RECURSO DE REVISÃO
DOCUMENTO SUPERVENIENTE
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
FUNDAMENTOS
USUCAPIÃO
FRAÇÃO AUTÓNOMA
POSSE
TÍTULO CONSTITUTIVO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
MODIFICAÇÃO
AÇÃO CONSTITUTIVA
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
FALTA DE LICENCIAMENTO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PRAZO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO
TEMPESTIVIDADE
Sumário

I. Atento o disposto no art. 696º, al. c), do CPC, a revisão extraordinária de decisão judicial transitada em julgado pode decorrer da apresentação de documento de que a parte não teve conhecimento ou de que não pôde fazer uso, mas que, por si só, seja suficiente para modificar o resultado em termos que favoreçam o recorrente.
II. Se a decisão recorrida decorrer de diversos fundamentos determinantes, para que a revisão proceda, é necessário que a nova documentação apresentada permita modificar, por si só, o resultado declarado tendo em consideração cada um dos diversos fundamentos essenciais.
III. Julgada improcedente a exceção de usucapião invocada pelo R. tendo por objeto a extensão da posse relativamente a uma parte da área de uma fração autónoma em divergência com a que consta do título constitutivo da propriedade horizontal, o facto de o R. (que ficou vencido) ter apresentado no recurso extraordinário de revisão documentação que, ao invés do pressuposto no acórdão recorrido, demonstra que haviam sido licenciadas pela entidade municipal as alterações introduzidas quanto às áreas de cada uma das frações, não determina a procedência do recurso de revisão se, apesar disso, se mantêm inalterados os demais fundamentos que confluíram para aquela decisão, ou seja:
a) A falta de demonstração do alvará da autorização de utilização da fração, depois da realização das obras;
b) A falta de elementos que permita a alteração da permilagem de cada fração, nos termos do art. 1417º, nº 1, do CC;
c) O facto de na ação declarativa que visa obter o mesmo efeito modificativo previsto no art. 1419º, nº 1, do CC não terem intervindo os demais condóminos

Texto Integral

I – Foi interposto recurso extraordinário de revisão do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça proferido no âmbito da ação declarativa interposta por AA, BB, CC e DD

contra

EE e FF

Alegaram os RR. recorrentes que desconheciam a existência de documentação que traduzia a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal em termos que permitem reconhecer os limites das frações “J” (dos AA.) e K (dos RR.) tal como se encontram fisicamente implantadas.

Referiram os recorrentes que:

Para cumprimento do acórdão transitado em julgado perguntaram a um engenheiro civil se, em relação às frações "J" e "K", podiam fazer a obra de demolição da parede que as divide desde a construção, assim como erguer uma nova de acordo com o título constitutivo.

No decurso do processo de licenciamento das obras, o engenheiro contratado pelos RR. deu-lhes conta de que afinal o último projeto aprovado para o prédio já contemplava a divisão das frações "J" e "K" como elas se encontram fisicamente divididas, tendo obtido certidão emitida pelo Município de ..., em 24-6-20, que continha:

- o teor da memória descritiva de um aditamento apresentado pela construtora do prédio, em 12-9-97, relativa “a alterações de áreas de dois estabelecimentos comerciais para o qual foi passado alvará de licença nº 3…52/94”,

- o teor da planta com a alterada divisão das frações "J" e "K",

- o teor da transcrição da decisão de aprovação, proferida em 6-10-97;

- o teor do pedido, apresentado em 12-11-97, de emissão da correspondente licença de construção e da licença para essas obras;

- o teor ata nº 4 da assembleia de condóminos, realizada em 30-5-98, cujo ponto 4. da ordem de trabalhos era a "deliberação sobre as alterações à propriedade horizontal referente às seguintes frações:


...


e) fração "J" (dos AA.), passa de 138 m2 para 95 m2;

d) fração "K" (dos RR.), passa de 138 m2 para 181 m2”.

Na ata da assembleia de condóminos consta que "quanto ao 4º ponto da ordem de trabalhos, foi referido pelos sócios da Construtora Joanense, Ldª, que assumem as despesas relativas à alteração de escrituras e respetivos registos. Sendo este ponto igualmente aprovado por unanimidade dos presentes."

Alegaram os RR. que desconheciam esta documentação, a qual, só por si, é suficiente para modificar o que foi decidido no acórdão recorrido em sentido favorável aos recorrentes, no que respeita à divisão das frações "J" e "K", na medida em que as últimas plantas aprovadas pela Câmara Municipal refletem a divisão dessas frações tal como elas atualmente se apresentam.

Decorre ainda da referida documentação que a alteração das áreas das frações "J" e "K" foi aprovado por todos os condóminos presentes que representavam 908/1000 avos do valor do prédio, sendo que os condóminos ausentes aprovaram essa deliberação de forma tácita, tendo em conta que não reagiram nos 90 dias posteriores à receção da ata, nos termos dos nºs 5, 6, 7 e 8 do art. 1432º do CC.

Os AA. foram notificados para responder e alegaram a extemporaneidade do recurso, uma vez que a ata da assembleia de condóminos realizada em 30-4-98 já existia e estava ao dispor dos RR. designadamente na pendência da ação declarativa. Além disso, o R. recorrente, por carta datada de 20-10-11, remetida ao Condomínio, solicitou a realização de uma reunião extraordinária de condomínio para alterar o destino da fração “K” para habitação, pelo que em data anterior já havia consultado o processo camarário de licenciamento das obras no prédio.

Além disso, a ata de 30-4-98 é insuficiente para modificar o sentido do acórdão recorrido, já que não foi aprovada nem assinada por todos os 27 condóminos dos blocos A, B e C, ou seja, pela unanimidade do capital investido, nos termos do art. 1419º, nº 1, do CC.

