A razão justificativa da regra da irrecorribilidade do art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil procede para as decisões cautelares e provisórias previstas no art. 28.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
I. — RELATÓRIO
1. AA instaurou procedimento tutelar comum contra BB, requerendo que seja decidido pelo Tribunal que as suas filhas menores CC, DD e EE deverão ser orientadas educativamente na religião católica cristã.
2. Alegou, em síntese, o seguinte:
I. — que na acta de conferência de pais de 20 de Dezembro de 2017 foi fixado o seguinte regime provisório:
Cláusula primeira (Exercício das responsabilidades parentais)
1. — As crianças residirão habitualmente com a mãe, que exercerá as responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente das filhas.
2. — As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da criança serão exercidas em comum por ambos os progenitores, salvo nos casos de manifesta urgência, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.
3. — Quando as crianças se encontrem temporariamente com o progenitor, as responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente serão exercidas pelo pai, não devendo este, porém, contrariar as orientações educativas definidas pela progenitora.
II. — que as menores foram sempre, e continuam a ser, educadas na religião católica cristã, que professam e [em] que todas foram baptizadas; III. — que, a partir da separação dos progenitores, ocorrida em 04 de Dezembro de 2017, o progenitor varão alterou o seu comportamento, passando a ser “espírita” da casa de “…” IV. — que o progenitor varão contraria as orientações educativas da Requerente — “que no passado foram as orientações educativas de ambos” —, recusando transportar as menores à catequese ou à missa, nos fins-de-semana em que as mesmas estão à sua guarda.
3. O Requerido BB respondeu, pugnando pelo indeferimento do requerido.
4. O Tribunal de 1.ª instância decidiu, “a título cautelar e provisório”:
I. — “atribuir à requerente a competência para decidir sobre a educação religiosa das crianças; II. — “reconhecer ao requerido a faculdade de partilhar com as menores os ideais e princípios religiosos com que se identifica”.
5. Inconformados, a Requerente AA e o Requerido BB interpuseram recurso de apelação.
6. A Requerente AA finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1. — Justifica-se manifestamente a atribuição de efeito suspensivo ao presente recurso;
2. — Na verdade a sentença recorrida não analisa nem fundamenta o seu comando, na parte do dispositivo que corporiza o correspectivo “ius imperium” [mormente onde se dispõe «(…) reconhecer ao requerido a faculdade de partilhar com as menores os ideais e princípios religiosos com que se identifica»], com a efectiva e imprescindível satisfação e salvaguarda dos superiores interesses destas crianças sendo que, com a imediata exequibilidade da mesma sentença, tal superior interesse não só sai desprotegido como é seriamente afectado ao fazer impender sobre os ombros e a consciências das três crianças (de 04, 07 e 09 anos de idade…) as perturbações dualistas de constante e semanal confronto com duas doutrinações diversas de dois credos diversos, sujeitando-as a uma deformada educação para o “dupli-pensar” e para a interiorização progressiva de uma inconsciente hipocrisia psicológica e moral: relega-as, inconsideradamente, para o eterno e constante sopesar das comparações e da dúvida angustiante entre dois credos, cujo fardo não deve, pela sua violência psicológica e moral inominável, pesar sobre os ombros e a consciência de nenhuma criança;
3. — Determinou o Tribunal, no seu dispositivo (única parte em que se traduz o “ius imperium” da sua actividade soberana e única atendível para ter relevância perante as partes e a ordem jurídica em geral) que «8. Pelo exposto, a título cautelar e provisório, decido:- atribuir à requerente a competência para decidir sobre a educação religiosa das crianças; - reconhecer ao requerido a faculdade de partilhar com as menores os ideais e princípios religiosos com que se identifica. Notifique.» : tal sentença recorrida enferma de ambiguidade e obscuridade que a tornam ininteligível e, por via disso, Nula, Nulidade esta, prevista na norma da alª c) do nº1 do artº 615º do Código de Procº Civil em vigôr, que agora se invoca;
4. — A decisão provisória agora proferida tende a conflituar com o regime que já se encontrava assente nos autos, em que o pai não podia contrariar as orientações educativas definidas pela progenitora e tinha que respeitar as rotinas das menores, designadamente a catequese e as actividades inerentes à mesma. Assim tal contradição entre ambas as decisões não pode fazer carreira nas Decisões dos Tribunais e só resta declarar, sem tibieza, que a mesma, torna ainda a decisão recorrida ininteligível. É, pois, Nula tal sentença.
Nulidade esta, prevista na norma da alª c) do nº1 do artº615º do Código de Processo Civil em vigor, que agora se invoca.
5. — Se não se entender existir qualquer insanável obscuridade que torne ininteligível a Sentença (o que apenas se perfigura por mera hipótese e humildade intelectual) diga-se, então, que a mesma sentença (mormente no seu segundo segmento que permite ao Réu-pai partilhar e doutrinar as três filhas nas crenças do espiritismo) foi proferida sem invocação de correspondente fundamentação probatória que assegurasse a compatibilidade destas simultâneas catequeses, no credo católico e no credo espírita, e demonstrasse que este dualismo doutrinal servia o superior interesse das crianças e não ofendia nenhum direito fundamental que as mesmas são titulares, nomeadamente o direito constitucional à liberdade de consciência e à liberdade religiosa e de culto;
6. — Tal falta de fundamentação torna a sentença ora em crise, neste segundo segmento, Nula, Nulidade esta, prevista na norma da alª b) do nº1 do artº 615º do Código de Procº Civil em vigôr, que agora também se invoca;
7. — Ademais a sentença recorrida não observou e violou o princípio do “superior interesse da criança”;
8. — Tendo, igualmente, feito um errado uso da “Equidade” que foi assim também manifestamente violada.
9. — A sentença recorrida violou, também, a própria liberdade de consciência, de religião e de culto das próprias crianças que, no dizer do art.º 41.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, “é inviolável”;
10. — Porque também mais conforme à Equidade, no caso concreto, e durante a pendência da presente Acção Especial (prevista no artº44º do Regime Geral do Procº Tutelar Cível), deve ser estabelecida com clareza a disciplina cautelar e provisória de que cabe à Autora com quem vivem as três crianças transmitir as orientações educativas, valores, princípios e regras em matéria confessional e religiosa sem interferências de índole contrária e sem obstáculos do progenitor Réu.
11. — Deve ser julgada Nula a Sentença recorrida, a qual, viola, além do mais, o disposto nos artigos art. 615º nº1 alª b) e c) do Código de Procº Civil em vigôr, bem como do artº.987º do mesmo Código, e do artº 12º do Regime Geral do Procº Tutelar Cível, bem como do art.º 41.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa;
12. — Para além do mais, o Tribunal deixou de conhecer sobre a doutrina espírita e todos os malefícios da sua profissão, invocados pela Recorrente.
13. — Não existe o cristianismo espírita porque o espiritismo não é cristão.
14. — O “espiritismo” é uma seita, no sentido de que é um grupo que professa um sistema filosófico e doutrinal, de uma pessoa viva divergente da correspondente doutrina ou sistema dominantes, ou seja, a religião católica.
Como seita que é, trata-se de um grupo fechado, que considera hostil ou descrente a restante sociedade, maioria da população portuguesa, católica por natureza, que vê como inerentemente má ou pecadora.
Na seita, como no espiritismo, os seus membros tendem a exercer um controle sobre a vida individual e coletiva dos indivíduos, e a regulação tende a ser mais totalizante, devido ao rígido controle que exercem sobre os sujeitos.
15. — O Recorrido foi casado catolicamente, batizou as filhas, inscreveu-as num colégio católico, e transfigurou-se espírita depois de se ter casado com uma confessionária do Espiritismo, que exerce um elevado cargo dirigente na Associação espírita de … .
16. — E a douta sentença é omissa em relação a essa factualidade, que se acha demonstrada documentalmente, e não foi impugnada.
17. — Sobretudo a douta sentença é omissa, e parece pretender menosprezar, que o Recorrido ou se enganou ou procura enganar o Tribunal, ao confundir o Médium FF de …, com S. Francisco Xavier.
18. — De resto, tendo o Tribunal que acautelar uma decisão provisória, sem produção de prova, impunha-se-lhe que oficiosamente tivesse cuidado de conhecer melhor a doutrina espírita e as suas consequências para as crianças.
