com opção de recompra, junto com a petição inicial. Ora este pedido pressupõe a apreciação da existência, validade e cumprimento de um acto jurídico devendo por isso atender-se ao valor do acto determinado pelo preço ou estipulado pelas partes (art.º 301º nº 1 do CPC).

Com relevo para a determinação do valor da causa, decorre dos autos a seguinte factualidade:

a) que as partes (Autora e, à data, a Mague) outorgaram entre si, em 7.5.2009, um contrato de compra e venda de acções e de cessão de créditos, por força do qual a demandante vendeu à Mague 1630 acções - pelo preço de 8.150,00 Euros - e lhe cedeu créditos, no valor de 2.856.948,91 Euros;

b) ter a Mague, por documento datado de 7.5.2009 e assinado por administradores seus, da Autora e da G.P.D.G. – Gestão e Participações, S. A., conferido à Autora e ou à G.D.P.G., uma opção de recompra da participação accionista de 16,3% transmitida por força do acordo aludido em a), mediante um preço, apurado de acordo com uma fórmula em que, um dos seus factores se cifrava no preço total do contrato assinado em 7.5.2009 (ver fls. 26 e fls. 18, verso a 25 dos autos).

A Ré alega que a opção de recompra das acções teria de ser exercida de forma indissociável da recompra dos créditos cedidos, sendo que pese embora se não veja impedimento legal à sua dissociação, a verdade é que sempre terá de apurar, com vista à decisão do litígio dos autos, a efectiva vontade das partes, aquando da outorga do acordo referente à opção de recompra, ou seja, apurar se apenas se quis conceder a acção de recompra relativamente às acções e aos créditos ou se o foi apenas relativamente às acções. Como bem se observa no despacho proferido na 1ª instância, « a própria Autora assume que o litígio entre as partes se reconduz, na essência, ao âmbito da opção de recompra, ou seja, se a mesma abrange ou não indissociavelmente as acções e os créditos ou apenas as acções e qual o valor da recompra – ver artºs 18º e 19º da p. inicial».

Está pois em causa determinar não só o âmbito do objecto da mencionada opção de recompra mas também o seu preço e isso implica apurar se as partes acordaram numa mera opção de recompra das acções e ou também dos créditos cedidos e qual o respectivo preço e, consequentemente, se a Autora cumpriu ou não com o acordado entre as partes quanto ao exercício da mencionada opção de recompra, em termos de preço e de outras condições contratuais. Claramente não se pode falar que exista um preço fixo para a recompra das ações, porquanto isso depende do âmbito do contrato e do apuramento da vontade real das partes. Essa vontade e o preço final do negócio está dependente da interpretação do acordo. Ora neste caso, havendo claramente em disputa, dois valores bastantes dispares haverá que ter em consideração, para efeitos de determinação do valor da causa, o que tiver maior amplitude por ser aquele que abrange todas as hipóteses de determinação do preço acordado pelas partes. Este critério tem apoio no n.º 2 do art.º 301 do CPC e no nº 1 do art.º 296º do mesmo diploma porquanto não resultando, sem sombra de qualquer dúvida do contrato, o preço e a amplitude da recompra, não se pode considerar que exista um preço certo fixado pelas partes, o que implica que se assuma o valor correspondente ao valor económico em causa. Ora esse valor económico não pode deixar de ser o correspondente ao valor do negócio realizado em 7/5/2009, acrescido do percentual acordado no contrato, tudo no montante indicado pela Ré, ou seja, no valor de 3.008.353,86 Euros, tal como decidira a 1ª instância.

Será, pois, este o valor a atribuir à causa.

Em face deste valor, fixado à causa, não merece censura a declaração de incompetência em razão do valor proferida na 1ª instância, sendo por isso de manter.

Concluindo

Pelo exposto, acorda-se em revogar o acórdão recorrido e repristinar a decisão da primeira instância tanto no tocante ao valor da causa como em relação à declaração de incompetência em razão do valor.

Custas pela Autora.

Registe e notifique.


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Em síntese:

I – Numa acção, em que para além de outros pedidos, tem por objecto a execução específica de promessa de recompra de acções e discutindo-se não só o âmbito da recompra como o preço, o valor da acção deve corresponder à utilidade económica do negócio.

II – Incidindo a divergência sobre dois valores bastante dispares, deve considerar-se o maior valor em disputa, por ser aquele que abrange todas as hipóteses de determinação do preço acordado pelas partes.

III – A competência em razão do valor é aferida de harmonia com aquele valor.


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Consigna-se, nos termos do disposto no art.º 15-A do DL nº 10-A/2020 e para os efeitos do nº 1 do art.º 153º do CPC, que os Srs. Juizes Adjuntos, têm voto de conformidade, mas não assinam, em virtude do julgamento ter decorrido em sessão (virtual) por teleconferência.

Lisboa, em 11 de Novembro de 2020.

José Manuel Bernardo Domingos (relator)

Paulo Rijo Ferreira

António Abrantes Geraldes

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[1] Parcialmente transcrito do acórdão recorrido.
[2] O âmbito do recurso é triplamente delimitado. Primeiro é delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na 1.ª instância recorrida. Segundo é delimitado objectivamente pela parte dispositiva da sentença que for desfavorável ao recorrente (art.º 684º, n.º 2 2ª parte do Cód. Proc. Civil antigo e 635º nº 2 do NCPC) ou pelo fundamento ou facto em que a parte vencedora decaiu (art.º 684º-A, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil, hoje 636º nº 1 e 2 do NCPC). Terceiro o âmbito do recurso pode ser limitado pelo recorrente. Vd. Sobre esta matéria Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, págs. 460-461. Sobre isto, cfr. ainda, v. g., Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos, Liv. Almedina, Coimbra – 2000, págs. 103 e segs.
[3] Vd. J. A. Reis, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, pág. 56.
[4]  Acerca da figura da recompra de ações, cfr. JORGE FARINHA e MIGUEL SORO, “Dividendos e recompra de ações – Da teoria à prática”¸ Vida Económica, 2012, pp. 40 ss. Note-se contudo que habitualmente a recompra de ações está associada a negócios que envolvem ações próprias, o que não se verifica no caso vertente, dado que os contratos a que os articulados se referem têm por objeto acções de sociedade diversa da autora.
[5] Admitindo amplamente a execução específica dos contratos-promessa de compra e venda de ações, cfr. ac. STJ 21-03-2017 (Fonseca Ramos), p. 427/13.8TVLSB.L1.S1, JOANA TORRES EREIO e FILIPA DE ARAGÃO HOMEM, “Da aplicação do artigo 830.º do Código Civil na praxis societária – a execução específica de obrigações sociais e parassociais”, in Revista de Direito Civil, Ano I, 2016, n.º 3, 699; e  VERA EIRÓ “A transmissão de valores mobiliários - As acções em especial”, in Themis, ano VI, nº 11, Almedina, pp. 145 ss., em especial p. 185.
[6] “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, 2018, p. 350.