Os condóminos que assinaram e aprovaram a ata autorizaram a alteração de áreas nas frações “J” e “K”, desde que a Construtora Joanense, Ldª, cumprisse condições que integravam a obtenção de alvará de licença de construção com as áreas constantes da ata (fração K passaria de 138 m2 para 181 m2), iniciasse e concluísse as referidas obras nos prazos legais e com respeito pelas áreas constantes da mesma ata, requeresse o alvará de licença de utilização nos prazos legais, solicitasse a realização de uma vistoria camarária à obra, para aferir da conformidade das obras com o projeto aprovado e as áreas constantes da ata e agendasse uma nova reunião de condóminos para aferir do cumprimento da autorização por parte Construtora Joanense, Ldª, devendo constar da nova deliberação o acordo de todos os 27 condóminos no sentido de se conferirem poderes para o administrador para outorgar a escritura ou elaborar e subscrever o documento particular de alteração do título constitutivo da propriedade horizontal. Implicava ainda que alterasse as áreas constantes do título constitutivo de propriedade horizontal através da realização de uma nova escritura publica ou documento particular, alterasse as áreas junto das Finanças (Modelo 1 do IMI) (arts. 31º e ss. do CRP) e da Conservatória do Registo Predial (arts. 28º e ss. do CRP). Porém, a referida Construtura Joanense, Ldª, apenas cumpriu a condição relacionada com o licenciamento camarário.

Os RR. recorrentes foram notificados para exercer o contraditório, tendo infirmado o conhecimento anterior da existência da ata da assembleia de condóminos.

Alegaram ainda que não se mostrava necessária a unanimidade dos condóminos, mas apenas a unanimidade dos condóminos presentes, desde que fossem representativos de 2/3 do capital investido, sendo que os anteriores proprietários das frações J e Q, que agora são dos AA. votaram a favor.

A solicitação dos AA. recorridos foram solicitados ao Município de ... elementos relacionados com o processo de licenciamento das obras nas frações “J” e “K”.


Colhidos os vistos, importa decidir ao abrigo do art. 700º, nº 1, do CPC.


II – Antes de mais, importa fazer o resumo da ação declarativa e do que nela foi decidido com trânsito em julgado:

Os AA. pediram nessa ação, além do mais, que:

- Fossem declarados proprietários de duas frações autónomas (“J” e “Q) de um edifício em regime de propriedade horizontal e a condenação dos RR. a reconhecê-lo, a absterem-se de aí praticarem qualquer ato perturbador desse direito;

- Que os RR. fossem condenados a pagar aos AA. a quantia necessária à demolição das paredes que delimitam as suas frações “K” e “R” das frações dos AA. e à reconstrução das mesmas, em observância das áreas correspondentes a essas frações nos termos que constam do título constitutivo da propriedade horizontal;

- Condenação dos RR. a pagar-lhes uma indemnização por força da privação do uso das aludidas frações.

Alegaram que, por contrato de compra e venda, a 1ª A. e o seu falecido marido, GG (de quem as AA. BB e DD são filhas), adquiriram duas frações autónomas, uma para comércio e outra para garagem, (“J” e “Q”) e que os RR. adquiriram duas frações (“K” e “R”) autónomas adjacentes àquelas, mas ocupam parte da fração destinada a comércio (“J”) e a totalidade da fração destinada a garagem (“Q”), ocupação que ocorre através do prolongamento das paredes delimitativas das frações.

Os RR. contestaram e alegaram terem adquirido as suas frações “K” e “R” no exato estado em que as mesmas se encontram e que vêm praticando atos de posse sobre todas as áreas que ocupam, sendo delas proprietários, em toda a área delimitada pelas respetivas paredes, por via de usucapião.

Foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e:

- Declarou que os AA. são proprietários, em comum, das frações "J" e "Q", descritas na CRP de … sob os n° 248/… - J e nº 248/… - Q, com as áreas, respetivamente, de 138 m2 e de 41 m2;

- Condenou os RR. a absterem-se da prática de qualquer ato perturbador do direito de propriedade dos AA. sobre as referidas frações "J" e "Q", na totalidade das mencionadas áreas de 138 m2 e de 41 m2, respetivamente; e

- Condenou os RR. a demolirem e a reconstruírem as paredes divisórias das frações "K" e "R", restituindo aos AA. a totalidade dos 41 m2 da fração "Q" e os 48 m2 da fração "J".

Os RR. apelaram e a Relação julgou procedente o recurso e revogou a sentença, absolvendo os RR. dos pedidos contra si formulados.

Os AA. interpuseram recurso de revista, tendo sido proferido por este Supremo Tribunal de Justiça acórdão que, revogando o acórdão da Relação, julgou a ação parcialmente procedente, de modo que:

a) Se reconheceu aos AA. a qualidade de proprietários das frações “J” e “Q”, com os limites que resultam do título constitutivo da propriedade horizontal;

b) Foram os RR. condenados a absterem-se de praticar qualquer ato perturbador desse direito de propriedade, na parte respeitante às áreas que integram as frações “J” e “Q” e a devolverem essas áreas aos AA.;

c) Foi determinada a remessa dos autos à Relação a fim de ser apreciada a apelação interposto pelos RR. na parte relativa ao pedido dos AA. de condenação dos RR. na demolição e reconstrução de paredes decretado pela 1ª instância;

d) Foi ainda determinado que a Relação apreciaria a questão que AA. suscitaram no recurso de apelação subordinado relacionada com o pedido de condenação dos RR. no pagamento de uma indemnização pela privação do uso.

Como decorre do relato precedente, na ação declarativa estava em causa a titularidade e as áreas correspondentes a duas frações dos AA. J e Q, respetivamente confinantes das frações K e R dos RR.

