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CONTRATO
SUBTRACÇÃO DE PATRIMÓNIO À ACÇÃO DOS CREDORES
FRAUDE À LEI
ABUSO DE DIREITO
Sumário
I- É inválido um acordo celebrado entre duas pessoas com o objectivo de subtrair o património de um deles, bem como o de uma sociedade de que é sócio e gerente, à acção dos credores, e que contemplava a criação de uma sociedade, com interposição fictícia de pessoa, e todo um conjunto de actos tendentes a conseguir que um dos contraentes passasse a não «possuir bens e direitos registados em seu nome» para não «ser “incomodado” pelos credores»; II- Mesmo que tal acordo fosse válido, sempre se haveria de entender, na acção em que apenas se pede o cumprimento do mesmo – e não a declaração da sua invalidade ou a nulidade dos actos que o contrato previa –, que o exercício do correspondente direito é abusivo.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):
I – RELATÓRIO
1.1. J. D. intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra A. P., pedindo que seja declarado que entre o Autor e a Ré foi celebrado um contrato de mandato, bem como que desde a data da respectiva constituição foi o demandante o verdadeiro único sócio e gerente da sociedade comercial X – Têxteis Lar Unipessoal, Lda., com a consequente condenação da Ré a reconhecer esse direito e qualidade do Autor e a abster-se da prática de quaisquer actos que o turbem ou violem, assim como a entregar-lhe tudo o que recebeu em execução desse mandato, designadamente a devolver-lhe todo o capital social, bens, dinheiro e direitos que lhe pertençam no prazo de 15 dias contados do trânsito em julgado da decisão que vier a pôr cobro à presente acção.
Para fundamentar tal pretensão, alega ter sido sócio e gerente da sociedade J. P., Lda., para cujos quadros a Ré entrou em meados de 1995 com a qualidade profissional de chefe de confecção, sociedade essa declarada falida em 17.11.2002, tendo encerrado a respectiva actividade. O estabelecimento fabril da J. P., Lda. (trabalhadores – incluindo a Ré – máquinas, utensílios, produtos, stocks, fornecedores e clientes), foi transferido para a Y Têxteis, Lda., sociedade comercial da qual o Autor era igualmente sócio e gerente, tendo a Ré continuado a prestar o seu trabalho para tal sociedade, com a mesma categoria profissional e sob as ordens desta.
Mais alega que, como quer o Autor, quer a Y Têxteis, Lda., acumulassem dívidas avultadas à Segurança Social, «deixou de convir possuir bens e direitos registados em seu nome», sendo que o ISS chegou mesmo a penhorar as contas bancárias da sociedade, o que a impedia de receber os pagamentos dos seus clientes. Por esse motivo, criou a sociedade X – Têxteis Lar Unipessoal, Lda., para a qual transferiu todas as máquinas, utensílios, produtos, stocks, fornecedores, clientes e trabalhadores da Y Têxteis, Lda., os quais, por sua vez, já vinham do tempo da J. P., Lda., que, desta forma, continuou a desenvolver a mesma actividade nas mesmas instalações.
Alega ainda que por não lhe convir possuir bens e direitos registados em seu nome, ante as dívidas acumuladas, solicitou à Ré que declarasse no pacto social da X ser ela a respectiva sócia e gerente, com vista a «criar e manter a aparência, perante terceiros credoresdo A. e da Y Têxteis, Lda.; que a X – Têxteis Lar Unipessoal, Lda., era detida pela R. e não por aquele», sendo que quando lhe solicitasse, mormente quando a sua situação patrimonial estivesse regularizada, a Ré transmitir-lhe-ia gratuitamente todos o capital social, bens, dinheiro e direitos que pertencessem à dita X. Acrescenta que foi ele quem custeou a constituição do capital social da X, pagou a factura emitida pela Y Têxteis, Lda., à X pela transmissão dos bens da sociedade, contratou os trabalhadores, adquiriu máquinas, utensílios, produtos e matérias-primas, contactou fornecedores e clientes e determinou todos os destinos da empresa, limitando-se a demandada a ser funcionária da sociedade e a assinar a documentação que ele, demandante, lhe solicitava que assinasse, por forma a manter a aparência criada aquando da celebração do pacto social, obviando a que ele, demandante, fosse incomodado pelos credores.
Finalmente, alega que em Novembro de 2014, aproveitando-se da sua ausência na Guiné-Bissau, a Ré passou a arrogar-se “dona” da X, procedendo à alteração dos códigos de acesso online das contas bancárias da sociedade, não mais permitindo o acesso do Autor às instalações da empresa e comunicando a trabalhadores, fornecedores e clientes que doravante passariam a lidar com ela e não com ele, demandante, incumprido o acordado entre eles.
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A Ré contestou, impugnando no essencial a factualidade alegada na p.i.
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1.2. Realizada a audiência prévia, foi proferido saneador-sentença, a julgar improcedente a acção e, consequentemente, a absolver a Ré do pedido contra ela formulado.
