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LEGÍTIMA DEFESA
LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA
Sumário
A legitimidade da defesa tem de aferir-se em função de um critério de adequação.
Texto Integral
Acordam em audiência no Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO:
Por acórdão proferido nos autos de processo comum nº …../04.4GDVNG, da ….ª Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, foi julgada improcedente a acusação deduzida contra o arguido B……. e, consequentemente, foi este absolvido do crime de homicídio de que estava acusado.
Foi ainda julgado improcedente o pedido de indemnização civil formulado pela assistente e o arguido dele foi absolvido.
Inconformada, a assistente interpôs recurso, retirando da respectiva motivação as seguintes conclusões:
1 - Não se conforma a recorrente com a qualificação jurídica conferido aos factos,
2 - porquanto as contradições verificados no Acórdão recorrido são um indício incontestável da imperfeita convicção do Tribunal.
3 - Entende a recorrente que o meio utilizado pelo arguido não foi o meio necessário, racional, único e adequado à defesa;
4 - Pelo que não se verifica, assim, a legítima defesa como causa excludente da ilicitude - art. 32º do C.P.
5 - Motivo pelo qual deve o arguido ser condenado no crime de homicídio, previsto e punido pelo art. 131º do C.P.,
6 - assim como no pedido de indemnização civil por danos não patrimoniais requerido pela assistente, aqui recorrente, no valor global de 50.000,00 €, sob pena de se verificar o abuso do direito - art. 334º do C.C.
7 - Sem prescindir, e a aferir-se a verificação dos pressupostos da legítima defesa, entende a recorrente ter sido excessivo e desproporcional o meio empregue pelo arguido,
8 - pelo que deve o arguido ser condenado, nos termos do art. 33º, nº 1 do C.P., por excesso intensivo de legítima defesa, bem como a indemnizar a recorrente, pelos danos não patrimoniais provocados na vítima e na assistente aqui recorrente, no valor global de 50.000,00 € .
O arguido respondeu, pugnando pela improcedência do recurso e pela condenação da recorrente como litigante de má fé.
Na sua resposta, o Exmº Procurador Adjunto pugnou pela improcedência do recurso.
Nesta instância, o Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se também pela improcedência do recuurso.
Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a audiência.
Segundo a jurisprudência corrente dos tribunais superiores, o âmbito do recurso afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido.
No caso vertente, as questões a decidir são as seguintes:
- Contradição entre a fundamentação e a decisão;
- Erro de direito na qualificação jurídica dos factos;
- Necessária procedência do pedido de indemnização civil, sob pena de verificação de abuso de direito.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO:
No acórdão recorrido tiveram-se como provados os seguintes factos:
a) No dia 14 de Janeiro de 2004, pelas 23 horas, o arguido encontrava-se a dormir no quarto, onde igualmente dorme a sua mãe, nas traseiras da mercearia situada no r/c de uma residência, na Rua ……., n.º…./…., em ……, Vila Nova de Gaia, quando foi acordado pela progenitora por esta ter pressentido barulho de alguém no exterior a mexer na janela do quarto que dista para o quintal.
b) Pensando que estava prestes a ser vítima de um assalto, o arguido logo se muniu de uma arma caçadeira, da marca Félix Sarasqueta, de 12 mm, com dois canos sobrepostos, n.° T4387, para a qual tem Autorização Permanente de detenção na habitação, devidamente Manifestada e Registada, que se encontrava junto a um móvel do quarto.
c) Municiou-a com dois cartuchos, que retirou da cartucheira que também estava guardada no dito móvel, e, sem acender as luzes, percorreu as divisões da casa.
d) Chegado à “loja do vinho”, o arguido verificou que, apesar de a grade exterior da janela estar intacta, a janela estava aberta, não obstante o arguido a ter fechado antes.
e) O arguido dirigiu-se, depois, à cozinha, que igualmente se situa no piso térreo, abriu uma janela e, através dela, efectuou dois disparos para o ar, com o propósito de afugentar os intrusos.
f) Disparos esses que foram audíveis na vizinhança da residência.
g) De seguida, sempre sem acender qualquer luz, voltou a carregar a caçadeira com dois cartuchos, retirados da cartucheira que trazia atravessada ao peito.
h) Nesse instante, a sua mãe ouviu barulhos vindos da janela do quarto de dormir e apercebeu-se de que a grade exterior da janela não estava intacta, tendo começado a gritar, dizendo “eles estão a entrar”.
i) Ouvindo os gritos da mãe, o arguido regressou ao quarto de dormir e, detendo-se junto da porta do quarto, de frente para a janela e, porque continuasse a ouvir movimentos vindos do exterior da janela, efectuou dois disparos na direcção de onde provinha o ruído e a uma distância de cerca de dois metros.
j) A actuação do arguido referida em i) foi desenrolada num estado de pânico e medo, em que o arguido desconhecia qual a quantidade e qualidade dos potenciais agressores, bem como quais as suas reais intenções, tendo receado pela sua integridade física e pela sua vida e pelas de sua mãe, bem como pela invasão do seu domicílio e pela subtracção dos seus bens.
k) Com a conduta referida em i) o arguido quis defender a sua vida e integridade física e as de sua mãe, bem como defender o seu domicílio e os seus bens.
l) Os disparos referidos em i), depois de partirem parte do vidro da janela, vieram atingir C…… no peito e na perna direita.
m) Nessa altura, o C…… encontrava-se junto à janela pela parte de fora a tentar arrombá-la mediante o uso de uma serra em ferro e de uma lima de unhas em forma de lâmina, cuja grade que a protegia tinha estroncado.
n) Em resultado dos disparos, o C……. sofreu as lesões traumáticas torácicas, descritas no relatório de autópsia de fls. 112 e segs., cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, nomeadamente, múltiplas lesões pérfuro-contusas com medidas variadas de 0,5 a l cm de diâmetro, na região anterior e mediana do tórax; outras com a forma ligeiramente elíptica com a dimensão de 3,5 por 2,5 cm e ainda outras lesões pérfuro-contusas medindo 2,5 por 1,5 cm na face lateral do hemitórax direito, ligeiramente abaixo da linha axilar anterior e ao nível da linha transversal do mamilo que teve a sua entrada na face póstero-lateral do terço médio do braço direito, tendo sido estas últimas lesões traumáticas que lhe provocaram a morte, e que resultaram de um “projéctil único” que dentro da caixa torácica se deslocou da direita para a esquerda, de cima para baixo e de diante para trás.
o) O sangue e a urina do C……. tinham a presença de cocaína.
p) O C……. ia a ouvir música com auscultadores que trazia colocados nas orelhas.
q) O C……. pretendia, com a sua conduta supra referida, entrar na habitação do arguido e apropriar-se dos bens que ali encontrasse e lhe interessassem.
r) O arguido previu a possibilidade de, por detrás da janela, se encontrar uma pessoa e que ao proceder aos disparos em sua direcção nos termos supra descritos a podia atingir e matar, tendo-se conformando com a eventualidade de suceder este resultado.
s) O arguido actuou livre, consciente e voluntariamente.
t) O arguido não sofreu qualquer condenação em sede criminal.
u) O arguido tem o 12º ano e um curso técnico de aplicações laser;
v) Trabalha na mercearia da mãe, retirando o rendimento em comum com a sua mãe.
w) O C……. tinha idade aproximada de 33 anos;
x) Era filho da assistente e com ela residia;
y) A assistente pagou à Funerária D……., Lda. a quantia de euro 1.505,00, pelas despesas do funeral do Paulo Sérgio,
z) Quantia esta que lhe foi reembolsada pelo Instituto de Segurança Social.
aa) Com a morte do C……, a assistente sofreu tristeza e desgosto.
bb) O C……. era toxicodependente.
cc) E era conhecido no meio policial e social por praticar crimes nomeadamente contra o património.