Sucede que no presente recurso extraordinário os RR. apenas vieram questionar o caso julgado formado relativamente ao decidido acerca da sua fração K que confina com a fração J, dos recorridos, com exclusão, pois, do que respeita às frações Q e R.


III – Elementos a ponderar:

No acórdão recorrido foram considerados provados os seguintes factos com interesse para a apreciação do presente recurso extraordinário de revisão:

1. O prédio onde se situam as frações, descrito na CRP de … sob o n° 248/… - …, foi adquirido, por Construtora Joanense, Ldª, a AA e a GG, em 9-3-95.

2. A Construtora Joanense, Ldª, sujeitou o referido prédio ao regime da propriedade horizontal, por escritura celebrada em 7-2-96.

3. Consta do documento complementar anexo à escritura pública de constituição da propriedade horizontal do referido prédio, designadamente, o seguinte:

- FRACÇÃO "J" - Rés-do-chão, lado direito, entrada poente, destinada a comércio, com uma divisão e um WC, de área 138 m2, à qual atribuem o valor de cinco milhões e quatrocentos mil escudos, a que corresponde o valor relativo de noventa mil avos;

- FRACÇÃO "K" - Rés-do-chão, lado esquerdo, entrada poente, destinada a comércio, com uma divisão e um WC, de área 138 m2, à qual atribuem o valor de cinco milhões e quatrocentos mil escudos, a que corresponde o valor relativo de noventa mil avos;


4. Em 21-3-96 foi registada a constituição da propriedade horizontal do referido edifício.

5. …

6. Por escritura pública constante fls. 34 e ss., celebrado em 8-1-03, o R. EE, casado com a R. FF, declarou comprar e a Construtora Joanense, Ldª, declarou vender-lhe a fração "K".

7. Encontra-se registada a favor dos RR. EE e FF, desde 9-1-03, a aquisição da fração "K", descrita na CRP de … sob o n° 248/… - K, sita no r/c esq., entrada poente, destinada a comércio, com a área de 138 m2, do "Bloco B" do edifício sito no lugar de …, afeta ao regime da propriedade horizontal.

8. …

9. As paredes da fração "K" encontram-se construídas de forma que no seu interior se encontram incluídos 48 m2 da área atribuída à fração "J", sendo que a área efetivamente ocupada pela fração "J" é de 97 m2 e a efetivamente ocupada pela fração "K" é de 192 m2.

10. …

11. Por escritura pública constante fls. 16 e ss., celebrado em 20-6-03, a A. AA, no estado de casada com GG, declarou comprar e a Construtora Joanense, Ldª, declarou vender-lhe a fração “J”.

12. Em 23-6-03, foi registada a aquisição da referida fração a favor de AA, casada com GG.

13. As paredes que dividem as frações "K" e "J" foram construídas por Construtora Joanense, Ldª, na data em que o prédio foi construído, não tendo sofrido alteração até à presente data.

14. Antes de os RR. adquirirem a fração "K", a mesma fora-lhe mostrada pelo legal representante da Construtora Joanense, Ldª.

15. Nessa ocasião, a fração "K" apresentava a configuração que ainda hoje apresenta, mantendo-se as respetivas paredes no mesmo local.

16. Tal fração apresentava as áreas que tem hoje e os RR. não alteraram as paredes divisórias dessa fração.

17. …

18. Desde a data da aquisição da fração "J", destinada a comércio, a A. AA e seu falecido marido GG e, subsequentemente, após a morte deste, também os AA. BB e DD, vêm ocupando e utilizando a mesma, dentro dos limites fixados pelas paredes que a dividem das restantes frações e partes comuns do edifício.

19. …

20. …

21. Encontra-se registada a favor das AA. AA, BB, casada com CC, e DD, "em comum e sem determinação de parte ou direito", desde 12-6-15, "por dissolução da comunhão conjugal e sucessão", a aquisição da fração "J", descrita na CRP de … sob o n° 248/… - J, sita no r/c, dtº, entrada poente, destinada a comércio, com a área de 138 m2, do "Bloco B" do edifício sito no lugar de …, afeta ao regime da propriedade horizontal.

22. …

23. Os RR. adquiriram a fração "K" acreditando que a mesma se constituía pelo que então lhes foi apresentado, desconhecendo que podiam estar a lesar interesses alheios.

24. Desde a data da aquisição da fração "K", os RR. vêm utilizando a mesma, com a totalidade da área e com a configuração que a mesma apresenta, arrendando-a e auferindo a respetiva remuneração e fechando-a quando não está a ser utilizada.

25. …

26. Os RR. vêm utilizando a referida fração, nos moldes acima descritos, desde a data da aquisição das mesmas, de forma contínua, à vista de todos e ignorando lesar direitos de outrem, na convicção de que as mesmas lhes pertencem e de exercerem sobre elas o direito de propriedade.

27. Em data não concretamente apurada, mas situada cerca de 1 ano depois de o R. José Rodrigues ter adquirido a fração "K", a A. AA transmitiu-lhe que o mesmo se havia apoderado de parte da área referente à fração "J".

28. Nessa altura, o R. EE procedeu à medição da área da fração "K", tendo então constatado que a mesma apresentava uma área superior à constante da certidão de registo predial e da escritura de constituição da propriedade horizontal, mas recusou entregar ou desocupar qualquer área da referida fração "K".

29. …


A estes factos importa agora acrescentar os que emergem da documentação com que os RR. recorrentes instruíram o recurso de revisão:

30. A Construtura Joanense, Ldª, requereu, em 12-9-97, o licenciamento de “alterações de áreas de dois estabelecimentos comerciais” para o qual foi passado o alvará de licença de construção nº 1603/97, pela Câmara Municipal de ..., em 14-11-97 (doc. junto com o requerimento inicial).

31. Segundo o teor da ata nº 4, narrativa da reunião da assembleia de condóminos do edifício, realizada em 30-5-98, o ponto 4. da ordem de trabalhos era a "deliberação sobre as alterações à propriedade horizontal referente às seguintes frações:

[...]

e) fração "J" (dos AA.), passa de 138 m2 para 95 m2;

d) fração "K" (dos RR.), passa de 138 m2 para 181 m2”.

33. Nessa assembleia de condóminos estavam presentes proprietários de frações que representavam 908/1000 do prédio, incluindo os proprietários das frações J e K.

Foi então deliberado quanto ao ponto 4.:

Foi referido pelos sócios da Construtora Joanense, Ldª, que assumem as despesas relativas à alteração de escrituras e respetivos registos.

Sendo este ponto igualmente aprovado por unanimidade dos presentes."

32. Do ofício remetido pela Câmara Municipal de … consta que:

“… o alvará de construção nº 16..3/97, emitido a 14-11-97, foi sem prazo para execução da obra …”

esse alvará foi emitido para o aditamento das alterações efetuadas aos dois estabelecimentos comerciais, identificados na propriedade horizontal com as letras J e K e duas instalações sanitárias

e que

os dois estabelecimentos comerciais tiveram autorização de utilização através do alvará nº 3…4, de 17-5-96”.

Consta ainda que:

Com o aditamento ao projeto de arquitetura foi solicitada a emissão do alvará de autorização de utilização a 28-4-20, da fração K, conforme folha 1 do processo AUT 3…/2020”,

“após vistoria realizada em 10-2-20, foi emitido o alvará de autorização de utilização nº 166, de 13-5-20, para a fração K, destinada a comércio”

e que

“a fração J não possui alvará de autorização de utilização”.


IV – Decidindo:

1. iniciaremos pela apreciação da exceção de extemporaneidade do recurso de revisão suscitada pelos AA. recorridos, no pressuposto de que, nos termos do art. 697º, nº 2, al. c), do CPC, o recurso de revisão é intempestivo se, além do mais, for apresentado depois de 60 dias contados a partir da data em que o recorrente obteve o documento ou teve conhecimento do facto que serve de base à revisão.

No caso, está em causa o conhecimento da existência da ata referente à assembleia de condóminos realizada em 30-4-98, assim como o conhecimento de que nessa ata fora aprovada uma deliberação respeitante à fração K do ora recorrente. Está ainda em causa o conhecimento da existência do licenciamento camarário das alterações que haviam sido introduzidas a respeito das áreas e limites das frações J e K.

Ora, nada nos autos permite concluir que esse conhecimento ocorreu em momento anterior ao que é referido pelos recorrentes e designadamente nada permite afirmar que obtiveram esse conhecimento na pendência da ação na qual foi proferida a decisão revidenda.

Não deve ignorar-se para o efeito que aquando do licenciamento das aludidas alterações e da efetivação da assembleia de condóminos, em 1997 e 1998, respetivamente, os RR. ainda não eram proprietários da fração K, que apenas vieram adquirir em 2003.

Também não se pode assumir que os recorrentes tiveram conhecimento desses documentos e dos correspondentes factos em 2011 quando o R. solicitou a marcação de uma assembleia de condóminos para que se deliberasse sobre a alteração de uso da fração K. Com efeito, tal solicitação, por si, não implicava necessariamente a consulta do processo camarário referente à construção e licenciamento do edifício nem é possível asseverar que os RR. estivessem a par dos antecedentes relacionados com a referida fração, designadamente no que concerne às deliberações anteriores da assembleia de condóminos ou ao processo de licenciamento das alterações.

Também o facto de na referida assembleia de condóminos a A. recorrida ter deixado expresso que apenas aceitaria as alterações das frações J e K conforme consta das “respetivas escrituras” não permite, por si, a conclusão de que, nessa ocasião, os RR. recorrentes sabiam o que anteriormente ocorrera a respeito do licenciamento das alterações introduzidas pela Construtora Joanense, Ldª, sua predecessora,

Improcede, pois, a exceção de extemporaneidade suscitada pelos AA. recorridos.


2. Importa agora verificar se a documentação nova apresentada pelo R. recorrente implica, por si só, um resultado diverso daquele que foi declarado no acórdão impugnado.

Note-se, para o efeito, que, enquanto os AA. recorridos alegaram na ação declarativa que eram donos da fração J, com a área que formalmente constava do título de propriedade horizontal, os RR. contrapuseram que uma parte dessa área se integrava na sua fração K por via da usucapião, em resultado da situação possessória que se verificava.

A posição assumida pelo R., traduzida na invocação da usucapião por via de exceção, improcedeu neste Supremo Tribunal de Justiça, por ter sido considerado que a posse prolongada da área correspondente a uma determinada fração, tendo em conta o que consta do título constitutivo da propriedade horizontal, era insuficiente para determinar a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por via judicial.

Como vetor principal do que então foi decidido esteve o facto de a posse exercida pelo R. não estar de acordo com o projeto de licenciamento da construção com base no qual fora construído o edifício e constituída a propriedade horizontal e definidas as áreas e os limites das diversas frações autónomas, entre as quais as frações J e K.

Considerou-se que a usucapião invocada pelos RR. recorrentes não poderia sobrepor-se a aspetos de natureza urbanística como aqueles que respeitam ao licenciamento camarário de obras em edifícios constituídos em propriedade horizontal.

