EMBARGOS DE EXECUTADO
CONTRATO-PROMESSA
ARRENDAMENTO PARA COMÉRCIO OU INDÚSTRIA
CONVOLAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
VONTADE REAL DOS DECLARANTES
TÍTULO EXECUTIVO
NOTIFICAÇÃO JUDICIAL AVULSA
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
NEGÓCIO FORMAL
FORMA ESCRITA
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
BOA FÉ
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Sumário


I) Considerando o art. 14º-A, 1, do NRAU, aprovado pela L 6/2006, de 27 de Fevereiro, «[o] contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário», isto é, um título executivo composto ou complexo formado por aqueles dois elementos: o contrato de arrendamento e a comunicação ao arrendatário do montante em dívida.
II) A notificação judicial avulsa serve de comunicação ao arrendatário do montante em dívida para esse efeito de completude ou perfeição do título executivo em conexão com a resolução do contrato de arrendamento baseada no art. 1083º, 1, 3-4, do CCiv. (art. 9º, 7, a), do NRAU), enquanto condição de eficácia para a constituição do título executivo.
III) A promessa de arrendamento é convolada em arrendamento definitivo por força da interpretação das declarações negociais independentemente da celebração do contrato de arrendamento definitivo, desde que as cláusulas constantes da promessa e a subsequente execução do contrato-promessa celebrado correspondam, pelo menos, aos elementos típicos da locação prometida: o promitente arrendatário ocupe – isto é, usufrua efectivamente do gozo – o imóvel prometido arrendar; o pagamento da retribuição típica do arrendamento (art. 1022º do CCiv.); a utilização para o fim a que se destina, tendo em conta a identificação da sua natureza. Mais rigorosamente estaremos perante a qualificação do contrato de promessa como arrendamento a título definitivo, em que a verificação da existência no negócio de todos os elementos essenciais do tipo determina a qualificação e esta, por sua vez, a vigência dos elementos naturais, fazendo portanto a correspondência a um tipo negocial legal de acordo com a interpretação das declarações negociais em confronto com a disciplina que constitui o modelo regulativo desse tipo. Para este efeito, a natureza material da vontade das partes deve sobrepor-se à omissão da forma exigida à data da celebração do contrato qualificado.
IV) A falta de outorga de escritura pública entre a data de início de produção de efeitos do arrendamento convolado/qualificado por interpretação – 1 de Março de 1999 – e 30 de Abril de 2000 (a partir de 1 de Maio os contratos de arrendamento para fins comerciais ficaram sujeitos à forma escrita traduzida em documento particular: art. 7º, 1, do RAU, aprovado pelo DL 321-B/90, de 15 de Outubro, alterado pelo DL 64-A/2000), sendo causa de nulidade do contrato por força do art. 220º do CCiv., não contamina a exequibilidade do contrato de arrendamento convolado/qualificado como título executivo (pela falta de produção de efeitos estatuída pelo art. 286º do CCiv.) por ser excluída essa alegação de invalidade em situações de tutela da confiança juridicamente justificada que ambas as partes depositaram na validade do contrato locatício celebrado, traduzida em  conformação bilateral sobre a falta de forma até à mudança legal de 2000 e em omissão de invocação posterior do vício formal, inequívocas sobre a execução do contrato celebrado, e geradoras para ambas as partes de uma autovinculação a comportamento futuro, inibitório da alegação da nulidade do arrendamento, ao abrigo da proibição de abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium (art. 334º do CCiv.).
V) Mais do que bloquear a pretensão do agente vista como abusiva por actuação confiante e, depois, “contraditória”, a tutela desse investimento na confiança de que o negócio seria tratado entre as partes como se fosse válido formalmente implica que se convalide o negócio ex bona fide, desaplicando a norma imperativa que comina a nulidade e mantendo o negócio ferido pela invalidade formal como relação legal, como se o acto estivesse formalizado e conforme ao direito. Essa actuação bilateral das partes é o facto subjectivo que se considera como equivalente (subrogatório) do requisito formal em falta. Assim será, pelo menos, quando apenas estão em jogo os interesses das partes contratantes envolvidas e a situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa que se pretende aproveitar da nulidade formal, sendo que a ela cabia, conjuntamente com a outra parte, a faculdade de exigir a outorga da escritura pública originariamente exigida.

Texto Integral



Processo n.º 51/18.9T8BGC-A.G1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação de Guimarães, 2.ª Secção

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. Os Executados “Pereira & Rocha, Lda.”, AA e BB deduziram Oposição mediante Embargos à Execução Comum para pagamento de quantia certa que lhes moveram os Exequentes CC, DD e EE, autuada por apenso a processo de execução, tendo em vista julgar totalmente procedente a Oposição, invocando a excepção de inexequibilidade do título executivo com absolvição da instância, a excepção de prescrição, com absolvição do pedido dos Oponentes, as excepções inominadas de nulidade da fiança ou do benefício da excussão prévia, igualmente com absolvição do pedido, e, por fim, a improcedência da execução por injustificada e ilegítima, com a mesma absolvição do pedido dos Oponentes, tudo em relação a promessa de arrendamento para fins comerciais em que os Exequentes são herdeiros do senhorio originário. Justificaram o primeiro fundamento da oposição no facto de, sendo o título dado à execução composto por um contrato-promessa de arrendamento acompanhado de uma notificação judicial avulsa, este não preencher os requisitos exigidos pelo art. 14.º-A do NRAU, aprovado pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro.

Os Exequentes apresentaram Contestação aos Embargados alegando a improcedência das excepções, pugnando pela prossecução do processo de execução, condenando os Executados/Oponentes nos valores peticionados.

Foi dispensada a realização de audiência prévia (fls. 27).

Foi proferido despacho saneador pelo Juiz 1 do Juízo de Execução de Guimarães no Tribunal Judicial da Comarca da ... (fls. 27 e ss), em 25/9/2018, no qual, conhecendo-se da excepção de “inexistência de título executivo”, se decidiu: “julgar os presentes embargos de executado procedentes (procedência da exceção de inexistência de título executivo) e, em consequência, determino a extinção da execução apensa”.

 

2. Inconformados, os Embargados/Exequentes interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães (TRG), visando a revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra que ordene o prosseguimento da execução (fls. 30 e ss).

Contra-alegaram os Executados-Embargantes propugnando a manutenção do decidido. 

O TRG proferiu acórdão em 31/10/2019, identificando como questão decidenda: “saber se um contrato-promessa de arrendamento comercial, que foi celebrado em 05/03/1999, pode ser havido como contrato de arrendamento, constituindo o título executivo criado pelo art. 14.º-A do NRAU (aprovado pela Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro)”. Decidiu “julgar agora improcedente a excepção peremptória de inexistência do título, determinando-se o prosseguimento dos presentes embargos para conhecimento dos outros fundamentos de oposição à execução invocados”.

3. Agora demonstrando o seu inconformismo, os Executados-Embargantes interpuseram recurso de revista para o STJ, tendo por base os arts. 671º, 1, e 674º, 1, a), do CPC, visando a revogação do acórdão recorrido e substituindo-se por outro que julgue procedente a excepção de inexistência ou inexequibilidade do título dado à execução.