19. — Mas, sobretudo, impunha-se ao Tribunal conhecer que podem existir muitas crianças espíritas felizes, mas seguramente não existem crianças espíritas felizes a um fim-de-semana, e as mesmas crianças, transvertidas de católicas, felizes no outro fim-de-semana.
20. — Num fim de semana as crianças frequentariam a catequese, e no outro fim-de-semana frequentariam a Associação Espírita de …, ou outra qualquer, onde lhes seria ministrada a capacidade re-incarnatória, a falar com os mortos ou fantasmas camaradas, a escrever cartas psicografadas e a fazer girar mesas em transições psicóticas.
21. — Mas tinha o dever de as conhecer, estudar e decidir em conformidade e no superior interesse das menores, quer porque foram submetidas ao seu conhecimento, quer porque se trata de um processo de jurisdição voluntária, que sempre lhe imporia o conhecimento oficioso.
22. — Pelo que, ao decidir da forma como decidiu, violou o Tribunal recorrido o disposto ao n.º2 do artigo 608.º do C.P.C., sendo, por isso, a douta sentença recorrida, na parte correspondente ao segundo segmento decisório, NULA.
23. — Pede-se, pois, ao Venerando Tribunal da Relação, que declare as invocadas Nulidades e substitua desde agora a Decisão recorrida revogando-a e mantendo, tão-só e para vigorar na pendência da presente Acção, o essencial do 1º segmento da mesma e acrescentando a consequência logicamente clarificadora da interdição de qualquer interferência contraditória do Réu, devendo ficar assim estabelecido que:
«Pelo exposto, a título cautelar e provisório, decide-se:
- Atribuir à Autora-mãe a competência para decidir sobre a educação religiosa das três crianças sem que o Réu-pai possa contrariar as orientações educativas definidas pela Autora nesta matéria ou obstaculizar à respectiva execução;
Notifique-se.»
24. — Deverá, pois ser julgado procedente o Recurso em apreço revogando-se parcialmente e substituindo-se a Sentença ora recorrida por outra nos termos ora pugnados.
7. O Requerido BB finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:
1) A decisão em crise é nula porque não fixou, nem especificou qualquer [f]actualidade dada como provada - cfr. art.º 615.º, n.º 1, al. b) do C.P.Civil.
2) A decisão em crise é nula porque não especificou qualquer motivação quanto ao processo lógico-dedutivo que culmina no fixar da matéria factual que, necessariamente, tem de ser considerada provada ou não provada - cfr. art.º 615.º, n.º 1, al. b) do C.P.Civil.
3) A decisão em crise é nula dado que não foi produzida qualquer prova, nem tão pouco os progenitores foram ouvidos quanto aos factos, sendo que considerando os interesses indisponíveis em causa, a produção de prova é obrigatória, desde logo a audição dos progenitores.
4) A decisão em crise é nula porquanto o Tribunal a quo não se pronunciou sobre os requerimentos probatórios dos progenitores, impondo-se-lhe uma decisão sobre a necessidade de produção de tais meios probatórios (admitindo ou afastando a sua produção) - cfr. art.º 615.º, n.º 1, al. d) do C.P.Civil.
5) A decisão em crise é nula porquanto o Tribunal a quo não apreciou as questões de desconformidade constitucional alegadas, a título de excepção, pelo Pai das crianças, ora recorrente - cfr. art.º 615.º, n.º 1, al. d) do C.P.Civil.
6) A decisão do Tribunal a quo, com o devido respeito, no segmento decisório é ambígua e contraditória, tornando-se ininteligível pois que não resulta nenhuma definição concreta, nomeadamente, qual o âmbito de actuação da Mãe das crianças (o que é que ela pode impor e decidir) e qual o âmbito de actuação do Pai das crianças (o que é que ele pode opor à Mãe das crianças); e sobretudo, como é que o decidido se conjuga com o regime de contactos - cfr. art.º 615.º, n.º 1, al. c) do C.P.Civil.
7) A decisão do Tribunal a quo condena em objecto diverso do pedido, para além deste e conhece de questão que não podia ter tomado conhecimento - cfr. art.º 615.º, n.º 1, al. d) e al. e), segunda parte, já que a requerente peticionou tão só que as crianças fossem orientadas na religião católica.
8) Ao não ter comunicado, em concreto, a intenção de atribuir o exercício exclusivo das responsabilidades parentais, no segmento da religião, à Mãe das crianças o Tribunal a quo cometeu uma nulidade prevista no artigo 3.º, n.º 1 e n.º 3.º do C.P.Civil ex vi do art.º 33.º, n.º 1 do RGPTC a qual aqui se invoca.
9) Numa decisão provisória o julgador deve nortear-se por princípios de razoabilidade, actuando com bom senso, prudência e moderação evitando que a decisão agudize o conflito.
No presente caso o sentido adequado a dar à situação é explicitar judicialmente aquilo que sempre ocorreu, desde o nascimento das crianças: as crianças partilham a religião de Pai e Mãe, o que é absolutamente compatível, como sempre o foi.
10) A decisão em crise interpretada no sentido de que a Mãe das crianças pode impor ao Pai, ora recorrente, que este, no pouco tempo em que as crianças estão consigo as tenha de ir levar à missa, à catequese e a todas as actividades religiosas e para-religiosas altera, sem que tenha existido prévia discussão e oportunidade de pronúncia, o regime de contactos.
11) É inconstitucional a interpretação que se faça do artigo 1906.º, n.º1, n.º2, n.º 3, n.º 4, n.º 5 e n.º 6 do C.Civil (ex vi do art.º 1909.º do mesmo diploma legal) quando dela resulte que ao progenitor Pai de três meninas a quem foi fixado um regime de visitas aos fins-de-semana, de quinze em quinze dias (com pernoita de quarta para quinta-feira) seja imposto fazer conduções à missa e à catequese e estar à espera delas quando tal implica a duração de cerca de metade do tempo judicialmente atribuído ao Pai -v.g. de duas manhãs (Sábado e Domingo, das 9.00h às 12.00h) ou manhã e tarde -por violação do art.º 36.º n.º 5 e n.º 6 da CRP e do art.º 18.º, n.º 2 da Lei Fundamental, o que se argui para todos os efeitos legais e processuais.
12) É inconstitucional a interpretação que se faça do artigo 1906.º, n.º1, n.º2, n.º 3, n.º 4, n.º 5 e n.º 6 do C.Civil (ex vi do art.º 1909.º do mesmo diploma legal) quando dela resulte que ao progenitor Pai (não católico) de três meninas a quem foi fixado um regime de visitas aos fins-de-semana, de quinze em quinze dias (com pernoita de quarta para quinta-feira) seja proibido partilhar as suas convicções religiosas, quer directamente, quer por que tenha de as conduzir à missa e à catequese e por elas ter de esperar implicando isso, na prática, limitação temporal absoluta - Sábados e Domingos das 9.00h às 12.00h, ou uma manhã e uma tarde completas - por violação do art.º 13.º, n.º 1 e n.º 2, do art.º 36.º n.º 5 e n.º 6 da CRP e do art.º 18.º, n.º 2 da Lei Fundamental, o que se argui para todos os efeitos legais e processuais.
13) O entendimento segundo o qual em decorrência da decisão em crise (a decisão do Tribunal Nacional) se atribui, por via da religião do progenitor residente, a possibilidade deste limitar o tempo em que as crianças estão com o Pai, progenitor não residente, é violadora do artigo 8.º em ligação com o artigo 14.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH).
14) O entendimento segundo o qual se atribui o exercício exclusivo das responsabilidades parentais, no segmento da religião, a um dos progenitores quando os dois progenitores têm religiões diferentes é violador do artigo 9.º em ligação com o artigo 14.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH).
15) A religião espírita cristã não apresenta valores e princípios distintos da religião católica pelo que em nada perturba a CC, a DD e a EE.
16) A CC, a DD e a EE sempre partilharam com o recorrente os princípios e os valores da religião espírita cristã e participaram com este na sua celebração.
17) O recorrente, Pai das crianças, quando anuiu em participar em ritos católicos não foi porque professasse tal religião - contra a qual nada tem - mas sim por uma postura ecuménica, de tolerância e para não violentar, para o que ora releva, a requerente Mãe das crianças.
8. Terminou, pugnando pela anulação da decisão recorrida e pela sua substituição em termos de se decidir “que, em matéria de religião, cada um dos progenitores partilhará com as crianças a sua religião no tempo em que estas estiverem consigo, não podendo impor ao outro progenitor qualquer comportamento nomeadamente que o Pai leve as crianças à missa, à catequese e a quaisquer outras actividades religiosas ou para-religiosas”.
9. O Ministério Público apresentou contra-alegações aos recursos apresentados pugnando pela sua improcedência e confirmação da decisão proferida em 1ª Instância.
10. O Tribunal da Relação julgou improcedentes os recursos e confirmou a decisão recorrida.
11. Inconformado, o Requerido BB interpôs recurso de revista.
12. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:
A. DA NULIDADE DO ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO.
1.º O acórdão do Tribunal da Relação é nulo porquanto não se pronunciou sobre os factos alegados pelo recorrente – cfr. art.º 615.º., n.º 1, al. b) do C.P.Civil ex vi art.º 666.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.
2.º O acórdão do Tribunal da Relação é nulo porque ao ter fundamentado os factos provados da singela forma “documentados nos autos” e “posição das partes” tal equivale, na prática, a nada, pois que é insusceptível de revelar o processo lógico-dedutivo de formação da convicção do julgador - cfr. art.º 615.º., n.º 1, al. b) do C.P.Civilex vi art.º 666.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.
3.º O acórdão do Tribunal da Relação é nulo pois que não se pronunciou sobre a violação dos artigos 8.º e 14.º e 9.º e 14.º da CEDH e da jurisprudência pacífica do TEDH - cfr. art.º 615.º., n.º 1, al. d) do C.P.Civilex vi art.º 666.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.
4.º B. DO RECURSO DE REVISTA ORDINÁRIA
O Supremo Tribunal de Justiça conhece de questões em processo de jurisdição voluntária quando ocorre errada aplicação de normas de direito substantivo.
5.º O Supremo Tribunal de Justiça conhece de questões em processo de jurisdição voluntária quando a Relação tenha desrespeitado regras de direito adjectivo de cumprimento estrito, independentemente do juízo da dupla conforme.
6.º O Tribunal da Relação deu como provados, ex novo, factos com base nos documentos dos autos e na posição das partes:
d) A Requerente é católica cristã.
e) O Requerido foi baptizado na religião católica e contraiu casamento católico com a primeira mulher, mas é cristão espírita.
f) As menores por decisão da Requerente e do Requerido foram baptizadas de acordo com os ritos da religião católica e começaram a frequentar a catequese.
g) As menores por decisão da Requerente e do Requerido frequentaram um colégio católico, “Menino …”, que as orientava na religião católica.
7.º O presente processo é relativo a direitos/interesses indisponíveis pois que se trata do exercício de responsabilidades parentais.
8.º A respectiva factualidade não pode ser fixada por acordo ou por confissão pelo que a “posição das partes” não pode ser fundamento para dar factualidade como provada – artigo 354.º, al. b) do C.Civil e artigos 574.º, n.º 2 e 568.º, al. c), ambos do C.P.Civil.
9.º O recorrente, para além do mais, impugnou a factualidade dada como provada pela recorrida.
10.º A matéria dada como provada pelo Tribunal da Relação não decorre de qualquer documento com força probatória plena ou de qualquer outro meio probatório legalmente admissível.
11.º Recorrente e recorrida não foram ouvidos em declarações, nem foi produzida prova testemunhal.
12.º O Tribunal da Relação nunca poderia ter dado como provado que as crianças começaram a frequentar a catequese por acordo entre os progenitores porque, à data da separação (4.12.2017) nem a DD, nem a EE tinham idade para tal – cfr. decorre das respectivas certidões de assento de nascimento, documento autêntico com força probatória plena que infirma o facto dado como provado pela Relação.
13.º Verifica-se a violação de direito processual susceptível de constituir fundamento do recurso de revista, nos termos do art. 674.º, n.º 1, al. b), do NCPC por referência à violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, cfr. artigos 154.º, 607.º, n.º 3, n.º 4, n.º 5 e 663.º, n.º 2, todos do C.P.Civil em conjugação com o disposto nos artigos 574.º, n.º 2 e 568.º, al. c), ambos do C.P.Civil (em concatenação com o artigo 354.º, al. b) do Civil).
14.º A decisão do Tribunal da Relação não curou de aplicar correctamente o disposto no art.º 1906.º n.º 1 do C.Civil ex vi art.º 1909.º do mesmo diploma legal.
15.º Pressuposto lógico, e legal, da aplicação de tal regra básica é apurar os termos que vigoravam ao tempo do casamento (in casu da união) o que nem o Tribunal da primeira instância, nem o Tribunal da Relação se preocuparam em averiguar.
16.º As instâncias não se pronunciaram sobre a versão do recorrido a respeito da vivência religiosa das crianças aquando da união a qual é absolutamente díspar da apresentada pela recorrida e que, a ser provada em conjugação com o disposto no art.º 1906.º, n.º 1 do C.Civil, necessariamente, implicará uma decisão distinta daquela tomada pelas instâncias.
17.º As instâncias, sabedoras que não podem pronunciar-se quanto à escolha de religião, optaram por um critério falacioso de atribuir à recorrida o exercício exclusivo da questão de particular importância “religião” adoptando o entendimento de que após tal tudo o lhe diga respeito é acto da vida corrente.
18.º A mesma realidade ontológica passa de questão de particular importância a acto da vida corrente e a ser passível de integrar as orientações educativas do progenitor guardião em decorrência de errada interpretação do art.º 1906.º, n.º 1 do C.Civil.
19.º A solução legal encontrada pelas instâncias deixa entrar pela janela áquilo que a Lei fechou a porta.
20.º A regra da manutenção do status quo é relativa ao tempo de vivência na união e não após a separação – cfr. art.º 1096.º, n.º 1 do C.Civil.
21.º Na situação de progenitores com religiões distintas e filhos que ao tempo da união foram educados em ambas as religiões o segmento normativo extraído da interpretação do artigo 1906.º, n.º 1 e n.º 3 do C.Civil, do qual se extrai a interpretação de que, atribuindo-se ao progenitor guardião o exercício exclusivo da responsabilidade parental no segmento da religião este pode impor, a título de orientação educativa que as crianças não partilhem, nem sejam orientadas na religião do progenitor não guardião é inconstitucional por violação dos artigos 13.º, n.º1 e n.º 2, 18.º n.º 2 e 36.º, n.º 5 e n.º 6 da CRP.
22.º O entendimento segundo o qual em decorrência da decisão em crise (a decisão do Tribunal Nacional) se atribui, por via da religião do progenitor residente, a possibilidade deste limitar o tempo em que as crianças estão com o Pai, progenitor não residente, e deste não partilhar com as crianças a sua religião (como até ali ocorria) é violadora do artigo 8.º em ligação com o artigo 14.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH).
23.º O entendimento segundo o qual se atribui o exercício exclusivo das responsabilidades parentais, no segmento da religião, a um dos progenitores quando os dois progenitores têm religiões diferentes é violador do artigo 9.º em ligação com o artigo 14.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) por ser impeditivo deste não partilhar com as crianças a sua religião (como até ali ocorria).
24.º A decisão que versa sobre o exercício das responsabilidades parentais, no segmento da religião, e atribui tal exercício de forma exclusiva ao progenitor residente, e permite a este não só escolher a religião que as crianças professam, mas de limitar por via de tal escolha o tempo judicialmente fixado em que as crianças estão com o Pai–progenitor não residente e com religião diferente da do progenitor residente – e deste com elas partilhar a sua religião como durante a união ocorria é violador do artigo 8.º em ligação com o artigo 14.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH).
25.º Tal solução permite que se materialize uma discriminação por motivos religiosos restringindo o direito das filhas a estarem com o Pai e com elas; tal como impede que o Pai partilhe com as filhas a sua religião – como ocorria durante o tempo da vivência em união.
26.º A mesma solução impõe que o Pai das crianças ao as levar à missa e demais eventos religiosos e para-religiosos tenha de neles participar, de forma regular, violando assim a liberdade religiosa do Pai das crianças.
27.ºSendo que se o Pai das crianças assim não actuar vê-se impedido de estar com as suas filhas o que concretiza uma discriminação, absoluta, por motivos religiosos o que implica uma restrição à liberdade de religião, nomeadamente na sua dimensão externa ou da liberdade de manifestação e que traduz uma violação do art.º 9.º da CEDH em conjugação com o art.º 14.º da CEDH.
28.º Mais intensa é a quando a relação adopta o entendimento que, ou o progenitor não guardião segue as orientações educativas do progenitor guardião, ou às filhas será diminuído o tempo com que as mesmas estão com Pai – cfr o acórdão do T.R. de Guimarães, de 12.5.2004 proferido no processo n.º 623/04-1- acórdão este de duvidosa conformidade constitucional e face à CEDH nos termos supra.
29.ºO TEDH consagrou que, mesmo em caso de mudança de religião de um dos progenitores – o que nem se coloca nos presentes autos pois que o Pai das crianças sempre foi cristão espírita – não pode o tempo que as crianças estão com o progenitor não residente ser limitado por via do diferendo religioso entre ambos os progenitores.
30.º C. DO RECURSO DE REVISTA EXTRAORDINÁRIA
Subsidiariamente o recorrido apresenta recurso de revista extraordinária
31.º As instâncias decidiram de forma igual e com fundamentações não essencialmente diferentes.
32.º São questões em apreço:
— A atribuição do exercício das responsabilidades parentais, no segmento da religião, a um dos progenitores quando estes têm religiões distintas e as crianças viveram durante o tempo da união/casamento ambas as religiões com os seus progenitores.
- A concatenação do comando ínsito no art.º 1906.º, n.º 3 do C.Civil, “…as orientações educativas relevantes em relação aos actos de vida corrente” e a natureza de questão de particular importância que é a religião dos filhos.
- A subversão lógica da ratio legis constante do raciocínio de que após atribuição em exclusivo do exercício de uma questão de particular importância a um dos progenitores tudo o que lhe sobrevem, nesse âmbito, assume natureza de acto da vida corrente.
- O equacionar, ou não, em sede de atribuição provisória/definitiva em exclusivo a um dos progenitores do exercício das responsabilidades parentais no segmento da escolha da religião do impacto que tal decisão terá no regime de contactos/visitas com o outro progenitor.
- Decisão provisória – juízo de adequação – tempo das crianças.
33.º A RELEVÂNCIA JURÍDICA CLARAMENTE NECESSÁRIA PARA MELHOR APLICAÇÃO DO DIREITO E OS INTERESSES DE PARTICULAR RELEVÂNCIA SOCIAL.
A relevância jurídica desde logo prende-se com o facto de se tratar de uma situação inédita na jurisprudência nacional – o diferendo em relação à religião das crianças face ao divórcio/separação dos progenitores.
Diferendo esse onde se colocam várias questões de impacto violentíssimo na vida das crianças e que precisam de ser coadunadas com o seu superior interesse:
- Atribuir a um dos progenitores o exercício em exclusivo;
- Atribuir a ambos;
- Se a vivência religiosa das crianças antes da separação releva – cfr. art.º 1906.º, n.º 1 do C.Civil – e em que medida.
- O âmbito de atribuição provisório é, ou não, distinto do âmbito de atribuição definitiva (ainda que sujeito à clausula rebus sic stantibus, mas a exigir factualidade superveniente).
- A ponderação da escolha da atribuição provisória – o carácter de prognose que deve ser feito - e a concatenação com “o tempo das crianças”;
- A ponderação do tipo de relação existente entre os progenitores – de conflito ou de coordenação - e o reflexo da decisão de atribuição do exercício em exclusivo de uma questão de particular importância como a religião a um dos progenitores e o impacto que essa decisão tem na vivência com o outro progenitor;
- No caso de atribuição a um dos progenitores qual a dimensão do exercício desta questão de particular importância;
- No caso de atribuição a ambos, qual o limite de actuação de cada um deles.
Assiste-se à necessidade de clarificação da situação abstractamente considerada porquanto é inédita na jurisprudência.
A solução seguida pelas instâncias, de mera adesão a uma opinião peregrina, é de duvidosa consistência jurídica contrariando a lei ordinária, a constituição e o direito internacional.
34.º Existem em Portugal mais de 1.000.000 de cidadãos que não são católicos o que justifica a exigência social da pronúncia desse Supremo Tribunal.
A questão da religião – sua escolha ou escolher não ter nenhuma - é algo ligado ao imo do ser de cada cidadão, fazendo parte do mais intrínseco do indivíduo pelo que, por si, justifica que esse Supremo Tribunal se pronuncie.
35.º O entendimento das instâncias viola o disposto nos artigos 8.º, 9.º e 14.º da CEDH.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos já se pronunciou e tem jurisprudência pacífica no sentido de que existe violação das normas da Convenção quando os Tribunais Nacionais decidem a favor de um dos progenitores – atribuindo-lhe o exercício das responsabilidades parentais – em detrimento do outro quando existe um conflito ligado à religião.
36.º E que assim é quando ambos os progenitores têm religião distinta já ao tempo do casamento/união; mas também o é quando um dos progenitores muda de religião – cfr. acórdão Palau-Martinez vs. France, de 16 de Dezembro de 2003 e acórdão Hoffmann vs. Austria, de 23 dJunho de 1993.
37.º A violação da CEDH levará à apresentação de queixas junto do TEDH e à consequente condenação do Estado português, à revisão da decisão e à condenação do Estado português em responsabilidade civil pelo exercício da função jurisdicional - cfr. artigos 696.º, al. f) e al. h) e 696.º-A, ambos do C.P.Civil.
Termos em que se quer se revogue a decisão do Tribunal da Relação e a subsitua por outra que reconheça que:
- Em caso de desacordo quanto à orientação religiosa das crianças, ambos os progenitores podem partilhar com as mesmas a religião de cada um, sem que possam impor, reciprocamente, actos próprios dessa religião quando as crianças estão com o outro progenitor;
Subsidiariamente:
Se profira acórdão que anule a decisão das instâncias e remeta aos autos à primeira instância de forma a ser produzida prova quanto à matéria factual alegada de forma a ser, posteriormente, com base nos factos a apurar, proferida decisão.
Desta forma, fazendo-se a necessária justiça.
13. O Ministério Público e a Requerente AA responderam ao recurso interposto pelo Requerido BB.
14. O Ministério Público finalizou a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:
Art. 1º - O aresto em crise não padece de nulidade, por omissão de pronúncia e falta de fundamentação.
Art. 2º- O recurso de revista normal é inadmissível por estarmos em presença de dupla conforme e perante um processo de jurisdição voluntária (não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, face ao disposto nos artigos 12.º do RGPTC e n.º 2 do artigo 988.º do CPC.).
Art. 3º- Todavia, a ser conhecido o recurso, então o douto aresto em crise deve ser confirmado e negada a revista por não terem sido violadas quaisquer disposições da RGPTC ,do CPC, da CEDH ou do TEDH.
15. A Requerente AA, aderindo à contra-alegação do Ministério Público, finalizou a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:
— O Acórdão em crise não padece de nulidade, por omissão de pronúncia e falta de fundamentação;
— O recurso de revista normal é inadmissível por estarmos em presença de dupla conforme e perante um processo de jurisdição voluntária (não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, face ao disposto nos artigos 12.º do RGPTC e n.º 2 do artigo 988.º do CPC.)
— Não estão verificados os requisitos ou cumpridos os ónus do recurso de Revista Excecional.
— Todavia, a ser conhecido o recurso, então o douto aresto em crise deve ser confirmado e negada a revista por não terem sido violadas quaisquer disposições da RGPTC ,do CPC, da CEDH ou do TEDH.
16. Em conferência, o Tribunal da Relação pronunciou-se no sentido de que não se verificavam as nulidades arguidas pelo Requerido, agora Recorrente.
17. Em relação à nulidade por falta de fundamentação, o Tribunal da Relação de Guimarães chamou a atenção para que as exigências de fundamentação de uma decisão provisória devem ser diferentes das exigências de fundamentação de uma decisão definitiva [1] e para que o acórdão recorrido continha uma adequada fundamentação de facto:
“Se é certo que não se considerou ser nula a decisão recorrida, por nela não constar um elenco de factos devidamente identificados e enunciados, pois que da mesma constam os factos considerados relevantes pelo tribunal a quo para proferir a decisão provisória, a verdade é que também se afirmou não ser essa a forma mais correta de cumprir o dever de fundamentação das decisões, que aconselharia uma enunciação da matéria de facto a ter em consideração, mediante indicação do elenco dos respectivos factos.
Daí que se tenha entendido que tais factos deveriam ser elencados; tais factos são os que constam da decisão proferida e resultam documentados nos autos, da posição das partes, bem como do processo principal de Regulação das Responsabilidades Parentais: os que constam das alíneas b) e c), respeitam simplesmente à data em que foi instaurado o processo de Regulação e à homologação do acordo relativo ao regime provisório, e os das alíneas d), e), f) e g) constam da decisão recorrida e das próprias alegações apresentadas pelo Recorrente, quando notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 39º nº 4 (v. em particular os artigos 1º, 2º, 14º onde afirma que é cristão espirita, que foi baptizado na religião católica e casou catolicamente com a primeira mulher, e ainda 57º, 59º e 60º referentes à inscrição e frequência do Colégio Menino …); sendo certo que na alínea a) constam apenas os nomes das filhas e as datas do seu nascimento.
Não entendemos, por isso, que existe uma absoluta falta de fundamentação conforme sustenta o Recorrente ou que se deram como provados factos atinentes à religiosidade das crianças na versão da Recorrida, pois que os factos, constantes da decisão proferida e que se elencaram, constam também das suas alegações”.
18. Em relação à nulidade por excesso ou por omissão de pronúncia, o Tribunal da Relação de Guimarães chamou a atenção para que
“a resolução das questões suscitadas pelas partes não pode confundir-se com os factos alegados, os argumentos suscitados ou as considerações tecidas”.
19. O Recorrentes BB pede que o recurso seja admitido como revista normal e, subsidiariamente, como revista excepcional, ao abrigo do art. 672.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.
22. Em 22 de Setembro de 2020, foi proferido despacho em que se decidiu o seguinte:
Existindo dupla conforme, e tendo o Recorrente pedido subsidiariamente que a revista fosse admitida, a título excepcional, ao abrigo das alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 672.º do Código de Processo Civil, remetem-se os autos à Formação, em cumprimento do disposto no n.º 3 da mesma disposição legal.
23. Em 30 de Setembro de 2020, o Recorrente BB recorreu que sobre a matéria da verificação dos pressupostos do n.º 3 do art. 671.º do Código de Processo Civil recaísse acórdão, ao abrigo dos arts. 652.º, n.º 3, e 679.º do Código de Processo.
24. Em 30 de Setembro de 2020, o Exmo. Senhor Conselheiro a quem o processo foi distribuído para efeitos de apreciação preliminar sumária da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do art. 672.º do Código de Processo Civil proferiu despacho, determinando a apresentação dos autos ao presente relator, “para os efeitos que forem considerados adequados”.
25. Fundamentou-se, para o efeito, em dois argumentos:
I. — em primeiro lugar, na circunstância de, na intervenção liminar do presente relator, não ter sido apreciado o preenchimento dos pressupostos do n.º 1 do art. 671.º do Código de Processo Civil;
II. — em segundo lugar, na circunstância de, na intervenção liminar do presente relator, não ter sido apreciado o preenchimento dos pressupostos do art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil:
“… estando em causa, ao que parece, uma decisão de natureza provisória e cautelar”, diz-se no despacho de 30 de Setembro de 2020, “a sujeição ao mecanismo da revista excepcional sempre se debateria com a norma restritiva do no 2 do art. 370.º do CPC.
Tanto quanto nos parece, a norma do art. 32.º do RGPTC que prevê a admissibilidade de recurso de decisões de 1.ª instância não dispensará a ponderação de outras normas que condicionam especificamente o recurso de revista”.
26. Em 12 de Outubro de 2020, foi proferido o despacho previsto no art. 655.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, com a seguinte fundamentação:
5. O despacho proferido em 30 de Setembro de 2020 implica a ineficácia do despacho de remessa dos autos à Formação prevista no art. 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
6. Fica, por consequência, prejudicada a apreciação do requerimento apresentado pelo Recorrente.
7. As dúvidas sobre a admissibilidade do recurso de revista enunciadas no despacho de 30 de Setembro de 2020 não foram consideradas nem pelo Recorrente BB, na sua alegação, nem pela Recorrida AA, nem pelo Ministério Público, na sua contra-alegação.
8. Face ao exposto, afigura-se adequado dar às partes a oportunidade de se pronunciarem sobre as questões suscitadas.
27. O Requerido, agora Recorrente, BB respondeu ao despacho de 12 de Outubro de 2020, nos seguintes termos:
1.º Tanto quanto é dado aperceber ao Pai das crianças,destafeita, equaciona esse Supremo Tribunal:
— Do preenchimento dos pressupostos do art.º 671.º, n.º 1 do C.P.Civil; e
— Da aplicação da regra ínsita no art.º 370.º, n.º 2 do C.P.Civil aos presentes autos.
2.º DO PREENCHIMENTO DOS PRESSUPOSTOS DO ART.º 671.º, N.º 1 DO C.P.CIVIL
Cabe recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos – cfr. art.º 671.º, n.º 1 do C.P.Civil.
3.º Para o que ora releva são duas as situações de admissibilidade do recurso de revista:
— Uma decisão que conheça do mérito da causa; ou
— Uma decisão que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.
4.º Duas situações disjuntivas: basta que se verifique uma delas.
5.º Conhecer do mérito da causa significa que o Tribunal irá determinar e aplicar o direito aos factos, podendo vir a concluir quer pela procedência total, quer pela parcial, quer ainda pela improcedência. “É decidir sobre o pedido em termos de procedência ou improcedência”.
6.º Verifica-se quando existe uma completude decisória, no sentido de que se regulou, materialmente, o litígio em questão, nada mais quedando por apreciar.
7.º Quanto a ela ser definitiva, ou não, é questão que infra se abordará e que não deverá ser confundida com o pressuposto legal “mérito da causa”.
8.º No caso em apreço o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães foi proferido sobre a decisão da 1.ª instância, tal é apodictíco.
9.º Tendo a decisão do Tribunal da Relação sido no sentido da procedência da pretensão da progenitora, atribuindo à mesma o exercício exclusivo das responsabilidades parentais no segmento da religião quer-nos parecer que dúvidas inexistem que a relação material controvertida foi alvo de uma decisão de fundo, substantiva, de mérito.
10.º Pelo que quedará preenchido o pressuposto “conhecimento do mérito da causa”.
11.º DA (NÃO) APLICAÇÃO DA REGRA ÍNSITA NO ART.º 370.º, N.º 2 DO C.P.CIVIL AOS PRESENTES AUTOS.
Depreende o recorrente que esse Supremo Tribunal considera que “…estando em causa, ao que parece, uma decisão de natureza provisória e cautelar (…) a sujeição ao mecanismo da revista excepcional sempre se debateria com a norma restritiva do no 2 do art. 370.º do CPC”. E bem assim que “…a norma do art. 32.º do RGPTC que prevê a admissibilidade de recurso de decisões de 1.ª instância não dispensará a ponderação de outra normas que condicionam especificamente o recurso de revista”.
12.º Sob a epígrafe Decisões provisórias e cautelares prescreve o art.º 28.º, n.º 1 do RGPTC que “Em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, a requerimento ou oficiosamente, o tribunal pode decidir provisoriamente questões que devam ser apreciadas a final, bem como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efetiva da decisão.”.
Do elemento literal da hermenêutica interpretativa resulta, desde logo, que o legislador previu dois tipos de situações, ou melhor, dois tipos de decisões: as provisórias e as cautelares.
13.º As decisões provisórias são aquelas que possibilitam a resolução imediata, ainda que provisoriamente, de questões cujo conhecimento seja aconselhável ou conveniente ocorrer antes do final da causa.
14.º As decisões cautelares são aquelas que se revelam necessárias a garantir o efeito útil da acção, nas palavras da lei, as que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efetiva da decisão…v.g., provisória!
15.º Se se quiser, num contraponto com o processo civil comum – cfr. art.º 10.º, n.º 2 do C.P.Civil - pode-se afirmar que as decisões provisórias equivalem à declaração, à definição, do ou dos direitos (indisponíveis in casu, razão pela qual impõem a intervenção judicial); a tal solução concreta que decorre da ordem jurídica para a situação real que serve de base à pretensão deduzida.
16.º Por sua vez, nesse contraponto, as decisões cautelares a que alude o artigo 28.º, n.º 1 do RGPTC, equivalem à providência adequada à realização coactiva da uma obrigação – cfr. art.º 10.º, n.º 4 do C.P.Civil.
17.º O carácter provisório não emana de nenhuma urgência, de nenhum periculum in mora, mas sim, desde logo, da obrigatoriedade legal de regulação.
18.º Tal resulta à saciedade, da letra da própria lei adjectiva processual tutelar cível, mormente, do art.º 38.º do RGPTC que impõe a decisão provisória quando os progenitores não estão acordados quanto aos termos do regime do exercício das responsabilidades parentais.
19.º Ora esta decisão em nada tem como fundamento um qualquer perigo na demora da regulação – se este existisse o caso era de aplicar a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo – Lei n.º 147/99 de 1 de Setembro, artigo 2º e 3.º, n.º 2.
20.º O nomem iuris do art.º 28.º é enganador pois que a decisão cautelar lá referida pressupõem, uma decisão, definitiva ou provisória, cuja execução efectiva seja necessária.
21. Decisão provisória e decisão cautelar, na economia do RGPTC não se confundem, não são uma e a mesma coisa. Não faria qualquer sentido o legislador atribuir dois nomens iuris à mesma realidade jurídica.
22.º As decisões – proferidas no processo tutelar cível – são de natureza (i) definitiva, (ii) provisória ou (iii)cautelares.
23.º A decisão provisória a que se reporta o art.º 28.º do RGPTC não tem nenhuma das características da providência cautelar do Código de Processo Civil, nem depende dos mesmos pressupostos: tem natureza, pressupostos e finalidades absolutamente distintas.
24.º Sejamos francos e claros: no âmbito do RGPTC o que é provisório, não é cautelar e o que é cautelar não é provisório.
25.º Se algum paralelo pode ser feito com o regime do procedimento cautelar comum – se é que pode – só a decisão cautelar prevista no art.º 28.º do RGPTC, a tal destinada a assegurar a execução efectiva da decisão (definitiva ou provisória) é que pode ser aproximada à providência cautelar prevista no Código de Processo Civil, aquela que perante um fundado receio de causação de lesão grave e dificilmente reparável de direito, cuja efectividade carece de ser assegurada, é decretada pelo Tribunal.
26.º De onde decorre a conclusão lógica que, se nos presentes autos foi proferida uma decisão provisória – e não cautelar – ao abrigo do disposto no art.º 28.º do RGPTC, não é a tal decisão aplicável o disposto no art.º 370.º, n.º 2 do C.P.Civil
27.º Ademais diga-se, em abono da verdade, que as instâncias sempre tomaram e trataram a questão dos presentes autos como uma decisão provisória:
— “afigura-se-nos que será adequado tomar uma decisão provisória quanto à questão suscitada” – escreveu-se na decisão de 1.ª instância; e
— “no caso concreto estamos perante uma decisão provisória, proferida pelo tribunal a quo,”; “apesar da particularidade da decisão provisória”; “para proferir a decisão provisória”; “ainda que esteja em causa uma decisão provisória”; “proferir decisão provisória”; “O tribunal a quo não só considerou adequado tomar uma decisão provisória” – escreveu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães.
28.º Nunca as instâncias sequer ponderaram ou decidiram – até porque isso nem faz parte do objecto do processo - ordenar diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efetiva da decisão.
29.º A pronúncia judicial, a decisão em crise, foi:
— Atribuir à requerente a competência para decidir sobre a educação religiosa das crianças;
— Reconheceraorequeridoafaculdade de partilhar com as menores osideais e princípios religiosos com que se identifica.
30.º Este decisório, que de cautelar nada tem, não contém consagrada, não decretou, nenhuma diligência para assegurar a execução efectiva da decisão (provisória!).
31.º Pelo que, materialmente, não se pode falar em decisão cautelar.
32.º Não há um comando, operado judicialmente, de alteração da ordem jurídica no sentido de assegurar a execução efectiva daquela decisão.
33.º Tal é tão cristalino que à pergunta “O que é que foi determinado pelo Tribunal se os progenitores não cumprirem o decidido” a resposta é clara: “Nada, absolutamente nada!”
34.º Noutra prespectiva pode-se alegar que na decisão de primeira instância se escreveu: “Pelo exposto, a título cautelar e provisório, decido:”
35.º A palavra “cautelar”– que não é maisdo que isso, jáque correspondência alguma tem na decisão – pode ser enganadora e, numa visão mais perfunctória e atida a um elemento literal solitário poderia causar dúvidas ao intérprete da decisão.
36.ºA declaração aposta numa decisão judicial é um acto jurídico inserto num documento autêntico que,não sendo um negócio jurídico, deve ser interpretado nos termos do disposto nos artigos 236.º e ss. do C.Civil – cfr. artigos 369.º e 295.º, ambos do C.Civil.
O art.º 236º, n.º 1 do C.Civil estipula que “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.” Consagrou-se neste n.º1 a interpretação objectivista da declaração, denominada como teoria da impressão do destinatário.
37.º Conhecendo o declaratário o sentido que o declarante pretendeu exprimir através da declaração, é de acordo com a vontade comum das partes que o negócio vale, quer a declaração seja ambígua, quer o seu sentido (objectivo) seja inequivocamente contrário ao sentido que as partes lhe atribuíram – cf. n.º 2 do art. 236º do C. Civil. Nesse caso, prevalece a interpretação subjectivista, em que deixa de se justificar a protecção das legítimas expectativas do declaratário e da segurança do tráfego jurídico. Significa isto que a sentença tem de ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto.
40.º No entanto, enquanto acto funcional, a interpretação da decisão judicial não tem por objecto a reconstrução da mens judicis, mas a descoberta do sentido preceptivo que se evidencia no texto do acto processual, a determinação da estatuição nele presente.
Ainda que a interpretação deva incidir, preferencialmente, sobre a decisão em sentido estrito (sobre a parte decisória ou dispositiva que contém a decisão de condenação ou de absolvição – cf. art.º 607º, n.º 3, in fine do CPC), esta não deixa se ser referenciada a certos fundamentos, pelo que se deve recorrer à sua motivação para se estabelecer o exacto alcance daquilo que nela foi decidido – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-01-2013, relator Henrique Antunes, processo n.º 1500/03.6TBGRD-B.C1.
Porque não está em causa um verdadeiro negócio jurídico, dado que a sentença corresponde ao apuramento de uma situação de facto e aplicação do Direito, com a conclusão por uma injunção que reflecte aquilo que emerge da lei, deve aquela ser interpretada de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário - a parte ou outro tribunal - possa deduzir do seu contexto.
41.º Além disso, porque se trata de um acto formal, particularmente solene, cumpre garantir que o sentido tem a devida tradução no texto - cf. art.º 238º, n.º 1 do Código Civil. Logo, na interpretação de uma sentença há-de atender-se à parte decisória, tomando em conta a fundamentação, o contexto, os antecedentes da sentença e os demais elementos que se revelem pertinentes, garantindo sempre que o sentido apurado tem a devida tradução no texto; o objecto da decisão passa pela definição da sua estrutura, constituída pela correlação teleológica entre a motivação e o dispositivo decisório – cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26-04-2012,relatora Maria do Prazeres Pizarro Beleza, processo n.º 289/10.7TBPTB.G1.S1 e de 5-11-2009, relator Oliveira Rocha, processo n.º 4800/05.TBAMD-A.S1;acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, relatora Maria João Matos, processo n.º 426/11.4TBPTL-A.G1 e acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-09-2016, relator Jerónimo de Freitas, processo n.º 692/11.5TTMAI.2.P1.
42.º É usual afirmar-se que o cerne do julgado está na parte dispositiva da sentença e daí que aquilo que constitui caso julgado é a decisão contida na sentença, sendo esta o objecto do recurso – cf. art.ºs 627º, n.º 1 e 635º, n.º 2 do CPC; “o objecto do recurso é a decisão que prejudica o recorrente e não os respectivos fundamentos” – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pp. 762.
Porém, certo é também, tal como resulta do já acima expendido, que aquilo que se quis decidir há-de resultar não apenas do dispositivo da sentença mas ainda da sua motivação.
Tal significa, como refere Alberto dos Reis, convocando Carnelutti, que “a análise dos motivos pode conduzir ou a uma restrição do dispositivo, por se reconhecer que, não obstante o carácter geral da decisão, certas questões não foram resolvidas, nem explícita nem implicitamente, ou a uma ampliação da parte dispositiva, por se verificar que se consideraram e resolveram questões não compreendidas na decisão” – cf. op. cit., pág. 46. Assim, ainda que, por regra, o teor da decisão indique o alcance do julgado e as questões que devem considerar-se resolvidas, tal regra admite excepções: uma, porque pode haver necessidade, para interpretar correctamente a decisão, de recorrer aos fundamentos da sentença; outra, porque pode a decisão, mesmo em correlação com os fundamentos, deixar dúvidas sérias quanto à verdadeira extensão do julgado; em tal caso as dúvidas hão-de resolver-se tomando em consideração os pedidos das partes, as questões que elas puseram ao tribunal – cf. Prof. J. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, Coimbra 1984, pág. 43.op. cit., pág. 46.”.
43.º É precisamente o que sucede neste caso.
44.º Atentando no pedido da progenitora quando espoletou o presente incidente verifica-se que a mesma peticionou: “Termos em que requer seja decidido pelo Tribunal que em relação a tal questão de particular importância as menores deverão ser orientadas educativamente na religião católica cristã”
45.º Mais nada foi requerido.
46.º Foi com base neste diferendo que o Tribunal decidiu.
47.º Nunca em lado algum das decisões proferidas foi equacionada, sequer, a adopção de medidas destinadas a executar efectivamente a decisão tomada – sobre isso não existe uma única palavra.
48.º Com o devido respeito, ater-se a uma palavra isolada, em todo o processado, para fundamentar o carácter cautelar da decisão em crise é como que voltar ao tempo dos Patrícios e dos Plebeus em que estes, após conquistarem o acesso à justiça romana, viram tal conquista materialmente frustrar-se porque lhes faltava ou erravam “a palavrinha”.
49. A supremacia do fundo sobre a forma, já deixada bem vincada pelo legislador na reforma processual civil de 95/96 e colocada em letra de lei com a reforma de 2013, em conjugação com os interesses iminentemente pessoais em discussão – relembre-se que se discute religião, por muito que se pretenda mascarar o óbvio – ditam que não sejam as vidas da CC, da DD e da EE decididas por uma palavra vazia de conteúdo ou de correspondência na decisão em crise.
50.º Nenhum outro sentido interpretativo é possível equacionar, nem tão pouco da decisão em questão se retira que, de alguma forma, foi tomada uma decisão cautelar, nos termos do art.º 28.º do RGPTC – ou mesmo no sentido previstos nos artigos previstos nos artigos 362.º e ss. do Código de Processo Civil.
— Razões pelas quais deve ser entendido que a decisão em crise se pronunciou sobre o mérito da causa e como tal está verificado o circunstancialismo do disposto no art.º 671.º, n.º 1 do C.P.Civil; e
— A decisão em crise não assume natureza cautelar para os efeitos do disposto no art.º 28.º do RGPTC, nem para o efeito do disposto nos artigos 362.º e ss. do C.P.Civil, em consequência do que a limitação imposta pelo art.º 370.º, n.º 2 daquele diploma não é aplicável ao caso em concreto.
Termos em que, considerando que estão reunidos os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto, requer-se que o mesmo seja admitido.
27. O Ministério Público pronunciou-se pela inadmissibilidade do recurso, sustentando:
Em causa está – como bem diz o Recorrente na sua alegação – uma “decisão provisória que alterou o regime do exercício das responsabilidades parentais no segmento relativo à religião”.
Com efeito, como resultado n.º1 do art.º 28.º do RGPTC(Lei 141/2015, de08/09), “Em qualquer estado da causa e sempre que o entenda conveniente, a requerimento ou oficiosamente, o tribunal pode decidir provisoriamente questões que devam ser apreciadas a final, bem como ordenar as diligências que se tornem indispensáveis para assegurar a execução efectiva da decisão”.
Dispõe o n.º 1 do art.º 671.º do CPC:
“1 - Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.
No caso em apreço o acórdão recorrido não apreciou o mérito da causa nem pôs termo ao processo por alguma das formas de extinção da instância, nomeadamente pela absolvição do réu estando em causa, apenas, a fixação de um regime provisório cautelar.
Acerca dos recursos das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, dispõe o n.º2 do art.º 370.º do CPC, aplicável ex vi art.º 33.º n.º1, do RGPTC:
“Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível.
Como decidiu este Supremo Tribunal no Ac. STJ de 02.03.2017
I: - “Em regra, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares (art.º 370º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil).
II - Essa regra de irrecorribilidade é, contudo, excepcionada se invocada alguma das situações elencadas no artigo 629º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, entre as quais figura, na alínea a), a violação das regras de competência absoluta.
III - Nesses casos, não constitui também obstáculo à admissibilidade da revista a coincidência decisória entre a 1ª instância e a Relação (dupla conforme)” – sublinhado nosso.
Não está em causa, nem foi invocado, qualquer dos casos em que o recurso é sempre admissível, casos esses elencados no n.º 2 do art.º 629.º do CPC.
Assim sendo, a disposição do art.º 32.º n.º1 do RGPTC, ao permitir a interposição de recurso das decisões que se pronunciem provisoriamente sobre a alteração de medidas tutelares cíveis, apenas contempla, no caso sub judice, o recurso de apelação, e não já o recurso de revista.
Acresce dispôr o art.º 12.º da Lei 141/2015, de 8 de Setembro, que “os processos tutelares cíveis têm a natureza de jurisdição voluntária”, estipulando por seu turno o n.º2 do art.º 988.º do CPC, aqui aplicável ex vi art.º 33.º n.º1daquela Lei 141/2015 que, “das resoluções proferidas segundo critérios deconveniência ou oportunidade(como éo caso), não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça” (sublinhado nosso).
O douto acórdão recorrido pronunciou-se sobre a alteração provisória do regime do exercício das responsabilidades parentais, no segmento relativo à religião, com fundamento nos factos que considerou apurados, por um critério de oportunidade, o interesse das menores.
Nestes termos, o recurso de revista é inadmissível, por a tanto obstarem as disposições dos arts. 32.º n.º1, do RGPTC, 370.º n.º 2, 671.º n.º 1, e 988.º n.º 2, estas do CPC.
Finalmente, como é jurisprudência deste Supremo Tribunal, “o acesso à revista excecional não prescinde da verificação dos pressupostos gerais de admissibilidade do recurso, designadamente os relacionados com a natureza e conteúdo da decisão (art.º. 671º)” – Ac. STJ proferido em 22-02-2018, no processo n.º 2219/13.5T2SVR.P1.S1.
Por tudo o exposto, entende o M.ºP.º que o recurso de revista não deve ser admitido.
28. As questões a decidir in casu são as seguintes:
I. — se estão preenchidos os requisitos gerais de admissibilidade do recurso de revista;
II. — desde que estejam preenchidos os requisitos gerais de admissibilidade do recurso de revista, se está preenchida a previsão do art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil;
III. — desde que não esteja preenchida a previsão do art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil,
1.º. — se há violação da lei substantiva, concretizada no erro na interpretação do art. 1906.º do Código Civil (conclusões 14.ª a 20.º das alegações de recurso); na violação do dever de interpretação do art. 1906.º do Código Civil em conformidade com os 13.º, n.ºs 1 e 2, 18.º, n.º 2, e 36.º, n.ºs 5 e 6, da Constituição da República Portuguesa (conclusão 21.º das alegações de recurso) e/ou na violação do dever de interpretação do art. 1906.º do Código Civil em conformidade com os arts. 8.º, 9.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (conclusões 22.ª a 29.º das alegações de recurso); 2.º. — se há violação da lei de processo, por fundamentação da decisão de facto em meios de prova inadmissíveis (conclusões 6.ª a 13.º das alegações de recurso); 3.º — se há nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia sobre os factos alegados pelo Recorrente (conclusão 1.ª das alegações de recurso); por omissão de pronúncia sobre a questão, suscitada pelo Recorrente, da violação dos arts. 8.º, 9.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (conclusão 3.ª das alegações de recurso); ou por falta de fundamentação da decisão de facto (conclusões 2.ª e 13.ª das alegações de recurso).
II. — FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
29. O acórdão recorrido, declarando que “[o]s factos a considerar são os constantes da decisão recorrida e os que resultam documentados nos autos e da posição das partes, bem como no processo principal de Regulação das Responsabilidades Parentais (por consulta via Citius)”, deu como provados os factos seguintes:
a) CC, DD e EE nasceram, respetivamente, em .../10/2010, …/02/2012 e …/09/2014 e são filhas da Requerente e do Requerido;
b) No dia 05/12/2017 o Requerido instaurou ação de regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas às menores;
c) Por sentença de 20/12/2/17, proferida na conferência de pais, foi homologado o acordo da Requerente e do Requerido, ficando o exercício das responsabilidades parentais provisoriamente regulado, no que agora interessa, nos seguintes termos:
“Cláusula primeira — Exercício das responsabilidades parentais
1. - As crianças residirão habitualmente com a mãe, que exercerá as responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente das filhas.
2. - As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida da criança serão exercidas em comum por ambos os progenitores, salvo nos casos de manifesta urgência, em que qualquer dos progenitores pode agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.
3. - Quando as crianças se encontrem temporariamente com o progenitor, as responsabilidades parentais relativas aos atos da vida corrente serão exercidas pelo pai, não devendo este, porém, contrariar as orientações educativas definidas pela progenitora.
Cláusula segunda — Convívio (…)
2- A partir do dia 10 de janeiro (inclusive), todas as quartas feiras o progenitor vai buscar no final da escola entregando-as na quinta-feira na escola.
3. - As crianças passarão os fins de semana alternadamente com cada um dos progenitores, iniciando-se este regime nos dias 13 e 14 de janeiro com o progenitor, sendo que para tal este vai buscar as crianças no final do dia de sexta-feira e entrega-as na segunda-feira no respetivo estabelecimento de ensino, sendo que o progenitor assegurará aos fins de semana as rotinas das crianças, respeitando as que atualmente estejam implementadas, mormente a catequese e atividades inerentes à mesma, sendo que os demais eventos sociais serão decididos em conjunto por ambos os progenitores.
4- As crianças passarão e pernoitarão com o progenitor o dia do aniversário deste e o “dia do pai”, e com a progenitora o dia do aniversário desta e o “dia da mãe”.
5- No dia de aniversário das crianças estas almoçarão com o progenitor com quem não estiverem a pernoitar naquele dia.
6. - O progenitor com quem as crianças estiverem obriga-se a permitir que sejam realizados contactos via telefone ou Skype com o outro progenitor entre 20h00 e as 21h00.
d) A Requerente é católica cristã;
e) O Requerido foi baptizado na religião católica e contraiu casamento católico com a primeira mulher, mas é cristão espírita.
f) As menores por decisão da Requerente e do Requerido foram baptizadas de acordo com os ritos da religião católica e começaram a frequentar a catequese.
g) As menores por decisão da Requerente e do Requerido frequentaram um colégio católico, “Menino de …”, que as orientava na religião católica.
O DIREITO
30. O art. 32.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro, é do seguinte teor:
1. — Salvo disposição expressa, cabe recurso das decisões que se pronunciem definitiva ou provisoriamente sobre a aplicação, alteração ou cessação de medidas tutelares cíveis.
2. — Sem prejuízo do disposto no artigo 63.º, podem recorrer o Ministério Público e as partes, os pais, o representante legal e quem tiver a guarda de facto da criança.
3. — Os recursos são processados e julgados como em matéria cível, sendo o prazo de alegações e de resposta de 15 dias.
4. — Os recursos têm efeito meramente devolutivo, excepto se o tribunal lhes fixar outro efeito.
31. Face à remissão do art. 32.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível para o regime geral dos recursos em matéria cível, deverá averiguar-se quatro coisas:
I. — se estão preenchidos os requisitos gerais de admissibilidade do recurso de revista, designadamente dos requisitos relacionados com o conteúdo da decisão recorrida — art. 671.º, n.º 1 —, com a alçada e com a sucumbência — art. 629.º, n.º 1 —, com a legitimidade dos recorrentes — art. 631.º — e com a tempestividade do recurso — art. 638.º do Código de Processo Civil [2];
II. — se estão preenchidos os pressupostos do art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil e, III. — caso afirmativo, se estão preenchidos os requisitos específicos de admissibilidade do recurso de revista do art. 629.º, n.º 2, por remissão do art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil;
IV. — se estão preenchidos os requisitos específicos de admissibilidade do recurso de revista em processos de jurisdição voluntária — art. 988.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
32. O art. 671.º, n.º 1, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:
“Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos”.
33. O art. 671.º, n.º 1, é correntemente interpretado no sentido de que “[o] âmbito do recurso de revista […] não abarca os acórdãos proferidos pela Relação no âmbito dos procedimentos cautelares” [3] — e, ainda que o art. 671.º, n.º 1, não fosse correntemente interpretado no sentido de que o âmbito do recurso de revista não abarca os acórdãos proferidos pela Relação no âmbito de procedimentos cautelares, sempre a admissibilidado do recurso deveria confrontar-se com o art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, cujo teor é o seguinte:
“Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível”.
34. A decisão cautelar e provisória proferida pelo Tribunal de 1.º instância e confirmadada pelo Tribunal da Relação deverá subordinar-se ao regime das decisões proferidas em procedimentos cautelares previstas no art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
35. O caso está em que a razão justificativa da regra da irrecorribilidade do art. 370.º, n.º 2, do Código de Processo Civil encontra-se na “provisoriedade da providência cautelar […], não obstante a importância prática que ela [possa] concretamente ter para a realização do direito” [4]; encontrando-se a razão justificativa da regra na provisoriedade da providência cautelar, procede para as decisões cautelares e provisórias previstas no art. 28.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível.
36. Estando preenchidos os pressupostos do art. 370.º, n.º 2, constata-se para que o Requerido, agora Recorrente, não invocou nenhum dos fundamentos específicos do art. 629.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, em que o recurso seria sempre inadmissível.
37. Excluída a admissibilidade do recurso da decisão, fica prejudicada a questão do preenchimento dos requisitos específicos de admissibilidade do recurso de revista em processos de jurisdição voluntária — art. 988.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
III. — DECISÃO
Face ao exposto, não se toma conhecimento do objecto do presente recurso.
Custas pelo Recorrente BB.
Lisboa, 12 de Novembro de 2020
Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)
José Maria Ferreira Lopes
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade da Exma. Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza e do Exmo. Senhor Conselheiro José Maria Ferreira Lopes.
________
[1] Com a explicação de que, “… estando em causa uma decisão provisória deverá necessariamente considerar-se que a mesma não deve estar sujeita a especiais exigências de juízos bastamente fundamentados ou exegéticos, pois que o juízo não é definitivo, antes é provisório e intercalar, valendo na pendência de ulteriores fases processuais, até ser proferida decisão definitiva, sendo, por isso, proferido com base nos elementos obtidos até ao momento em que é proferida”.
[2] Vide, p. ex., os acórdãos do STJ de 22 de Fevereiro de 2018 — processo n.º 2219/13.5T2SVR.P1.S1 — e de 26 de Novembro de 2019 — processo n.º 1320/17.0T8CBR.C1-A.S1.
[3] Cf. António Santos Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Filipe Pires de Sousa, anotação ao art. 370.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. I — Parte geral e processo de declaração (artigos 1.º a 702.º), Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 434-436 (435).
[4] Cf. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 370.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 361.º a 626.º, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018, págs. 48-51 (50);