Além disso, considerou-se que qualquer modificação do título constitutivo da propriedade horizontal exigia o acordo de todos os condóminos ou, em termos paralelos, a intervenção de todos os condóminos na ação na qual se pretenda obter essa modificação por via judicial.

Ocorre que, relativamente ao primeiro fundamento empregue no acórdão recorrido para julgar improcedente a exceção de usucapião e procedente a ação de reivindicação, a documentação trazida pelos RR. introduziu um elemento inovador: Afinal, contra o que fora suposto no acórdão recorrido, a partir dos elementos fornecidos pela matéria de facto apurada pelas instâncias, a execução das obras que se traduziram na alteração das áreas e dos limites relativos das frações J e K fora licenciada pelo Município, a solicitação da Construtora Joanense, Ldª, antes de esta ter vendido as aludidas frações, respetivamente, aos AA. e aos RR.

Ora, na medida em que se verifica que os limites que são ocupados pelo R., como proprietário da fração K, correspondem sensivelmente aos limites que passaram a ser definidos pela alteração do alvará da licença de construção que deferiu a mencionada alteração do projeto que fora licenciado para a construção do edifício em causa, aquele fundamento acaba por ceder por via da documentação que apenas se tornou conhecida no presente recurso de revisão.

Com efeito, resulta da citada documentação oficial extraída do processo camarário e certificada pelo Município de ... que este havia aprovado, em 1997, as alterações correspondentes às áreas ocupadas pelas frações J e K em termos aproximadamente correspondentes àqueles que se encontram implantados fisicamente no local.

Deste modo, deixou de existir o impedimento que foi colocado no acórdão recorrido ao reconhecimento da usucapião a partir da falta desse licenciamento.

Neste contexto, se acaso tivesse sido apenas esse o único fundamento da decisão, o recurso de revisão teria de avançar para a fase rescisória, nos termos do art. 701, nº 1, al. a), do CPC, potenciando, em função do que viesse a ser apreciado, a anulação parcial do acórdão recorrido e a sua substituição por outro que, a partir dos novos elementos documentados, declarasse a improcedência parcial da ação, no que respeita à reivindicação de uma área de 41 m2 que os AA. alegaram pertencer à sua fração J e que estaria absorvida pela fração K em função da posse determinante da aquisição por usucapião.

Outro, porém, é o resultado revelado pela análise do caso concreto, na medida em que tais elementos documentais não colidem com outros fundamentos que no acórdão recorrido foram empregues para atingir o mesmo resultado.


3. Observemos com mais pormenor o que ficou expresso no acórdão recorrido, assinalando os aspetos mais relevantes para a apreciação deste recurso extraordinário de revisão:

“2.3. O relevo atribuído ao exercício de poderes de facto inerentes à titularidade do direito de propriedade pleno, integrando tanto o elemento objetivo da posse (corpus), como o seu elemento subjetivo (animus), não foi ao ponto de se sobrepor a todos os obstáculos ou impedimentos legais.

A usucapião não constitui um instituto jurídico isolado, fazendo parte de um vasto “arquipélago” que engloba outras normas que a condicionam ou impedem, umas integradas no Cód. Civil e outras que emergem de diplomas avulsos como os que regulam a matéria de direito do urbanismo ou do licenciamento da construção ou utilização de edifícios.

Não se aceita, com a amplitude pretendida por Durval Ferreira, a natureza “agnóstica” da posse em toda e qualquer situação, sob pena de a realidade se impor mesmo perante a violação de regras imperativas ou em detrimento ou com desprezo de interesses de ordem pública.


2.4. O mesmo efeito impeditivo pode decorrer da interpenetração de outros preceitos, conquanto se mostrem menos incisivos ou apresentem natureza mais difusa.

O direito do urbanismo, as regras sobre construções e edificações ou, como ocorre no caso sub judice, o regime jurídico-civilístico da propriedade horizontal constituem domínios em que, por via de disposições legais claras ou a partir da pré-compreensão de tais realidades, nos deparamos com impedimentos ao reconhecimento de efeitos jurídicos sustentados na figura da usucapião.


2.5. É este o plano em que nos situamos no caso presente.

A propriedade horizontal pode ser constituída por diversas vias previstas no art. 1417º do CC, entre as quais se inscreve também a usucapião. Em qualquer dos casos, é imprescindível o respeito pelos requisitos legais do art. 1415º, ou seja, supõe-se a existência de unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída para uma parte comum do prédio ou para a via pública.

Além disso, não podem deixar de se verificar os demais condicionalismos legais que seriam necessários se acaso a propriedade horizontal fosse constituída por declaração de vontade (v.g. ato unilateral ou por acordo de multiplicidade de sujeitos), no pressuposto de que o processo – qualquer processo judicial – não pode surtir efeitos vedados por outra via.

No caso, importa apreciar se se verificam ou não as condições formais ou materiais que permitam reconhecer judicialmente a ocorrência de uma modificação legítima do título constitutivo, atribuindo efeitos jurídicos de natureza real ao que transparece publicamente a respeito da delimitação física das frações dos AA. e dos RR.


Não se duvida que a situação refletida pela matéria de facto apurada revela uma situação de posse que se manteve e prosseguiu de boa fé até à citação para a presente ação. Mas a extração de efeitos jurídicos correspondentes à aquisição originária das áreas extravagantes ocupadas pelos RR. não pode prescindir da verificação dos requisitos legais de que depende a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal.


2.6.


Ainda que fosse viável a via judicial para obter a modificação to título, tal efeito jurídico jamais prescindiria da intervenção de todos os condóminos. Na verdade, para além de estar em causa um efeito jurídico que a todos interessa, tal exigência decorre do facto de, com a ressalva do nº 3 do art. 1422º do CC, se prescrever o acordo de todos os interessados em casos de modificação extrajudicial.

Como refere Fernando Pereira Rodrigues, “o tribunal não pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal em violação das normas legais em vigor, designadamente sem aprovação de todos os condóminos e junção de documento emanado da Câmara Municipal comprovativo de que a alteração está de acordo com as leis e regulamentos em vigor na autarquia” (Usucapião, pp. 16 e 17).

Ora, só este motivo levaria ao insucesso da defesa dos RR. no sentido de impedir a reivindicação deduzida pelos AA. Resultado que sai reforçado quando se analisam os requisitos de natureza administrativa a que está sujeita não apenas a constituição da propriedade horizontal como a modificação do título constitutivo.

2.7. A construção de edifícios carece de licença camarária, ficando o interessado obrigado a executar a obra de acordo com o projeto que a sustenta. Assim o determina o Regime Jurídico da Urbanização e Edificação aprovado pelo DL nº 555/99, de 16-12 (com a última alteração decorrente da Lei nº 79/17, de 18-10), conjugado com a Port. nº 113/15, de 22-4.

Segundo o Anexo I, nº 15, f), desta Portaria, além de outros elementos, o promotor imobiliário que pretenda o licenciamento da construção deve apresentar:

 “I - Plantas à escala de 1:50 ou de 1:100 contendo as dimensões e áreas e utilizações de todos os compartimentos, bem como a representação do mobiliário fixo e equipamento sanitário;

….

V) Discriminação das partes do edifício correspondentes às várias frações e partes comuns, valor relativo de cada fração, expressa em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio, caso se pretenda que o edifício fique sujeito ao regime da propriedade horizontal”.

A coincidência entre a construção que foi licenciada e a obra executada, designadamente no que concerne aos aspetos estruturais do edifício e às divisões (e, depois, a coincidência entre o edificado e a licença de utilização), é imposta por outras normas do DL nº 555/99, de 16-12, no que concerne e a licença de utilização concedida depois de realizada a edificação.

Nos termos do art. 63º, nº 1, deste diploma:

“O pedido de autorização de utilização deve ser instruído com as telas finais, acompanhadas de termo de responsabilidade subscrito pelo diretor de obra ou pelo diretor de fiscalização de obra, no qual aqueles devem declarar que a obra está concluída e que foi executada de acordo com os projetos de arquitetura e especialidades, bem como com os arranjos exteriores aprovados e com as condições do respetivo procedimento de controlo prévio e que as alterações efetuadas ao projeto estão em conformidade com as normas legais e regulamentares que lhe são aplicáveis”.



Determina ainda o art. 59º, nº 1, do Cód. do Notariado, que:

“1. Os instrumentos de constituição da propriedade horizontal só podem ser lavrados se for junto documento, passado pela câmara municipal, comprovativo de que as frações autónomas satisfazem os requisitos legais.

2. Tratando-se de prédio construído para transmissão em frações autónomas, o documento a que se refere o número anterior pode ser substituído pela exibição do respetivo projeto de construção e, sendo caso disso, dos posteriores projetos de alteração aprovados pela câmara municipal.

3. O documento autêntico que se destine a completar o título constitutivo da propriedade horizontal, quanto à especificação das partes do edifício correspondentes às frações autónomas ou ao seu valor relativo, expresso em percentagem ou permilagem, não pode ser lavrado sem a observância do disposto nos números anteriores”.

Por seu lado, e com efeitos mais incisivos no caso concreto, prescreve o art. 60º, nº 1:

“Os instrumentos de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal que importem alteração da composição ou do destino das respetivas frações só podem ser lavrados se for junto documento camarário comprovativo de que a alteração está de acordo com os correspondentes requisitos legais”.

São estes os elementos que devem ser apresentados pelo interessado ou interessados perante o Notário para efeitos de constituição da propriedade horizontal por via extrajudicial.

O título constitutivo da propriedade horizontal, a que está necessariamente subjacente a licença de construção e de utilização do edifício, é o elemento fundamental para se estabelecer o confronto entre o direito real sobre cada uma das frações e a sua materialização nesse edifício, como se decidiu, noutro contexto, no Ac. do STJ de 11-12-14, 833/11, relatado pelo ora relator, em www.dgsi.pt, em que estava em causa a delimitação entre o logradouro de uma fração e o logradouro integrado nas partes comuns. Aí se concluiu que “a indefinição da delimitação entre o logradouro que constitui «parte comum» e o logradouro que é exclusivo de uma fração autónoma deve ser resolvida através da análise do título constitutivo, conjugado com o projeto que esteve na base do licenciamento da construção e da constituição da propriedade horizontal”.

2.8. Da multiplicidade de normativos enunciados resulta que a realidade respeitante tanto às frações autónomas como às partes comuns dos edifícios em regime de propriedade horizontal deverá estar em consonância com os requisitos legais, quer os que resultam das regras constantes do Cód. Civil (máxime dos arts. 1415º, 1416º e 1418º), quer os que decorrem da legislação que regula o licenciamento da construção e da utilização que serviu de base à fixação daquele regime jurídico.


2.9. No caso concreto, a verificação da existência de uma modificação do título de propriedade horizontal por via da usucapião judicial é liminarmente impedida em face do desajustamento entre o título de propriedade horizontal e o projeto que serviu de base quer ao licenciamento, quer à constituição originária da propriedade horizontal.

Essa divergência é manifesta no que concerne a todas as frações a que os autos se reportam.

No que respeita às frações J (dos AA.) e K (dos RR.), a situação de facto revela que a parede divisória não está colocada na posição determinada pelo título constitutivo, não podendo, por isso, sobrepor-se ao que emerge desse título ao qual subjaz o licenciamento camarário, nos termos do art. 1418º do CC (refere Henrique Sousa Antunes a este respeito que “apesar do silêncio da lei, o regime previsto no art. 1418º é, naturalmente, aplicável às modificações do título constitutivo” (Direitos Reais, p. 391).


Ademais, a aceitação da defesa dos RR. sempre seria de recusar ante a impossibilidade de fixar os elementos previstos no art. 1418º, nº 1, do CC (valor relativo de cada uma das 4 frações recompostas). Se estes elementos são imprescindíveis aquando da formalização do ato constitutivo da propriedade horizontal, sob pena de nulidade do título, nos termos do nº 3, jamais poderiam ser dispensados só pelo facto de a situação ser apreciada em sede de sentença judicial.

2.10. Daqui decorre que não pode manter-se o acórdão recorrido, na parte em que julgou improcedente o pedido de reivindicação deduzido pelos AA. com base na usucapião que os RR. invocaram como meio de defesa.

Os AA. não só adquiriram as frações J e Q dos anteriores proprietários (aquisição derivada), como se verifica ainda que beneficiam da presunção da titularidade (art. 7º do CRP), via dupla que leva ao reconhecimento de que são proprietários de tais frações, com os limites que decorrem do título constitutivo da propriedade horizontal.

Tal implica ainda que os RR. sejam condenados a absterem-se de praticar qualquer ato perturbador desse direito de propriedade.

Improcede, por isso, a defesa dos RR. na parte em que considerou verificada a usucapião com efeitos impeditivos daquelas pretensões e, em contraponto, há que repor nesta parte a sentença que julgou procedentes tais, revogando o acórdão recorrido”.


4. Da transcrição do acórdão recorrido decorre que foram diversos os fundamentos que determinaram a improcedência da exceção de usucapião suscitada pelos RR., proprietários da fração K, tendo por objeto uma parte da área correspondente à fração J nos termos que constam do título constitutivo da propriedade horizontal.

Em primeiro lugar, a perceção de que faltava o cumprimento de requisitos de ordem urbanística que são necessários para a legalização das construções e para a constituição ou alteração da propriedade horizontal, a saber:

a) O alvará da licença de construção referente às alterações introduzidas a respeito das áreas e limites das frações J e K;

b) A autorização da utilização dessas frações, em termos de se confirmar que a execução das alterações correspondeu ao que foi licenciado pela Câmara Municipal;

c) Falta de elementos suscetíveis de permitirem a alteração das permilagens de cada fração, nos termos e para efeitos do art. 1418º, nº 1, do CC;

Em segundo lugar, a falta de intervenção de todos os condóminos, no pressuposto de que se o acordo de todos os condóminos é necessário para a alteração extrajudicial do título constitutivo, nos termos do art. 1419º, nº 1, do CC, também uma putativa modificação do título constitutivo por via judicial exigiria a intervenção na ação de todos os condóminos, como titulares de interesses autónomos.

Ficou ainda apontado um terceiro fundamento para a recusa da exceção de usucapião ligado à inviabilidade de conseguir a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por via de sentença judicial, fundamento que não foi objeto de expressa decisão, o qual, não poderia deixar de ser retomado se acaso se tornasse necessário no presente recurso de revisão.

Todos estes fundamentos constam do acórdão recorrido transitado em julgado e que se mantêm na medida em que não foram tocados pelo fundamento de revisão que foi invocado.


5. Tendo em conta os elementos documentais apresentados, é possível constatar, como já se referiu, que, afinal, não se verificava o impedimento à invocação da usucapião por motivos ligados à falta de alvará de licença de construção respeitante às alterações em causa.

A documentação apresentada que emana do Município de ... comprova efetivamente que as obras respeitantes às alterações de áreas das frações J e K e respetiva delimitação confinante foram licenciadas no âmbito de um processo urbanístico que foi promovido pela Construtora Joanense, Ldª, primitiva proprietária das frações.

Por conseguinte, se tivesse sido esse o único obstáculo à procedência da exceção de usucapião, o recurso de revisão estaria em condições de prosseguir a fim de repercutir em nova decisão o teor da referida documentação com força probatória plena.

No entanto, a realidade que transparece do acórdão recorrido é outra, justificando-se a manutenção do resultado declarado no acórdão pelos motivos restantes, ou seja, pelo facto de:

a) Relativamente a tais obras, não existir, na ocasião em que foi proferido o acórdão, alvará de autorização de utilização, em termos de se confirmar a execução das obras nos termos que foram licenciadas pelo Município (licença que apenas foi obtida em Abril de 2020, já depois de ter transitado em julgado o acórdão);

b) Faltarem elementos que permitissem refletir no título constitutivo da propriedade horizontal as novas permilagens atribuídas às frações J e K, nos termos do nº 1 do art. 1417º do CC;

c) Faltar a intervenção de todos os condóminos na ação.

Com efeito, as regras urbanísticas cujo incumprimento se constatou no acórdão recorrido não foram apenas as correspondentes ao licenciamento da construção, mas também ao licenciamento da utilização, ou seja, à falta de confirmação pela entidade municipal da conformidade entre a construção executada e o projeto que fora licenciado. Elemento a partir do qual igualmente se poderia estabelecer a permilagem das frações a verter numa alteração do título constitutivo da propriedade horizontal.

Estas exigências constituem requisitos legais necessários para obter a alteração consensual do título constitutivo da propriedade horizontal, de modo que também são imperativamente impostas para se obter semelhante efeito por via judicial, nos termos que foram assumidos no acórdão recorrido.

Ora, a licença de utilização apenas foi concedida relativamente à fração K em Abril de 2020, sendo que a fração J cujos limites estão dependente dos limites da fração K nem sequer tem alvará de utilização.


