CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
CONTRATO DE EXECUÇÃO CONTINUADA OU PERIÓDICA
SEGURANÇA SOCIAL
COMPARTICIPAÇÃO
INSTITUIÇÃO PARTICULAR DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
Sumário

I – O contrato de prestação de serviço, nos casos em que é retribuído, é um contrato bilateral, de que emergem para ambas as partes obrigações sinalagmáticas ou recíprocas que se traduzem, de um lado, na obrigação de proporcionar o resultado, e do outro na obrigação de pagar a remuneração convencionada.
II - É também, nos casos como o presente, em que a prestação do serviço se prolonga no tempo, um contrato de execução continuada.
III - A Portaria nº 196-A/2015, de 1 de julho (posteriormente alterada pela Portaria n.º 218-D/2019), define os critérios, regras e formas em que assenta o modelo específico da cooperação estabelecida entre o Instituto da Segurança Social, I. P. (ISS, I. P.) e as instituições particulares de solidariedade social ou legalmente equiparadas.
IV – O artigo 3º, alínea d), daquele diploma define comparticipação familiar como “o montante variável, pago pelos utentes e ou pelas famílias pela utilização de uma resposta social, em função dos serviços utilizados e dos rendimentos disponíveis do agregado familiar”.
V - E, nos termos do artigo 12º, alínea f), do mesmo diploma, constitui obrigação das instituições “[a]plicar as normas de comparticipação familiar, tendo em conta o previsto no nº 2 do artigo 19º, o qual prescreve que “[p]ara cálculo do valor da comparticipação familiar a instituição deve observar os critérios estabelecidos no regulamento anexo à presente portaria e que dela faz parte integrante”.
VI - No que respeita à revisão da comparticipação estabelece o ponto 10.1 do referido anexo, que “[a]s comparticipações familiares são, em regra, objeto de revisão anual a efetuar no início do ano letivo ou no início do ano civil”, estipulando-se no ponto 10.2 que “[p]or alteração das circunstâncias que estiveram na base da definição da comparticipação familiar de determinado agregado familiar, designadamente, no rendimento per capita mensal, as instituições podem proceder à revisão da respetiva comparticipação.”
VII – O Regulamento Interno do Lar da autora, dedica o Seu Capítulo III à Comparticipação Familiar, estipulando no artigo 11º, sob a epígrafe “Comparticipação dos Utentes”:
«1. As comparticipações familiares são calculadas de acordo com a Circular N.º 4, de 16/12/2014, da DGSS, que dita que as mesmas são devidas pela utilização de serviços ou equipamentos da área da população idosa, através da aplicação de uma percentagem sobre o rendimento per capita do agregado familiar», de acordo com o quadro aí traçado:
VIII - Indemonstrada a condição de revisão anual do valor da comparticipação do réu efetuada nos termos estatutários e legais, não é exigível ao réu aquela obrigação. (sumário do relator)

Texto Integral



Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
Santa Casa da Misericórdia de …, instituição particular de solidariedade social, instaurou a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra J…, pedindo que este seja condenado a pagar a comparticipação familiar devida desde março de 2017 no âmbito de contrato de prestação de serviços pela integração em Lar da sua tia, no valor global de € 6.841,50 [€ 6.578,00 de capital e € 263,50 de juros vencidos], acrescida dos juros vincendos.
O réu contestou, contrapondo que o referido montante não é devido em virtude de a autora não ter procedido à revisão anual do valor a pagar, nos termos legais e estatutariamente impostos, e invocou também a diminuição da sua capacidade financeira por força de problema de saúde (oncológico) que lhe foi, entretanto, diagnosticado.
Foi proferido despacho saneador tabelar, tendo sido dispensada a fixação do objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova, face ao valor da ação e à “simplicidade da causa”.
Instruído o processo, seguiram os autos para julgamento, sendo a final proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu o réu do pedido.
Inconformada, a autora apelou desta decisão, tendo finalizado a respetiva alegação com as conclusões que a seguir se transcrevem:
«1ª - Devem ser aditados à matéria assente os seguintes factos:
a) Pelo contrato celebrado em 1-7-2012 e do Termo de Responsabilidade anexo subscrito pelo R. este obrigou-se a pagar a comparticipação familiar de 364,00 euros.
b) Comprometeu-se a comparticipar mensalmente, até ao dia 8 de cada mês, com a quantia de 210,00€ a título de comparticipação familiar como descendente herdeiro ou responsável.
c) Quantia esta que seria revista e/ou actualizada aquando dos aumentos das Pensões de Reforma e sempre que a Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia de … o determinasse, de acordo com o estipulado no Regulamento Interno.
d) O montante de 210,00€ referido em c) foi posteriormente actualizada e era de 253,00€ mensais pelo menos desde Janeiro de 2017.
e) Em 21-02-2012, cerca de 15 dias antes de ser admitida no Lar, a utente M… outorgou escritura pública na qual declarou vender a Ma…, pelo preço de 9.500€ um prédio misto composto de casa de habitação, logradouro e terra de cultura arvense com o valor tributário de 9.149€
f) Ma… é companheira do R., vivendo com ele em união de facto (declarações da própria, como testemunha do R. adiante transcritas).
2ª - Deve ser alterada a redação do ponto nº 11, nos termos seguintes: o R. suspendeu o pagamento da comparticipação familiar de descendente e/ou herdeiro depois de ter comunicado à A. que o fazia por esta não converter as alterações contratuais em adendas nem lhe comunicar por escrito essas alterações e por considerar que a mensalidade da utente estava muito acima dos valores afixados no Preçário para a admissão de “novos utentes”, sendo que, após ter deixado de pagar alegou junto da A. que não tinha condições para o fazer.
3ª - A obrigação do R. reclamada neste processo radica no Termo de Responsabilidade por si assinado em 1-7-2012 cuja validade não foi questionada.
4ª - Sendo certo que não haveria qualquer ilegalidade no facto de poderem aí constar obrigações mais amplas do que as que resultam da estrita aplicação do disposto na Portaria nº 196-A/2015, publicada vários anos depois, mesmo se desta pudesse retirar-se que a A. estaria obrigada a proceder anualmente à revisão da prestação apesar de se consignar naquele diploma a obrigatoriedade de a dita prestação contar de acordo escrito.
5ª - Ao liberar o R. do seu cumprimento a sentença violou o disposto no artigo 762º nº 1 do Código Civil.
6ª - Tratando-se de obrigação contraída no âmbito de um contrato de prestações recíprocas, de execução continuada, e não tendo a R. em momento algum deixado de prestar o serviço a que se tinha obrigado, não era lícito ao R. deixar de cumprir a obrigação que fora contratada como contrapartida daquele serviço.
7ª - E uma vez que se tratava de uma prestação obrigatoriamente constante de acordo escrito, poderia aquele, quando muito questionar judicialmente a validade do referido acordo e consequente obrigação de satisfazer a prestação, mas sem interromper o seu cumprimento, uma vez que também a A. não podia interromper o cumprimento da prestação a que estava obrigada.
8ª - Efectivamente, a invocação pelo R. da excepção de não cumprimento do contrato é ilegal e violadora do disposto no artigo 428º do Código Civil porquanto, dada a natureza contínua do serviço prestado, a A. não podia correspondentemente suspender a sua prestação até ser definida judicialmente a situação.
9ª - Porém o próprio A. tinha reconhecido na carta enviada à A. que o pagamento da referida prestação constituía obrigação sua, que tinha vindo a cumprir não obstante a invocada falta de notificação escrita.
10ª - Assim, não há dúvidas quanto à exigibilidade da obrigação do R. e quando muito poderia questionar-se a necessidade da sua liquidação (na hipótese de ser obrigatória a sua revisão anual de acordo com a capacidade económica do agregado familiar).
11ª - De facto a exigibilidade da obrigação coincide com o seu vencimento e não há qualquer dúvida de que o R. está obrigado a satisfazer a sua prestação até ao dia 8 de cada mês.
12ª - Porém a eventual inexigibilidade da obrigação conduziria à absolvição da instância e não à absolvição do pedido, não impedindo que, removidos os obstáculos que se consideraram fundamento da inexigibilidade a A. pudesse propor nova acção contra o R. reclamando o pagamento da prestação a que se encontra vinculado.
13ª - Daí que se porventura fossem desatendidos os argumentos da recorrente no sentido de que o R. deverá ser condenado no pedido já neste processo, restaria a absolvição do R. da instância, mas não do pedido.
14ª - A decisão recorrida sustenta-se na mesma argumentação que foi utilizada pela Segurança Social na resposta a uma reclamação do R. apresentada já no decurso deste processo, ignorando o facto de a prestação em causa (contribuição de responsável pelo utente) ter uma natureza estritamente contratual, ter de ser obrigatoriamente fixada por acordo;
15ª - Sendo uma prestação obrigatoriamente estabelecida por acordo das partes (ponto 11.2.5 do Anexo à Portaria) não seria possível impor que as partes alcancem anualmente uma revisão por acordo bilateral, muito menos podendo tal “acordo” ser imposto unilateralmente pela A.
16ª - Ao passo que a outra prestação (contribuição do utente) tem natureza estritamente legal/administrativa, consistindo numa determinada percentagem do rendimento do próprio utente, sem qualquer limite máximo.
17ª - Para esta, sim, faz sentido e é obrigatório a Instituição obter anualmente e ter em conta os rendimentos do agregado familiar do utente (neste caso, apenas da própria).
18ª - O Tribunal valorou indevidamente quer o depoimento do próprio R. quer o da testemunha Ma…, não tendo sequer consignado que esta é companheira daquele não obstante o conteúdo explícito das suas declarações nesse sentido.
19ª - Por isso não se entende que com base nessas declarações e não em quaisquer factos provados tenha sido ordenada participação do Ministério Público, tanto mais que parte das declarações do R., atinentes à recusa inicial de admissão da sua tia em acordo de cooperação são desmentidas no ofício da Segurança Social.
20ª - A sentença proferida, aliás em total e absoluto arrepio com a posição do Mmº Juiz que presidira à audiência de conciliação, deverá pois ser revogada e em sua substituição deverá o R. ser condenado no pedido, conforme peticionado, com as legais consequências.»

O réu apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), as questões essenciais a decidir consubstancia-se em saber:
- se ocorreu erro de julgamento no que respeita à matéria de facto;
- se assiste à autora o direito de exigir do réu a comparticipação familiar peticionada nos autos, no âmbito do acordo celebrado para integração da tia daquele no lar da autora.

III – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICO-JURÍDICA
Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
1 - A autora é uma pessoa coletiva privada sem fins lucrativos.
2 - Constitui uma Associação de Beneficência e simultaneamente uma IPSS.
3 - Os fins que, de modo especial prossegue são o apoio à família e a proteção da infância, através da criação e manutenção de lares, Centros de dia, Jardins de Infância e Serviços Domiciliários - artigo 4º dos Estatutos.
4 - A presente ação versa sobre matéria que se circunscreve à atuação da autora no âmbito das suas especiais atribuições referidas.
5 - Por contrato particular celebrado a 05.03.2012 a autora obrigou-se a prestar apoio social a M…, designadamente alojamento, alimentação, cuidados de higiene, tratamento de roupas, assistência médica, enfermagem, apoio psicossocial, atividades de animação cultural, fisioterapia e assistência religiosa em contrapartida duma mensalidade fixa.
6 - O referido contrato de prestação de serviços foi celebrado pelo prazo de 1 ano, automaticamente renovável por iguais períodos de tempo, nele tendo outorgado além da beneficiária dos serviços M…, o ora réu.
7 - O réu simultaneamente assinou um termo de responsabilidade através do qual se comprometeu a pagar a comparticipação devida pela Utente.
8 - A 01.07.2012 a tia do réu (já utente da autora) M… passou para acordo (vaga da Segurança Social) e foi elaborado novo contrato e termo de responsabilidade figurando neste último o valor para a comparticipação familiar de € 364 (encargo da utente em primeira linha, tendo o réu também assumido responsabilidade pelo seu pagamento) e a comparticipação de descendentes e /ou herdeiros a cargo exclusivamente do réu no valor de € 210 a pagar mensalmente por este até ao dia 8 de cada mês.
9 - No termo de responsabilidade constava que “o montante da dita comparticipação familiar seria revisto/atualizado aquando dos aumentos das pensões de reforma e sempre que a Mesa Administrativa da autora o determinasse, de acordo com o estipulado no Regulamento Interno”.
9 a)[1] - Pelo contrato celebrado em 1-7-2012 e do Termo de Responsabilidade anexo subscrito pelo réu, este obrigou-se a pagar a comparticipação familiar de € 364,00.
10 - O réu não procedeu ao pagamento da comparticipação familiar de descendentes e/ou herdeiros desde março de 2017.
11 - O réu alegou junto da autora não ter condições para pagar a comparticipação familiar de descendentes e/ou herdeiros, tendo as faturas atinentes a comparticipação familiar da utente e as despesas sido pagas por esta durante tal período.
12 - De acordo com o artigo 11 nº 9 do Regulamento do Lar aprovado em reunião de Mesa Administrativa a 16 de março de 2015 “As comparticipações familiares dos descendentes, herdeiros e/ou responsáveis pelo utente serão revistas anualmente até ao mês de Março, a Santa Casa participará por escrito ao familiar responsável”.
13 - Ao réu foi diagnosticada neoplasia da próstata em 2017 tendo sido submetido a cirurgia, comunicando nessa altura à autora que iria suspender o pagamento da “comparticipação familiar” que à data já se encontrava fixada pela autora em 253 €.
14 - O réu tentou por diversas vezes alertar a autora para a necessidade de revisão do valor da comparticipação, em conformidade com a sua concreta situação económica, que se havia deteriorado, quer por escrito, enviando cartas à autora nesse sentido, quer em reuniões, tendo-lhe sido explicado pelos representantes da autora que faziam o cálculo da comparticipação coincidir com o diferencial entre o custo real do serviço prestado e a soma do montante pago pela Segurança Social e pela própria utente, nunca lhe tendo sido pedida qualquer declaração de IRS ou outro documento atinente à sua situação concreta económica.

E foi considerado não provado que:
- O réu é proprietário daquela que foi a casa da sua tia, utente do Lar da autora.

Da impugnação da matéria de facto
Como resulta do artigo 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa.
Do processo constam os elementos em que se baseou a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto: prova documental e depoimentos das testemunhas registados em suporte digital.
Considerando o corpo das alegações e as suas conclusões, pode dizer-se que o réu/recorrente cumpriu formalmente os ónus impostos pelo artigo 640º, nº 1, do CPC, pelo que nada obsta ao conhecimento do recurso na parte atinente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
No que respeita à questão da alteração da matéria de facto face à incorreta avaliação da prova produzida, cabe a esta Relação, ao abrigo dos poderes conferidos pelo artigo 662º do CPC, e enquanto tribunal de 2ª instância, avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
A recorrente considera insuficiente a matéria de facto, «pois do processo ressalta a prova de diversos factos com relevância para a boa decisão da causa e que dele resultam directamente para eles se indicando os respectivos meios probatórios».
Por isso, entende que deviam ser dados como provados os factos que enuncia na conclusão 1.ª, e alterada a redação do ponto 11 dos factos provados, nos termos sugeridos na conclusão 2ª.
Quanto ao primeiro facto, alínea a) da conclusão 1ª, isto é, que “[p]elo contrato celebrado em 1-7-2012 e do Termo de Responsabilidade anexo subscrito pelo R. este obrigou-se a pagar a comparticipação familiar de 364,00 euros”, trata-se de matéria que resulta do próprio contrato e do termo de responsabilidade, documentos jutos como Doc. 3 e Doc. 4 com a petição inicial, pelo que tendo em conta o teor dos pontos 6 e 7 dos factos provados, afigura-se conveniente precisar os termos em que o réu se obrigou, pelo que tal fato deve passar a constar do elenco dos factos provados.

No que concerne ao segundo facto enunciado pela recorrente na alínea b) da conclusão 1ª, ou seja, que o réu “[c]omprometeu-se a comparticipar mensalmente, até ao dia 8 de cada mês, com a quantia de 210,00€ a título de comparticipação familiar como descendente herdeiro ou responsável”, o mesmo foi dado como como provado no ponto 8, pelo que não faz qualquer sentido o aditamento pretendido pela autora.

O mesmo se diga relativamente ao terceiro facto [alínea c) da conclusão 1ª], ou seja, que tal quantia “seria revista e/ou atualizada aquando dos aumentos das Pensões de Reforma e sempre que a Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia de … o determinasse, de acordo com o estipulado no Regulamento Interno”, o qual está dado como assente no ponto 9 dos factos provados.

Quanto ao quarto facto [alínea d) da conclusão 1ª] pretendido aditar pela recorrente, isto é, que “[o] montante de 210,00€ … foi posteriormente atualizado e era de 253,00€ mensais pelo menos desde janeiro de 2017”, diz a recorrente que o mesmo resulta do “confronto do alegado nos artigos 7º e 8º da p.i. e documentos 5, 6 e 7 com a confissão feita no artigo 5º da contestação). Mas não tem razão a recorrente.
Quanto aos documentos invocados, trata-se de documentos particulares emitidos pela autora (extratos de resumos de faturas, conta corrente geral do utente e duas faturas) que por si só nada provam e são apreciadas livremente pelo tribunal.
No que respeita à alegada confissão do réu, basta ler com atenção o artigo 5º da contestação para facilmente se chegar à conclusão que inexiste qualquer confissão do mesmo relativamente à matéria em causa, resultando dessa mesma leitura precisamente o contrário, como decorre também do alegado no artigo 4º da contestação.
Assim, não há que aditar ao elenco dos factos provados aquela matéria.

Pretende igualmente a recorrente que seja dado como provado um quinto facto [alínea e) da conclusão 1ª], ou seja, que “[e]m 21-02-2012, cerca de 15 dias antes de ser admitida no Lar, a utente M… outorgou escritura pública na qual declarou vender a Ma…, pelo preço de 9.500€ um prédio misto composto de casa de habitação, logradouro e terra de cultura arvense com o valor tributário de 9.149€”.
Trata-se de matéria que não foi alegada pelas partes, a qual, como bem se refere na decisão recorrida, extravasa o objeto do processo, sendo que a escritura de compra e venda do dito imóvel, junta pelo réu com o requerimento de 27.05.2019 (ref.ªcitius 5965691), demonstra que o réu não é o proprietário de tal imóvel, como se fez constar nos factos não provados, e é isso que aqui releva.
Assim, não há que aditar ao elenco dos factos provados aquela matéria.

Pretende também a recorrente que se considere provado um sexto facto [alínea f) da conclusão 1ª]: “Ma… é companheira do R., vivendo com ele em união de facto”.
Ora, como se vê do corpo das alegações, o que a recorrente pretende colocar em causa é a credibilidade da pessoa em causa, que depôs como testemunha, como se colhe do seguinte trecho da respetiva alegação: “O tribunal apoiou-se ainda nas declarações da testemunha do Réu Ma…, designadamente que “os rendimentos do Réu diminuíram e as suas despesas aumentaram por força da doença” - página 6 da sentença, não obstante a mesma viver em união de facto com o réu e o seu depoimento estar afectado por um interesse igual ao deste, como decorre do teor das suas declarações…”.
Ora, o meio próprio para a autora abalar a credibilidade do depoimento da referida testemunha era a contradita (art. 521º do CPC) e não a impugnação da matéria de facto, como se afigura evidente.
Ademais, o facto em causa não tem relevo para a boa decisão da causa.
Não há, pois, que aditar ao elenco dos factos provados tal matéria.

Por último pretende a recorrente que seja alterada a redação do ponto 11 onde se deu como provado que “[o] R. alegou junto da A. não ter condições para pagar a comparticipação familiar de descendentes e/ou herdeiros”, por forma a especificar que tal alegação foi feita depois de aquele ter suspendido o pagamento e não como fundamento para tal suspensão, sendo que o alegado no artigo 9º da petição inicial foi feito com referência ao ano 2019, em que a ação foi proposta.
Diz a recorrente que o Tribunal fundou a sua convicção com base em documentos que não comprovam que o réu alguma vez tenha invocado junto da recorrente qualquer situação de doença e muito menos de redução de rendimentos[2], e no depoimento da testemunha Ma…, dizendo que o seu depoimento está afetado por um interesse igual ao do réu por viver com ele em união de facto.
Sugere assim a recorrente que o ponto 11 dos factos provados passe a ter a seguinte redação:
“O R. suspendeu o pagamento da comparticipação familiar de descendente e/ou herdeiro depois de ter comunicado à A. que o fazia por esta não converter as alterações contratuais em adendas nem lhe comunicar por escrito essas alterações e por considerar que a mensalidade da utente estava muito acima dos valores afixados no Preçário para a admissão de “novos utentes”, sendo que, após ter deixado de pagar alegou junto da A. que não tinha condições para o fazer.”
Ora, à exceção da parte final da redação sugerida pela recorrente “após ter deixado de pagar alegou junto da autora que não tinha condições para o fazer”, tudo o mais que a recorrente pretende ver aditado ao ponto 11 é matéria absolutamente distinta da contemplada naquele ponto, pelo que não há que aditar a este a referida matéria, a qual, aliás, não foi sequer alegada pelas partes, embora resulte do teor da carta que constitui o documento nº 7 a que se aludiu supra na nota de rodapé.
Por outro lado, não pode dar-se como provado que só após ter deixado de pagar a sua contribuição é que o réu alegou junto da autora que não tinha condições para o fazer, pois contrariamente ao alegado pela recorrente, não resultou da prova produzida que só naquele momento temporal é que o réu tenha invocado dificuldades económicas, além de que isso não foi sequer alegado pelas partes.
O Tribunal a quo fundou a sua convicção sobre esta matéria essencialmente com base nas declarações de parte do réu e no depoimento da testemunha Ma…, os quais foram colocados em crise no recurso nos seguintes termos:
“(…), tanto das declarações em audiência quer do R. quer da dita testemunha, ressalta que o que exigiam era que os serviços da A. lhes explicassem como eram feitos os cálculos em que se baseavam as actualizações anuais feitas pela A.
Assim, por exemplo, as declarações da citada testemunha (minuto 4´ 00”):
- Suspendíamos o pagamento até obter uma resposta da Santa Casa da Misericórdia e pedíamos que fizessem os cálculos e nos dessem uma resposta (à carta de 22-02-2017). Posteriormente esclareceu que achavam que estavam a pagar a mais por terem visto na Instituição um placard que indicava como mensalidade máxima 720 euros e afirmou que em reunião na Santa Casa com a Drª I… renovaram esse pedido de explicação, mas a resposta não foi satisfatória.»
Ora, da “impugnação” da recorrente nada resulta que justifique uma alteração do ponto 11 dos factos provados no sentido pretendido. Aliás, em bom rigor, a recorrente não cumpriu os ónus de impugnação da decisão relativa à matéria de facto neste ponto concreto, pois tendo as declarações de parte do réu e o depoimento da testemunha sido gravados, incumbia à recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sendo manifestamente insuficiente para o efeito a transcrição do não pequeníssimo excerto supra, o qual, por sinal, não corrobora o entendimento da recorrente quanto ao momento temporal em que o réu alegou junto da autora não ter condições para pagar a sua comparticipação familiar no âmbito do contrato dos autos.
Ademais, foi dado como assente no ponto 14 dos factos provados que o réu tentou por diversas vezes alertar a autora para a necessidade de revisão do valor da comparticipação, em conformidade com a sua concreta situação económica, que se havia deteriorado, quer por escrito, enviando cartas à autora nesse sentido, quer em reuniões, tendo-lhe sido explicado pelos representantes da autora que faziam o cálculo da comparticipação coincidir com o diferencial entre o custo real do serviço prestado e a soma do montante pago pela Segurança Social e pela própria utente, nunca lhe tendo sido pedida qualquer declaração de IRS ou outro documento atinente à sua situação concreta económica, factualidade esta que não foi impugnada pela recorrente.
Mantém-se assim intocado o ponto 11 dos factos provados.

Da exigibilidade da comparticipação familiar a cargo do réu
Não suscita qualquer reparo a qualificação do contrato dos autos como prestação de serviço, o qual é definido no artigo 1154º do Código Civil[3] como “aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra um determinado resultado do seu trabalho intelectual ou manual com ou sem retribuição”.
Trata-se, nos casos em que é retribuído, de um contrato bilateral, de que emergem para ambas as partes obrigações sinalagmáticas ou recíprocas que se traduzem, de um lado, na obrigação de proporcionar o resultado, e do outro na obrigação de pagar a remuneração convencionada.
É também, nos casos como o presente, em que a prestação do serviço se prolonga no tempo, um contrato de execução continuada.
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos e o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado [artigos 406º, nº 1 e 762º, nº 1, do CC].
Impõe-se, pois, e antes de mais, determinar se o réu/recorrido incumpriu o contrato que celebrou com a autora, o que, prima facie, parece ter ocorrido, uma vez que aquele não efetuou o pagamento da comparticipação familiar de descendentes e/ou herdeiros desde março de 2017.
O réu questiona, porém, a exigibilidade da comparticipação familiar peticionada pela autora, argumentando que inicialmente a sua tia entrou no lar por acordo, tendo depois surgido uma vaga da Segurança Social e que a comparticipação cujo pagamento assumiu no Termo de Responsabilidade anual nunca foi objeto de revisão anual, não obstante o ter solicitado, e a obrigatoriedade da aludida revisão, a que acresce ter a sua situação económica sofrido significativa alteração/revés por força de problema de saúde do foro oncológico.
Para melhor dilucidação desta questão, além do acordado entre as partes[4], importa, desde logo, considerar a Portaria nº 196-A/2015, de 1 de julho (posteriormente alterada pela Portaria n.º 218-D/2019), que definiu os critérios, regras e formas em que assenta o modelo específico da cooperação estabelecida entre o Instituto da Segurança Social, I. P. (ISS, I. P.) e as instituições particulares de solidariedade social ou legalmente equiparadas.
Segundo o artigo 2º daquele diploma, “[a] A cooperação no âmbito da segurança social assenta numa parceria, com partilha de objetivos e interesses comuns, mediante a repartição de obrigações e responsabilidades, com vista ao desenvolvimento de serviços e equipamentos sociais para a proteção social dos cidadãos”.
Por sua vez, para o que aqui releva, o artigo 3º, alínea d), define comparticipação familiar como “o montante variável, pago pelos utentes e ou pelas famílias pela utilização de uma resposta social, em função dos serviços utilizados e dos rendimentos disponíveis do agregado familiar”.
E, nos termos do artigo 12º, alínea f), do mesmo diploma, constitui obrigação das instituições “[a]plicar as normas de comparticipação familiar, tendo em conta o previsto no nº 2 do artigo 19º, o qual prescreve que “[p]ara cálculo do valor da comparticipação familiar a instituição deve observar os critérios estabelecidos no regulamento anexo à presente portaria e que dela faz parte integrante”.
No que respeita à revisão da comparticipação estabelece o ponto 10.1 do referido anexo, que “[a]s comparticipações familiares são, em regra, objeto de revisão anual a efetuar no início do ano letivo ou no início do ano civil”.
Já no ponto 10.2 estipula-se que “[p]or alteração das circunstâncias que estiveram na base da definição da comparticipação familiar de determinado agregado familiar, designadamente, no rendimento per capita mensal, as instituições podem proceder à revisão da respetiva comparticipação.
Com especial relevo para o caso, a propósito do apuramento do montante da comparticipação familiar por resposta social, dispõe o ponto 11:
«(…).
11.2.4 - À comparticipação familiar apurada nos termos do n.º 12.1. pode acrescer uma comparticipação dos descendentes ou outros familiares.
11.2.5 - Para efeitos da determinação da comparticipação dos descendentes e outros familiares deve atender-se à capacidade económica de cada agregado familiar, sendo o montante acordado entre as partes interessadas, mediante outorga de acordo escrito e com emissão do respetivo recibo de forma individualizada.
11.2.5.1 - Os critérios para apuramento da capacidade económica do agregado familiar, para efeitos da comparticipação referida no número anterior, constam de regulamento interno.»
Por sua vez, o Regulamento Interno do Lar de S. … aprovado em reunião de Mesa Administrativa a 16 de março de 2015[5], dedica o Seu Capítulo III à Comparticipação Familiar, estipulando no artigo 11º, sob a epígrafe “Comparticipação dos Utentes”:
«1. As comparticipações familiares são calculadas de acordo com a Circular N.º 4, de 16/12/2014, da DGSS, que dita que as mesmas são devidas pela utilização de serviços ou equipamentos da área da população idosa, através da aplicação de uma percentagem sobre o rendimento per capita do agregado familiar, de acordo com o seguinte quadro:
Serviços ou Equipamentos / Percentagem sobre o rendimento "Per Capita"
Lar de Idosos / Situação Tipo / 75% a 90%
2. A percentagem de 75% estipulada para os lares de idosos poderá ser elevada até 90% do rendimento per capita relativamente aos utentes nas seguintes situações:
a) Quando no momento da admissão o utente não esteja a receber o complemento de dependência de 10 grau, mas que já tenha requerido a sua atribuição, e caso seja atribuído, a Instituição decidirá pela aplicação da percentagem máxima referida no ponto anterior.
b) Idosos dependentes que não possam praticar com autonomia os actos indispensáveis à satisfação das necessidades humanas básicas, nomeadamente os actos relativos a cuidados de higiene pessoal, uso de instalações sanitárias, alimentação, vestuário e locomoção.
c) Idosos necessitados de cuidados específicos de recuperação ou saúde com carácter permanente, que onerem significativamente o respetivo custo.
d) Na situação prevista na alínea a) do ponto 2, não havendo a atribuição do referido complemento a percentagem será ajustada em conformidade.
3. As comparticipações familiares são objecto de revisão no início do ano civil, e de acordo com o Protocolo de Cooperação celebrado anualmente entre a União das Misericórdias e o Ministério do Trabalho e Solidariedade Social.
4. O cálculo do rendimento per capita do agregado familiar é realizado de acordo com a seguinte fórmula:
RC = RAF/12 - D N
Sendo:
RC = Rendimento per capita mensal
RAF = Rendimento do agregado familiar (anual ou anualizado) O = Despesas mensais fixas
N = Número de elementos do agregado familiar
Rendimento mensal ilíquido
O valor do rendimento mensal ilíquido do agregado familiar é o duodécimo da soma dos rendimentos anualmente auferidos, a qualquer título, por cada um dos seus elementos.
Despesas fixas
Consideram-se despesas fixas do agregado familiar:
a) O valor das taxas e impostos necessários à formação do rendimento liquido, designadamente do imposto sobre o rendimento e da taxa social única;
b) O valor da renda de casa ou de prestação mensal devida pela aquisição de habitação própria;
c) Os encargos médios mensais com transportes públicos;
d) As despesas com aquisição de medicamentos de uso continuado em caso de doença crónica.
Poderá ser estabelecido um limite máximo das despesas mensais fixas a que se referem as alíneas b), c) e d) do número anterior, não podendo esse limite ser inferior ao montante da retribuição mínima mensal garantida.
5. A prova de rendimentos declarados será feita mediante apresentação de documentos comprovativos adequados e credíveis, designadamente a declaração de IRS se for caso disso.
(…)
9. As comparticipações familiares dos descendentes, herdeiros e/ou responsáveis pelo utente serão revistas anualmente até o mês de Março, a Santa Casa participará por escrito ao familiar responsável.»
Como bem se diz na sentença recorrida, “a Autora não logrou demonstrar a exigibilidade da prestação que vem peticionar, pois não alegou, nem provou, que o valor da comparticipação familiar do familiar da Utente - aqui Réu - foi objecto da exigível revisão anual nos termos legal e estatutariamente previstos de acordo com a fórmula supra exposta tendo em conta a concreta situação económica do Réu (e não qualquer diferencial com o custo real do serviço prestado), não podendo o Tribunal substituir-se à Autora nessa tarefa, por não dispor de elementos para o efeito (atinentes à situação económica do Réu)”.
Com efeito, a autora não alegou - logo não provou - que tivesse procedido à revisão nos termos acima referidos, tendo usado, como também de forma acertada se diz na sentença recorrida, “um critério para fixar o valor da comparticipação de familiar (que pode acrescer à do utente) que desconsidera totalmente a concreta situação económica do Réu, este efectivamente (como confessou) não pagou o montante peticionado pela Autora tendo suspendido o pagamento no ano em que lhe foi diagnosticado um problema oncológico (certificado documentalmente pela junção de elementos clínicos) alegando que a Autora não estava a cumprir o Regulamento, (…)”.
Ora, indemonstrada a condição de revisão anual do valor da comparticipação do réu efetuada nos termos estatutários e legais, não é exigível ao réu aquela obrigação, como bem se decidiu na sentença recorrida.
Uma última palavra para o que vem vertido na conclusão 12ª, ou seja, que “a eventual inexigibilidade da obrigação conduziria à absolvição da instância e não à absolvição do pedido, não impedindo que, removidos os obstáculos que se consideraram fundamento da inexigibilidade a A. pudesse propor nova acção contra o R. reclamando o pagamento da prestação a que se encontra vinculado”.
Ora, só um qualquer equívoco na interpretação da lei pode justificar tal afirmação da recorrente, pois tendo o Tribunal conhecido do pedido e uma vez que resultou indemonstrada a inexigibilidade da obrigação a cargo do réu, este só podia ser absolvido do pedido e nunca da instância, estando a absolvição da instância reservada para os casos enunciados no artigo 278º do CPC.
Por conseguinte, o recurso improcede.
A autora goza de isenção de custas – artigo 4º, nº 1, alínea f), do Regulamento das Custas Processuais.

IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Sem custas, por delas estar isenta a autora.

*
Évora, 19 de novembro de 2020
(Acórdão assinado digitalmente no Citius)
Manuel Bargado (relator)
Albertina Pedroso (1º adjunto)
Tomé Ramião (2º adjunto)
_______________________________________________

[1] Facto aditado por esta Relação nos termos infra.

[2] Refere-se concretamente a recorrente à carta que o réu enviou à autora em 2017, à carta do mandatário do réu de 05-06-2017 e à carta/queixa de 29-03-2017 do réu à Segurança Social, documentos juntos com o requerimento de 27.05.2019 (ref.ª citius 5965848), sob os números 7, 10 e 11, respetivamente.

[3] Doravante CC.

[4] Cfr. ponto 9 dos factos provados e respetivo termo de responsabilidade.

[5] Junto aos autos em 10.12.2019 (ref.ª 6479286), por determinação do Tribunal.