Relativamente ao não provado, consignou-se no acórdão recorrido o seguinte:
Nada mais se provou, designadamente que:
a) O arguido agiu com o propósito de tirar a vida ao indivíduo que se encontrasse por detrás da janela.
A convicção do tribunal recorrido relativamente à matéria de facto foi fundamentada nos seguintes termos:
O tribunal formou a sua convicção, quantos aos factos provados relativos à actuação objectiva do arguido, na confissão integral deste, conjugada com as declarações coincidentes da testemunha E……., que é a mãe do arguido e estava no local na altura dos factos, e bem assim, especificamente quanto à existência de dois momentos em que foram disparados tiros, com as declarações das testemunhas F……. e G……, que são, respectivamente, cunhada e irmão do arguido e vizinhos deste, e com as declarações da testemunha H…….., que é vizinha do arguido, tendo estas três testemunhas, em especial a testemunha H……, ouvido, em dois momentos espaçados, ruídos que, para elas, pareceram tiros; o tribunal atendeu ainda às fotografias de fls. 12 a 13 e 17 a 20, que mostram a configuração da casa do arguido, bem como ao auto de reconstituição de fls. 25 a 32 – conjugado com as declarações do arguido e com os juízos de experiência comum - e ao auto de apreensão de fls. 34 a 36, respeitante à arma e aos cartuchos deflagrados e não deflagrados.
Quanto aos factos provados relativos à actuação do falecido C……. (em especial os referidos sob as alíneas m) e p), o tribunal formou a sua convicção com base nas declarações das testemunhas I……, J……., que foi o guarda da GNR que tomou conta da ocorrência, H……., e L……., que é inspector da Polícia Judiciária, as quais se deslocaram ao local onde se encontrava o corpo do C……, tendo reparado que a grade exterior da janela se encontrava meio desfeita, bem como que junto ao corpo se encontrava um ferro. Para este efeito, atendeu-se ainda à fotografia de fls. 14, na qual se verifica o C…… com os auscultadores nas orelhas, e à fotografia de fls. 21, que representa os objectos encontrados junto ao corpo do C……. .
Quanto aos factos relativos ao foro subjectivo do arguido, o tribunal formou a sua convicção com base nos meios de prova que suportaram a decisão quanto à actuação objectiva do arguido, conjugada com os juízos de experiência comum, tendo presente, por um lado, o desenrolar (rápido) dos factos e, por outro, a personalidade do arguido, revelada, essencialmente, pelo próprio arguido e pelo depoimento da referida testemunha I…….., de cujo depoimento se apurou que o arguido é uma pessoa calma e pacífica, até avesso a armas. Tudo devidamente conjugado, o tribunal não ficou convencido de que o arguido quisesse matar alguém, mas tão só que o arguido previu essa possibilidade e com ela se conformou, previsão essa que nos é indicada, quanto mais não seja, pelos juízos de experiência comum, uma vez que, qualquer pessoa (imputável) que dispare tiros de caçadeira contra uma janela junto da qual se ouvem ruídos de arrombamento sabe, necessariamente, que, se estiver alguém por detrás dessa janela, a morte dela é uma consequência bastante provável. No entanto, apesar de o arguido ter configurado a possibilidade de matar e de o ter feito, o tribunal não ficou convencido de que o arguido tivesse querido matar ou que tivesse configurado a morte de outrem como o resultado necessário da sua conduta, tendo em conta o já supra referido e bem assim que o arguido, não obstante ter ouvido ruídos de arrombamento da grade exterior da janela do quarto, não se apercebeu com precisão se, efectivamente, estava alguém por detrás da janela, uma vez que, além de o local, do lado exterior, não ter iluminação adequada a, sem proximidade, se ver mais do que vultos – conforme resultou das declarações do arguido e, em geral, do depoimento das referidas testemunhas J…….., H…….. e L…… -, entre o arguido e o falecido C……. existiam obstáculos que impediam a visão, como seja a janela com vidro translúcido e uma cortina de renda - conforme resultou das declarações do arguido e se mostra pelas fotografias de fls. 12, 17, 30 e 31. Além disso, a prova produzida foi apta a convencer o tribunal de que o arguido quis apenas defender-se da conduta de quem a situação revelava que se preparava para entrar em sua casa, tendo presente que o arguido não conhecia a intenção integral do “agressor”, nem sabia qual a dimensão da agressão, quer em termos de qualidade da mesma, quer em termos de quantidade dos efectivos ou potenciais agressores. Na verdade, a situação objectiva configurada - nomeadamente tendo em conta que os factos ocorreram à noite; que o arguido se encontrava sozinho com a sua mãe; que o arguido efectuou dois disparos para o ar, com o objectivo de afastar os eventuais “agressores”, e ainda assim verificou que continuavam a tentar arrombar a janela; que a sua mãe gritou que os eventuais agressores estavam quase a entrar - é susceptível de provocar, em qualquer pessoa normal, um estado de pânico e medo, bem como o receio pela sua vida e pela de quem o acompanha. De facto, depois de se dar dois tiros de caçadeira para o ar, o que normalmente se espera é que os potenciais agressores dispersem; se não dispersarem, é perfeitamente legítimo que se conclua, por um lado, que os agressores estão em vantagem, ou em termos de indivíduos e/ou em termos de armamento, e, por outro lado, que a intenção do(s) agressor(s) é alcançar o seu objectivo, independentemente de os meios implicarem ofensa à vida ou integridade física de outrem. Por tudo isto, o tribunal ficou convencido de que o arguido actuou apenas com a intenção de se defender a si e à sua mãe, e ao seu património, tendo actuado sob o efeito de medo e pânico, provocado essencialmente pelo estado de surpresa e desconhecimento da amplitude da agressão iminente.
Quanto aos factos provados relativos às lesões do C……, o tribunal atendeu ao relatório da autópsia de fls. 112 a 122.
Quanto às condições pessoais do arguido e aos seus antecedentes criminais, o tribunal atendeu às declarações do próprio arguido e ao CRC de fls. 77.
Quanto aos factos relativos às condições pessoais do C……, o tribunal atendeu ao relatório de autópsia de fls. 112 a 122, que revela uma idade aproximada de 33 anos, bem como revela a existência de substâncias estupefacientes no sangue e na urina; nas declarações da testemunha M……., que era irmão daquele e filho da assistente, que afirmou que o irmão era toxicodependente e vivia com a sua mãe; nas declarações da testemunha N…….., que é reformado da GNR, e declarou conhecer o C……. como ligado à prática de furtos e outros crimes, conjugada com a ficha biográfica da Polícia Judiciária de fls. 42.
Quanto ao pagamento e reembolso das despesas de funeral do C……. o tribunal formou a sua convicção com base nos documentos e fls. 179 e 262.
Quanto aos factos provados relativos ao sofrimento da assistente, o tribunal formou a sua convicção com base no depoimento da testemunha M……., conjugado com os juízos de experiência comum, tendo em conta que o falecido era filho da assistente e com ela vivia.
O facto não provado deveu-se à circunstância de não ter sido produzida prova da sua veracidade, sendo certo que, conforme já supra fundamentado, não se demonstrou que o arguido quisesse matar, mas tão só que previu essa possibilidade.
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Resulta da motivação do recurso que a recorrente pretende impugnar a matéria de facto que se teve como provada.
Como é sabido, desde que não tenha havido renúncia ao recurso em matéria de facto - o que sucederá, nomeadamente, nos casos previstos no art. 428º, nº 2, do Código de Processo Penal (código a que se reportam todas as demais disposições legais citadas sem menção do diploma de origem) - o recorrente pode sindicar esse erro, desencadeando a reapreciação dos meios de prova constantes dos autos, nos termos previstos no nº 3 do art. 412º, com vista à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso.
Nos termos desse dispositivo legal, pretendendo impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
Por seu turno, o nº 4 do mesmo artigo acrescenta que quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
Esta redacção do art. 412º resulta de significativas alterações introduzidas no texto original pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, alterando e complementando o texto do nº 3, que foi desdobrado em alíneas, com pormenorizada especificação dos ónus que recaem sobre o recorrente quando impugne a decisão relativa à matéria de facto, com aditamento, ainda, dos nºs 3 e 4, sem correspondência na redacção anterior.
As exigências mais rigorosas da nova lei só podem ter um sentido útil, não traduzindo mero capricho do legislador ou apego atávico a razões de estilo ou de forma, particularmente num momento em que se vem apontando como imprescindível ao combate da tão propalada crise da justiça e da morosidade processual a necessidade de agilizar as leis de processo.
Exige-se agora que, quando impugne a matéria de facto, o recorrente, sustentando que um determinado ponto de facto foi incorrectamente julgado, o indique expressamente, mencionado a prova que confirma a sua posição; e tratando-se de depoimento gravado, que indique também, por referência ao correspondente suporte técnico, o segmento onde se encontram os elementos que impõem decisão diversa da recorrida [Cfr. Ac. da Relação do Porto, de 19/01/2000, C.J., ano XXV, tomo 1, págs. 235/236].
Este regime tem, aliás, uma óbvia razão de ser. Pretende-se evitar que quando impugne a matéria de facto, o recorrente reduza a a sua impugnação a considerandos de ordem genérica sobre a credibilidade dos depoimentos gravados, responsabilizando-o pela indicação precisa dos elementos que impõem uma decisão diversa da recorrida, racionalizando simultâneamente a actividade do tribunal superior.
Manifestamente, a recorrente não deu cumprimento ao disposto nos nºs 3 e 4 do citado art. 412º, especificando as provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas, por referência aos suportes técnicos, antes se limitando a questionar, à luz da sua valoração pessoal, a prova produzida em audiência.
Conforme resulta do confronto da redacção dos nºs 2 e 3 do citado art. 412º, contráriamente ao que sucede com a falta das especificações que devem constar das conclusões, a omissão das especificações previstas no nº 3 nos termos legalmente previstos, isto é, por referência aos suportes técnicos, não implica a rejeição do recurso.
Tal omissão tem, no entanto, uma consequência: impede o tribunal de recurso de modificar a decisão proferida relativamente à matéria de facto. É esta, de resto, a interpretação que, na harmonia do sistema, há-de fazer-se da conjugação das normas constantes do art. 412º em confronto com o que dispõe a al. b) do art. 431º.
Fica em aberto a possibilidade de conhecer da matéria de facto nos estreitos limites previstos no art. 410º, nº 2.
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Sustenta a recorrente verificar-se, no caso, contradição entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto, vício enquadrável na al. b) do nº 2 do art. 410º.
Conforme expressamente resulta do texto do nº 2 do citado art. 410º, os vícios referidos nas respectivas alíneas a) a c) apenas se poderão ter por verificados se resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
O vício referido na al. b) - contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão - revela-se através de uma incoerência, evidenciada por uma relação de incompatibilidade ou conflitualidade entre dois ou mais factos ou premissas inconciliáveis, em termos tais que a afirmação de um ou uns implique necessariamente a negação do outro ou outros, e reciprocamente. Verifica-se, nomeadamente, nos casos em que seja de concluir logicamente que a fundamentação aponta para uma decisão oposta à que veio a ser adoptada.
Revertendo para a decisão recorrida e apreciada esta à luz das considerações que antecedem, o respectivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, não evidencia qualquer dos vícios referidos nas alíneas do nº 2 do art. 410º. Os factos dados como provados constituem suporte bastante para a decisão adoptada, não se vislumbra qualquer incompatibilidade entre os factos provados e não provados ou entre a fundamentação e a decisão e não é perceptível qualquer erro grosseiro e ostensivo na apreciação da prova.
No fundo, a recorrente limita-se a fazer a sua interpretação e valoração pessoal dos depoimentos prestados e da credibilidade que devem merecer uns e outros, exercício que no entanto é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova, sendo certo que o texto da decisão não evidencia qualquer violação das regras da experiência comum.
Nesta medida, a matéria de facto há-de considerar-se definitivamente assente.
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Vejamos de seguida se o tribunal recorrido errou ao qualificar a actuação do arguido como legítima defesa:
Estatui o art. 32º do Código Penal que “constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses jurídicamente protegidos do agente ou de terceiro”.
Constitui, pois, pressuposto da defesa legítima a verificação de uma agressão actual e ilícita de um interesse jurídicamente tutelado do agente ou de terceiro, sendo comummente aceite que a defesa só é legítima se se revelar como modo indispensável de salvaguarda do interesse ofendido. E assim sendo, há-de afirmar-se, por um lado, como defesa contra agressão actual ou iminente - o que supõe que esteja a ser atingido, ou em vias de o ser, o interesse juridicamente protegido - e há-de verificar-se uma correspondência entre a agressão e o meio entregue para a repelir.
Revertendo à decisão em análise, diremos que no caso se verificam sem margem para dúvida os pressupostos da legítima defesa. Basta atentar na matéria de facto que se teve como provada e da qual resulta claramente:
- Que o arguido se encontrava sózinho com a sua mãe, em casa e durante a noite;
- Que a mãe o acorda, após ouvir ruídos indicadores de que estava em curso uma tentativa de introdução no local onde se encontravam;
- Que o arguido verifica ter sido aberta uma janela que ele próprio havia fechado;
- E que de seguida dispara dois tiros para o ar, através da janela da cozinha, com o intuito de afugentar os intrusos.
Ensina a experiência comum que esta actuação - tiros disparados de dentro de uma habitação - é idónea para afugentar alguém que ilegitimamente se procure introduzir num espaço habitacional ou comercial pertencente a outrem, porquanto independentemente dos seus intuitos o potencial intruso aperceber-se-á de que ali se encontra alguém disposto a resistir e que tem meios para o fazer de modo eficaz, na medida em que dispõe de uma arma de fogo.
Não obstante, no caso em apreço, apesar dos tiros disparados para o ar pelo arguido, a tentativa de intrusão prosseguiu.
Ora, aquilo que legitimamente poderá supor alguém que se encontra numa casa fechada, que acabou de disparar dois tiros para o ar, para o exterior da casa, através de uma janela, visando afugentar potenciais intrusos e que se vê, apesar disso, confrontado com a persistência da tentativa de intrusão, é que o potencial intruso não se atemorizou com os tiros, evidenciando indiferença ou desprezo por aquela actuação supostamente intimidatória. E numa época como aquela que atravessamos, em que a criminalidade se afirma com grande violência e em que os meios de comunicação social divulgam com uma persistência quase mórbida a ocorrência de crimes de sangue, é perfeitamente compreensível que o arguido, confrontado com esta insistência por parte do ou dos agressores - desconhecia quantos eram e quais os seus intentos - tivesse entrado em pânico, como se demonstrou, temendo pela sua vida e pela da sua mãe. Deste modo, como bem se observa no acórdão recorrido, não pode deixar de considerar-se que o arguido utilizou os meios necessários para afastar a agressão, não lhe sendo exigível, depois de já ter efectuado dois disparos para o ar, que utilizasse outros meios de defesa, suportando riscos para si e para a sua mãe, aguardando pelo esclarecimento global da situação, nomeadamente, pela entrada dos intrusos no interior da casa para então reagir, pois que nessa altura poderia ser tarde demais.
É verdade que o juízo de prognose relativo à adequação dos meios utilizados à intensidade da agressão assenta num pressuposto erróneo, mas que o arguido não conhecia nem podia conhecer. De todo o modo, se a percepção do arguido foi, no caso, errada, não foi desajustada, face à situação concreta que se lhe deparava, pois seria para ele inimaginável que o C……. estivesse a ouvir música com os auscultadores que trazia colocados nas orelhas, o que porventura o terá impedido de ouvir os disparos que previamente efectuou com intuito intimidatório.
Estamos, pois, perante caso manifesto de legítima defesa putativa.
Como corolário da atípica situação fáctica que se descreveu, há que retirar necessariamente duas conclusões:
- Por um lado, porque se verifica uma agressão actual e ilícita a interesses juridicamente tutelados do arguido e da sua mãe, perante a impossibilidade de recurso em tempo útil à força pública, é legítima a adopção de uma atitude de defesa desses interesses por parte do arguido;
- E por outro lado, porque a percepção que o arguido teve da realidade envolvente era uma percepção ajustada aos factos que conhecia e podia conhecer (e só a estes, porque não lhe era exigível que considerasse, sequer, a hipótese inimaginável de o intruso não se ter intimidado com os tiros por estar tranquilamente a ouvir música com auscultadores enquanto estroncava a grade da janela) e justificava o único meio de defesa eficaz encontrado (novos disparos, desta feita, em direcção ao local de onde provinha o ruído), nem sequer se poderá falar em defesa excessiva, porque a legitimidade da defesa tem que ser aferida em função de um critério de adequação. Só haverá excesso se houver desadequação, e esta tem que partir da exigibilidade de um comportamento distinto, exigibilidade que não se verifica quando o agente legitimamente supõe, por força de causas exógenas imputáveis ao próprio agressor, que a agressão em curso tem uma gravidade muito superior e envolve para si riscos muito mais elevados do que aqueles que afinal verdadeiramente encerra [No sentido de que “a necessidade da defesa tem de ajuizar-se segundo o conjunto de circunstâncias em que se verifica a agressão e, em particular, na base da necessidade desta, da perigosidade do agressor e da sua forma de actuar, bem como dos meios de que se dispõe para a defesa, e deve aferir-se objectivamente, ou seja, segundo o exame das circunstâncias feito por um homem médio colocado na situação do agredido”, veja-se o Ac. da Relação do Porto, de 02-10-2002, in www.dgsi.pt, Documento nº RP200210020241189]
Posto isto, apreciemos a última questão suscitada em sede de recurso, qual seja, a de saber se o pedido de indemnização civil deveria, apesar de tudo, ter procedido.
A resposta só poderá ser negativa. A actuação do arguido encontra justificação na legítima defesa, cujos pressupostos estão integralmente preenchidos, com a consequente exclusão da ilicitude da sua conduta (cfr. art. 32º, nº 2, al. a), do Código Penal), pelo que este não pode ser condenado em indemnização fundada na prática de um crime, havendo que afastar também a responsabilidade civil, mesmo a consequente ao erro sobre os pressupostos da legítima defesa, na medida em que para efeitos indemnizatórios a legítima defesa putativa é equiparada à legítima defesa real quando o erro seja desculpável (cfr. art. 338º do Código Civil). Com efeito, não se verifica o requisito da violação ilícita de um direito de outrém, pressuposto essencial do direito à indemnização (art. 483º, nº 1, do Código Civil), nem estamos perante um dos casos excepcionais de obrigação de indemnizar independentemente de culpa (nº 2 do mesmo artigo) [Cfr. Ac. do STJ de 01/02/96, in www.dgsi.pt, doc. nº SJ199602010484713]
*
III - DISPOSITIVO:
Nestes termos se decide:
- Negar provimento ao recurso;
- Condenar a recorrente, por ter decaído totalmente, nas custas do processo, fixando a respectiva taxa de justiça em 4 UC e a procuradoria em 1/3 da taxa de justiça fixada.
*
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Porto, 27 de Setembro de 2006
Jorge Manuel Miranda Natividade Jacob
José Joaquim Aniceto Piedade
Joaquim Rodrigues Dias Cabral
Arlindo Manuel Teixeira Pinto