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1.3. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
«a) Vem a presente apelação interposta da douta sentença de fls., que julgou a acção improcedente e em consequência absolveu a ré apelada do pedido; b) Entende o apelante que a decisão não está correcta, tendo a Meritíssima Juiz “a quo”, incorrido além do mais, em erro de julgamento e num erro de interpretação ou de determinação da norma aplicável ou de aplicação do direito e ainda negado a tutela da jurisdição efectiva; c) Como dos autos resulta, as questões a dirimir eram as seguintes: - da qualificação jurídica do contrato celebrado; - da validade do contrato alegadamente celebrado; - na afirmativa, da responsabilidade civil da R.; d) Perante a necessidade de dirimir tais questões, entendeu o tribunal “a quo”, erradamente, quanto à qualificação jurídica do contrato, que estava em causa um contrato de sociedade e não qualquer contrato de mandato (como alegado pelo A.); e) Na verdade, os factos alegados e que consubstanciam a causa de pedir, não integram quaisquer elementos atinentes a um qualquer contrato de sociedade entre as partes, pois o A. não se associou à R. ou constituiu com esta qualquer sociedade, com o objectivo de repartição de lucros; f) Antes é manifesto que o A./apelante conluiado com a R./apelada a incumbiu de constituir uma sociedade comercial, ou seja, a instou à prática de actos como a constituição da dita sociedade “X, Lda”, a assinatura de documentos para os Bancos, contratos de trabalho e outros, mas sempre por sua instrução, dado que ele não podia ter os bens em seu nome e dessa forma evitaria a actuação dos credores ante as dívidas existentes, sendo a R. sua “testa de ferro” na sociedade, que na realidade pertencia e era gerida pelo A.; g) Pelo que, a qualificação feita pelo tribunal “a quo” de que a situação se enquadra no domínio do contrato de sociedade não tem qualquer fundamento. Aliás, é facto que foi constituída uma sociedade comercial, mas o que importa ou que a título principal deve ser considerado é actuação feita, no caso, de que naquela sociedade constituída e por indicação do A., apesar de figurar a R./apelada como sua titular, na realidade, o seu titular é o apelante, atento o conluio feito entre as partes, com o intuito de enganar terceiros; h) E assim sendo, contrariamente ao entendimento perfilhado pelo tribunal “a quo”, o que se verificou foi a prática pela R. de diversos actos a mando do A., o que necessariamente, entre as partes, configura um mandato e não um qualquer contrato de sociedade; i) Pelo que, o tribunal “a quo” fez uma errada subsunção jurídica dos factos alegados. j) Mais se verifica que, no entendimento do tribunal “a quo”, a acção sempre deveria improceder, motivado pela existência de vinculação dos direitos subjectivos, assumindo preponderância nesta sede o controlo e garantia do exercício do direito subjectivo quando definido no artigo 334.º do C.C. – o instituto do abuso de direito. k) E em atenção a esta instituto que, o tribunal “a quo”, entendeu que mesmo considerando válido o acordo celebrado entre as partes, o mesmo constituía uma afronta aos princípios da ordem jurídica, ocorrendo um exercício abusivo de um direito e por consequência ilegítima a demanda efectuada pelo A./apelante e por isso, julgou a acção improcedente; l) A douta sentença proferida ao interpretar os artigos 227º nº 1, 334º e 762º nº 2 do CC nos termos em que fez, impedindo os simuladores de entre si discutirem e arguirem os actos simulatórios que praticaram ainda que fraudulentos e com o intuito de prejudicar terceiros, com a finalidade de o tribunal declarar uma determinada realidade jurídica e qualidade do A. (o verdadeiro e único sócio gerente da “X”), não só violou expressamente o artigo 242º, nº 1 do CC, como também o principio constitucional da tutela jurisdicional efectiva plasmado no artigo 20º da CRP; m) Com efeito, entre as partes nestes autos não se pode de alguma forma falar da existência de abuso de direito. Na verdade, tal como alegado, A. e R. conluiaram-se para a prática de todos aquele actos como a constituição da sociedade, com transferência de bens e créditos de clientes da antiga sociedade, evitando dessa forma a actuação dos credores; n) Pelo que, nunca a R. poderia ser absolvida do pedido, antes importava ao tribunal viabilizar ao A. a tutela do seu direito mediante a produção de prova dos factos alegados e a partir daí retirar as consequências devidas; o) Com efeito, ante a posição adoptada e decidida pelo tribunal “a quo”, a ser verdadeira e aplicável ao caso concreto, em face do alegado, irremediavelmente não seria possível intentar acções que visassem a declaração de existência de simulação em conformidade com o regime previsto nos artigos 240.