6. Por outro lado, também o reconhecimento da usucapião como fator impeditivo do direito de reivindicação dos AA. sobre a área ocupada pelos RR. referente à sua fração J continuaria impedido pelo facto (também devidamente assinalado no acórdão recorrido (2.6.)), de não estarem na ação todos os demais condóminos.

Se a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por via extrajudicial depende do acordo expresso ou tácito de todos os condóminos (art. 1419º, nº 1, do CC), semelhante efeito procurado pela via judicial não prescindiria da intervenção na ação dos mesmos condóminos, pois só deste modo se poderia garantir a estabilidade do que viesse a ser decidido acerca das áreas e limites das frações J e K.

Ora, a unanimidade dos condóminos não existiu, já que intervieram apenas condóminos representativos de 908/1000 do capital correspondente ao somatório de todas as frações autónomas.

O próprio R. reconhece este facto, mas acrescenta que os demais condóminos terão aprovado tacitamente a mesma deliberação, facto que a documentação apresentada não permite confirmar

Para que tal se pudesse afirmar era necessário que estivesse alegado e documentalmente provado de forma inequívoca que a esses condóminos ausentes fora comunicada a deliberação que os presentes aprovaram por unanimidade.

Ainda assim, a obtenção dessa unanimidade dos condóminos, uns por aprovação expressa, outros por aprovação tácita, apenas relevaria para efeitos de habilitar o administrador do condomínio a outorgar a escritura pública de modificação do título constitutivo (art. 1419º, nº 2, do CC), não tendo, por si, a função de permitir a invocação da usucapião por via de exceção ou de reconvenção.


7. Ficou consignado na motivação do acórdão, embora sem expressa resolução, outro impedimento à procedência da exceção de usucapião decorrente da inadmissibilidade de alteração do título constitutivo da propriedade horizontal por essa via, tendo em conta a diferença entre as normas dos arts. 1417º e 1419º do CC:

“A atual redação do art. 1419º do CC permite que a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal seja formalizada por escritura pública ou por documento particular autenticado.

O facto de o preceito divergir do que no art. 1417º se prevê relativamente à “constituição” da propriedade horizontal permite questionar, desde logo, a admissibilidade da invocação da usucapião como fonte geradora da “modificação” do título preexistente ou a possibilidade de a mesma poder ser declarada por via judicial, na medida em que parece pressuposta a existência de um acordo entre todos os condóminos.

O Ac. do STJ de 15-11-11, 718/03, em www.dgsi.pt, negou explicitamente estas possibilidades, nele se observando que “a modificação do título apenas pode ser efetuada por acordo de todos os condóminos”. O mesmo ocorreu com o Ac. do STJ de 20-10-11, 369/2002, referindo que “a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal apenas pode ser efetuada de acordo com o preceituado no art. 1419º, nº 1, do CC, e nunca através de decisão judicial”. Ou ainda com o Ac. do STJ de 3-10-06, 06A2497, quando nele se sintetizou que “o título constitutivo da propriedade horizontal só pode ser modificado por acordo de todos os condóminos, vertido em escritura pública, estando vedado ao tribunal proceder a essa modificação”. Veja-se ainda o que refere Henrique Sousa Antunes, em Direitos Reais, p. 392, apelando à necessidade de acordo de todos os condóminos”.

Trata-se de um argumento que não foi objeto de decisão explícita e que apenas deveria ser retomado nesta decisão se acaso todos os demais fundamentos que sustentaram a decisão fossem abalados pela documentação inovadora trazida a este recurso extraordinário de revisão.

8. Enfim, o prosseguimento do recurso de revisão apenas seria de admitir se, nos termos do art. 696º, al. c), do CPC, a apreciação da documentação superveniente que foi apresentada conduzisse, por si só, à modificação da decisão no sentido mais favorável ao R. recorrente (ou seja, à procedência da exceção de usucapião), tendo em conta todos os fundamentos que foram objeto de apreciação do acórdão recorrido.

Tal não ocorre, persistindo outros impedimentos a tal decisão, um relacionado com a falta de demonstração da autorização de utilização das frações nos termos em que ficaram depois da realização das obras licenciadas (sendo que relativamente á fração do R. essa licença apenas foi obtida depois de ter sido proferido o acórdão recorrido) e com a falta de elementos para a fixação da permilagem e outro atinente à falta de unanimidade dos condóminos numa alteração consensual do título constitutivo da propriedade horizontal que tivesse sido formalizada através de escritura pública ou com a intervenção de todos eles na ação declarativa.

Sem necessidade de tomar posição sobre o terceiro fundamento assinalado, tais aspetos retiram à documentação que foi apresentada pelos RR. recorrentes a força necessária para proferir um juízo rescisório relativamente à área atribuída à fração K do R., por correspondência com a área atribuída à fração J dos AA.

Com efeito, se é verdade que a documentação junta permitiria inverter a motivação relacionada com a falta de licença de construção, requisito de ordem urbanística que no acórdão revidendo foi considerado necessário para a apreciação da usucapião, nem assim se modificaria o sentido da decisão desfavorável aos RR., continuando a afirmar-se que o direito de propriedade dos AA. sobre a fração J não poderia ser afetado, na sua amplitude, pela posse exercida pelo R., proprietário da fração K, relativamente a uma parte daquela fração.


V - Face ao exposto, embora a nova documentação apresentada permita concluir que não se verificava a falta de licenciamento das alterações introduzidas quanto às áreas e limites relativos das frações K e J, improcede o recurso de revisão, já que o resultado que foi declarado no acórdão recorrido mantém a sua sustentação nos demais motivos que foram enunciados.

Custas a cargo dos recorrentes.

Notifique.

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.

Lisboa, 11-11-20


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo