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COMODATO
PRAZO
USO
EMPRÉSTIMO
CASA DE HABITAÇÃO
RESTITUIÇÃO
Sumário
I - O contrato de comodato, revestindo a característica da temporalidade, não consente a sua subsistência indefinida, seja por falta de prazo, seja por estar associado a um uso genérico ou de duração incerta. II - O uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável. III - Não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo de uma casa para habitação e, por isso, não obsta à restituição da coisa comodada a circunstância de esse específico fim ainda ocorrer. IV - O contrato de comodato atribui ao comodatário um direito pessoal de gozo, mas, atenta a eficácia relativa do contrato, esse direito é inoponível ao que adquire o bem da esfera do comodante. (sumário do relator)
Texto Integral
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO C…, Lda. instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra C…, D… e F…, pedindo que estas sejam condenadas a reconhecerem o direito de propriedade da autora sobre a fração autónoma melhor identificada no artigo 2º da petição inicial e a restitui-la à autora.
Alegou, em síntese, que há cerca de 13 anos, o seu então gerente, F…, por força de um relacionamento amoroso que mantinha com a 1.ª ré, autorizou que esta e as suas duas filhas, as aqui 2.ª e 3.ª rés, passassem a residir naquele imóvel a título gratuito, o que vem sucedendo até à presente data. Mais alegou que, apesar de ter solicitado às rés (na pessoa da 1.ª ré) a desocupação daquela fração autónoma, as mesmas recusam-se a fazê-lo.
As rés contestaram e deduziram reconvenção.
Na contestação, excecionaram a ilegitimidade das 2.ª e 3.ª rés, bem como a caducidade do direito de ação. No mais, contrapuseram que que vêm ocupando a dita fração autónoma desde 2006, ao abrigo de contrato de comodato vitalício celebrado entre a 1.ª ré e o dito F….
Em reconvenção, pedem que a autora seja condenada a pagar-lhes o montante de € 150.00,00, a título de danos patrimoniais futuros pela privação do uso do imóvel, e € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais decorrentes dos efeitos emocionais e psicológicos que a interposição da presente ação lhes causa.
Houve réplica, concluindo a autora pela improcedência da reconvenção.
Dispensada a realização da audiência prévia sem oposição das partes, foi proferido despacho saneador-sentença no qual foram julgadas improcedentes as exceções de ilegitimidade passiva e de caducidade do direito de ação, tendo-se decidido da seguinte forma:
«Face ao exposto, a) Julgo a ação totalmente procedente e, em consequência, condeno as Rés C…, D… e F… a: (i) reconhecerem a Autora C…, LDA. como legítima proprietária da fração autónoma designada pela letra “Q”, destinada a habitação, correspondente ao terceiro andar direito do prédio urbano sito na Quinta d’El Rey, …, descrita na Conservatória do Registo Predial de Beja, com o número …, freguesia de Beja (Salvador), e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo …; e (ii) a restituírem à Autora C…, LDA. a referida fração autónoma; e b) Julgo a reconvenção totalmente improcedente, absolvendo-se a Autora C…, LDA. de todos os pedidos reconvencionais. Fixo à causa o valor de € 227.359,05 (cfr. arts. 296.º, 297.º, n.ºs 1 e 2, 299.º, n.ºs 1 e 2, 302.º, n.º 1, 305.º, n.º 4, 306.º, n.ºs 1 e 2, e 530.º, n.ºs 2 e 3 a contrario, todos do Cód. Proc. Civil). Custas da ação e da reconvenção a cargo das Rés, sem prejuízo da concessão do apoio judiciário de que as mesmas beneficiam.»
Inconformadas, as rés apelaram desta decisão, tendo finalizado a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«I - Por douta decisão notificada via citius em 15-06-2020, cujo julga a acção totalmente procedente, imputando que as Recorrente reconheçam a A. C…, Lda. como legitima proprietária da fracção autónoma designada pela letra “Q”, destinada a habitação, correspondente ao terceiro andar direito do prédio urbano sito na Quinta d´El Rey, …, descrita na Conservatória do registo Predial de Beja, com o número …, freguesia de Beja ( salvador) e inscrita a matriz predial urbana sob o artigo …; e, a restituírem à A. C…, Lda. a referida fracção autónoma, autónoma , ora salvo o devido respeito, as Recorrentes discordam na íntegra com tal decisão. II - Não foi correctamente valorada a questão da ilegitimidade passiva das Recorrentes, D… e F…, pois em parte alguma da PI da Recorrida esta refere tais pessoas, ou seja não refere como é que estas tomaram posse do bem imóvel e a que título, bem como o período temporal. III - Sendo que as Recorrentes D…e F…a são filhas da Recorrente C… e apenas estão no bem imóvel em virtude de pertencerem ao agregado familiar da sua mãe, Recorrente C… e serem dependentes desta. IV - Assim, inversamente ao decidido, deverão as Recorrentes F… e D… serem consideradas partes ilegítimas ilegítimas na presente acção, julgando-se procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva e serem absolvidas da instância, nos termos dos arts. 508º, nº 1, al. a), e 265º, nº 2, do C.P.C. . V - A Recorrida instaurou a presente acção denominada “acção de reivindicação com processo comum” quando faz três pedidos, um de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a fracção e outro que as Recorrentes lhe restituam a fracção com todos os seus pertences, ora tal acção configura uma acção típica de restituição da posse, assim a Recorrente C… já está na posse e fruição da fracção há pelo menos 13 anos, ou seja desde o dia 23 de Março de 2006, cfr. declaração da Junta da União das Freguesias de Beja (Salvador e Santa Maria da Feira), emitida em 6 de Janeiro de 2020, que se juntou como Doc.1 com a contestação, cujo atesta que a Recorrente C… “reside desde o ano de 2006, na … Beja” até à presente data. VI - A Recorrente C… detém a posse permanente e duradoura, sem interrupção, tem utilizado e administrado, ostensivamente, sem a menor oposição de quem quer que seja, desde o seu início e com o conhecimento de toda a gente, na convicção de ser a sua legitima possuidora. VII - Pelo que nos termos do art. 1282.º do Código Civil, a acção de restituição provisória da posse deve ser instaurada no prazo de um ano subsequente ao esbulho (ou do seu conhecimento, quando tenha sido praticado praticado ocultamente), em virtude do prazo de caducidade. VIII - Nos termos do artº 1282º do CC, é certo que a acção de restituição da posse caduca se não for intentada dentro de um ano subsequente ao facto do esbulho. É ainda certo que o prazo de caducidade não se interrompe nem se suspende senão nos casos em que a lei o determine (artº 328º do CC), que o prazo começa a correr no momento em que o direito puder ser exercido (artº 329º do CC) e que, em princípio, só impede a caducidade a prática, dentro do prazo legal, do acto a que a lei atribua efeito impeditivo (artº 331º do CC). IX - Dir-se-á então que se extinguiu por caducidade o direito, na medida em que a acção foi proposta para além do prazo de um ano sobre a data do alegado esbulho fixado na lei, ou seja a R. detém a posse do bem imóvel desde o dia 23 de Março de 2006, aliás a própria A. o admite na sua PI em 8.º e a presente acção somente foi instaurada em 06-11-2019, ou seja mais de 13 anos depois. E, como assim, que deverá ser declarada a caducidade da acção, nos termos do artº 389º, nº 1 e) do CC. X - As Recorrentes impugnara todos os factos constantes na PI. Apresentada pela Recorrida, assim a aqui Recorrente, C… e suas filhas, Recorrentes, D… e F…, foram residir permanentemente para a fracção, propriedade actual da Recorrida, em 23-03-2006, quando ainda a fracção era propriedade da sociedade A…, Lda. e estava na posse de F…, a convite e com autorização de F…, sendo este que disponibilizou o livre acesso à fracção, entregando um exemplar de chaves a cada uma das Recorrentes. XI - Aliás Fr… é que comprou a fracção à sociedade comercial denominada “A…, Lda.” - Investimentos Imobiliários Construção Civil, matriculada na Conservatória de Registo Comercial da Vidigueira sob o n.º …, com NIPC …, com sede no largo … Vidigueira, pagando diversas quantias pecuniárias a título de pagamento do bem imóvel, no ano de 2002 e 2003, cfr. recibos de quitação que se juntaram como Docs.2 a 8 com a contestação, motivo esse que levou a que este conjuntamente com as Recorrentes tivesse a posse do bem imóvel logo no ano de 2002. XII - É de realçar que F… teve uma relação amorosa com a Recorrente Célia Tomás desde o ano de 2006 até ao mês de Agosto de 2019, sendo que este pernoitava com as Recorrentes na fracção, tomava refeições com as Recorrentes na fracção, tinha relações sexuais com a Recorrente C… na fracção, faziam passeios e programas juntos, juntos , ou u seja as Recorrentes e F… eram como uma família e F… entregou o bem imóvel à Recorrente C… para esta ter onde morar durante toda a sua vida. XIII - A Recorrente C… detém o bem imóvel desde o ano de 2006, a título de comodato, gratuito, sem oposição de quem quer que seja, entregue pelo F…. XIV - As Recorrentes nem conhecem a Recorrida, mas apenas F…, embora actualmente já tenham conhecimento que F… é órgão societário da Recorrida. XV - As despesas domésticas da Recorrente C… e de F… eram divididas como se um casal tratasse, ou seja enquanto um pagava a electricidade e água o outro pagava a alimentação. XVI -Muito se estranha que a Recorrida tenha comprado o bem imóvel em questão em 17/08/2016 e não tenha ido visitar o mesmo e verificado que este tinha as Recorrentes aí a residir, pois assim percepcionava que não estaria a comprar um bem imóvel livre de ónus ou encargos, en cargos, conforme foi declarado por escritura pública. XVII - Ás Recorrentes nunca lhes foi solicitado o pagamento de rendas mensais para residirem no bem imóvel. XVIII - As Recorrentes não sabem nem têm obrigação de saber a vida financeira da Recorrida, mas esta também não a prova na presente acção com documentos contabilísticos, também é de salientar que o objecto social da Recorrida não compreende a compra e venda de bens imóveis nem tão pouco o arrendamento de bens imóveis, por isso não se percepciona o motivo pelo qual pretenda o bem imóvel. XIX - As Recorrentes nunca disseram a ninguém que iriam sair do bem imóvel voluntariamente, até pelo contrário o F… sempre referiu ás Recorrentes e à frente de várias outras, que a casa é delas para toda a vida. XX - As Recorrentes vivem com sérias dificuldades económicas, pois as Recorrentes D… e F… ( Dos.9 e 10 juntos com a contestação) ainda estudam e a Recorrente C… está desempregada e as Recorrentes não têm outro local onde morar, sendo o bem imóvel a casa de morada de família destas. XXI - A ocupação no bem imóvel é titulada por contrato de comodato não escrito e já é anterior à data de aquisição de propriedade pela Recorrida, pelo que se a Recorrida se não pretendia comprar um bem imóvel com ónus e encargos não o adquiria! XXII - As Recorrentes desconhecem a vida particular da Recorrida e da sua gerente A…, pois se a gerente vendeu a sua casa e efectuou suprimentos junto da Recorrida, as Recorrentes desconhecem a causa e tal não é comprovado com documentos contabilísticos ( Modelo 22, IES, Balanços) da A. XXIII - A Recorrida nunca emprestou ás Recorrentes o bem imóvel, mas quando o comprou o referido bem imóvel sabia que este continha um comodato ás Recorrentes, sendo que a Recorrida apenas assumiu a posição de Comodante. XXIV - O que é certo é que a Recorrente C… acreditou no comodato efectuado por F… no ano de 2006, e na promessa por este feita de que esta poderia estar no bem imóvel até ao fim da sua vida, assim a não ser, a Recorrente deverá ser compensada por todos os danos causados por esta situação, pois a Recorrida quando comprou o bem imóvel as Recorrentes já aí habitavam há 10 anos. XXV - O Contrato de comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir (artigo 1129.º do Código Civil). XXVI - Ora, verifica-verifica -se que houve acordo entre F… e a R. C… de que esta poderia usar e viver no bem imóvel até ao fim da sua vida. XXVII - Foi convencionado prazo para a restituição e para o uso da coisa, que foi quando a Recorrente falecer, que é um acontecimento certo, ou seja o comodato vigorará vigora até à morte da comodatária Recorrente C… e tal não configura qualquer facto violador das obrigações dos comodatários emergentes do contrato em questão. XXVIII - Antunes Varela, em anotação ao artigo 1137.º/2 do Código Civil refere que “a duração máxima da locação, fixada em 30 anos no artigo 1025.º, não tem aplicação ao comodato. Esta não é, todavia, solução pacífica em Itália. Tem-se dito que a atribuição de um uso muito prolongado reconduz o contrato ao campo das doações indirectas; e, se se trata da atribuição de um uso por toda a vida do comodatário, ao direito de habitação (cf. Fragalli, ob. cit., artigo 1809.º,nº1, alínea a). É difícil, entre nós, justificar qualquer limite legal de duração do contrato” (Código Civil Anotado, Anotado , Volume II, 2ª edição, 1981, pág. 595). XXIX - Não impondo a lei um limite temporal quando, no comodato, os contraentes convencionam prazo certo para a restituição da coisa, já se vê que o comodante que pretende emprestar a coisa sempre poderia fixar um prazo certo suficientemente alargado por forma a coincidir com o tempo provável de vida do comodatário e, nesse caso, a fraude à lei apenas se vislumbraria se houvesse a lei por inadmissível a fixação de um prazo de longa duração ou a estipulação de empréstimo durante a vida do comodatário. XXX - Resulta do n.º 1 do artigo 1137.º do Código Civil que a restituição da coisa não carece de interpelação “se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição, mas esta foi emprestada para uso determinado”; se houve fixação de prazo certo, a restituição impõe-se, findo o contrato, conforme resulta da conjugação deste preceito com o artigo 1135.º,alínea h) do Código Civil. XXXI -Ou seja o contrato terminará quando a Recorrente Célia falecer. XXXII - E se lei quisesse inequivocamente impor a restituição ad nutum em todos os casos em que não foi convencionado prazo certo, tê-lo-ia seguramente dito, repetindo, no n .º2 do artigo 1137.º do Código Civil, a referência a “ prazo certo” que consta do n.º1 desse preceito. XXXIII - Referenciando o seu exaustivo estudo “Do Contrato de Comodato” a um contrato de comodato em que é consentida a utilização de habitação “pela duração de vida do comodatário”, o Prof. Júlio Gomes conclui-o com estas palavras: Dir-se-á, pois, que de jure condito um contrato celebrado pela duração da vida do comodatário e pelo qual uma pessoa consente à outra a utilização de uma habitação é um contrato de comodato e não um contrato de doação e é um contrato em que o uso concedido ao comodatário é temporário, tem a duração da vida remanescente deste, o que equivale à aposição de um termo incerto […] a morte do comodatário é um termo incerto e basta para constituir o termo de eficácia do comodato ( Cadernos de Direito Privado, Privado , n.º 17, Janeiro/Março 2007, pág. 33-31. XXXIV - Por mera cautela de patrocínio a ser procedente que as Recorrentes deverão restituir a posse do bem imóvel à Recorrida, não poderá deixar, deixar, portanto, de ser fixado o pagamento pela Recorrida a favor das Recorrentes de uma indemnização que terá que ser devida. XXXV - A título de danos morais, e porque é manifesto que a Recorrente C… contava utilizar o bem imóvel até ao fim da sua vida e se viu privada de o utilizar devido à actuação da Recorrida, devendo tal indemnização não se inferior a € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), quantia esta justa e equitativa para os danos que a Recorrente irá sofrer juntamente com as suas filhas, pois têm a sua vida fixada há quase 14 anos no bem imóvel, aí têm toda a sua vida pessoal, familiar e social inserida, ou seja as filhas da Recorrente estudam ambas em Beja, aí as Recorrentes têm os seus amigos e recursos sociais e com a referida quantia a Recorrente conseguirá encontrar outro bem imóvel com condições semelhantes ao que lhe foi emprestado e ter condições para sobreviver com o seu agregado familiar. XXXVI - Perante a situação provocada pela A. de instaurar a presente acção, as Recorrentes sentiram-se denegridas na sua posição social e familiar, ao ter que ser confrontadas pelo tribunal, ter-se de deslocar ao tribunal e Advogada para a realização de diligências no presente processo, em resultado desta situação causada pela Recorrida, as Recorrentes enervam-se com facilidade, inclusive têm processos crimes em curso, pois a representante da Recorrida e F… têm levado a curso sucessivos actos de cariz danosos, ameaçadores, difamatórios, injuriosos sobre a Recorrente C…, que despoletaram processo crime com n.º1049/º1049 /19.5T9BJA, que se juntou comprovativos como Docs. 11 a 13 com a contestação. XXXVII - As Recorrentes andam stressadas, têm frequentes dores de cabeça e no resto do seu corpo, as Recorrentes D… e F… baixaram o rendimento escolar, bem como de noite, quando deveriam descansar, têm insónias e quando adormecem têm pesadelos, sendo a vida das Recorrentes a partir desta data um autêntico pesadelo, por culpa exclusiva da Recorrida, pois vivem em sobressalto que a Recorrida ou a representante legal lhe faça algo de mal, conforme já fizeram e foram alvo de queixa crime. XXXVIII - A Recorrida ordenou o corte de electricidade e água às Recorrentes, privando-as de um bem essencial à sua sobrevivência condigna, assim , a satisfação ou compensação dos danos morais não e uma verdadeira indemnização, no sentido de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão, antes visa proporcionar à lesada situações ou momentos de prazer ou de alegria, alegria , bastantes para neutralizar, na medida do possível, a intensidade da dor pessoal sofrida, sofrida , nos termos dos Artigo 496.º n.º1 e n.º3, Artigo 494.º e Artigo 566.º, todos do Código Civil, o tribunal deve tomar em linha de conta, na fixação, em termos termo s equitativos, da compensação em dinheiro que há-de ser atribuída aos lesados, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais no valor não inferior a € 5.000,00 para cada R., cujos são merecedores de tutela do direito, devido à sua gravidade, são: grau de culpabilidade dos agentes; a sua situação económica e a da lesada; e, as demais circunstâncias do caso concreto. XXXIX - Padece, por isso, a sentença dos vícios de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Por todos estes motivos a douta sentença recorrida, carece de revogação e substituição por acórdão superior que julgue revogada o despacho decretado, com todas as demais consequências e tramitação legais.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações das recorrentes, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
- se ocorre uma situação de ilegitimidade passiva;
- se caducou o direito de ação da autora;
- se as rés devem restituir à autora o imóvel dos autos que lhes foi entregue, por via de comodato.
III – FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS
A 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. A autora é uma sociedade comercial por quotas, constituída em 21.03.1991, cujo objeto social consiste no carregamento e comercialização de cartuchos de caça e tiro desportivo, bem como de munições metálicas, fabricação de comercialização de buchas plásticas, compra e venda por grosso de munições, importação (aquisições intracomunitárias e extracomunitárias) e exportação (transmissões intracomunitárias e extracomunitárias) de componentes e munições e, ainda, compra e venda por grosso e a retalho de equipamento diverso e de caça.
2. F… foi sócio e gerente da autora desde a data da sua constituição até 31.01.2020.
3. A aquisição, por compra, da fração autónoma designada pela letra “Q”, destinada a habitação, correspondente ao terceiro andar direito do prédio urbano sito na Quinta d’El Rey, …, descrita na Conservatória do Registo Predial de Beja, com o número …, freguesia de Beja (Salvador) e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo … (doravante fração autónoma), encontra-se registada a favor da Autora pela AP. 1028, de 17.08.2016, figurando como sujeito passivo a C… – INSTITUIÇÃO FINANCEIRA DE CRÉDITO, S.A. (doravante “C.”).
4. Em 31.05.2006, a autora havia celebrado com a “C…” acordo escrito intitulado «Contrato de Locação Financeira Imobiliária N.º 320649 (Aquisição)», no qual esta última declarou ter adquirido, sob proposta da Autora, a fração autónoma, ficando ajustado então entre as partes que a “C…” cederia à autora a utilização daquele imóvel contra o pagamento de uma renda mensal, pelo prazo de 120 meses, findo o qual a autora poderia optar pela compra do imóvel pelo preço de € 1.800,00.
5. Em 2006, o então gerente da Autora, F…, com quem a 1.ª ré mantinha um relacionamento amoroso, permitiu que esta e as suas duas filhas, as aqui 2.ª e 3.ª rés, passassem a residir gratuitamente na fração autónoma, o que vem sucedendo até à presente data.
6. Em 17.05.2019, a autora, através do seu advogado, remeteu à 1.ª ré carta registada a solicitar a desocupação da fração autónoma, o que esta recusou.
O DIREITO Da ilegitimidade passiva
Segundo as recorrentes, não foi corretamente valorada a questão da ilegitimidade passiva das 2.ª e 3.ª rés, porquanto em parte alguma da petição inicial a autora/recorrida refere como é que aquelas rés tomaram posse do imóvel e a que título, bem como o período temporal, sendo que as mesmas apenas estão no imóvel em virtude de pertencerem ao agregado familiar da sua mãe, a 1ª ré/recorrente e serem dependentes desta.
Mas não têm razão como, aliás, ficou bem demonstrado na decisão recorrida.
A legitimidade vem a traduzir-se em o processo dever correr perante os sujeitos que, em relação à providência requerida, possam ser os efetivos destinatários dos seus efeitos.
Daqui que a nossa lei – artigo 30º do CPC - defina a legitimidade através da titularidade do interesse em litígio: será parte legítima, como autor, quem tiver interesse direto em demandar, e será parte legítima como réu quem tiver interesse direto em contradizer. Como tal critério se presta a sérias dificuldades na sua aplicação prática, a lei fixou uma regra supletiva para determinação da legitimidade: na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida (art. 30º, nº 3, do CPC).
A legitimidade não é, pois, uma qualidade pessoal das partes... mas uma certa posição delas em face da relação material...; que se traduz no poder legal de dispor dessa relação, por via processual[1].
O objetivo essencial deste pressuposto é, pois, o de que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, de modo a não voltar a repetir-se[2].
De acordo com o nº 1 do artigo 30º do CPC, “o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer”, acrescentando o nº 2 do mesmo preceito que o interesse em contradizer se exprime pelo prejuízo que advenha da procedência da ação, e o nº 3 que “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Ou seja, à falta de outra indicação da lei, a legitimidade - ativa e passiva - é aferida em função da relação controvertida, tal como é apresentada/descrita na petição inicial.
A legitimidade pode ser singular ou plural tendo, nesta última, a designação de litisconsórcio. Este, por sua vez, pode ser voluntário (quando a relação controvertida respeita a várias pessoas, mas a lei ou o negócio não obrigam a que a ação seja proposta por todas elas ou contra todas elas, podendo sê-lo apenas por uma ou contra uma) ou necessário (quando a lei ou o negócio exigem a intervenção de todos os interessados na relação controvertida ou quando esta intervenção plural seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal); ao primeiro refere-se o artigo 32º e ao segundo o artigo 33º do CPC.
Escreveu-se na decisão recorrida:
«(…), na presente ação, a Autora pretende que as Rés sejam condenadas a reconhecer o seu direito de propriedade sobre fração autónoma e a restituir-lhe a mesma, invocando que as três Rés (e não apenas a 1.ª Ré) ocupam aquele imóvel há mais de 13 anos, sem título válido que o autorize (cfr., v.g., arts. 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 16.º, 20.º, 22.º, 24.º da petição inicial). Afigura-se assim cristalino que, nos termos da relação jurídica controvertida, tal como descrita pela Autora, as 2.ª e 3.ª Rés são efetivamente partes processualmente legítimas para demanda (questão que não se confunde com a denominada ilegitimidade substantiva). Como quer que seja, não é despiciendo notar que as próprias Rés admitem na contestação que todas residem naquele imóvel e, até, deduzem – as três (e não apenas a 1.ª Ré) – reconvenção, pedindo que a Autora seja condenada a pagar-lhes indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais no caso de serem condenadas a restituir o imóvel.»
Fazemos nossas estas palavras, as quais demonstram de forma inequívoca a legitimidade das 2ª e 3ª rés e tornam desnecessárias quaisquer outras considerações, por despiciendas.
Improcede, por conseguinte, este segmento do recurso.
Da caducidade do direito de ação
Insistem as recorrentes em invocar a exceção da caducidade do direito de ação da autora, convocando despropositadamente a norma do artigo 1282º do Código Civil, como se estivesse em causa uma ação de restituição de posse, quando assim manifestamente não é, pois como se escreveu na sentença recorrida, «cotejada a causa de pedir e os pedidos formulados pela Autora na ação, afigura-se cristalino que não estamos na presença de uma ação de restituição de posse, mas antes perante uma ação típica de reivindicação a que alude o art. 1311.º do Cód. Civil, que se caracteriza, justamente, pela cumulação de dois pedidos: (a) o reconhecimento do direito de propriedade (pronuntiatio) e (b) a restituição da coisa (condemnatio).»
E assim é efetivamente, pelo que em face da manifesta improcedência da exceção invocada, nos dispensamos de tecer aqui outro tipo de considerações adicionais.
Improcede também este segmento do recurso.
Do comodato e da restituição da coisa
Não suscita qualquer reparo a qualificação do contrato dos autos como comodato, uma vez que estão reunidos os elementos característicos desta figura típica, identificada no artigo 1129º do Código Civil[3] como «o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir».
Trata-se de um contrato real quod constitutionem, que só se completa pela entrega da coisa, e que reveste as características da temporalidade e da gratuitidade. No primeiro caso, porque não se tolera um comodato que deva subsistir indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por estar associado a um uso genérico ou de duração incerta. No segundo caso, porque não há, a cargo do comodatário, prestações que constituam o equivalente ou correspetivo da atribuição efetuada pelo comodante, muito embora o comodante possa impor certos encargos ao comodatário, sem natureza correspetiva (cláusulas modais).
É igualmente um contrato meramente consensual, em que há uma simples atribuição do uso da coisa, para todos os fins lícitos ou alguns deles, dentro da função normal das coisas da mesma natureza e não, em princípio, da atribuição do direito de fruição [art. 1133º, nº 1, in fine, do CC][4].
Como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.03.2019[5], «[s]endo a coisa entregue para um uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para uma certa finalidade, não a utilização da coisa em si. Por isso, não será ao abrigo do uso determinado da coisa que ficará impedido o comodante de exigir a restituição ad nutum, nos termos do art. 1137.º, n.º 2, do Código Civil. Daí que no comodato sejam necessários dois requisitos para caracterizar o uso determinado do empréstimo da coisa: 1.º que ele esteja expresso de modo claro; 2.º que esse uso seja de duração limitada».
Dada a natureza do contrato, vem constituindo entendimento corrente, na doutrina e na jurisprudência, que o uso só é determinado se delimitar, em termos temporais, a necessidade que o comodato visa satisfazer, ou seja, o uso determinado da coisa deve conter em si a definição do tempo de uso.
Rodrigues Bastos[6] entendia que «tem de considerar-se a cedência sempre limitada a certo período de tempo, sob pena de se desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel (…). Um comodato muito prolongado de um imóvel converter-se-ia em doação (indirecta) do gozo da coisa, ou, se fosse para durar toda a vida da outra parte, o comodato caracterizar-se-ia em direito de uso e habitação.»
Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça podem ver-se, a título de exemplo, os seguintes acórdãos:
- Acórdão do STJ de 13.05.2013, com o seguinte sumário:
«I - O contrato de comodato tem carácter temporário, pelo que a determinação do uso a que se refere o n.º 1 do art.º 1137º do Cód. Civil envolve a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa quando, implicando este a prática de actos genéricos de execução continuada, não for concedido por tempo determinado ou, pelo menos, determinável.
II - Assim, não se estipulando prazo nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição da coisa.»
- Acórdão do STJ de 16.11.2010, em cujo sumário se pode ler:
«IV- No empréstimo “para uso determinado”, a determinação do uso, contém, ela mesma, a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não sendo de considerar como determinado o uso de certa coisa se não se souber - nos casos em que o uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada, mas de actos genéricos de execução continuada - por quanto tempo vai durar, caso em que se haverá como facultado por tempo indeterminado.
V- O uso só tem fim determinado se o for também temporalmente determinado ou, pelo menos, por tempo determinável.
VI- Não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição da coisa, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado art.º 1137º.»
- Acórdão do STJ de 15.12.2011, em cujo sumário se escreveu:
«V - No aludido contrato de comodato não foi convencionado prazo certo para a restituição; quando as partes estipularam prazo incerto ou não estipularam prazo algum para a restituição, rege o disposto no art. 1137.º, n.º 2, do CC segundo o qual o comodatário é obrigado a restituir a coisa entregue logo que assim o seja exigido pelo comodante (denúncia ad nutum).
VI - No contrato de comodato, a cláusula pela qual o comodante declarou proporcionar a utilização da coisa até à morte do comodatário será válida desde que interpretada no sentido de que não obsta, por imposição da própria lei, a que o comodante possa sempre denunciar o contrato ad nutum.»
- Acórdão do STJ de 21.03.2019, com o seguinte sumário:
«I - Da disciplina contida no n.º 1 do art.º 1137º, do CC resulta que a determinação do uso da coisa envolve a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, para que tenha lugar a aplicação do regime aí estabelecido;
II - Não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do imóvel, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no n.º 2 do citado art.º 1137º, do CC.»
Ao nível dos Tribunais da Relação pronunciaram-se neste sentido, entre outros, os seguintes acórdãos:
- Acórdão da Relação de Lisboa de 14.10.2008, em cujo sumário se pode ler:
«III – Não pode considerar-se como determinado o uso de certa coisa, se não se souber por quanto tempo vai durar, se foi concedido por tempo determinado.
IV - Tem de se interpretar o artigo 1137º do Código Civil, ao estabelecer que sendo a coisa emprestada para uso determinado o comodatário a deve restituir ao comodante logo que o uso finde, como pressupondo que a determinação do uso envolve a delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada mas de actos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, isto é, se for concedido por tempo indeterminado.
V - O uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável.»
- Acórdão da Relação de Coimbra de 14.09.2010, em cujo sumário se escreveu:
«X - É entendimento dominante que o “uso determinado” só o é se se delimitar, em termos temporais, a necessidade que o comodato visa satisfazer, isto é, o “uso” da coisa para que seja “determinado” deve conter em si a definição do tempo de uso.
XI - Não poderá considerar-se como “determinado” o uso de certa coisa, se não se souber por quanto tempo vai durar, se foi concedido por tempo indeterminado, o que se entende e concilia perfeitamente na medida em que assente em relações de cortesia e gentileza o comodato visa satisfazer necessidades temporárias.»
- Acórdão da Relação de Guimarães de 06.11.2014, em cujo sumário se exarou:
«IV - É generalizado o entendimento de que o uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer.
V - Não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo de uma casa para habitação e, por isso, não obsta à restituição da coisa comodada a circunstância de esse específico fim ainda ocorrer.»
- Acórdão da Relação de Évora de 23.02.2017, com o seguinte sumário:
«1. O contrato de comodato, revestindo a característica da temporalidade, não tolera a sua subsistência indefinida, seja por falta de prazo, seja por estar associado a um uso genérico ou de duração incerta.
2. O uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, sendo assim incompatível com a figura jurídica do comodato um uso genérico e abstracto, que subsista indefinidamente ou não tenha termo certo.
3. Uma cláusula “para toda a vida” não obsta à restituição ad nutum por ausência de prazo certo ou temporalmente delimitado.»
Trata-se de orientação que também acolhemos, por se nos afigurar que, no quadro normativo vigente, não seria de aceitar um comodato que subsistisse indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico, de tal modo que o comodatário pudesse manter gratuitamente e sem limites o gozo da coisa.
Como salientado no acórdão do STJ de 21.03.2019 acima citado, esta posição é ainda «a mais consentânea com o princípio geral emanado do art. 237º, do CC, segundo o qual, em caso de dúvida, nos contratos gratuitos deve prevalecer o sentido da declaração menos gravoso para o disponente».
Além disso, como se refere no mesmo aresto, a vingar a tese das recorrentes, «o comodatário ficaria numa posição bem mais sólida e favorável do que se tivesse, por exemplo, celebrado um contrato de arrendamento (cf., quanto à duração do contrato de locação o art. 1025º, do CC), solução que, salvo o devido respeito, a ordem jurídica não poderia tolerar»[15].
Revertendo ao caso concreto, está provado que em 2006, o então gerente da autora, Francisco Inácio, com quem a 1.ª ré mantinha um relacionamento amoroso, permitiu que esta e as suas duas filhas, as aqui 2.ª e 3.ª rés, passassem a residir gratuitamente na fração autónoma, o que vem sucedendo até à presente data.
Sendo assim, a restituição do imóvel que é pedida nesta ação mostra-se regulada pelo nº 2 do artigo 1137º do CC, norma que visa precisamente impedir a perpetuação das relações obrigacionais de comodato para as quais não tenha sido fixado prazo de duração, nem determinado o uso da coisa.
É certo que as rés alegaram no artigo 30º da contestação que o dito F… “entregou o bem imóvel à R. C… para esta ter onde morar durante toda a sua vida”.
Porém, tendo em conta a nossa posição relativamente ao comodato vitalício, isto é, de que o contrato de comodato, revestindo a característica da temporalidade, não tolera a sua subsistência indefinida, seja por falta de prazo, seja por estar associado a um uso genérico ou de duração incerta, mostra-se irrelevante apurar se o imóvel foi entregue à 1.ª ré “para esta ter onde morar durante toda a sua vida”.
Consequentemente, é de concluir que, não se estipulando prazo, nem se delimitando a necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, o comodante tem direito a exigir, em qualquer momento, a restituição do imóvel, denunciando o contrato, ao abrigo do disposto no nº 2 do citado artigo 1137º do CC.
Ademais, não sendo a autora a comodante, mas a proprietária da fração autónoma dos autos por a ter adquirido em 2016 à C… – Instituição Financeira de Crédito, S.A.[16], sempre as rés teriam de restituir a aludida fração.
Com efeito, um comodato celebrado entre os proprietários de um imóvel e terceiros não vincula futuros adquirentes do mesmo imóvel. Vale aqui a regra de que, fora dos casos especialmente previstos na lei, os contratos não têm eficácia perante terceiros [nº 2 do artigo 406º do CC], vinculando apenas as respetivas partes; significando isto, no caso concreto, que o contrato não tem eficácia real[17].
Escreveu-se a este respeito no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.03.2017[18]:
«Pese embora alguns pontos em comum que se verificam entre os direitos reais e os direitos pessoais de gozo, nos primeiros dominam as características da sequela e da eficácia ou oponibilidade erga omnes, ao passo que dos direitos pessoais de gozo irradiam efeitos que, por regra, apenas vinculam os respectivos sujeitos, nos termos do art. 409º do CC (cfr. o Ac. do STJ, de 19-3-02, CJSTJ, tomo I, pág. 139). Sobre a matéria cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, págs. 93 a 96, designadamente quando aponta como características dos direitos de crédito a sua relatividade e quendo conclui que a “sua oponibilidade a terceiros é limitada, só podendo ocorrer em certas circunstâncias” (pág. 94). Em consequência, eventuais situações de confronto entre o novo titular do direito de propriedade e outros possuidores ou detentores da mesma coisa não sujeitos a um regime especial, como o que decorre previsto para o arrendamento no art. 1057º do CC, deverão ser resolvidos a favor do proprietário, nos termos do art. 1311º do CC. Dito de outro modo, uma vez reconhecido o direito de propriedade, o detentor deve restituir a coisa ao proprietário, a não ser que demonstre a existência de um título que, sendo eficaz em relação a este, legitime a recusa de restituição. Tal não ocorre quando singelamente se invoque, como ocorre no caso, a outorga de um contrato de comodato com o anterior proprietário do bem que foi adjudicado ao exequente. Assim o defende J. Andrade Mesquita quando conclui taxativamente que os terceiros não estão vinculados a realizar o direito do comodatário e que o contrato cessa caso o direito com base no qual foi constituído seja transferido para terceiro (Direitos Pessoais de Gozo, págs. 163 e 165). Ou ainda Augusta Ferreira Palma, Embargos de Terceiro, para quem “inexistindo para o comodato normas paralelas às dos arts. 824º e 1057º do CC, o comodatário não se poderá opor à pretensão do exequente”, no que concerne à venda executiva e, dizemos nós, por via disso, não se poderá opor à entrega do bem ao mesmo exequente a quem seja adjudicada.»
Por conseguinte, o recurso improcede.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelas recorrentes, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhes foi concedido.
*
Évora, 19 de novembro de 2020
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Tomé Ramião (2º adjunto)
_______________________________________________
[1] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 84.
[2] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, volume II, p. 167.
[3] Doravante CC.
[4] Cfr. Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. II, 3.ª ed., p. 660.
[5] Proc. 2/16.5T8MGL.C1.S1, disponível, como os demais adiante citados sem outra indicação, em www.dgsi.pt.
[6] In Notas ao Código Civil, Vol. IV, p. 250.
[7] Proc. 03A1323.
[8] Proc. 7232/04.0TCLRS.L1.S1.
[9] Proc. 3037/05.0TBVLG.P1.S1.
[10] Citado supra.
[11] Proc. 2875/2008-1.
[12] Proc. 1275/05.4TBCTB.C1.
[13] Proc. 96/10.7TBCHV.G1.
[14] Proc. 167/15.3T8ADV.E1.
[15] Não se acompanha assim o entendimento expresso no acórdão da Relação do Porto, de 15.01.2007, proc. 0652373, segundo o qual, «tendo sido convencionado que o comodato da casa se destinava a que a comodatária a habitasse até à sua morte, o comodante não pode exigir a restituição dessa casa, enquanto a comodatária nela residir. Logo, não tendo, no caso sub judice, ainda findado ou terminado o uso convencionado para que a dita casa foi comodatada – o qual, em princípio, só ocorrerá com a morte da Ré, se esta lá continuar a viver - não se verifica o pressuposto legal para que o Autor possa exigir à Ré a restituição do dito imóvel, por cessação do contrato, à luz do artº 1137º, do C.C.». No mesmo sentido deste se pronunciaram os acórdãos da Relação do Porto de 24.05.2005, proc. 0520792 e de 18.12.2013, proc. 7571/11.4TBMAI.P1.
[16] Aquisição efetuada nos termos de contrato de locação financeira imobiliária que havia realizado em 31 de maio de 2006 com a dita C…, anterior proprietária.
[17] Acórdão do STJ de 22.09.2016, proc. 1448/12.3TBTMR.E1.S1.