º e ss do CC; p) Extrai-se dos factos alegados nos autos que o A. e a R. conluiaram-se e com o intuito de enganar terceiros, subtraindo destes o património do A. e da sociedade devedora – Y Têxteis, Lda, a R. actuando mediante instruções do A., servindo de sua “testa de ferro”, constituiu a sociedade comercial “X, Lda”, para onde passou o património daquela outra sociedade, tendo o A. financiado a sua constituição e funcionamento. Sendo certo que, apesar da constituição da sociedade comercial “X” em nome da R., esta era como foi sempre do A.. As partes apenas quiseram manter a aparência, perante terceiros credores do A. e da sociedade “Y, Lda”, que aquela “X, Lda” era da R., facto que não era verdadeiro. Assim, a R., a mando do A. declarou falsamente constituir a sociedade comercial “X, Lda”, sendo a sua única sócia gerente, mas na realidade, apenas pretendia criar as condições necessárias para que o A. pudesse desenvolver a actividade comercial e industrial, furtando a possibilidade dos credores “atacarem” o seu património. A R. não era nem nunca foi a titular efectiva da sociedade assim constituída, sempre actuando mediante instruções do A., sendo certo que, aquela não entrou com qualquer quantia para o capital social da sociedade nem para a aquisição dos meios de funcionamento, pois tudo foi financiado quer pelo A. quer pelo património da sociedade “Y, Lda”, da titularidade do A..; q) Perante o percurso de falta à verdade, e porque a R. decidiu subverter o que haviam combinado, porque beneficiava da titularidade de direito na dita sociedade, nenhum outro caminho restou ao A. que não fosse o de pedir a tutela do sistema jurídico, contando o que efectivamente se passou, repondo a verdade dos factos; r) A protecção que o sistema confere é a vertida no art. 242.º, nº 1 do Código Civil. s) Verifica-se, no caso dos autos, toda a situação de simulação, já que a R. em conluio com o A. fingiu realizar um determinado negócio quando, na realidade, apenas pretendia vincular-se juridicamente, actuando ficticiamente em representação do A., permitindo a este subtrair o património da actuação dos credores; t) In casu, ocorre além do mais uma simulação subjectiva, por interposição fictícia de pessoas, pois o real dono da sociedade “X, Lda”, fez intervir interposta pessoa, ou seja, a R., no contrato de sociedade, em seu lugar, a fim de subtrair o património à ação dos seus credores; u) Ora, sendo possível a tutela do sistema jurídico às situações de simulação, podendo a mesma ser arguida entre os próprios simuladores, é inegável que não podia o tribunal “a quo” negar e vedar ao A./apelante a mesma; v) Pelo que, sempre a acção deveria prosseguir aos seus trâmites, para a realização da prova do alegado nos autos, que uma vez provada a matéria alegada, importaria a procedência do pedido formulado pelo A. w) Face ao exposto, a sentença apelada violou, entre outros, o disposto nos art.s 240º, 242º, 334º, 1157º, 1161º, do Código Civil e art. 20º da CRP; x) Funda-se, ainda, o presente recurso no disposto nos artºs 607º, 615º nº 1 al. b), d), todos do CPC.
Termos em que deve a apelação ser julgada procedente e, em consequência, revogada a douta sentença apelada, ordenando, em consequência o prosseguimento dos autos, para produção de prova, com as legais consequências».
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A Ré apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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1.4. Questões a decidir
Em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso. Por outro lado, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, não podendo o tribunal ad quem analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes ao tribunal a quo. Em matéria de qualificação jurídica dos factos a Relação não está limitada pela iniciativa das partes - artigo 5º, nº 3, do CPC.
Neste enquadramento, importa decidir:
- Se o Tribunal a quo procedeu a uma errada qualificação jurídica do alegado contrato celebrado entre o Autor e a Ré e, na afirmativa, qual a sua relevância e repercussões;
- Se o entendimento do Tribunal a quo, segundo o qual, ainda que o acordo alegadamente celebrado entre o Autor e a Ré fosse válido, consubstanciaria uma situação de afronta aos princípios estruturantes da ordem jurídica, levando a um exercício abusivo do direito por parte do Autor e à ilegitimidade do direito invocado, viola o artigo 242º, nº 1, do Código Civil, porquanto impede as partes de arguirem a simulação;
- Se a sentença viola o princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva – artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
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II – FUNDAMENTOS
2.1. Fundamentos de facto