No final das respectivas alegações, foram apresentadas as seguintes Conclusões:

“1ª- Independentemente do respeito que a mesma lhe merece, não pode o Recorrente conformar-se com o douto Acórdão proferido pelo Ex.mo Tribunal a quo, pois entende o Recorrente que, na mui douta decisão recorrida, não foram aplicadas nem interpretadas adequadamente, entre outras, as normas legais que disciplinam os títulos que podem servir de base à execução no caso de resolução de contrato de arrendamento com fundamento em falta de pagamento de rendas e o abuso do direito;

2ª- Deste modo, no presente recurso está agora, essencialmente, em causa saber se: a)- O comprovativo da notificação judicial avulsa acompanhada por contrato promessa de arrendamento para fins não habitacionais em apreço nos autos pode e deve ser considerado como título executivo; b)- Consiste em venire contra factum proprium por parte dos Recorrentes a invocação, nos autos, da nulidade da falta de outorga do contrato definitivo por escritura pública para efeitos de arguição da inexistência do título executivo;

3ª- Sendo que, na esteira da sentença proferida pelo Ex.mo Tribunal de 1.ª Instância, a qual, a qual se subscreve na parte em que conclui pela inexistência do título executivo, que se passa a transcrever: “E não existindo um ‘contrato de arrendamento’ válido – o documento apresentado à execução nunca pode integrar a denominação de ‘contrato de arrendamento’ vertida no citado artigo 15º do NRAU –, impõe-se concluir que esta argumentação dos embargantes merece vencimento”;

4ª- Com efeito, os títulos aos quais a lei confere força executiva estão taxativamente identificados no artigo 703º do CPC, por via do qual, designadamente pela sua alínea d), se admite que sirvam de base à execução os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva;

5ª- Por sua vez, determina o artigo 14º-A do NRAU que um contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário;

6ª- Tal como é reconhecido pelas diversas instâncias judiciais, estamos perante de um “título executivo complexo (…) composto por dois elementos, o contrato de arrendamento e comprovativo de comunicação ao arrendatário”, sendo que apenas se pode concluir, como lucidamente fez o mui douto Tribunal de 1ª Instância, que “faltando um deles, ou ambos, não haverá título executivo”;

7ª- Acontece, porém, que, no caso em apreço e vertido nos autos, sendo o título dado à execução composto por contrato promessa de arrendamento acompanhado por notificação judicial avulsa, inexiste o primeiro elemento supracitado e, em consequência, título executivo;

8ª- Não obstante alguma jurisprudência ter vindo a aceitar a convolação de contratos de promessa de arrendamento em efetivos e vigentes contratos de arrendamento, quando haja ocupação imediata do putativo arrendatário sobre o imóvel, no caso em apreço nos autos não pode existir a referida convolação;

9ª- Na verdade, o supra referido entendimento, designadamente nos arestos citados pela própria Recorrida em sede de apelação, sustentam-se no facto de os contratos promessa de arrendamento assumirem a forma legalmente prescrita para o contrato de arrendamento prometido.

10ª- Como os Recorridos bem sabem e não podem ignorar (até porque a respetiva forma é imputável ao senhorio), na data dos factos em apreço nos autos, ou seja, na data da celebração do dito contrato promessa, os contratos de arrendamento para comércio ou indústria, por via do artigo 7º do RAU, na redação em vigor naquela data, deviam necessariamente serem outorgados mediante escritura pública;

11ª- Sendo que a descrita inobservância da forma legal por parte da Recorrida no invocado contrato de arrendamento determina a sua nulidade;

12ª- Ora, tratando-se de um hipotético contrato de arrendamento, a respetiva nulidade, decorrente da inobservância da forma legalmente prescrita, determina a impossibilidade de se convolar o referido contrato promessa de arrendamento num verdadeiro contrato de arrendamento;

13ª- Não obstante, na opinião do Ex.mo Tribunal recorrido se sustentar a outorga, no caso vertidos nos autos, de um verdadeiro contrato de arrendamento, uma vez que alegadamente se verificam “todas as cláusulas típicas do contrato de arrendamento”, na data da sua outorga, o referido “contrato de arrendamento” não assumiu a forma legalmente prescrita para o efeito, ou seja, a escritura pública;

14ª- O que não sucedeu, como do referido contrato promessa resulta, designadamente da “alínea A” do contrato promessa em crise atenta a impossibilidade diretamente imputável ao promitente senhorio decorrente da falta de registo da propriedade a seu favor e da inexistência de licença de ocupação devidamente atualizada;

15ª- E não pela alegada falta de exigência por parte dos Recorrentes da outorga da competente escritura pública;

16ª- Não sendo possível compreender, atenta a falta de dados existentes nos autos, como pode concluiu o Venerando Tribunal a quo, como “assente que nem o «senhorio» nem os ora Apelados/Embargante algumas vez exigiram à contraparte a celebração da escritura”;

17ª- Assim sendo, como respeitosamente se entende ser e tal como resulta da mui douta sentença recorrida, a nulidade do hipotético contrato de arrendamento determina a invocada e declarada inexistência do primeiro elemento previsto no artigos 14º-A e 15º, Nº 2, ambos do NRAU, e, em consequência, a inexistência, nos autos, de título executivo,

18ª- Pois, não existindo um “contrato de arrendamento” legalmente válido, os documentos apresentados nos autos – contrato promessa de arrendamento e notificação judicial avulsa – nunca poderão servir de base à pretendida, mas ilegítima,

execução, nos termos do disposto nos artigos 703º do CPC e 14º-A e 15º do NRAU;

19ª- Caso assim se não entenda, o que se não concede e por mera hipótese se acautela, no caso vertido nos autos não estamos perante um verdadeiro contrato de arrendamento, mas um contrato promessa de arrendamento, nos termos em que foram celebrados e declarados no documento junto aos autos pela Recorrida;

20ª- Inexistindo qualquer elemento nos autos que possa permitir ao Julgador, a quo ou ad quem, interpretar as declarações vertidas no contrato promessa em crise nos autos e, dessa forma, proceder à sua convolação em contrato de arrendamento;

21ª- Sendo que, a referida convolação por parte do Venerando tribunal Recorrido é verdadeiramente contra legem, uma vez que, tendo efeitos retroativos à data da sua celebração, não pode converter a forma de documento particular para a exigida redução a escrito por via de escritura pública como exigido pelo artigo 7º do RAU, na redação em vigor naquela data;

22ª- No respeitoso entendimento dos Recorrentes, a possibilidade de deduzirem oposição à execução dos autos principais e terem a hipótese de se defenderem, ainda que com qualquer fundamento, do referido título executivo pode justificar a pretendida convolação do dito contrato promessa num verdadeiro contrato de arrendamento e a consideração deste contrato nulo – conjuntamente com a notificação judicial avulsa – como se de um verdadeiro título executivo tratasse nos termos e para os efeitos dos artigos 14º-A e 15º do NRAU e artigo 703º do CPC;

23ª- Na verdade, sem qualquer prejuízo para a vigência das leis processuais e para dos princípios da segurança, certeza e estabilidade jurídicas, os Recorridos também sempre tinham, como ainda têm, salvaguardados os direitos invocados nestes autos mediante o recurso prévio à competente ação declarativa e, não obstante a nulidade do respetivo negócio, a obtenção do justo e legalmente previsto e pretendido título executivo sem qualquer tipo de atropelo às leis processuais;

24ª- Não está em causa qualquer tentativa por parte dos Recorrentes de evitar o pagamento de quaisquer quantias que legalmente sejam devidas aos Recorridos por parte da sociedade promitente arrendatária, mas apenas não permitir a possibilidade aos Recorridos – já concretizada – de, previamente à discussão do mérito da causa, atingirem diretamente, como atingiram indevidamente, o património dos Recorrentes, nomeadamente através da penhora de saldos bancários que excedem a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros);

25ª- Montante que, por via de um título legalmente inexistente, ficaram indisponíveis para o respetivo titular, com todos os elevados prejuízos daí decorrentes;

26ª- Sendo que, previamente a qualquer diligência de penhora, em face da inexistência de título nos termos legalmente previstos, caberia apreciar-se, em concreto, todas as circunstâncias atinentes ao negócio jurídico celebrado entre as partes e determinar-se o quantum, concreta e efetivamente, devido aos Recorridos por parte da sociedade Recorrente;

27ª- Na verdade, a interpretação efetuada pelo douto aresto decisório recorrido coloca em crise os princípios da segurança, da certeza e da estabilidade jurídicas e que as leis de processo visam proteger;

28ª- Se, por um lado, com a criação dos títulos executivos, a lei processual permitiu o acesso direto, nos casos expressamente previstos, à ação executiva para a efetivação coerciva dos direitos dos seus titulares, por outro, a lei adjetiva também exige o cumprimento de determinados requisitos que consentem, com certeza e segurança, o recurso à via executiva e, dessa forma, evitar o expediente abusivo à ofensa direta do património dos executados;

29ª- Também não se pode aceitar que, na data da renovação do aludido contrato promessa, formou-se um novo contrato de arrendamento para comércio relativamente ao qual, por força do DL Nº 64-A/2000, de 22/04, estava dispensada a exigência de escritura pública para os arrendamentos comerciais, como que, com areferida renovação, se sanasse a nulidade decorrente da inobservância da forma legalmente prescrita para o aludido negócio jurídico;

30ª- Contudo, a aludida dispensa de escritura pública a celebração de contratos de arrendamento comercial, nomeadamente através do DL Nº 64-A/2000, de 22/04, é, para efeitos de aplicação aos presentes autos, uma lei nova e, por isso, ao abrigo do disposto no artigo 12º do Código Civil, sem qualquer eficácia retroativa à data da outorga do contrato promessa de arrendamento para fins não habitacionais;

31ª- Sendo nulo o contrato inicial, não é admissível a sua renovação, ainda que, na data desta, fosse inexigível a forma de escritura pública, por falta de produção de efeitos por parte do contrato inicial;

32ª- Tudo se passa como inexistisse qualquer contrato promessa, pois a nulidade decorrente da inobservância de forma afeta a invalidade ex tunc do referido negócio até ao seu termo e, por via disso, às renovações daquele putativo contrato de arrendamento;

33ª- Deste modo, atendendo que o citado artigo 14º-A do NRAU refere-se ao contrato de arrendamento definitivo, o mero contrato promessa de arrendamento, ainda que acompanhado da comunicação à arrendatária e fiadores da sua cessação, não constitui, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 703º, Nº 1 al. d), do NCPC e do artigo 14º-A, do NRAU, título executivo;

34ª- Mesmo que assim também se não entenda, o que se não concede, nem concebe e apenas por mera hipótese se acautela, o título dado à execução é, por vários motivos, ineficaz, designadamente:

35ª- Por um lado, como inequivocamente decorre do contrato anexo àquela notificação judicial avulsa, inexiste qualquer contrato de arrendamento, mas somente um contrato promessa de arrendamento;

36ª- Por outro lado, a comunicação efetuada através de notificação judicial avulsa – através da qual se pretende dar a conhecer e fazer operar a resolução do pretenso, mas inexistente, contrato de arrendamento – foi assinada, não pelos proprietários da fração em apreço, mas por mandatário judicial a quem, através da competente procuração, apenas conferiram “os mais amplos poderes forenses em Direito Permitidos”;

37ª- Sendo que, por via disso, os Recorridos não conferiram ao respetivo mandatário os necessários poderes especiais para, em representação daqueles, proceder às comunicações para proceder à invocação, com fundamento na alegada falta de pagamento de rendas, da resolução do pretenso, mas inexistente, contrato de arrendamento;

38ª- Como efeito, determina o Nº 1 do artigo 9º do NRAU que as comunicações legalmente exigíveis entre as partes relativas, entre outras, a cessação do contrato de arrendamento são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção;

39ª- Acrescenta o Nº 7 do referido preceito legal que a comunicação pelo senhorio destinada à cessação do contrato por resolução, nos termos do Nº 2 do artigo 1084º do Código Civil, pode ser efetuada mediante notificação avulsa; contacto pessoal de advogado, solicitador ou agente de execução, comprovadamente mandatado para o efeito, sendo feita na pessoa do notificando, com entrega de duplicado da comunicação e cópia dos documentos que a acompanhem, devendo o notificando assinar o original, ou escrito assinado e remetido pelo senhorio nos termos do n.º 1, nos contratos celebrados por escrito em que tenha sido convencionado o domicílio, caso em que é inoponível ao senhorio qualquer alteração do local, salvo se este tiver autorizado a modificação;

40ª- Não obstante a comunicação em apreço poder ser efetuada por notificação judicial avulsa, como foi o caso dos autos, nada afasta a obrigatoriedade de a referida comunicação dever ser assinada pelos proprietários da fração, isto é, pelos próprios recorridos ou, em alternativa, por mandatário judicial desde que previamente habilitado com procuração com poderes especiais e específicos para o efeito;

41ª- Como alude os artigos 44º, N.os 1 e 2, e 45º, ambos do CPC, o mandato apenas atribui poderes ao mandatário para representar a parte em todos os atos e termos do processo principal e respetivos apenso e nos quais se inclui o de substabelecimento;

42ª- Assim sendo, como respeitosamente se entender, inexistindo qualquer contrato de arrendamento e não estando o mandatário judicial subscritor da notificação judicial avulsa munido dos competentes poderes forenses especiais para, em nome e em representação dos Recorridos, comunicar e fazer operar a resolução com a alegada falta de pagamento de rendas, a comunicada resolução e cessação do pretenso contrato de arrendamento é ineficaz e, por via disso, é também ineficaz e, por isso, inexequível o título executivo;

43ª- Acresce, também, que a notificação judicial avulsa efetuada mediante Agente de Execução, no que tange ao Recorrente BB, foi realizada na pessoa de AA, o ora 2º Embargante/Recorrente;

44ª- Todavia, como preceitua o Nº 1 do artigo 256º do CPC, a notificação avulsa é realizada, por agente de execução ou por funcionário judicial, na própria pessoa do notificando, mediante a entrega do duplicado e cópia dos documentos que a acompanhem;

45ª- Pelo que a notificação judicial avulsa efetuada relativamente à pessoa do 3º Recorrente BB é manifestamente nula, uma vez que foi praticada uma grave irregularidade no ato de notificação, designadamente a omissão da prática de um ato ou de uma formalidade que, notoriamente, influi no exame ou na decisão da causa;

46ª- Nulidade que expressamente se invocou com todas as consequências daí resultantes, designadamente quanto à ineficácia do título quanto ao 3º Recorrente;

47ª- Exceção de inexequibilidade do título que, com todos os fundamentos supra expostos, também expressamente se invoca com todas as legais consequências dela decorrentes.

48ª- Finalmente, também não se pode considerar, como erradamente considerou o Venerando Tribunal a quo, existir qualquer comportamento abusivo por parte dos Recorrentes em arguir a nulidade do contrato de arrendamento por inobservância de forma, na modalidade de venire contra factum proprium ou por qualquer outra, por nunca terem exigido do senhorio a outorga do contrato definitivo ou a sua formalização através da legalmente exigida escritura pública;

49ª- Salvo o devido respeito por distinto entendimento, não resulta qualquer elemento dos autos que foram os Recorrentes que deram causa à referida nulidade e que, por via disso, tenham agido em manifesto abuso de direito, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 334º do Código Civil;

50ª- Sendo que, pelo contrário e como claramente resulta do contrato promessa em crise (referida alínea A), a invocada nulidade apenas pode ser imputável e imputada ao então senhorio, o qual protelou a outorga da competente escritura pública até ao momento do registo de aquisição da propriedade a seu favor e à obtenção da competente licença de ocupação;

51ª- Não resultando a omissão da aludida formalidade legal de qualquer comportamento, ativo ou omissivo, imputável aos Recorrentes, não se pode concluir que estes tenham agido em abuso de direito;

52ª- A invocação da referida nulidade por parte dos Recorrentes não coloca em causa qualquer direito adquirido pelos Recorridos, mas visa apenas obstar à obstar que estes, mediante o acesso direto à ação executiva, atinjam indevidamente o património dos Recorrentes antes do referido direito se encontrar devidamente consolidado na ordem jurídica através de um dos tipos legalmente previstos de títulos executivos;

53ª- Inexistindo qualquer contradição ou excesso no comportamento adotado pelos Recorrentes no exercício do direito que legalmente lhe está conferido em defenderem-se, já em sede executiva, de atos de penhora e de ofensa contra o seu património;

54ª- Ofensa do património que apenas pode ter lugar quando o respetivo direito se encontra suficiente e devidamente fundado e acautelado por um título executivo legalmente tipificado;

55ª- Pelo que deve ser revogado o mui douto Acórdão recorrido, já que, naquele foram incorretamente interpretados, respeitados e aplicados aos factos os preceitos legais que interessavam ao objeto dos autos.

56ª- Assim sendo, como respeitosamente se entende ser, ao julgar procedente a apelação deduzida pelos Embargados, o douto acórdão a quo, para além de outras que Vossas Excelências doutamente suprirão, não interpretou nem aplicou corretamente diversas normas legais, assim violando, nomeadamente: os artigos 9º, Nº 1; 14º-A e 15º do NRAU; 7º do RAU; 12º; 334º e 1084º, estes do Código Civil, e 256º, Nº1; e 703º, Nº 1, do Código de Processo Civil.”

Não foram apresentadas contra-alegações na revista.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objecto do recurso

1.1. O art. 671º, 1, do CPC prescreve: «Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.» Deste normativo resulta que apenas é admissível revista “normal” do acórdão proferido pela Relação cujo conteúdo traduza uma decisão final por (i) conhecer do mérito da causa (nomeadamente por ter decretado a resolução material do litígio, no todo ou em parte, especialmente nos casos em que julga procedente ou improcedente o pedido ou algum dos pedidos ou aprecia a improcedência ou improcedência de alguma excepção peremptória) ou por (ii) colocar termo ao processo por razões formais (nomeadamente por se ter absolvido da instância sem conhecer do fundo material da causa ou, extensivamente, por se ter posto termo total ou parcial ao processo por razões de natureza adjectiva, nomeadamente por extemporaneidade ou pela falta de pressupostos ou requisitos legais)[1]

A pretensão recursiva dos Recorrentes incide justamente sobre o julgamento da resolução material do litígio pela Relação, ainda que apenas em parte, ao julgar improcedente o pedido que visava a procedência da excepção peremptória (art. 576º, 2, CPC) relativa à inexistência do título executivo fundante da execução – por isso, facto extintivo do efeito jurídico pretendido pelos Autores Oponentes – e, consequentemente, pertinente ao mérito da oposição que se discute nos autos. Logo, estamos, para efeitos de aplicação do art. 671º, 1, perante acórdão da Relação que, ao incidir sobre a decisão da 1.ª instância, conheceu em parte do mérito ou fundo da causa, sem prejuízo de se ter determinado fazer prosseguir os autos para conhecer dos outros pedidos que contendem com o mesmo mérito da causa.[2]

Antes disso, verifica-se que o acórdão recorrido não sofre da inibição prevista no art. 874º do CPC, uma vez que estamos perante acórdão da Relação proferido em recurso proferido em “procedimento de oposição deduzida contra a execução” através de embargos de executado (arts. 728º e ss do CPC).

1.2. Objecto do recurso
O conteúdo das Conclusões dos Recorrentes define em primeira linha o objecto do conhecimento do tribunal que aprecia o recurso (arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1 e 2, CPC), sem prejuízo das questões de oficioso conhecimento, desde que não decididas (art. 608º, 2, CPC). O âmbito do recurso é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida (questões suscitadas e apreciadas pelo tribunal recorrido, de acordo com a apelação dos agora Recorridos e então Exequentes Apelantes – cfr. fls. 33v e ss dos autos –, sem ampliação do objecto recursivo pelos Apelados Executados com base no art. 636º do CPC), não podendo solicitar-se decisões sobre matérias ou questões novas em relação às apreciadas pelo tribunal recorrido (como as que são levadas às Conclusões 36.ª a 47.ª), apenas estando adstrito esta impugnação recursiva à apreciação das questões suscitadas e resolvidas pelo acórdão recorrido e, agora, relevantes para a delimitação do objecto do recurso.

Assim, as questões que se submete a escrutínio do STJ são as de saber (cfr., desde logo, a Conclusão 2.ª):

— se o contrato-promessa de arrendamento para fins comerciais, celebrado em 5/3/2009, não convertido formalmente em contrato de arrendamento, uma vez acompanhado de notificação judicial avulsa, constitui título executivo exequível para a exigência de pagamento de rendas vencidas e não pagas ao senhorio (promitente locador), uma vez resolvido o contrato de arrendamento, tendo em vista o pagamento coercivo através de acção executiva, nos termos dos arts. 14º-A do NRAU, aprovado pela L 6/2006, de 27 de Fevereiro, e 703º, 1, d), do CPC (alegando-se ainda na revista a violação dos arts. 9º, 1, e 15º do NRAU, e 7º do RAU de 1990);

— se a invocação pelos Recorrentes da nulidade pela falta de celebração do contrato definitivo de arrendamento com outorga de escritura pública constitui abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, para efeitos de arguição da inexistência do título executivo (alegando-se a violação dos arts. 12º, 334º e 1084º do CCiv.).

2. Factualidade assente e relevante

De acordo com o acórdão recorrido, no exercício da previsão do art. 665º, 1, do CPC, consideraram-se assentes os seguintes factos e incidências processuais:  

1. Os ora Apelantes [aqui Recorridos] alegam no requerimento executivo que:

a) “entre” eles e os Apelados/Embargantes “vigora o contrato de arrendamento, com efeitos desde 01 de Março de 1999”, no qual estes “assumem a condição de Inquilinos/Fiadores”;

b) “Ao mencionado contrato foi dada a forma escrita”, obrigando-se os Apelados/Embargantes “nos termos e cláusulas contratuais, conforme decorre do doc. n.º 1”;

c) Desde o mês de Janeiro do ano civil de 2012”, os Apelados/Embargantes “não procederam ao depósito e pagamento do valor das rendas, que entretanto se vão vencendo…”;

d) Os Apelados/Embargantes “devem” “72 meses de renda a que correspondem os meses de Janeiro de 2012 ao mês de Janeiro de 2018, perfazendo a quantia na presente data de 34.117,20 € (…) continuando a vencer até entrega efectiva do locado. A este valor acresce juros de mora pelo incumprimento quanto aos vencidos nesta data computam-se no montante global de 3.590€”.

2. O “doc. n.º 1” referido em b), titulado de “CONTRATO-PROMESSA DE ARRENDAMENTO POR TEMPO LIMITADO”, está datado de 5 de Março de 1999, outorgado por FF (falecido marido/pai dos ora Apelantes), como “promitente senhorio” e os Apelados/Embargantes “Pereira & Rocha, Lda” como promitente arrendatária, representada pelos seus sócios-gerentes AA e BB, documento que, para o que ora interessa, contém os seguintes dizeres:

“O primeiro outorgante, na qualidade de seu proprietário, promete dar de arrendamento à Segunda outorgante, promitente arrendatária, a fracção autónoma correspondente à loja n.º 00, situada no rés-do-chão do prédio designado por “...”.

“O prometido contrato de arrendamento obedecerá às cláusulas dos artigos seguintes:

Artigo 1.º - A fracção autónoma a ser dada de arrendamento destina-se a nela ser exercida a actividade da arrendatária, que é de ministração de confecções de ....

Artigo 2.º - O contrato de arrendamento prometido, celebrado ao abrigo do disposto no art.º 117º do RAU … tem início no dia 1 do mês de Março do corrente ano, pelo período ou prazo de cinco anos, a renovar-se por sucessivos prazos de ano enquanto não for denunciado por qualquer das partes.

Artigo 3.º - A denúncia do contrato por parte do senhorio deverá ser feita, por notificação judicial avulsa, com a antecedência mínima de seis meses ao termo do prazo inicial ou de renovação do contrato, e a denúncia por parte da inquilina deverá ser feita com a antecedência mínima de três meses, por carta registada com aviso de recepção.

Artigo 4.º - A renda anual inicial é de 1.140.00 a ser paga em duodécimos mensais 95.000.00, no domicílio do senhorio, ou de procurador seu nesta cidade, vencendo-se cada mensalidade no primeiro dia útil do mês a que diga respeito.

Artigo 5.º - A renda será actualizada no fim de cada ano de vigência do contrato, nos termos legais, com os coeficientes fixados pelo Governo.

Artigo 6.º - A inquilina não poderá fazer obras que alterem a estrutura e configuração do local arrendado sem autorização do senhorio …

Artigo 7.º - As obras de conservação do locado serão da responsabilidade da inquilina …

Artigo 8.º - No fim ou termo de vigência do contrato a inquilina deixará o locado em bom estado de conservação …

Artigo 9.º - Em tudo o omisso, o contrato reger-se-á pelas disposições legais supletivas ou imperativamente aplicável.”.

“Pela Segunda outorgante, representada pelos seus sócios e gerentes, é declarado que promete tomar de arrendamento a referida fracção autónoma, para nela ser exercida a sua finalidade estatutária, com as cláusulas descritas nos antecedentes artigos, que expressamente aceita.”.

“Mais foi contratado o seguinte, que reciprocamente aceitam:

A) O prometido contrato de arrendamento será titulado por escritura pública quando qualquer das partes, promitente senhorio ou promitente inquilino, o exija, por carta registada e com aviso de recepção endereçada à contra-parte, mas só depois de o promitente senhorio ter a fracção objecto do contrato registada em seu favor na Conservatória do Registo Predial e obtenha licença de ocupação dela, actualizada, junto a Câmara Municipal.

B) Não obstante, a promitente arrendatária fica desde já autorizada a tomar posse da fracção autónoma referida (… …) e a nela exercer a sua actividade.

C) A promitente arrendatária, de posse da dita loja, obriga-se a pagar ao promitente senhorio a retribuição mensal estipulada para o contrato de arrendamento, como se este prometido contrato se encontrasse já titulado por escritura pública.

D) Os sócios e gerentes da promitente inquilina, dão a sua fiança à sociedade que representam, ficando com esta pessoal e solidariedade, responsabilizados, cada um deles, pelo cumprimento de todas as obrigações desta como inquilina, designadamente pelo pagamento das rendas que se vencerem, fiança que diz respeito não só às obrigações da inquilina depois de ser titulado por escritura o prometido arrendamento, em que expressamente darão a sua fiança, como também às inerentes obrigações e responsabilidades desde que a promitente arrendatária entre na posse da referida loja e enquanto a ocupar e fruir mesmo sem que esteja titulado o arrendamento pela forma legal.”

3. O referido documento encontra-se assinado pelos outorgantes, estando as assinaturas dos sócios-gerentes da sociedade comercial apostas sobre selos fiscais.

 

4. Os ora Apelantes requereram uma notificação judicial avulsa pela qual notificaram os Apelados/Executados da sua decisão de resolverem “o contrato de arrendamento constante do documento anexo por falta de pagamento das rendas de Janeiro de 2012 a Agosto de 2014, bem como a desocupação imediata do locado”, notificação que foi efectuada.

3. O direito aplicável

3.1. De acordo com o art. 14º-A, 1, do NRAU, «[o] contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário»[3]. Estamos perante um título executivo “composto ou complexo formado por aqueles dois elementos: o contrato de arrendamento e a comunicação ao arrendatário do montante em dívida” (como se afirmou no acórdão recorrido, confirmando o saneador-sentença).

3.2. A notificação judicial avulsa serve de comunicação ao arrendatário do montante em dívida para esse efeito de completude ou perfeição do título executivo, em conexão com a resolução do contrato de arrendamento baseada no art. 1083º, 1, 3-4, do CCiv. (art. 9º, 7, a), do NRAU)[4], realizada – cfr. facto dado como assente sob o n.º 4 – nos termos do art. 256º do CPC e notificada aos Executados (sociedade arrendatária e representante(s)), aqui Recorrentes – condição de eficácia para a constituição do título executivo, permitindo que “o senhorio instaure a respetiva ação executiva para pagamento de quantia certa, sem ter de propor previamente qualquer ação condenatória daquele arrendatário”[5] – o que se verificou (cfr. Doc. 1 anexo à Contestação dos Exequentes, fls. 24v e ss dos autos).

3.3. A promessa de arrendamento pode ser convolada em arrendamento definitivo por força da interpretação das suas declarações negociais, independentemente da celebração do contrato de arrendamento definitivo, desde que as cláusulas constantes da promessa e a subsequente execução do contrato-promessa celebrado correspondam, pelo menos, aos elementos típicos da locação prometida: o promitente arrendatário ocupe – isto é, usufrua efectivamente do gozo – o imóvel prometido arrendar; o pagamento da retribuição típica do arrendamento (art. 1022º do CCiv.); a utilização para o fim a que se destina, tendo em conta a identificação da sua natureza.

Assim se resumiu no Ac. do STJ de 8/6/2006[6]:

“O que interessa para a caracterização do contrato não é o nome atribuído pelas partes, mas sim a real natureza desse encontro de vontades, por forma a que, caso a caso, se encontrem os elementos fundamentais que constituem e caracterizam os vários negócios jurídicos (…). A interpretação das declarações negociais deve fazer-se de acordo com as normas constantes dos arts. 236º e 238º do Cód. Civil, segundo as quais as declarações devem valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, deve entendê-la, desde que no texto do documento esse sentido encontre um mínimo de correspondência”, interessando que se tenha acordado na promessa “quanto a todos elementos essenciais do contrato de arrendamento: entrega do locado, pagamento das rendas e as demais cláusulas, nada dali ficando para o contrato "prometido", se não a formalização do contrato (…)”.

Foi nesta senda que o acórdão recorrido alinhou inequivocamente, com razões que devem ser sufragadas:

“Na situação sub judicio, fazendo a interpretação normativa do contrato, de acordo com as regras estabelecidas nos arts. 236.º e 238.º do C.C., não ficam dúvidas que as Partes quiseram celebrar um contrato de arrendamento comercial, estabelecendo todas as cláusulas típicas deste contrato: o fim a que se destinava o arrendado; o prazo de vigência do contrato, com início a quatro dias antes da data nele aposta; previram a renovação do contrato, estabelecendo novo prazo de vigência; as formalidades da denúncia do contrato; o montante da renda e o regime de actualização, local e data de pagamento; e o regime das benfeitorias, havendo ainda uma cláusula para os casos omissos.

A “promitente arrendatária” ficou desde logo autorizada “a tomar posse” do arrendado.

E a demonstração inequívoca do processo intencional das Partes está nas alíneas do segmento complementar ao contrato: A) os outorgantes (…) contrataram e “reciprocamente aceitam” que a eficácia, entre eles, do contrato não ficava dependente da escritura pública. Quem a pretendesse exigir teria de comunicar a exigência à outra parte “por carta registada e com aviso de recepção”; C) a “promitente arrendatária” obriga-se a pagar a renda mensal estipulada para o contrato de arrendamento “como se este prometido contrato se encontrasse já titulado por escritura pública”; D) “Os sócios e gerentes da promitente inquilina” constituem-se fiadores desta, responsabilizando-se pelas “inerentes obrigações e responsabilidades desde que a promitente arrendatária entre na posse da referida loja e enquanto a ocupar e fruir mesmo sem que esteja titulado o arrendamento pela forma legal”. 

O “senhorio” cumpriu a sua obrigação contratual – entregou o local arrendado – e a “arrendatária”, Apelada/Embargante “Pereira & Rocha, Lda.”, pagou as rendas durante 12 (doze) anos e 9 (nove) meses, ou seja, desde 01/03/1999 até 31/12/2011, inclusive.

Posto que nenhuma das partes o invocou, é de considerar assente que nem o “senhorio” nem os ora Apelados/Embargantes alguma vez exigiram à contraparte a celebração da escritura pública – o que só se justificaria até à data da entrada em vigor do Dec.-Lei n.º 64-A/2000, de 22 de Abril, ou seja, em 01/05/2000, que dispensou aquela forma solene, sujeitando os contratos de arrendamento para comércio ou indústria apenas à forma escrita, ou seja, a documento particular.”   

Mais rigorosamente estaremos perante a qualificação do contrato de promessa como arrendamento a título definitivo: “a verificação da existência no negócio de todos os elementos essenciais do tipo determina a qualificação e esta, por sua vez, a vigência dos elementos naturais”, fazendo portanto a correspondência a um tipo negocial legal de acordo com a interpretação das declarações negociais em confronto com a disciplina que constitui o “modelo regulativo desse tipo”[7]. É o caso, particularmente nítido na medida em que as características individualizadoras do arrendamento se encontram traduzidas no clausulado denominado como “promessa de arrendamento” e essa natureza material da vontade das partes deve sobrepor-se à omissão da forma exigida à data da celebração do contrato qualificado.


3.4. Sobra a questão de saber se a falta de outorga de escritura pública entre a data de início de produção de efeitos do arrendamento convolado/qualificado por interpretação – 1 de Março de 1999 – e 30 de Abril de 2000 – pois a partir de 1 de Maio os contratos de arrendamento para fins comerciais ficaram sujeitos à forma escrita traduzida em documento particular: art. 7º, 1, do RAU, aprovado pelo DL 321-B/90 (RAU), de 15 de Outubro, alterado pelo DL 64-A/2000, por força, neste último, do seu art. 3º –, sendo causa de nulidade do contrato por força do art. 220º do CCiv., contamina a exequibilidade do contrato de arrendamento convolado como título executivo, tendo em conta a sanção da falta de produção de efeitos estatuída pelo art. 286º do CCiv.
Até essa data, ou seja, à data da celebração da promessa convolada em/qualificada como arrendamento, vigorava o art. 7º, 2, b), do RAU, com a referida exigência de escritura pública para os arrendamentos para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal. O DL 64-A/2000 veio consignar que esse art. 7º integrasse os n.os 1 e 2, que estatuíram a partir de então: «1 – O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito. / 2 – A inobservância da forma escrita só pode ser suprida pela exibição do recibo de renda (…).»
Esta modificação de menor solenidade, relativa à forma de celebração do contrato, não apresenta a virtualidade, porém, de se aplicar aos contratos celebrados antes da vigência da nova lei, como resulta do art. 12º, 2, 1.ª parte, do CCiv. (disposições legais sobre «condições de validade formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos» visam, «em caso de dúvida», somente «os factos novos»).
Nesta lógica, estaríamos inevitavelmente condenados a cominar com a sanção da nulidade, pelo menos, o contrato celebrado pelo primeiro período de vigência antes da primeira renovação em 2004 e, quanto a ele, decretar a não produção de efeitos e a sua inexequibilidade como título executivo à luz do art. 703º, 1, d), do CPC.
Será assim?

Não cremos.

O art. 286º do CCiv. impõe que as nulidades são insanáveis pelo decurso do tempo e são invocáveis por qualquer pessoa interessada. Correspondem a vícios ou faltas de forte censurabilidade, que levam a que os negócios/declarações negociais e/ou cláusulas/termos dos negócios não produzam os seus efeitos desde o seu início. O regime e as suas consequências mais austeras e inflexíveis prendem-se com motivações de ordem e interesse público, que, apenas em circunstâncias muito excepcionais de injustiça material flagrante, podem ser postergados ou amenizados, inclusivamente com recurso ao art. 334º do CCiv.

Esse é o caso doutrinal e jurisprudencialmente aceite da “inalegabilidade de nulidades” motivadas pela falta de forma legal (exigida em geral nos termos do art. 220º do CCiv.) por parte de quem, sendo responsável – ou co-responsável – pelo vício formal, se pretende depois prevalecer de tal vício[8]. É isso que os aqui Oponentes Embargantes invocam expressamente para afastar a exequibilidade do contrato de arrendamento como título executivo, em resposta ao fundamentado pelo acórdão recorrido (Conclusões 48.º a 54.º).

Considerando os factos dados como assentes, em particular:
- a falta de exigência de celebração da escritura pública por parte de qualquer das partes, nomeadamente a arrendatária «Pereira & Rocha, Lda.», até à data em que era condição legal de validade formal, cabendo a ambas as partes a faculdade de exigir a outorga da escritura pública originariamente exigida;

- a proximidade temporal da mudança legal que tornou menos solene a forma exigida para a celebração dos “arrendamentos comerciais”;

- a observância originária da forma exigida para uma promessa de contrato de arrendamento, nos termos do art. 410º, 2, do CCiv.;

- as “renovações” sucessivas do contrato de arrendamento convolado, ao fim de cinco anos de vigência, por força da liberdade contratual das partes;

- a execução bilateral sem incumprimento até Dezembro de 2011 por ambas as partes, deixando de ser pagas as rendas a partir de Janeiro de 2012;

estamos em condições de assegurar que não pode deixar de ser objecto de tutela a confiança juridicamente justificada que ambas as partes – não só os locadores mas também a locatária, que agora invoca a nulidade do negócio-título executivo – depositaram na validade do contrato locatício celebrado.

Mais do que isso: os factos dados como assentes pela Relação apontam para uma conformação bilateral sobre a falta de forma até à mudança legal de 2000, em particular tendo em conta o que foi previsto na alínea complementar A) da promessa convertida em arrendamento definitivo, onde consta que a celebração da escritura pública seria observada “só depois de o promitente senhorio ter a fracção objecto do contrato registada em seu favor na Conservatória do Registo Predial e obtenha licença de ocupação dela, actualizada, junto [d]a Câmara Municipal.”; e, depois disso, não mais se invocando tal vício originário de ordem formal para qualquer efeito, judicial ou extra-judicial, o que implicaria, desde logo, a assunção voluntária da convolação da promessa em arrendamento definitivo sobre o imóvel locado, sendo natural que tal confiança e assunção fossem sedimentadas pelo facto de, a partir da alteração promovida pelo DL 64-A/2000, deixar de ser exigida escritura pública.

Em resumo, cremos estar perante um quadro factual que nos concretiza comportamento anteriormente expresso e bilateral, inequívoco sobre a execução do contrato celebrado, que gerou para ambas as partes uma “autovinculação” a comportamento futuro[9], inibitório da alegação da nulidade do arrendamento, uma vez assim considerado e tratado jurídico-legalmente como tal. Na situação concreta, não temos como duvidar que a lealdade, correcção e honestidade solicitadas como regras de conduta e de colaboração na execução dos contratos (art. 762º, 2, CCiv.) torna abusiva a invocação superveniente da invalidade formal (inalegável, portanto), contraditória com a conduta anterior (art. 334º do CCiv., no abrigo do venire contra factum proprium).

Mais do que bloquear subjectivamente a pretensão do agente vista como abusiva por actuação “confiante” e, depois, “contraditória”[10], impõe-se dar objectivamente um passo mais no tratamento jurídico do próprio negócio: a tutela desse investimento na confiança de que o negócio seria tratado entre as partes como se fosse válido formalmente – uma vez considerado e tratado como arrendamento – implica que, na esteira de, pelo menos, CARLOS MOTA PINTO e MENEZES CORDEIRO, se valide ou – recteconvalide o negócio ex bona fide, desaplicando a norma imperativa que comina a nulidade e mantendo o negócio ferido pela invalidade formal como relação legal, como se o acto estivesse formalizado e conforme ao direito, “apoiada no [art.] 334º e em tudo semelhante à situação negocial falhada por vício de forma”[11]. Desta forma, como há muito enfatizou ORLANDO DE CARVALHO, se traduz a correcção que o “abuso de direito” permite, não como uma “correcção” normativa do sistema, antes “uma “correcção” pelo sistema. Não é uma entorse ou um desvio da lei – é a voluntas da lei levada, em suma, até ao fim”, consequência de cingir os direitos subjectivos “à zona em que o poder de autodeterminação da pessoa é chamado a intervir ou a ser um poder jurisgénico – ou seja, a da gestão da sua esfera de interesses, não a de negação de interesses ou a de gratuitas agressões[12]

Para este passo não se opõe uma suposta “insanabilidade” do negócio nulo, que, é verdade, acompanha a nulidade como sua característica normal “mas não como um elemento essencial”: como enfatizou RUI DE ALARCÃO, “pode deixar de ocorrer, sem por isso nos encontrarmos fora do conceito de nulidade”; [u]m negócio ferido de nulidade (…) pode ser juridicamente tratado como se lhe faltasse o vício que na realidade o afectou. Isto acontecerá ou porque a lei vem directamente a considerar válido o negócio que antes reputara ferido de nulidade (…), ou porque o Direito admite a ocorrência de um facto que considera como um equivalente do requisito cuja falta originou a situação de negócio nulo [sublinhado nosso neste segmento] (…) – por conseguinte, um facto sub-rogatório do requisito faltoso[13].

E, por outro lado, esta solução está em linha com aquela que permite, de acordo com o art. 293º do CCiv., a conversão de negócios nulos em negócios de tipo ou conteúdo diferente (que não é aqui o caso), do qual contenha os requisitos essenciais de substância e de forma, de acordo com a vontade hipotética ou conjectural das partes se se tivessem apercebido do vício e querido o negócio sucedâneo, ou, até, por imposição da própria boa fé, com fundamento nos arts. 239º e (igualmente) 334º do CCiv.[14]

Pois bem.
A conduta de não invocação desse requisito faltoso com indução de confiança da sua não invocação futura é facto subjectivo apto para essa convalidação. Para isso, pelo menos, “devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas” e “a situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar”[15]in casu, os que se pretendem aproveitar da nulidade formal, nesta situação a locatária e os seus representantes como Oponentes/Embargantes, pois também à arrendatária cabia, conjuntamente com a outra parte-senhorio, a faculdade de exigir a outorga da escritura pública originariamente exigida.

É o caso, conforme se ponderou com acerto no acórdão recorrido:

“(…) na situação sub judicio, os Apelados, que invocaram a nulidade do contrato de arrendamento por sofrer de vício de forma, expressamente aceitaram que a celebração da escritura ficava dependente da exigência de qualquer das partes (cfr. alínea A) a que acima se fez referência), e nunca a exigiram, cumprindo com o contrato ao longo de mais de 10 anos”. Consolidou-se, deste modo, a estabilidade e a permanência da relação contratual, sucessivamente renovada – desde logo pela confiança recíproca das partes – em contratos em que essa questão já não se colocava como pressuposto de validade formal, que são a antítese da invocação da invalidade formal da primeira – no plano temporal – das relações locatícias.

Esta conclusão tem óbvia repercussão no juízo sobre as renovações – em rigor, prorrogações convencionadas e aceites bilateralmente – sucessivamente celebradas do primeiro dos contratos celebrados, uma vez que essas prorrogações não incidiram sobre um contrato originariamente nulo, uma vez sanada essa nulidade pela convalidação ex bona fide do negócio por mor da actuação das partes.

*

O que faz, por isso e no seu conjunto, improceder as Conclusões dos Recorrentes, em especial as vertidas nos pontos 7.º a 22.º, 29º a 32º e 48.º a 52.º.

III. DECISÃO

Em conformidade, acorda-se em julgar improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido e a determinação constante do seu dispositivo decisório.

Custas pelos Recorrentes.

STJ/Lisboa, 10 de Novembro de 2020

Ricardo Costa (Relator)

Ana Paula Boularot

José Rainho

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).

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[1] V. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 671º, págs. 351-352, 353-354, RUI PINTO, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II cit., sub art. 671º, pág. 174-175, PINTO FURTADO, Recursos em processo civil, 2.ª ed., Nova Causa/Edições Jurídicas, Braga, 2017, págs. 123 e ss; Ac. do STJ de 10/10/2019, processo n.º 144/07.8TMBRG-C.G1.S1, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.
[2] V., em abono, ABRANTES GERALDES, Recursos… cit., sub art. 671º, pág. 351, 357. Com interesse para o caso, tendo em conta as similitudes para a situação sub judice, v. o Ac. do STJ de 19/2/2019, processo n.º 3503/16.1T8VIS-A.C1.S1, Rel. FERNANDO SAMÕES, in www.dgsi.pt.
[3] Preceito introduzido pelo art. 5º da Lei 31/2012, de 14 de Agosto.
[4] V. MARIA OLINDA GARCIA, Arrendamento urbano anotado. Regime substantivo e processual (Alterações introduzidas pela Lei n.º 31/2012), Coimbra Editora, Coimbra, 2012, págs. 176, 176-177, 181.
[5] V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Ação de despejo, artigos 14.º a 14.º-A”, Leis do arrendamento urbano anotadas, coord.: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, 2014, pág. 406.
[6] Processo n.º 06A1483, Rel. JOÃO CAMILO, in www.dgsi.pt.
[7] Seguimos PEDRO PAIS DE VASCONCELOS/PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria geral do direito civil, 9.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 565 e ss, em esp. 566,  569-571 (para os juízos “primário” e “secundário” da operação” de qualificação contratual) e 572.
[8] Para um resumo do trabalho doutrinal nesta matéria, v. por todos PEDRO PAIS DE VASCONCELOS/PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria geral do direito civil cit., págs. 717 e ss.
[9] JOÃO BAPTISTA MACHADO, “Tutela da confiança e ‘venire contra factum proprium’”, Obra dispersa, Volume I, Studia Juridica, Braga, 1991, págs. 381-382, 383, 416 e ss (com os requisitos para o efeito jurídico de perda do direito pelo “venire contra factum proprium”), ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Artigo 334º”, Código Civil comentado, I, Parte geral (arts. 1.º a 396.º), CIDP – Almedina, Coimbra, 2020, pág. 934.
[10] PEDRO PAIS DE VASCONCELOS/PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria geral do direito civil cit., págs. 722, 723, 754-755.
[11] V. CARLOS MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 435 e ss, em esp. 437, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Artigo 220º”, pág. 642, “Artigo 334º”, pág. 396, Código Civil comentado… cit., ao qual pertence a transcrição.
Em apoio a essa evolução objectiva de desconsideração justificada do art. 220º do CCiv., v., recentemente, o Ac. do STJ de 19/9/2019, processo n.º 3493/16.0T8LRA.C1.S1, Rel. TOMÉ GOMES, in www.dgsi.pt.
[12] Teoria geral do direito civil, Centelha, Coimbra, 1981, págs. 72, 73, sublinhado nosso.
[13] Cfr. A confirmação dos negócios anuláveis, Vol. I, Atlântica Editoria, Coimbra, 1971, págs. 70-71, 67 (em cuja nt. (76) se realça esta asserção como “uma afloração do princípio da conservação dos negócios jurídicos”, exprimindo a ideia de que a actividade negocial deve poder manter-se o mais possível para a realização do escopo prático prosseguido). Do mesmo RUI DE ALARCÃO, v. ainda, nomeadamente para se confirmar que os três elementos que andam ligados ao negócio nulo (“carácter automático, absoluto e insanável”) “não são elementos essenciais, mas apenas características normais”, “Sobre a invalidade do negócio jurídico”, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, III, Jurídica, BFDUC, n.º especial, Coimbra, 1983,  págs. 620-621; a págs. 617-618, o Professor de Coimbra concebia essa convalidação do negócio nulo como algo requisitado pela “regulamentação (…) mais ou menos afastada da rigidez dos esquemas tradicionais, e seria absurdo que a lei se opusesse à instituição de um tal regime, por quaisquer pruridos de geometrismos ou de pura lógica formal”, sendo “mesmo detectável uma tendência para o incremento de uma regulamentação desse tipo, com fundamentação em que ela é mais dúctil e ágil, mais ajustada aos ditames da autonomia privada e da conservação da actividade negocial, e mais capaz, por isso, de servir as necessidades da prática”.
Seguindo esta fundamentação – nomeadamente o princípio do favor negotii, sendo “claramente preferível, no direito privado, a validade à nulidade formal do negócio. (…) desde que estejam satisfeitas de outro modo as finalidades que justificam a nulidade formal, deixa de haver um fundamento que não seja meramente sacramental ou burocrático para uma sanção tão severa e violenta como é da nulidade” –, v. novamente PEDRO PAIS DE VASCONCELOS/PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria geral do direito civil cit., págs. 756-757, no âmbito do desenvolvimento do direito extra legem mas com certeza secundum jus.
[14] Por todos, v. CARLOS MOTA PINTO, Teoria geral… cit., págs. 641-642.
[15] Assim: ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Artigo 334º”, Código Civil comentado… cit., pág. 643, que ainda acrescenta como requisito ser “sensível” o investimento de confiança.