Os factos relevantes para a apreciação das apontadas questões são os descritos no relatório que antecede, bem como o que a seguir se indica por se encontrar documentalmente demonstrado: 2.1.1. A decisão recorrida, na parte relevante, tem o seguinte teor: «São questões a decidir: - da qualificação jurídica do contrato celebrado; - da validade do contrato alegadamente celebrado; - na afirmativa, da responsabilidade civil da R.. No presente caso, e ante a posição assumida pela R. na respectiva contestação, a matéria de facto nuclear relevante para a procedência do pedido formulado encontra-se controvertida. O certo é que, mesmo que lograsse a prova de toda essa factualidade, a presente acção não poderia deixar de improceder. Vejamos: O A. parece entender ter celebrado com a R. um contrato de mandato, sendo esse o fundamento do pedido formulado nos autos. (…) Bem é de ver que ante a descrição factual efectuada na p.i. não está em causa nos autos qualquer contrato de mandato, mormente de mandato sem representação. Aliás, veja-se que o A. não identifica quais foram os actos jurídicos que, no seu interesse, incumbiu a R. de praticar. Diga-se que no petitório o A. parece confundir os poderes de representação estatutária que o CSocCom confere aos gerentes de uma sociedade (e que se traduzem na prática dos actos referidos nos arts. 26.º a 30.º da p.i., com excepção daqueles referentes ao pagamento de despesas pessoais e ao quinhoar nos lucros da sociedade, e 32.º também do petitório) com os poderes de decisão do destino da sociedade (mormente de disposição da totalidade dos respectivos bens, transmissão de quotas, etc) e que apenas aos sócios pertence. S.m.o., a descrição efectuada na p.i. remete-nos para o domínio do contrato de sociedade. (…) Resulta da certidão junta aos autos a fls. 124ss que a X é uma sociedade por quotas cujo objecto social é (desde a sua criação) o fabrico, comércio, importação e exportação de têxteis lar, artigos de vestuário e acessórios de moda e de tecidos. Ante o disposto no art. 230.º §1.º CCom e art. 1.º/1 CSocCom é inegável que a X é uma sociedade comercial, e como tal sendo-lhe aplicáveis as disposições do CSocCom. Da referida certidão judicial resulta ainda que a X foi criada em 2011 como sociedade unipessoal por quotas, cuja única sócia era a aqui R., que assumiu simultaneamente a gerência da sociedade. Preceitua o art. 270.º-A/1 CSocCom que a sociedade unipessoal por quotas é constituída por um sócio único, pessoa singular ou colectiva, que é o titular da totalidade do capital social e a quem incumbe o exercício das competências das assembleias gerais, designadamente a nomeação de gerentes (art. 270.º-E/1 CSocCom). Ante o regime legal, a descrição efectuada na p.i. reconduz-se à (celebração de) um contrato de sociedade, contrato esse cujo fito, confessado nos arts. 11.º, 15.º e 17.º do petitório, foi o de subtrair o património pessoal do A. e o da sociedade Y Têxteis Lda. à actuação dos credores, ante as dívidas avultadas que ambos tinham para, pelo menos, com a Segurança Social (cfr. art. 7.º da p.i.) e que haviam inclusivamente originado a penhora das contas bancárias da dita sociedade (art. 8.º da p.i.). Ou seja, na versão do A., a X foi criada como veículo para a comissão de pelo menos dois crimes de frustração de créditos, p.e.p. pelo art. 88.º/1 RGIT1 - um praticado em nome próprio, outro em nome da Y Têxteis Lda., de que era sócio-gerente (cfr. certidão da conservatória do registo comercial junta aos autos a fls. 122ss). Ora, “É nulo o negócio contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes” (art. 280.º/2 CC), entendendo-se por ordem pública um conjunto de princípios e normas de carácter jurídico. Isto é assim porque um negócio jurídico tem de respeitar as exigências legais que foram estabelecidas para ele em atenção às suas funções. (…) Ou seja: nas situações abrangidas pelo art. 280.º/2 CC, as partes têm capacidade jurídica, os negócios pretendidos são abstractamente possíveis mas a ordem jurídica desaprova-os, seja pelo seu concreto conteúdo, seja pelo fim pretendido, seja pelas circunstâncias específicas em que são celebrados. Por isso, um negócio tanto pode ser nulo por ser directamente contrário à lei como pode ser nulo por fraude à lei, por, por via da sua celebração, se alcançar um resultado reprovado pelo direito. Ante o que o A. alega/confessa na p.i. sobre o motivo pelo qual foi criada a X (repete-se, a subtracção à actuação dos credores quer do seu património pessoal, quer do património da Y Têxteis Lda.), e que levou a que figurasse no pacto social da mesma como sócia e gerente a R., facilmente se conclui que independentemente da qualificação jurídica do acordo alegadamente celebrado entre as partes tal acordo será sempre nulo por ser contrário à ordem pública. Mas ainda que assim se não entendesse, qualificando-se como válido o acordo que o A. alega ter sido celebrado entre ele e a demandada, jamais a presente acção poderia proceder, pelos motivos abaixo explanados: A regra nuclear relativamente ao cumprimento das obrigações encontra-se plasmada no art. 406.º/1 CC, onde se preceitua que “O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos por lei.” Isto significa que “o cumprimento deve coincidir, ponto por ponto, em toda a linha, com a prestação a que o devedor se encontra adstrito.” Quando o devedor não realiza a prestação a que se encontra adstrito sem que entretanto se verifique qualquer (outra) causa extintiva da relação obrigacional, diz-se que há uma situação de incumprimento, podendo, então, o credor exigir judicialmente o seu cumprimento (cfr. art. 817.º CC). Mas, como bem nota Heinrich Ewald Hörster, os direitos subjectivos e o seu exercício não são garantidos sem limites. (…) Foi por estes motivos, ie., com vista a controlar, a garantir que o exercício do direito subjectivo por parte do seu titular é efectuado dentro do quadro do fim para o qual foi atribuído, que o legislador veio a consagrar no art. 334.º CC o instituto do abuso de direito. (…) Dadas as três hipóteses formuladas pelo art. 334.º CC (ultrapassagem dos limites impostos ou pela boa fé, ou pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do direito) Heinrich Ewald Hörster distingue entre abuso de direito institucional e abuso de direito individual. “Fala-se de um abuso institucional quando o direito subjectivo é invocado para fins que estão fora dos objectivos ou funções para os quais ele foi atribuído pela norma. (...) É característico para o abuso institucional que ele contraria, num sentido ou noutro, a ordem pública ou contradiz os princípios fundamentais da ordem jurídica, económica ou social ou desvirtua a função e os objectivos de um dado instituto jurídico. É esta a situação prevista pelo art. 334.º quando fala no «fim social ou económico» do direito. Este tipo de abuso de direito deve ser apreciado oficiosamente pelo tribunal, uma vez que lhe compete verificar os limites imanentes a um direito subjectivo que acaba de ser invocado, para poder decidir da justeza desta mesma inovação”.8 Como supra referido, ainda que se considere válido qualquer acordo celebrado entre A. e R., o certo é que permitir ao A. exigir da demandada o cumprimento da alegada contraprestação a que ela se vinculou corresponde a utilizar os tribunais para obtenção de um resultado manifestamente ilegal: recuperar um património que foi ilicitamente subtraído à actuação dos credores. Tal actuação afronta, objectiva e claramente, os princípios fundamentais da ordem jurídica, correspondendo, por isso, a um exercício abusivo de um direito que torna ilegítima a demanda ora efectuada. Consequentemente, também por esta via jamais poderia a presente acção proceder. Pelo exposto, o Tribunal decide julgar a presente improcedente e consequentemente absolve a R. do pedido contra ela formulado».
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2.2. Do objecto do recurso
2.2.1. Da qualificação jurídica do contrato e respectiva relevância
Na petição inicial o Autor pediu, sob a alínea a), que seja «declarado que entre o A. e a Ré foi celebrado o contrato de mandato supra descrito sob os artigos 15º a 18º».
E nesses quatro artigos alegou, concretamente, o seguinte:
«15.º Porém, face à descrita situação pessoal e patrimonial do A., não lhe convindo possuir bens e direitos registados em seu nome, o A. solicitou à Ré que, em proveito exclusivo daquele, declarasse no pacto de sociedade ser ela a sócia e gerente da sociedade comercial “X – Têxteis Lar Unipessoal, Lda.”; 16.º E, posteriormente, assinasse os contratos, requerimentos e títulos cambiários e quaisquer outros documentos que o A. lhe solicitasse e, bem assim, lhe prestasse contas sempre que o A. lhe exigisse; 17.º Tudo com vista a criar e manter a aparência, perante terceiros credores do A. e da “Y Têxteis, Lda.”, de que a “X – Têxteis Lar Unipessoal, Lda.” era detida pela R. e não por aquele; 18.º Sendo que, oportunamente, quando a situação patrimonial do A. estivesse normalizada, ou quando o A. o solicitasse, a Ré transmitir-lhe-ia, gratuitamente, todo capital social, bens, dinheiro e direitos que pertencessem à dita sociedade comercial».
Na sentença entendeu-se «que ante a descrição factual efectuada na p.i. não está em causa nos autos qualquer contrato de mandato, mormente de mandato sem representação», mas sim no «domínio do contrato de sociedade».
O Recorrente alega que «contrariamente ao entendimento perfilhado pelo tribunal “a quo”, o que se verificou foi a prática pela R. de diversos actos a mando do A., o que necessariamente, entre as partes, configura um mandato e não um qualquer contrato de sociedade». Na apelação parece sustentar que caso se conclua pela qualificação como contrato de mandato a solução jurídica será diferente da que consta do acto recorrido.
Porém, não é assim. O Tribunal a quo teve o cuidado de afirmar «que independentemente da qualificação jurídica do acordo alegadamente celebrado entre as partes tal acordo será sempre nulo por ser contrário à ordem pública».
Quer dizer, segundo o entendimento acolhido na sentença, qualifique-se o acordo entre Autor e Ré como contrato de mandato (2), contrato de sociedade, pacto simulatório, contrato atípico, negócio jurídico fiduciário (3), contrato misto ou qualquer outro, o mesmo será sempre nulo à luz do disposto no artigo 280º, nº 2, do Código Civil. Enfatiza-se apenas que parte não despicienda dos pactos simulatórios implicam a prática de actos de um dos contraentes no interesse do outro (é o caso, entre outros, da interposição fictícia de pessoas), sem que isso seja correntemente qualificado como mandato sem representação, assim como o acordo simulatório não é propriamente um contrato de sociedade. Também não se pode confundir o acordo com os actos de execução previstos naquele, nomeadamente a previsão da constituição de uma sociedade.
Portanto, a qualificação do acordo não é decisiva, mas sim o concreto conteúdo do mesmo, o seu objecto imediato, e a sua finalidade, tal como configurados na petição inicial.
Sendo a qualificação irrelevante não nos vamos deter na mesma, embora o alegado na petição inicial esteja mais próximo da figura do acordo prévio entre os simuladores (visando uma simulação por interposição de pessoa e um conjunto de actos complementares) do que do contrato de mandato, apesar de se reconhecer a dificuldade da sua delimitação.
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2.2.2. Da nulidade do contrato
A subsequente questão é esta: pode ser considerado válido um acordo celebrado entre duas pessoas com o objectivo de subtrair o património de um deles, bem como o de uma sociedade de que é sócio e gerente, à acção dos credores?
A resposta até quase um leigo em direito a alvitrava: não, não pode.
Salvo melhor entendimento, parece-nos perfeitamente clara a ilicitude do objecto (4), do conteúdo do contrato descrito na petição inicial, assim como da sua finalidade.
Um tal acordo, que contemplava a criação de uma sociedade, com interposição fictícia de pessoa, e todo um conjunto de actos tendentes a conseguir que o Autor passasse a não «possuir bens e direitos registados em seu nome» para não «ser “incomodado” pelos credores», desde logo, constitui uma verdadeira fraude à lei. Aliás, a criação de uma sociedade com o objectivo de frustrar a garantia patrimonial dos credores é precisamente um dos exemplos que é apontado como de fraude à lei (5). Opera-se uma manipulação da realidade fáctica e jurídica, através da criação ou conjugação artificial de factos ou situações jurídicas, para defraudar o direito aplicável. Há um acordo entre as partes para fugir a determinado quadro legal e, por via da sua celebração, alcança-se um resultado reprovado pelo direito.
A consequência do contrato em fraude à lei é a nulidade, porque o acto em fraude à lei deve ser equiparado ao acto contrário à lei ou porque a lei que proíbe um resultado também proíbe os meios de atingir esses resultados (6). Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (7), «é contrário à lei o negócio cuja realização material se não pode impedir, mas que a lei reprova, considerando-o ferido de nulidade».
Sendo, no apontado sentido, um negócio “contrário à lei”, desde logo seria nulo nos termos do disposto no artigo 280º, nº 1, do Código Civil. Essa contrariedade à lei é bem evidenciada na sentença, ao afirmar que, na «versão do A., a X foi criada como veículo para a comissão de pelo menos dois crimes de frustração de créditos, p. e. p. pelo art. 88.º/1 RGIT - um praticado em nome próprio, outro em nome da Y Têxteis Lda., de que era sócio-gerente». Na parte em que se evidencia que a sociedade foi criada “como veículo”, fica bem patente que o instituto mais próximo da fraude à lei é a simulação. Pode até coincidir fraude à lei e simulação, como é o caso da simulação para fraude à lei.
Mas, mesmo que o acordo celebrado não constituísse uma fraude à lei, sempre haveria de se entender, como se fez na sentença, que seria nulo por contrariar a ordem pública, entendida como o conjunto de princípios fundamentais imanentes ao ordenamento jurídico e formando as traves mestras em que se alicerça a ordem económica e social (8). Um acordo como o alegado pelo Autor é reprovado pela ordem jurídica por através da sua execução se alcançar um resultado censurável.
Há um conjunto de princípios gerais que regem o ordenamento jurídico, no sentido de conterem regras gerais que inspiram o direito positivo. E um dos princípios fundamentais é a actuação do sujeito com lealdade e boa fé na relação com os outros, pelo que atenta contra esse princípio quem celebre um contrato com vista a prejudicar directa, intencionalmente e deliberadamente terceiros, em proveito próprio. Aliás, basta pensar que a generalização de tal tipo de acordos é susceptível de pôr em causa a ordem pública, repugnam ao cidadão médio e são nefastos para a vida em sociedade – são verdadeiramente anti-sociais.
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2.2.3. Do abuso do direito
Já vimos que, dado o seu concreto conteúdo e finalidade, a qualificação jurídica do contrato era irrelevante e que o mesmo padece de vício que gera a sua nulidade. Mas o essencial nem sequer reside na qualificação jurídica do contrato ou na sua sustentada nulidade, mas em algo diverso, para o que vamos até pressupor que se trata de um verdadeiro contrato de mandato e que o mesmo é válido.
O problema reside em que o Autor pretende através desta acção obter o cumprimento do contrato.
E o cumprimento do contrato, no quadro factual alegado, mediante a demanda da Ré, consubstancia abuso do direito, tal como correctamente decidiu o Tribunal recorrido.
Nos termos do artigo 334º do Código Civil, «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito».
A lei deixou o instituto aberto à apreciação e preenchimento casuísticos, através da determinação do que sejam os limites da boa fé, dos costumes e do fim do direito. O mesmo se diga das consequências jurídicas do comprovado abuso do direito, cingindo-se a lei a apontar a ilegitimidade do exercício, ou seja, a sua ilicitude, pelo que cabe sempre ao tribunal determinar qual o efeito concreto do exercício abusivo.
Mas a ideia central do referido instituto é esta: verifica-se abuso do direito sempre que excedidos os limites impostos pela lei ao respectivo exercício.
Impõe o artigo 762º, nº 2, do Código Civil, que «no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé».
Pautar a conduta pela boa fé é agir com lisura, correcção e lealdade, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros, atento o sentido ético-objectivo que lhe é conferido pelo Código Civil.
Por outro lado, outra limitação ao exercício de um direito subjectivo é o fim social ou económico do direito. O direito é conferido para realizar um interesse e este tem de ser lícito, legítimo. Quando o interesse tutelado pelo direito não é aquele que é prosseguido pelo seu titular, está-se a defraudar a finalidade ou razão de ser para que foi criado o direito.
No caso vertente, o Autor não agiu de boa fé e, sobretudo, os pedidos formulados, em especial o da alínea d) da p.i. (restituição), não estão conformes com o fim social ou económico do direito.
É o próprio Autor que afirma na petição inicial que o contrato celebrado visou subtrair o seu património, bem como o da sociedade Y, à actuação dos credores. Depois, já em sede de recurso, alega que todos os actos, que estão na base do pedido de condenação da Ré na entrega de bens e quantia monetária, foram simulados, designadamente a constituição da sociedade comercial X.
Portanto, segundo o alegado na p.i., o Autor escondeu os bens de que era titular, bem como os titulados pela sociedade Y, com vista a subtraí-los à acção dos seus credores, que, com a ajuda e o acordo da Ré, transferiu para uma sociedade criada para o efeito, da qual a Ré era a única sócia, e agora pretende reavê-los.
E para reavê-los precisa da actuação dos Tribunais; não para declarar a eventual nulidade do contrato e respectivas consequências (ou a nulidade dos actos previstos no contrato, que o Recorrente agora alega serem todos simulados), mas sim para obter os efeitos do cumprimento do contrato. É isso que pretende: obter a contraprestação a que a Ré se vinculou.
No caso de ser deferida a sua pretensão, o Autor conseguiria concluir, realizando-o totalmente, o seu projectado esquema fraudulento, com o amparo ou aquiescência do Tribunal. A procedência da acção, através do cumprimento da contraprestação a que a Ré alegadamente se vinculou, traduziria uma inadmissível condescendência para com a instrumentalização do Tribunal para a obtenção de um resultado ilegal e violador de valores fundamentais do ordenamento jurídico (abuso do direito perpetrado através de acção judicial), que é o de recuperar o património ilicitamente subtraído à acção dos credores. Quer dizer, através do tribunal, o Autor conseguiria a realização coerciva da prestação e, em simultâneo, obteria uma legitimação da actuação censurável que lhe subjaz.
O direito subjectivo invocado (o direito a obter da Ré aquela concreta prestação em cumprimento do contrato celebrado), pressupondo que o mesmo existe, está ser exercido, nas circunstâncias concretas descritas, de forma ilícita, porque ofende valores que transcendem aquele direito, como é o caso do princípio da boa fé e do fim económico e social que justificaria a tutela do mesmo.
O exercício do direito contratual, por abusivo, neste concreto circunstancialismo, não pode ser reconhecido pela ordem jurídica, que o deve considerar suprimido.
Finalmente, embora sem influência na decisão do recurso, não pode deixar de se apontar uma flagrante incompatibilidade entre os pedidos b) e c) e o pedido d). Nos primeiros, o Autor pede que seja reconhecido como «o verdadeiro e único sócio e gerente da X – Têxteis Lar Unipessoal, Lda.» e que a Ré seja condenada a reconhecer aquele direito. Pelo segundo, o Autor pede que a Ré seja condenada a entregar-lhe tudo o que recebeu em execução ou no exercício deste, designadamente, a transmitir-lhe integralmente e gratuitamente «todo o capital social, bens, dinheiro e direitos que lhe pertençam».
Ora, se todos os referidos bens (em sentido amplo) foram integrados na sociedade criada, de duas, uma: ou o Autor é declarado como o único sócio, com os inerentes direitos sociais relativos ao património da sociedade, ou não é declarado sócio e então fica em aberto a possibilidade de restituição. Obter as duas pretensões em simultâneo é que se afigura inconciliável.
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2.2.4. Da tutela efectiva
Vamos tratar em simultâneo as questões da violação do artigo 242º, nº 1, do Código Civil, e da violação do «princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva plasmado no artigo 20º da CRP», uma vez que o respectivo enquadramento jurídico tem pontos comuns ou interrelacionados.
No artigo 242º, nº 1, do Código Civil estabelece-se que «a nulidade do negócio simulado pode ser arguida pelos próprios simuladores entre si, ainda que a simulação seja fraudulenta.
Por sua vez, dispõe o artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) que «a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos».
O direito à tutela jurisdicional efectiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20º, nº 1, da CRP, implica o «direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras» (9).
A tese do Recorrente é esta: o Tribunal recorrido, ao julgar a acção improcedente, com os concretos fundamentos que invoca, impede «os simuladores de entre si discutirem e arguirem os actos simulatórios que praticaram ainda que fraudulentos e com o intuito de prejudicar terceiros». Daí a violação do artigo 242º, nº 1, do Código Civil e do princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva.
As conclusões referentes a estas duas questões são manifestamente improcedentes.
Em primeiro lugar, nunca, antes da apresentação das alegações ora em apreciação, o Autor suscitou por qualquer modo a questão da simulação de algum negócio jurídico ou a inerente nulidade. É, por isso, uma questão nova que suscita pela primeira vez e só no recurso. Como já anteriormente salientamos (em 1.4.), os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido, não podendo o tribunal ad quem analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes ao tribunal a quo.
Em segundo lugar, nenhuma das suas pretensões se alicerça, directa ou remotamente, na invalidade do alegado contrato de mandato, designadamente na nulidade por simulação.
Todas as pretensões que deduziu se baseiam numa situação de alegado incumprimento do contrato por parte da Ré, pelo que exige na acção o seu cumprimento (artigo 817º do Código Civil).
É no mínimo inconcludente imputar ao Tribunal recorrido que impediu «os simuladores de entre si discutirem e arguirem os actos simulatórios que praticaram», quando nenhuma das partes suscitou tal discussão pelos meios que tinham ao seu dispor. Trata-se de questão que não foi sequer suscitada perante a primeira instância.
Portanto, a realidade dos autos é que o Tribunal a quo não impediu as partes de discutirem essa matéria, a qual nunca introduziram no processo.
Só por aqui já se demonstra que inexiste a apontada violação tanto do preceito civil como do princípio constitucional invocados.
Mas ainda existe mais um argumento para desmontar a apontada tese.
Com efeito, em terceiro lugar, o Autor não está impedido de em nova acção invocar a simulação dos actos ou negócios jurídicos que bem entender, formulando em consonância as respectivas pretensões.
Nesta acção discutiu-se o cumprimento de um determinado acordoe não a invalidade dos actos de execução previstos naquele, nomeadamente o acto de constituição da sociedade comercial X. Se isso não foi objecto deste processo nenhum impedimento existe a que se discuta a invalidade por simulação.
O Tribunal a quo apenas apreciou a pretensão alicerçada no cumprimento de determinado contrato e não dos actos executivos futuros previstos neste.
Acresce que o direito à tutela jurisdicional efectiva não se confunde com um pretenso direito a obter vencimento na pretensão ou oposição que se deduz, independentemente do cumprimento dos ónus e regras que regulam o caso. Também não se reconduz a um pretenso direito à apreciação de questões que as partes não suscitam no processo e que não constituem o objecto deste, designadamente por nenhum pedido se ter deduzido sobre essa matéria ou que pressuponha a sua discussão.
Pelo exposto, a decisão da primeira instância e o entendimento que lhe subjaz não viola o direito fundamental previsto no artigo 20º, nº 1, da Constituição, nem quaisquer preceitos civis ou princípios constitucionalmente consagrados.
Termos em que improcede a apelação.
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2.4. Sumário
1 – É inválido um acordo celebrado entre duas pessoas com o objectivo de subtrair o património de um deles, bem como o de uma sociedade de que é sócio e gerente, à acção dos credores, e que contemplava a criação de uma sociedade, com interposição fictícia de pessoa, e todo um conjunto de actos tendentes a conseguir que um dos contraentes passasse a não «possuir bens e direitos registados em seu nome» para não «ser “incomodado” pelos credores»; 2 – Mesmo que tal acordo fosse válido, sempre se haveria de entender, na acção em que apenas se pede o cumprimento do mesmo – e não a declaração da sua invalidade ou a nulidade dos actos que o contrato previa –, que o exercício do correspondente direito é abusivo.
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III – DECISÃO
Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)
1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. O que está alegado nos artigos 15º a 18º não revela qualquer acordo, pois dos mesmos não consta qualquer vontade manifestada pela Ré. Só noutros artigos da petição inicial consta a aceitação da Ré, com o consequente recorte contratual.
3. Os negócios jurídicos fiduciários também podem servir para, em fraude, contornar proibições ou limitações a actos.
4. O complexo de prestações a que se vinculam os contraentes ou cada um deles de per si.
5. Neste sentido, Carlos Ferreira de Almeida, Contratos V, Almedina, pág. 192.
6. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Parte Geral.Negócio jurídico, 4ª edição, págs. 575 e 580. Se da interpretação de uma norma imperativa resultar que ela proíbe não só os negócios que especificamente visou, mas também quaisquer outros que conduzam ao mesmo resultado ou a um resultado equivalente, a proibição abrange também estes negócios – Carlos Ferreira de Almeida, ob. cit., pág. 190.
7. Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 258.
8. Baptista Machado, Revista de Legislação e Jurisprudência, 120º, pág. 62.
9. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 86/88, 157/2008, 530/2008, 853/2014, 178/2016 e 353/2017, entre muitos outros que transcrevem o apontado excerto que constitui jurisprudência pacífica daquele Tribunal, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt